Esaú e Jacó

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Impresso no Brasil, outubro de 2013 Copyright © 2013 by Henriqueta Do Coutto Prado Valladares Os direitos desta edição pertencem a É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda. Caixa Postal 45321 – CEP 04010-970 – São Paulo – SP Telefax (5511) 5572-5363 e@erealizacoes.com.br/www.erealizacoes.com.br

Editor Edson Manoel de Oliveira Filho Coordenador da Biblioteca Textos Fundamentais João Cezar de Castro Rocha Produção editorial Liliana Cruz Preparação Patrizia Zagni Revisão Cecília Madarás Capa e projeto gráfico Mauricio Nisi Gonçalves Diagramação André Cavalcante Gimenez Pré-impressão e impressão Edições Loyola

Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.

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Henriqueta Do Coutto Prado Valladares

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Olhares sobre a leitura

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Para Maurício, Maria Camila e Maria Clara, meus três amores; Para José Luis Jobim, pela orientação acadêmica e pela amizade.

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SUMÁRIO

| 1. Considerações sobre a vida e a obra de Machado de Assis



| 2. Esaú e Jacó por diversos olhares críticos



| 3. Olhos sobre o Bruxo



| 4. Ruminando teorias sobre leitura



| 5. Olhos no palco: encenações em Esaú e Jacó



| Considerações finais



| Bibliografia

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1 Considerações sobre a vida e a obra de Machado de Assis

Seguir as datas cronologicamente. Não vamos conseguir fugir dessa cilada. Mas tratando-se de Machado de Assis, seguir só retilineamente para um determinado fim, revelando fatos, trabalhos e publicações das obras do autor, é, no mínimo, desconfortável, porque temos certeza de que podemos correr o risco de apequenar a complexidade de tão rica vida e obra literária. O escritor de reconhecimento intelectual e artístico, ainda em vida e pós-morte, um ícone da literatura brasileira, coloca-se em lugar onde as pontas das datas só indicam um dos fatores a serem configurados na sua trajetória de vida. Alfredo Bosi nos socorre ao afirmar em “O Tempo e os Tempos” que as “datas são pontas de icebergs” por baixo dos quais passa “um mar em fúria”.1 Os icebergs trazem uma paisagem muito maior do que aquela que se pode ver na superfície. Com essa disposição é que começamos esta aventura de traçar a biografia de Machado: o desafio de saber Alfredo Bosi, “O Tempo e os Tempos”. In: Adauto Novaes (org.), Tempo e História. São Paulo, Companhia das Letras, 1992. 1

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que o dito esconde ainda outras tantas palavras importantes para se tentar conhecer a biografia de Machado de Assis. E que seu tempo, o século XIX e o início do XX, conheceu um cidadão que fez conviver o funcionário público com o artista que se tornou um escritor clássico, ultrapassando o limite cronológico e tornando-se vivo ainda atualmente. Crescem e multiplicam-se a cada dia leitores(as) de suas crônicas, seus contos e romances, suas poesias e peças de teatro. Joaquim Maria Machado de Assis nasceu em uma família pobre, no Rio de Janeiro, em 21 de junho de 1839. Filho de um operário mestiço de negro e português, Francisco José de ­Assis, e de D. Maria Leopoldina Machado de Assis, Joaquim Maria perdeu a mãe muito cedo (tinha nove anos) e foi criado pela madrasta, Maria Inês, que se dedicou ao menino e matriculou-o em uma escola pública. Contava, também, com a proteção da madrinha, D. Maria José de Mendonça Barroso, viúva do brigadeiro e senador do Império, Bento Barroso Pereira, proprietária da Quinta do Livramento, onde seus pais foram agregados. Francisco José e D. Maria Leopoldina tiveram dois filhos: uma menina, que foi batizada com o mesmo nome da mãe, Maria, que morreu ainda criança (aos quatro anos), vítima de sarampo, e um menino, Joaquim Maria, segundo filho do casal. D. Maria Leopoldina, mãe de Machado de Assis, nasceu em 7 de março de 1812, na cidade [ 10 - Biblioteca Textos Fundamentais ]

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de Ponta Delgada, Ilha de São Miguel, nos Açores. Morreu aos 36 anos. Dizem que Maria Leopoldina era uma pessoa muito querida pela madrinha de Machado e, por isso, foi enterrada no Convento de Santo Antônio, bem ao lado de dona Maria José, proprietária da Chácara do Livramento. Machado compôs uma poesia em memória de sua mãe. Transcrevemos a seguir um trecho do poema: Minha mãe Quem foi que o berço me embalou na infância entre as doçuras que do empíreo vêm? E nos beijos de célica fragrância velou meu sono puro? Minha mãe! Se devo ter no peito uma lembrança, é dela, que os meus sonhos de criança dourou: é minha mãe!

Do casamento Machado casou-se com D. Carolina Maria, que nasceu na cidade do Porto, em 20 de fevereiro de 1835. Carolina tinha 33 anos quando chegou ao Brasil. O casal Machado de Assis morou em diversos bairros. A casa mais conhecida é a que visualizamos a seguir. Era a famosa “Casa do Cosme Velho”. O casal viveu junto por mais de trinta anos. Não tiveram filhos. Sua companheira morreu em 1904, deixando-lhe muito só e já doente. Machado sentiu um vazio imenso com a partida [ Esaú e Jacó. Olhares sobre a leitura - 11 ]

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de Carolina. Foi o que revelou em carta ao amigo Joaquim Nabuco, datada de 20 de novembro de 1904, conforme se lê a seguir: Meu caro Nabuco, Tão longe, em outro meio, chegou-lhe a notícia da minha grande desgraça, e você expressou logo a sua simpatia por um telegrama. A única palavra com que lhe agradeci [‘Obrigado’] é mesma que ora lhe mando, não sabendo outra que possa dizer tudo o que sinto e me acabrunha. Foi-se a melhor parte da minha vida, e aqui estou só no mundo. Note que a solidão não me é enfadonha, antes me é grata, porque é um modo de viver com ela, ouvi-la, assistir aos mil cuidados que essa companheira de 35 anos de casados tinha comigo; mas não há imaginação que não acorde, e a vigília aumenta a falta da pessoa amada. Éramos velhos, e eu contava morrer antes dela, o que seria um grande favor; primeiro porque não acharia a ninguém que melhor me ajudasse a morrer; segundo, porque ela deixa alguns parentes que a consolariam das saudades, e eu não tenho nenhum. Os meus são os amigos, e verdadeiramente são os melhores; mas a vida os dispersa, no espaço, nas preocupações do espírito e na própria carreira que a cada um cabe. Aqui me fico, por ora na mesma casa, no mesmo aposento, com os mesmos adornos seus. Tudo me lembra a minha meiga Carolina. Como estou à beira do eterno aposento, não gastarei muito tempo em recordá-la. Irei vê-la, ela me esperará. [...] [ 12 - Biblioteca Textos Fundamentais ]

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Até outra e breve; então lhe direi o que convém ao assunto daquela carta, que, pelo afeto e sinceridade, chegou à hora dos melhores remédios. Aceite este abraço do triste amigo velho Machado de Assis.

A casa do Cosme Velho A casa do Cosme Velho custava ao casal a importância de 130 réis mensais. Por toda a vida, Machado de Assis nunca teve casa própria. Não existe mais a casa no local. Do editor da obra Baptiste Louis Garnier chegou ao Rio de Janeiro em meados da década de 1840, estabelecendo na rua do Ouvidor, no 71, uma filial da livraria que ele e seu irmão, Hypollite Garnier, tinham em Paris. Machado de Assis frequentava a livraria nos finais de tarde. Diziam que tal lugar se tornou ponto de encontro de intelectuais. A princípio, a loja vendia produtos importados da França, como bengalas e charutos, perfumes e até remédios. Mas cresceu com a venda de livros importados, os quais Garnier mandava traduzir. Um dado também importante é que, a partir de 1859, passou a publicar a Revista Popular e, com o desaparecimento desta, editou o Jornal das Famílias. Neste, Machado escrevia, assinando como “Victor [ Esaú e Jacó. Olhares sobre a leitura - 13 ]

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de Paula”, “J.”, “Job”, “J. J.”, alguns de seus muitos pseudônimos. Talvez o mais conhecido deles tenha sido “Boas Noites”. Machado de Assis usou esse pseudônimo para subscrever as crônicas intituladas “Bons Dias!”, na Gazeta de Notícias (Rio de Janeiro, de 1888 a 1889). Outras publicações Em dezembro de 1869, com contrato assinado com a editora Garnier, Machado de Assis publicou o livro de poemas Falenas e os Contos Fluminenses (seu primeiro livro de contos). Histórias da Meia-Noite e Páginas Recolhidas surgiram, respectivamente, em 1873 e em 1899; Várias Histórias, em 1896. Os romances vieram na seguinte ordem cronológica: Ressurreição, em 1872; A Mão e a Luva, em 1874; Helena, em 1876; Iaiá Garcia, em 1878; Memórias Póstumas de Brás Cubas, em 1881; Quincas Borba, em 1891; Dom Casmurro, em 1899/1900; Esaú e Jacó, em 1904; e Memorial de Aires, em 1908. Em 1901, foi publicado o volume com as Poe­sias Completas (Crisálidas, Falenas, Americanas), de Machado de Assis. Relíquias de Casa Velha, miscelânea onde publicou o famoso soneto “A Carolina”, é de 1906. Machado e a Academia Brasileira de Letras (ABL) Em 20 de julho de 1897, em uma sala do “Pedagogium”, na Rua do Passeio, realizou-se [ 14 - Biblioteca Textos Fundamentais ]

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a sessão inaugural, na qual estiveram presentes dezesseis acadêmicos. Rodrigo Otávio, primeiro-secretário, leu a memória histórica dos atos preparatórios, e o secretário-geral, Joaquim Nabuco, pronunciou o discurso inaugural. Machado de Assis proferiu as palavras de abertura da sessão que inaugurava a Casa: 20 de julho de 1897 Senhores, Investindo-me no cargo de presidente, quisestes começar a Academia Brasileira de Letras pela consagração da idade. Se não sou o mais velho dos nossos colegas, estou entre os mais velhos. É simbólico da parte de uma instituição que conta viver, confiar da idade funções que mais de um espírito eminente exerceria melhor. Agora que vos agradeço a escolha, digo-vos que buscarei na medida do possível corresponder à vossa confiança. Não é preciso definir esta instituição, iniciada por um moço, aceita e completada por moços, a Academia nasce com a alma nova, naturalmente ambiciosa. O vosso desejo é conservar, no meio da federação política, a unidade literária. Tal obra exige, não só a compreensão pública, mas ainda e principalmente a vossa constância. A Academia Francesa, pela qual esta se modelou, sobrevive aos acontecimentos de toda casta, às escolas literárias e às transformações civis. A vossa há de querer ter as mesmas feições de estabilidade e progresso. Já o [ Esaú e Jacó. Olhares sobre a leitura - 15 ]

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batismo das suas cadeiras com os nomes preclaros e saudosos da ficção, da lírica, da crítica e da eloquência nacionais é indício de que a tradição é o seu primeiro voto. Cabe-vos fazer com que ele perdure. Passai aos vossos sucessores o pensamento e a vontade iniciais, para que eles o transmitam aos seus, e a vossa obra seja contada entre as sólidas e brilhantes páginas da nossa vida brasileira. Está aberta a sessão.

Em 1873, o escritor foi nomeado primeiro-oficial da secretaria de Estado do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Sua ­carreira burocrática teve uma ascensão muito rápida, uma vez que, em 1892, já era diretor-geral do Ministério da Viação. O emprego público garantiu a estabilidade financeira, uma vez que viver de literatura naquela época era quase impossível, mesmo para os bons escritores. Machado de Assis morreu, no Rio de Janeiro, em 29 de setembro de 1908. * Muitos críticos literários brasileiros famosos, de perfil sensível e arguto para aspectos do texto, estudiosos de linhas teóricas diversas, escreveram sobre a extensa obra do escritor fluminense Joaquim Maria Machado de Assis. A dedicação ao estudo que tenha por objeto a obra de Machado configura-se logo um desafio. A disponibilidade e o grande acervo de t­extos [ 16 - Biblioteca Textos Fundamentais ]

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críticos implicam que se façam levantamentos extensivos, se não de todos – porque é impossível fazê-lo pelo vultoso número de textos que compõem esta fortuna crítica –, pelo menos de alguns desses textos, de leitura fundamental para o conhecimento do universo literário machadiano. Escolhemos, neste grande elenco de textos críticos de imenso valor para os estudos machadianos, começar pela publicação de Alfredo Bosi, intitulada O Enigma do Olhar,2 em função do campo de visão que o crítico aí alcança. Desde os contos até os romances, somos guiados pelos olhos atentos de Bosi para o universo literário de Machado de Assis. São esses olhares que, por sua vez, inspiram os nossos em várias etapas do texto que apresentamos. Marcamos a presença de nossa leitura de Bosi principalmente na escolha dos subtítulos dos capítulos, na medida em que todos eles recebem a referência aos olhares dos diversos leitores de Machado. Leitores que somos da obra machadiana, somamos nossos olhares aos de outros, que também dela se acercaram, tornando, assim, interminável a rede de possíveis leituras para ela. Ocupamo-nos ainda dos múltiplos olhares do próprio Machado de Assis voltados, principalmente, para os(as) leitores(as), para os modos como liam à época, para o fazer literário, enfim, para o viés teórico Alfredo Bosi, Machado de Assis: O Enigma do Olhar. São Paulo, Ática, 1999. 2

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que se encontra internalizado em muitas de suas obras, como veremos, de modo especial, no romance Esaú e Jacó. Ainda que se opte pelo estudo de um dos romances do escritor, como faremos aqui, escolhendo Esaú e Jacó, nossos desafios não são menores. Há um conjunto de notáveis leituras sobre o romance que, se não nos inibe de prosseguirmos em nossa intenção de contribuir ainda com mais uma leitura da obra, nos coloca na obrigação de reconhecer que uma história das recepções daquele romance é decisiva para que possamos fazer a nossa. Movidos por esse reconhecimento, traçamos nossa primeira etapa de trabalho: percorrer várias recepções do romance, em diferentes tempos, estabelecendo uma espécie de inventário crítico sobre o romance ou uma pequena história de suas recepções. Em 2004, quando se comemorou o centenário de publicação de Esaú e Jacó (1904), esperava-se que a crítica novamente voltasse ao romance, aumentando ainda mais o acervo de estudos sobre ele. Em datas comemorativas, quando a obra torna a ficar em evidência, cria-se uma situação propícia a novas leituras, enriquecendo, dessa forma, ainda mais o inventário crítico a ser considerado. Foi justamente o que aconteceu ao abrirmos a primeira página do Suplemento Literário “Prosa e Verso”, do jornal O Globo, de 28 de fevereiro de 2004, onde se lia o seguinte título, dado por ­Antonio Carlos Secchin, ao texto que inaugurou [ 18 - Biblioteca Textos Fundamentais ]

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o aniversário de publicação do romance: “Irmãos e inimigos: Esaú e Jacó, obra-prima em que Machado cede à tolerância, completa 100 anos”.3 Antonio Carlos Secchin, poeta, crítico e professor de Literatura Brasileira, nesta leitura sensível e reveladora de aspectos evidenciadores da qualidade artística de Esaú e Jacó, convidava os leitores a retornar ao romance para uma releitura. Aos que ainda não leram a obra, há em cada um dos parágrafos da resenha crítica argumentos encantadores para fazê-lo. Para aqueles que ainda não se ocuparam da leitura dessa obra, que ingressem, urgentemente, por seus meandros. Destacamos do referido texto jornalístico um desses trechos de especial valor, na medida em que, a partir dele, retomamos a justificativa que demos para a valorização do olhar como espécie de “mapa-guia”, também para os leitores de nosso texto. Conforme outros olhares de diferentes leitores perceberam, a força de Esaú e Jacó não se encontra na história factual. As palavras de Secchin iluminam essa nuance do romance, inquietando os leitores, da seguinte forma: “Em Machado, o fato é (quase nada); o olhar é tudo. Para saber de um homem, não basta ver o que ele vê; é preciso, sim, vê-lo ver e, sobretudo, vê-lo ver-se”.4 Antonio Carlos Secchin, “Irmãos e Inimigos: Esaú e Jacó, Obra-Prima em Que Machado Cede à Tolerância, Completa 100 Anos”. O Globo, suplemento “Prosa e Verso”, sábado, 28/02/2004, p. 1-2. 4 Ibidem, p. 1. 3

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Durante o desenrolar do século XX, conforme as teorias da literatura foram mudando seus focos na abordagem do texto, notaram-se também tais transformações na crítica do romance. Assim, em algumas das recepções de Esaú e Jacó, dá-se ênfase aos entrecruzamentos entre ficção e história. Em outra, influenciada pela escola estruturalista, são levantados os aspectos estruturais do romance. Chegamos, mais adiante, às críticas sustentadas por conceitos teó­r icos da Estética da Recepção. A tese de Glória Vianna – Machado de Assis: O Leitor Ruminante e suas Bibliotecas5 – traz no seu título referência ao Esaú e Jacó, em que a definição desse tipo de leitor “que tem quatro estômagos no cérebro”6 é apresentada por Machado de Assis, no romance em evidência. A partir daí, ela reconhece uma verdadeira “teoria da ruminância”7 em obras de Machado de Assis. Estende ainda, com base em suas conclusões, ao escritor a categoria de leitor ruminante. Muitos críticos foram sensíveis ao tratamento dado aos leitores ou às leitoras por Machado em seus textos narrativos, sempre sendo evocados, mas o trabalho de Glória Vianna evidencia que o foco de interesse em Glória Vianna, Machado de Assis: O Leitor Ruminante e suas Bibliotecas. Tese de doutorado. Niterói, UFF, 2002. 6 Joaquim Maria Machado de Assis, Esaú e Jacó. In: Obra Completa. Vol. I. Rio de Janeiro, Aguilar, 1959, p. 948. 7 Glória Vianna, op. cit., p. 6. 5

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Machado como leitor – que é seu na tese – é um campo ainda bem pouco explorado pela crítica especializada na obra machadiana. Aqui, seguimos um rumo diverso ao de Glória Vianna. Optamos por uma espécie de história das recepções, tencionando conhecer de que maneira o romance Esaú e Jacó vem sendo lido ao longo do século XX, até os nossos dias, desde sua publicação, em agosto de 1904. Mas nossa vivência, conquistada a partir dessas leituras, também mostra que a abordagem das obras machadianas com enfoque na recepção pode contribuir para renovar a crítica, seguindo por um viés que na história da literatura vinha sendo esquecido: o que tratava especialmente do leitor, dos modos de leitura, da teoria da literatura. Encontramos nas reflexões teóricas sobre autor, recepção e leitor, propostas por Roland Barthes, Michael Foucault, Gilles Deleuze, Luiz Costa Lima, Umberto Eco, Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser, amparo para sustentar nossas ideias para a segunda parte do texto. Nesse momento, nosso interesse recai no aspecto teórico que o romance revela nos níveis do enunciado e da enunciação. Anteriormente, expusemos que ainda há um campo a ser explorado, abordando Esaú e Jacó sob tal aspecto. A partir da mudança de foco nos estudos literários, valorizando a figura do leitor e relativizando o “biografismo redutor”8 ou a 8

Antonio Carlos Secchin, op. cit., p. 2.

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s­upremacia do autor, abrem-se novas possibilidades de abordar a obra. Reconhecemos a capacidade teórica dela ainda porque as reflexões críticas que este romance inscreve em sua linguagem se dão em múltiplas direções. Elas relacionam-se, por exemplo, à história da literatura, na medida em que o realismo e o romantismo, enquanto estilos de época, são contestados. As estruturas dos regimes políticos, Monarquia e República, igualmente se mostram frágeis.Também estão em foco crítico a sociedade capitalista que faz emergir valores cerceadores de comportamentos, desejos e opções dos que nela vivem. Flora é inexplicável porque deseja “algo outro”, diferente do que lhe impõe aquela sociedade. Assim, o discurso de Paulo chama a atenção para a liberdade que se dá ao negro, mas não esquece a própria condição de todos (negros e brancos) naquela sociedade do final do século XIX. Eles são vítimas de um sistema social cerceador, cada vez mais marcadamente capitalista e propulsor de desigualdades de classe. Entendemos bem o traço teórico do romance Esaú e Jacó seguindo as ideias de Luiz Costa Lima, ao afirmar que quando uma comunidade não tem a prática da discussão, o uso da linguagem crítica sempre lhe parece ameaçador. Sendo, ademais o discurso teórico produto de desdobramento da reflexão crítica, é natural que dentro daquela comunidade, o seu praticante encontre dentro de si mesmo e a seu redor, dificuldades [ 22 - Biblioteca Textos Fundamentais ]

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maiores de realização [...] pois seus pares tenderão a encará-lo como alguém que joga areia em olhos até então descansados.9

Seguiremos por textos dos teóricos citados anteriormente que nos auxiliam em análise comparativa entre o que propõe o discurso teórico e de que maneira este se manifesta em Esaú e Jacó. Importam, por exemplo, as primeiras contestações de Roland Barthes sobre o “império do autor”, que sustentou durante muitos anos a crítica que considerava os sentidos da obra literária privilégio e domínio deste, subestimando e mesmo ignorando os leitores como parte do processo criativo. Ainda acompanhando o pensamento teórico de Roland Barthes, são importantes os conceitos que sustentam os “recalcamentos de leitura”,10 uma vez que a partir deles poderemos nos certificar da consciência de Machado de Assis sobre as obrigações externas impostas aos leitores, que muitas vezes os fazem abandonar um livro. Nesse sentido comparativista, auxiliam-nos também as noções teóricas sobre os tipos diferentes de leitores, como os “empíricos” ou os “modelos”,11 estudados por Umberto Eco, em Luiz Costa Lima, Dispersa Demanda. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1981, p. 193. 10 Roland Barthes, O Rumor da Língua. Lisboa, Edições 70, 1984, p. 33. 11 Umberto Eco, Seis Passeios pelos Bosques da Ficção. São Paulo, Companhia das Letras, 1994, p. 15-16. 9

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Seis Passeios pelos Bosques da Ficção. Nesse mesmo propósito, valem as ideias de Wolfgang Iser sobre o “leitor implícito”,12 apresentadas em O Ato da Leitura. Em O Fictício e o Imaginário, os conceitos de “encenação”,13 “performance” em vez da mimese aristotélica,14 o “jogo no texto”,15 levam-nos à reflexão crítica que nos modifica enquanto leitores, permitindo-nos alcançar a consciência estética avançada de Machado de Assis, porque ele discutia elementos teóricos, em tempo que não se cuidava de tal assunto no romance. Poderemos constatar na leitura que faremos de Esaú e Jacó que tais conceitos teóricos, citados anteriormente, estão no romance de forma não ilustrativa, mas em sua própria constituição ficcional. Evidência que a prática é, muitas vezes, uma teoria que se desconhece. Tal teoria ganha visibilidade através dos leitores, mas também os torna visíveis.

Wolfgang Iser, O Ato da Leitura: Uma Teoria do Efeito Estético.Vol. 1. São Paulo, Editora 34, p. 73. 13 Idem, O Fictício e o Imaginário: Perspectivas de uma Antropologia Literária. Rio de Janeiro, Eduerj, 1996, p. 356. 14 Ibidem, p. 350. 15 Ibidem, p. 328. 12

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