A Arte Secreta do Ator - Um dicionário de antropologia teatral

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anatomia

Pode o mar elevar-se por sobre as montanhas? A Grande Onda de Kanagawa de Hokusai (ver p. 31) mostra homens, barcos e o Monte Fuji: os homens e seus esforços surgem como detalhes na grande flutuação da natureza. Segundo o Zen, diante da imagem da onda existem quatro pontos de vista: 1. As crianças pensam que a onda é uma coisa, um corpo separado da água que se move sobre a superfície do mar, diferente das outras ondas e do próprio mar. Mas, quando lhes ensinam a olhar atentamente, elas descobrem que não se pode distinguir a onda como algo separado: a onda é um fenômeno que se move no oceano. Ainda tem sentido em falar da onda, mas como uma entidade que só está separada teoricamente. 2. A onda está prestes a se chocar com os barcos e com o Monte Fuji. 3. A onda não se choca com o Monte Fuji porque ele está muito longe, ainda que pareça estar embaixo da onda. 4. Não há papel nos barcos, no mar, sobre a montanha ou no céu. Procura-se por ele, mas não pode ser encontrado: no entanto, tudo isso nada mais é do que papel. De fato não há movimento, não há distância, molhado ou seco, vida ou morte. Em um espetáculo — que não é feito de papel —, o movimento, a distância, o molhado e o seco, a vida e a morte existem, mas apenas no reflexo da ficção. No entanto, alguém disse que dançamos internamente não apenas ao escutar uma música, mas também ao perceber formas e imagens refletidas. Em 1815, após ter publicado o famoso álbum intitulado Cenas de Dramas, uma sequência de cinquenta e seis cenas extraídas dos dramas mais famosos do Kabuki dos séculos XVII e XVIII, nos quais triunfavam, em cores delicadas, todas as maiores heroínas do teatro, Hokusai também mandou imprimir um pequeno livrinho de desenhos, que foi publicado com o título Aulas de Dança para Si Mesmo. Trata-se de uma série de gravuras em preto e branco, cada uma representando quatro ou cinco pequenas figuras de dançarinos: à direita e à esquerda de seus braços e de seus pés, uma linha reta ou curva indica o desenvolvimento completo do movimento iniciado por aquele braço ou por aquele pé. Seguindo as indicações, era possível aprender as danças mais populares do Japão: a dança do barqueiro, a do espírito diabólico, a do cômico e a do vendedor de água fresca... (Ver p. 32). Na última página do manual, Hokusai, com a mesma ironia de sempre, escreveu: Se alguém cometer erros quando executar os movimentos e suas medidas, peço desculpas. Desenhei assim como sonhei, e, como o sonho de um espectador não pode oferecer exatamente tudo, se quiserem dançar bem, aprendam a dançar com um mestre. Se meu sonho não pode formar um dançarino de verdade, pelo menos pode formar um álbum. Mas, afinal, o que eu aconselho, quando quiserem dançar, é colocar a tabaqueira e as taças de chá num lugar seguro: ainda que consigam salvá-las, sempre terão no chão uma porção de caquinhos.

[2-3] (acima) Esquema do processo criativo de um ator segundo Stanislávski: 1. Ação Física; 2. Máxima de Púschkin; 3. O subconsciente através da técnica consciente; 4. Pereživanie; 5. Personificação; 6. Intelecto; 7. Vontade; 8. Sentimento; 9. Papel, perspectiva do papel, linha de ação; 10, 11 e 12. Trabalho espiritual e trabalho físico; 13. Sensibilidade cênica geral; 14. Problema principal; (abaixo) a técnica deforma a anatomia: o pé de Rudolph Nureyev.

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