Contos fantásticos da 42 - Uma antologia inesperada

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Copyright © Editora 42 Coordenação editorial: Eleonora Ducerisier Revisão: Eleonora Ducerisier e Pã Montenegro Capa, diagramação e projeto gráfico: Eleonora Ducerisier Impressão: Singular Digital Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Contos fantásticos da 42: uma antologia inesperada / organizada por Eleonora Ducerisier. -- 1. ed. -Araraquara, SP: Editora 42, 2014. Vários autores. ISBN 978-85-68077-04-7 1. Contos brasileiros - Coletâneas I. Ducerisier, Eleonora. 14-0380

CDD-869.9308

Índices para catálogo sitemático: 1. Antologia: Contos: Literatura Brasileira 869.9308

[2014]

Editora 42 Avenida Comendador Alberto Dias, 359 Vila José Bonifácio Cep: 14801-070 Araraquara – SP www.editora42.com


“O mais fantástico é aquilo que pode acontecer e julgamos que nunca vá... E nos enganamos.” Jorge Montenegro


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Contos fantásticos da 42 é uma reunião de contos, como dizer? Fantásticos! Ou seja, contos sobre tudo aquilo que foge do esperado, do estritamente real e que dá asas ao imaginário. Reunindo dez autores estreantes, com dezenove contos que passam pelo terror, o poético e o mais surreal possível, a Editora 42 oferece ao leitor, ou pelo menos assim espera, um brinde à paixão pela leitura. Que você não pare no primeiro conto. Que você retorne após o último. Bem-vindo.

Editora 42



Índice Jacques

11

O grande segredo

19

O Gato

27

África

31

O relógio de painel branco

35

O cara de um conto

43

Os sobreviventes

49

Exilados da Capela

57

Gleise 581d

65

Infalível

79

Intangível

79

Incrível

81

Intragável

82

Invisível

83

Impossível

84

Incalculável

85

Indizível

86

Narobi

91

Elodie

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Jacques

Ana Henrique

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Quem é Ana Henrique Gosto da palavra escrita, sempre gostei. Gosto de suas formas, de seus sons e de suas nuances. Quando era criança, lia muita poesia porque a sonoridade das rimas me fazia voar alto, e quando não entendia alguma palavra brincava de inventar significados para ela.

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Jacques Jacques expulsava o oxigênio de seu corpo e, lentamente, deitava no chão da piscina: a água afastava o vazio de sua realidade, e mesmo que por apenas alguns segundos, ele se sentia um ser humano novamente. Não o garoto cuja carreira em ascensão provocara uma mudança radical em sua relação com o mundo e com as pessoas que, até então, haviam sido seu suporte financeiro e emocional, sua família e sua namorada. Não o modelo que enfiava dois dedos goela abaixo, expulsando toda comida de seu estômago e vendo-a desaparecer na privada em uma espiral amarelada e mal cheirosa. Não a criatura insensível que chamara Elodie, a única mulher que verdadeiramente se preocupava com ele, de gorda ridícula, escorraçando-a como um cachorro vira-latas. Não o monstro que provocara o acidente que a fizera abortar. Na água ele era apenas Jacques. Jacques lutando contra a vontade esmagadora de respirar e se afogar no vazio. Jacques residente do tradicional Arrondissement de Passy. Jacques. Ex-modelo. Abriu os olhos quando seu corpo não conseguia mais suportar a falta de oxigênio. Do fundo da piscina viu então o contorno do telhado da casa, vacilante e impreciso como uma pintura impressionista. Tentou ignorar a agonia em seu peito, mas, não obtendo sucesso — seu corpo precisava desesperadamente de ar—, começou a emergir. Quando chegou à superfície e pôde respirar, sentiu como se algum órgão dentro de si tivesse implodido. Sua respiração, que rompeu dolorosa e ofegante, lembrava o impacto dos cascos de cavalos em uma corrida; cada pedacinho de seu pulmão brigava pelo ar que lhe era devido, assim como cada encontro firme e furioso entres os cascos e o chão provocava rítmicos estrondos que só cessariam quando a corrida acabasse. 2 14 2


De volta em seu quarto, sentou-se na cama king size, quebrada há mais de três meses, e fixou seu olhar na mesma porta onde, há cerca de dois anos, as batidas se repetiam insistentes. Lembranças passeavam por sua mente, afiadas e cortantes: a briga, os insultos, a raiva. Tum. Tum. Tum. —Jacques! Ces’t moi. Ouvre la porte!...Jacques! Batidas mais fortes agora. —Jacques! Abra a porta, s’il vous plait, precisamos conversar! Jacques, semiacordado, senta-se na cama com dificuldade. Sentindo um misto de frustração e raiva que cresce a cada batida, lembra-se do jantar no qual ela anunciou o término do relacionamento como se estivesse anunciando a previsão do tempo, enumerando suas atitudes “imaturas” e culpando-o pelo afastamento dos dois. A revolta, até então reprimida, começa a se espalhar pelo seu corpo como um câncer, obstruindo sua visão. Porra, ela não terminou tudo! Não jogou todas as coisas numa mala e saiu batendo a porta da casa que ele comprou, com o dinheiro da profissão que ela desprezava tanto! Do corredor, a voz de Elodie soava cada vez mais alta: —Jacques, ouvre la porte, putain de merde! —C’est qui?— Perguntou só pra deixá-la mais irritada. —Putain! Você sabe muito bem quem é. Abra essa porta de uma vez! Ele abriu e a encarou com o desprezo que julgou adequado. A beleza angelical de Elodie, no entanto, atingiu-o como um golpe e por um momento Jacques se esqueceu de todo o resto: ela realmente engordara nas últimas semanas, mas os quilos ganhos só faziam ressaltar a harmonia de seus traços, a delicadeza de seu semblante. Algo novo estava operando mudanças físicas na mulher que havia sido sua amante. Algo ou alguém? Será que ela já estava saindo com outro cara? Pelo que ele conhecia de Elodie isso não era provável, mas a mera possibilidade foi suficiente para trazer toda sua irritação de volta. Em um rosnado, disse: — O que você quer? Já não levou todas as suas tralhas? 2 15 2


Elodie começou a chorar; seu corpo dobrou-se sobre si mesmo, como que contorcido por uma súbita dor de barriga. Por um momento ele considerou se abaixar para acariciar seus cabelos, imaginou-se sussurrando baixinho em seu ouvido, mas algo o fez hesitar. Lembrou-se do que ela havia dito antes, “precisamos conversar”, e teve um presságio: ela veio dizer o indizível. Elodie havia achado alguém melhor do que ele, alguém que não precisava se vender diariamente para ganhar dinheiro, alguém bom, alguém digno. Era isso. E isso ele simplesmente não podia suportar. Em menos de um segundo, a confusão e a revolta arrebentaram soltas e agressivas, esguichando de seus poros como água de uma mangueira. Por conta do excesso de adrenalina que seu corpo havia produzido naqueles poucos minutos, sua memória do evento era imprecisa, arisca. Sabia que havia gritado com ela, com Elodie, empurrando-a corredor abaixo, chamando-a de vadia traiçoeira e gorda imunda, perguntando qual era o nome do filho da puta para quem ela estava dando. Lembrava-se também que, no apogeu de sua cólera, havia agarrado seus cabelos, colocando-a para fora. Lembrava, tendo plena certeza de que para sempre lembraria, do momento em que ela o olhou com ódio profundo e cuspiu em sua cara. Elodie saiu correndo. Jacques ficou parado na calçada da casa que comprara há milênios. Três horas depois, a ligação da mãe de Elodie, histérica, dizendo que sua filha fora atropelada e que havia perdido a criança. —Que criança? — Perguntou atônito, sentindo um pânico asfixiante embaçar seus sentidos. Depois vomitou, naturalmente. Depois desmaiou. Pela primeira vez desde o acidente, sentado naquela cama quebrada, Jacques deixou-se absorver inteiramente pelo fantasma que o perseguia desde então: a culpa por ter ferido e mudado irreversivelmente a vida do filho e da mulher que um dia amara, que talvez ainda amasse. Acolheu então a dor e, chorando, convidou a escuridão. De repente, Jacques, que em posição fetal se desintegrava, ouviu o suspiro de uma voz melodiosa que cantarolava provocante: 2 16 2


Can… Caaaaaannnn… Com um sobressalto, reconheceu imediatamente a melodia e a voz do cantor que, nos primeiros anos de sua adolescência, havia sido seu favorito. O suspiro veio de novo, mais alto desta vez. … Anybody… Era como se Freddie estivesse ao seu lado, cantando as palavras que se desenrolavam sedutoras. Sentiu então sua própria voz trêmula responder desobediente: — Find me?… A continuação soou clara como água: … Somebody to love! E lá estavam as inconfundíveis notas de piano que abriam a canção tão famosa. Olhou ao redor do quarto, mas não viu nada. A canção, no entanto, continuava e ele sentia um desejo insano de acompanhá-la: … Can barely stand on my feet. Take a look in the mirror and cry, Lord, what you’re doing to me! Jacques pôs-se de pé e andou em direção à porta. … I have spent all my years in believing you, but I just can’t get no relief, Lord! Somebody, somebody Pelos corredores imundos da casa ele, cantando, passou. dirigiu-se à garagem, entrou no carro e todos os membros da banda embarcaram com ele: Roger ao seu lado, Freddie no banco de trás, sentado entre Brian e John. … Everyday— I try and I try and I try — but everybody wants to put me down; they say I’m goin’ crazy. They say I got a lot of water in my brain… Got no common sense! I got nobody left to believe … Yeah — yeah, yeah, yeah! Parou na frente da casa de repouso onde Elodie havia sido internada. Com facilidade ganhou acesso aos corredores e seguiu em direção ao jardim. Tinha a distinta sensação de que a encontraria lá e, ao seu redor, a música continuava otimista: 2 17 2


... Got no feel, I got no rhythm. I just keep losing my beat… Respondeu: I’m ok, I’m alright. E continuou andando. Começou a pensar que havia se perdido em um labirinto, quando se percebeu dentro de uma sala redonda, sem portas ou qualquer entrada visível. Olhou ao redor desesperado, como a porcaria de uma sala podia se colocar entre ele e seu pedido de perdão? ... I just gotta get out of this prison cell! Someday I’m gonna be free, Lord! Encostado na parede, o guitarrista tocava sua guitarra indiferente. Jacques sentiu então algo pontudo sob seu pé esquerdo e, ao se abaixar para ver o que era, encontrou uma chave posta sobre sua fechadura, pronta para ser girada. Sentiu medo. Toda a coragem que o trouxera até ali desaparecera sem deixar rastro, e ele já não tinha mais certeza de si mesmo, ou de qualquer outra coisa. Entretanto, queria ter a chance de se explicar, ou de pedir perdão, pelo menos. Find me. Somebody to love. Find me. Somebody to love. Find me. Somebody to love. Find me .Somebody to love. Somebody, somebody, Girou a chave. Sob o peso do seu corpo, a porta cedeu com facilidade e pareceu alongar-se como uma prancha ou trampolim. Da sala redonda, os quatro assistiram-no mergulhar na escuridão, suas vozes se alternando de forma harmoniosa no último refrão: Somebody, somebody, Somebody find me Somebody find me somebody to love Can anybody find me… Somebody to love! Jacques mergulhou, e só abriu os olhos quando seu corpo não conseguia mais suportar a falta de oxigênio. Find me Somebody to love. 2 18 2


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O grande segredo

Graรงa Lacerda

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Quem é Graça Lacerda Maria das Graças Lacerda é licenciada em Letras . Mineira, mora em Pouso Alegre e leciona há alguns anos nesse Estado e no município. Começou a rabiscar seus primeiros poemas na adolescência, não chegando a publicá-los. O gosto por escrever crônicas e contos veio da época da faculdade, quando já começou a lecionar e a fazer brilhar os olhos de seus alunos ao transmitir o prazer e o encanto pela leitura. Possui duas crônicas publicadas através de um concurso municipal e outro concurso estadual: Sala de Aula — Ponto de vista ganhou menção honrosa, em 2001, e O Gosto de ser Mineiro, através do concurso de mesmo nome, para o Estado de Minas Gerais, foi considerado hors-concurs, em 1998. O despertar para mais rabiscos veio depois... Participou de duas Antologias Poéticas, já publicadas, com o poema Sextilhas de uma vida, através do Concurso Nacional Novos Poetas, Prêmio Sarau Brasil, e com o poema Comunicado, a convite do escritor Marciano Vasques, para a Antologia Poesia 2013. Cursou Psicopedagogia Clínico-Institucional por acreditar que ainda há esperança para a criança em situação de vulnerabilidade e violência escolar. Atua no PETI — Orientadora de Projetos Pedagógicos e Monografias, é revisora de Português e scrapper digital. Mãe de Éderson, Célio e Renato e com um(a) netinho(a) a caminho para sua felicidade. Seu blog Os Botões de Madrepérola é onde posta seus contos em parceria com outras escritoras. Esteveu no Recanto das Letras por breve tempo. Autora do Projeto Lexicoterapia — Adormecer e Acordar Palavras®, tema de TCC de Pós-graduação e que brevemente se transformará em livro. Ama o arco-íris e pessoas. Teme a Deus, e Jesus Cristo é sua maior fonte de alegria e de inspiração.

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O grande segredo Não poderia definitivamente ter sido de outra forma. Ela resolvera que acreditaria nele, o tempo todo, incondicionalmente. Teria tempo suficiente para tentar desvendar aquele agradável mistério: seguiria suas intuições e assim seria fiel a seus princípios. Desde que se conheceram e travaram aquela sadia, porém severa e obscura amizade — permeada de reticências e interrogações — houve entre eles um pacto de fidelidade (e tão literal afinidade) que os uniu e os prendeu um ao outro quase que de imediato. Porém, tudo naquele homem respirava um quê de segredo, ofuscado... temido. Uma obscuridade desconcertante e estranha, oculta e misteriosamente instigante, que mesmo sua inteligente personalidade não conseguiria e nem ousaria sequer tentar entender. Aquilo tudo era demais, para sua provinciana razão. As reservas, os olhares inquietantes emanados daquele homem muitas vezes faziam-na gelar como num estranho e delicioso frio que percorria sua coluna, difícil de interpretar, enigmático demais para ela. Imaginava, à guisa de metáfora, um prédio que fosse obrigada a carregar sozinha por uma curta distância, porém sentindo-se impotente para realizar tão grande façanha. Costumava ter pressentimentos vagos, fantasiosos às vezes, cheios de mistérios ante o desconhecido e ao mesmo tempo ironicamente calmo, aconchegante. Acontece que ela era amante do perigo e adorava desafios. Chegou até mesmo a ponderar se não se tratava de mais uma missão, desta vez diferente, é verdade. Mas uma missão cruel, tão impossível estava de seu alcance suspeitar do que fosse, de algo como parte de um caminho dolorosamente traçado por um estranho, amargamente trilhado por aquela respeitável e mortal criatura. Só sabia de seus olhos e os amava. Houve tanto luar e tantos sóis, que imaginava entrar por eles, iluminados, 2 22 2


felizes, calmos, revelando uma paz tão inquieta daqueles que sabem que a possuem, mas são assaltados. Confiava nele. Ah, sim, isso ela fazia com todas as veras de seu coração. Um homem que era feliz, gesticulava, ria solto e sorria deliciosamente entre amigos, e que falava alto ao telefone (quase aos berros) não poderia jamais ser um espécime transgênico de total e avassaladora frieza e calculismo. Definitivamente não! Imaginou, porém, que desta vez poderia estar enganada e esse pensamento a congelou. Haviam deixado de se falar por um bom e grande espaço de tempo: ele viajara e ela havia ficado. Veio, finalmente, aquilo a que chamam “destino” com a união de corpos; esse fato aumentou ainda mais o grande mistério, inquietando-a todas as tardes e noites agora, sensível e terrivelmente. Tão forte era a sensação que lhe assolava de que ele não lhe havia revelado algo muito, muito sério, que decidiu não se incomodar mais — e assim não sofrer por antecipação, pensava. Esta era sua forma natural de lidar com as situações e os fatos. — São só fantasmas —, murmurava como que espantando-os, numa relutante tentativa de enganar-se a si mesma. No fundo, ela sabia. Conhecia uma verdade velada e sofria. Tinha a plena convicção, difusa, porém latente, de que aquele homem a quem escolhera para dividir sua vida, seus afetos e desafetos, amarguras e dívidas bancárias, seus amores rompantes, mas delicados, possuía, não lhe restavam dúvidas, um segredo guardado a sete mil chaves! E conhecendo-o como já o conhecia, sabia e sentia que ele não o revelaria jamais, acontecesse o que acontecesse. Proprietário de um restaurante árabe, fino e luxuoso, ele lhe saldou as dívidas. Com o decorrer do tempo, ela começou a observar que ele deixava transparecer naturalmente uma atenção desvelada às crianças acompanhadas de seus pais, nos longos jantares à beira do lago, nos folguedos infantis, após os manjares na elegante e funcional praça de alimentação. — Tenho uma filha pequena e sinto muita falta dela. Vive atualmente em Meca, com a mãe. Não posso me conter quando me aproximo de uma 2 23 2


linda garotinha como a sua filha. Como se chama? Cenas como essa tornavam-se cada vez mais frequentes e ela observava, como num fio tênue, que também crescia sua predileção por crianças. E aumentavam, a olhos vistos, as atenções redobradas. Esse homem adorava também as madrugadas e sentia-se atraído por elas. Naquela noite, fez funcionar seu carro e convidou-a para um passeio ao luar. Não que ele fosse uma pessoa romântica, e ela mais do que ninguém sabia disso, mas era inteligente e preparado e conhecia bem essas coisas de agradar e impressionar uma mulher. Levou consigo tudo o que a boa etiqueta ditava, providenciou mantas de lamê entremeadas de fios metálicos, e os dispôs harmoniosamente nos bancos dianteiros de seu carro. Não esqueceu também as garrafas de vinho libanês, o arak e os arranjos florais de flores exóticas, cuidadosamente escolhidas para extasiar, pois conhecia minuciosamente as preferências de sua amada: tango e jatrofa. Ela amava artesanato, então ele cuidou também de providenciar uma bandeja dourada com caixinhas de papelão branco e craft, recheadas com um mix de frutas secas. Não se esqueceu ainda daquilo que iria conferir um toque especial ao evento: o sumac, o zahtar, o tahine (ela adorava essas especiarias). Retornaram embriagados, muito mais de amor que do próprio vinho absorvido. — Está uma noite linda. — E mágica também. Eram todas as palavras que trocavam nessas ocasiões. Não raro, ela dançava uma dança árabe comum, mas que enchia os olhos dele de satisfação e prazer. Os dias e as noites corriam sem novidades, e especialmente tranquilos. Ele prosperou mais e mais, os negócios cresceram. Feliz, estabeleceu relações com o resto do mundo. Esclareceu que possuía espírito empreendedor, trocou telefones e e-mails com muitos de seus clientes fiéis, principalmente os apreciadores de suas culinárias dos grandes segredos milenares. — Será? Era sua atual e angustiante pergunta, e enquanto se perguntava, sufocava internamente suas dúvidas, compartilhadas apenas com restos 2 24 2


de pensamentos — às vezes tão mórbidos e cruéis que força lhe fora suportar. Mais uma vez desejou não sofrer antecipadamente. Enquanto isso, ele continuava a guardar “a sete mil chaves” seu grande e instigante segredo. Pudesse ela ser cúmplice dele, as coisas talvez fossem muito mais fáceis, talvez pudesse até mesmo ajudá-lo! E ela reinava, em suas noites mal dormidas: — Não quer me contar? Silêncio. Era tudo. Por que foi perguntar? Deixasse-o dormir o sono de sempre. Ela, não. Não conseguia. Se pudesse apossar-se de uma, uma única daquelas milhares de chaves que trancavam as portas de uma comunicação razoável entre eles, aí sim, finalmente, ela poderia dormir sossegada. O mais intrigante, porém, não era o mistério, era a paz. A paz que aquele homem possuía diante de tudo, diante da vida. O homem, seu fiel e sereno companheiro nas horas mais corriqueiras, não era, absolutamente, seu cúmplice! Cheia de curiosidade, de vez em quando, espreitava-o mansamente, como que tentando arrancar-lhe qualquer pista que fosse, qualquer gesto denunciador que o entregasse, qualquer descuido ou deslize capaz de acabar de vez com aquela absurda meia-verdade em que vivia. Logo ela, acostumada que fora a uma vida decente e transparente, a dizer sempre o que pensava e sentia, sem segredos. Mas que estranho e cruel motivo a conduzira a unir-se, destemidamente, justo a ele? Era certo que esta não era a primeira (e nem seria talvez a última) que escolhera relacionar-se com alguém de vida dupla ou duvidosa. Mas estava no sangue esse seu feitio de boa samaritana, amava proteger. Adorava desafios. Sentia-se acima do bem e do mal. Então, o que significava tudo aquilo? Unira-se a um homem, ao mesmo tempo reticente e falastrão, indo das mais atiradas gargalhadas ao silêncio de seu segredo mais recôndito e, muitas vezes, hostil. Segundo convite, segundo passeio. Mesmos aparatos, mesmíssimos cuidados: vinhos, flores, bandeja dourada, especiarias finas. Mesmo local: coqueiros iluminados. Mesma hora, de madrugada — ele adorava as madrugadas —, mas desta vez cuidando para que tudo parecesse (e fosse) encantador. Para ela. — Linda noite. 2 25 2


— E mágica, também. Naquela noite, ele gesticulava muito, falava alto, mais que o natural. Estavam em uma avenida movimentada e, a observar pela quantidade de adornos nos coqueiros que a cortavam, conferindo-lhe características de bosque, poderia se afirmar que estavam perto do Natal. Eles não eram e nem estavam coniventes com esse mundo, não escolhiam dia e hora para o amor, data marcada para abraçar e ser feliz. Ele parecia particularmente nervoso e estranho naquela noite, diferente das outras noites enluaradas, regadas a vinho árabe, tapetes e especiarias. Ele tinha um plano; ela, outro: desejava amar, beber, dançar. Ele a considerava bonita e inteligente, mas não podia mais suportar. Nem esperar. Embora extremamente observadora, ela não conseguiu prever o que a própria magia daquela noite enluarada e cheia de brilhos havia lhe reservado. Fora atingida. Algo com a velocidade certeira de uma flecha voou de encontro ao seu peito e seu corpo, arremessado para trás, ficou imóvel após o impiedoso ato, antes que ela tremesse, olhos arregalados naquele que não fora o seu único, mas era, de fato, seu atual amor. Aquela madrugada foi única para ele. Pegou a bandeja dourada, bebeu o resto de vinho, jogou fora as flores, cantou, dançou, olhou para a lua. E ali mesmo dormiu o sossego de sempre e acreditou ser e foi profundamente feliz.

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O Gato

Deri Alves

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Quem é Deri Alves Meu nome é Deri Alves, tenho 36 anos, nasci na Bahia, morei em São Paulo desde os 5 anos, e há dois moro em Araraquara. Tenho três filhos, Julia, Caetano e Aurora, por ordem de chegada; vivo com minha companheira, Mariana, mãe dos dois mais novos. Minha maior incentivadora. Nos conhecemos em um sarau, simbólico né? Comecei a escrever aos 12, parei aos 13, voltei aos 17, parei aos 28, e vou voltando e parando, assim, sem pretensão. Escrevo poesia, os contos que escrevi saíram quase que sem querer. Mas gostei de tê-los escrito, assim como de cada poesia que guardei (algumas poesias, apresar de escritas, parecem nunca terem existido, pois nunca foram lidas/ouvidas por outro, senão por mim). Acredito que estamos no mundo para aprender e ensinar, amar e sermos amados, receber e praticar o bem. E quando isso não é possível, acredito que devemos sorrir e sentir, conscientes do que sentimos. O importante na vida é sentir. Quem não sente não sabe o mal que se faz e a todos ao redor.

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O Gato Sicrano estava andando, na madrugada, por um bairro próximo de onde morava, quando viu um gato na rua. Sicrano sempre foi meio perverso. Olhando para os lados, verificando se não havia alguém na rua, pensou um pouco e depois foi andando, bem devagar, para perto do gato. Sicrano tinha um pau na mão. Quando o gato viu Sicrano, continuou imóvel. Apenas alguns miados. Quando Sicrano estava a uns cinco passos de distância, acelerou e atirou o pau no gato. O gato voou cinco metros e caiu em um córrego e ficou todo ensanguentado. Sicrano riu até não se aguentar. Beltrano estava trabalhando em uma esquina meio escura e viu tudo. Beltrano nunca foi muito bonzinho. Saiu da escuridão e foi andando rapidamente até Sicrano. Beltrano tinha um .38 na mão. Quando Sicrano viu Beltrano, Sicrano chorou. Quando Beltrano estava bem perto, deu três tiros em Sicrano. Sicrano caiu no chão e ficou todo ensanguentado. Beltrano riu de não se aguentar. No outro dia, às quatro da tarde, Sicrano foi enterrado no cemitério São Luiz. A família chorava que ele era estudioso, os amigos choravam que ele jogava bola e as amigas choravam que ele era um gato. Bom, pelo menos o gato não morreu. Beltrano cuidou muito bem do gato.

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