21 minute read

ensaio

NOS ÚLTIMOS ANOS, O MUNDO DA ARTE TEM DEMONSTRADO UM GRANDE INTERESSE PELO OCULTO, O MÍSTICO, O MÁGICO E O ESPIRITUAL. MUITAS EXPOSIÇÕES CELEBRAM A “ARTE OCULTA”, AS GALERIAS ABREM AS PORTAS PARA TODO TIPO DE ESPIRITUALIDADE, E PRESTIGIOSAS REVISTAS DE ARTE COMO FRIEZE E ARTFORUM PUBLICAM LONGOS ARTIGOS SOBRE COMO AS IDEIAS OCULTAS, ANTES RELEGADAS ÀS MARGENS DA CULTURA, HOJE FAZEM PARTE

DO SEU CENTRO VITAL. Para aqueles que, como eu, há muito estudam as ligações entre a cultura e o oculto, esse grande interesse é bem-vindo. No entanto, devemos evitar o clássico “Por que demoraram tanto?” ao ver os atrasados fazerem fila para aprovar tudo o que é etéreo, metafísico, ectoplasmático e invisível. Na verdade, é claro que a arte e o oculto – que significa apenas isso, “invisível” – têm uma longa história. Podemos até dizer que os dois estiveram presentes no nascimento da própria autoconsciência humana, a julgar pelas evidências extraídas da arte nas cavernas pré-históricas de lugares como Les Trois Frères e Lascaux, na França, e Alta Mira, na Espanha. Como afirma o “arqueólogo cognitivo” David Lewis-Williams em The Mind in the Cave: Consciousness and the Origin of Art (2002), as estranhas figuras “teriantrópicas” – feitas de partes animais e humanas – que decoram as cavernas do Paleolítico Superior (entre 50 mil e 10 mil anos atrás) são um produto da inclinação de nossos antigos ancestrais pelos estados alterados de consciência, muito provavelmente induzidos por plantas alucinógenas. Enquanto estavam em estado de transe, na profundeza desses espaços quase inacessíveis – como mostra o notável filme de Werner Herzog, Cave of Forgotten Dreams (2011) –, nossos precursores pré-históricos viajavam a outros mundos, aos planos espirituais, e deixaram um vestígio do que encontraram nas paredes ao seu redor. Se fazer símbolos é um sinal de autoconsciência, como acreditava o filósofo Ernst Cassirer, os primeiros símbolos que indicam a autoconsciência humana referiam-se a um mundo invisível.

Advertisement

MAGOS OPERANTES NO RENASCIMENTO

Podemos perdoar nossos ancestrais seminus e sem instrução por acalentarem crenças em um mundo invisível, mas certamente a maior parte da arte que veio depois se livrou daquilo que, para nós, pós-modernos, é no máximo uma ideia bizarra? Mas que dizer do Renascimento, quando o Artista, como o conhecemos (ainda não “a artista”), apareceu em cena? O Renascimento foi, é claro, um período em que as glórias do passado clássico foram redescobertas após os anos obscuros da Idade Média. Isso significou Platão, em particular, mas, como afirma a historiadora Frances Yates em Giordano Bruno and the Hermetic Tradition (1971), também significou a redesHISTÓRIA

ALTA OCULTURA

Como textos visionários e conhecimentos secretos se infiltraram na arte, na música e na literatura ocidental, fomentando um caldo de “subcultura oculta”

GARY LACHMAN

coberta do Corpus Hermeticum, a coleção de textos místicos e mágicos que teriam sido escritos pelo maior mago de todos os tempos, Hermes Trismegisto, “três vezes o maior Hermes”. Por meio das traduções de Marsilio Ficino, esses textos visionários se filtraram pela intelligentsia florentina, com o resultado, como Yates deixa claro, de que as ideias mágicas informaram praticamente todos os aspectos do Renascimento. Como escreve Yates, “os magos operantes do Renascimento foram os artistas, e foram Donatello ou Michelangelo que souberam como infundir vida divina em suas estátuas”. A pintura Primavera, de Botticelli (1482), uma das imagens típicas do Renascimento, foi, segundo Yates, orientada por Ficino – que desenvolveu todo um sistema do que podemos chamar de “psicoterapia hermética” – e constitui, como ela a descreve, “uma aplicação prática da magia, um talismã complexo” destinado a atrair energias astrais benéficas enquanto afastava as nocivas. Mas o longo relacionamento entre magia e arte não terminou aí. No século 19 e na época dos românticos, ocultistas como o francês Éliphas Lévi (1810-1875) (cujos leitores incluem Baudelaire e Rimbaud, e que também era um excelente desenhista) afirmavam que a arma mais importante no arsenal oculto do mago não era sua varinha ou livro de sortilégios, mas sua imaginação, algo que, como enfatizou Lévi, ele compartilhava com o artista. Conforme a história entrou nos tempos modernos, artista e ocultista aproximaram-se ainda mais. Como notou o filósofo esotérico P. D. Ouspensky (1878-1947), cujas ideias influenciaram vanguardistas russos como Kasimir Malevich (1878-1935) e Mikhail Matiushin (1861-1934), “na arte é necessário estudar o ‘ocultismo’; o artista deve ser clarividente; ele deve ver o que os outros não veem; deve ser um mago”. E também havia os surrealistas, é claro... Este relato da longa associação entre a arte e o oculto poderia continuar infinitamente. Mas, para nós, hoje, o reconhecimento de sua proximidade – mais que ignorá-la, como fez a maioria dos críticos de arte –, começou em 1986, com a inovadora exposição O Espiritual na Arte: Pintura Abstrata 1890-1985, no Los Angeles County Museum of Art, que tive a grande felicidade de visitar. Com curadoria de Maurice Tuchman, a exposição exibiu, em mais de 200 obras, diversas formas de influência que ideias ocultas, místicas e espirituais exerceram sobre a arte moderna.

RAÍZES OCULTAS DA ARTE MODERNA

Alguns artistas incluídos na exposição são hoje nomes conhecidos nas discussões de “arte oculta” – Kandinsky, Mondrian, Kupka, Beuys, Carrington –, e é sabido que simbolistas como Gustave Moreau (1826-1898) e Odilon Redon (1840-1916) tiveram um interesse mais que superficial pela geografia do invisível. E, se examinarmos rapidamente a literatura e a música, veremos que elas também foram tocadas pelo outro mundo, uma influência que exploro em meu livro A Dark Muse (2005).

Acima, o mais famoso mago do século 20, Aleister Crowley, incorporando Osiris em ritual da Ordem Hermética do Amanhecer Dourado; na página à direita, aquarela da série The Eye of the Lord (1870), de Georgiana Houghton, artista espiritualista redescoberta recentemente

Não é segredo que W. B. Yeats, vencedor do Prêmio Nobel, teve uma profunda e duradoura paixão pelo oculto, que ele partilhou com o alquimista e dramaturgo August Strindberg, com seu colega poeta Fernando Pessoa e com romancistas modernos como Malcolm Lowry e Andrei Bely, cujos livros À Sombra do Vulcão (1947) e S. Petersburgo (1916) se baseiam, respectivamente, no Tarô, na Cabala e na filosofia espiritual de Rudolph Steiner. Os compositores Alexander Scriabin, Olivier Messiaen, Claude Débussy e Erik Satie – que estreou seu Trois Sonneries de la Rose +Croix no famoso Salão da Rosa-cruz do ocultista Merodack Péladan, em Paris, em 1892 – são apenas alguns nomes de músicos ligados ao oculto. Mozart, como sabemos, era maçom. E eu poderia citar outros. Para os iniciados e cognoscenti, The Spiritual in Art, de Tuchman, foi menos uma revelação do que um alívio que, finalmente, a visão “oficial” estivesse começando a reconhecer algo que os artistas e seu público souberam sempre. Explicar por que críticos de arte e historiadores ignoraram insistentemente as “raízes ocultas da arte moderna” exigiria um artigo separado. Mas a tônica da modernidade era avessa a qualquer espiritualidade e a inconsequente ironia pós-moderna evitou uma avaliação séria de influências que já eram consideradas superstições. Enquanto algumas manifestações da arte oculta contemporânea podem ser vistas como irônicas, muitos artistas espirituais de hoje adotaram o caminho do invisível, devido a uma decepção pela falta de comprometimento do pós-modernismo com as raízes e um surpreendente anseio por seriedade, dedicação e autenticidade, algo que encontravam em seus estimados antecessores. Assim como a artista sueca Hilma af Klint (1862-1944), que talvez tenha produzido a primeira pintura abstrata, distinção até então desfrutada por seu colega teosofista Wassily Kandinsky (1866-1944). Af Klint (ver Portfólio à página 70) é uma das descobertas que surgem da exposição de 1986 no LACMA, em Los Angeles. Ela começou como pintora convencional, mas seus interesses mais profundos não eram nada convencionais, e aderiu aos ensinamentos da teosofia e da antroposofia de Rudolf Steiner, o espiritualismo, a me-

diunidade, psicografia e psicopintura, entre outras práticas ocultas e místicas. Trabalhando com outras artistas mulheres também interessadas nos mundos espirituais, Af Klint produziu obras psicografadas inspiradas por inteligências superiores que antecedem o surrealismo em décadas e produziu pinturas “abstratas”, embora seu próprio interesse pela abstração em si não seja claro. As pinturas espirituais de Af Klint permaneceram praticamente desconhecidas durante sua vida, e como ela temia que fossem mal compreendidas pediu que não fossem mostradas ao público até 20 anos após sua morte. Foi somente em 1986, quando mais que o dobro desse tempo havia se passado, que ela teve sua primeira grande exposição no LACMA. Desde então, sua obra viajou o mundo e ela é adequadamente considerada não apenas uma pioneira da arte espiritual, mas pioneira da influência e da representatividade das mulheres sobre a arte moderna.

ARTISTAS E MÉDIUNS

Outra artista oculta cuja obra foi redescoberta, principalmente por meio do interesse demonstrado por Af Klint, é Georgiana Houghton (1814-1884). Ao longo dos anos 1860 e 1870, Houghton produziu uma série de “pinturas espirituais” notáveis, aquarelas quase abstratas orientadas por inteligências angelicais, assim como por alguns mestres renascentistas. Houghton foi uma conhecida médium nos círculos espiritualistas vitorianos, mas sua tentativa de disseminar a arte espiritualista foi um desastre – sua exposição em 1871 deixou-a falida –, e assim como Af Klint ela retirou sua obra da exposição pública, embora hoje atraia uma atenção tardia. Um artista oculto mais bem-sucedido, pelo menos de início, foi o londrino Austin Osman Spare (1886-1956), que surgiu no cenário artístico inglês como um enfant terrible eduardiano, sendo aclamado aos 17 anos, em 1903, como o mais jovem expositor de todos os tempos na Royal Academy. Mas a celebridade de Spare logo foi obscurecida por seu interesse pelo oculto, pela magia e por estados de consciência alterados, limítrofes, e ele logo caiu no esquecimento. Spare desenvolveu uma arte de tais delicadeza e força mágica que lembram Beardsley, criando um sistema original de sinais sigilosos e ocultos destinados a contatar outros planos mentais. Entre suas muitas influências ocultas estava a bruxaria, musa que compartilhou com a pintora australiana Rosaleen Norton (1917-1979), cujas telas pagãs, demoníacas, muitas vezes se assemelham às de Spare. O artista inglês foi, durante um curto período, associado a Aleister Crowley (1875-1947), o mais famoso mago do século 20, cujas ideias influenciaram Norton e praticamente todos os artistas ocultos que o sucederam. O próprio Crowley pintava e, nos últimos anos, sua obra tórrida e perturbadora – assim como Spare e Norton, Crowley inclui muita transgressão sexual em seu ocultismo – atraiu grande atenção e foi exposta em diversos lugares. Com Crowley entramos em

Abaixo, o artista performático/ocultista Genesis P-Orridge, a quem é atribuído o termo “ocultura”; à direita, frame de Lucifer Rising (1972), filme de Kenneth Anger, cineasta declaradamente seguidor de Aleister Crowley

um reino da arte oculta em que a distinção entre magia e arte, ritual e performance, sempre maleável, torna-se praticamente inexistente, uma esfera intermediária conhecida como “ocultura”. Supostamente cunhada pelo artista performático/ocultista Genesis P-Orridge nos anos 1980, e associada ao caráter intensamente aleatório da chaos magick, o termo abrangente “ocultura” ganhou credibilidade acadêmica em 2004, quando o professor Christopher Partridge o definiu como um interesse pelas “crenças e práticas escondidas, rejeitadas e conflituosas associadas ao esoterismo, à teosofia, ao misticismo, à Nova Era e ao paganismo”, entre outras ideias próprias da “subcultura oculta”. Essa frase elucidativa nos lembra que uma descoberta acadêmica do oculto – ou redescoberta, pois muitos estudiosos pré-iluministas o conheciam bem – coincide com sua recente reavaliação artística. Isso levou acadêmicos, artistas e praticantes a lotar eventos, como a conferência O Oculto e as Ciências Humanas, realizada em 2013 pelo Departamento de Arte

da Universidade de Nova York (NYU), que reuniu artistas, magos e acadêmicos na discussão sobre o lugar do oculto na cultura atual. Como se poderia esperar, a ocultura cobre um amplo espectro, que vai das diáfanas aquarelas do artista contemporâneo sueco Fredrik Söderberg às agressivas proposições do artista multimídia suíço Fabian Marti. Suas raízes encontram-se nos primeiros artistas ocultos como o cineasta crowleyano Kenneth Anger e a igualmente crowleyana atriz e pintora Marjorie Cameron (1922-1995), nos cut-ups de William S. Burroughs Jr. (1914-1997) e Brion Gysin (1916-1986), no cinema mágico de Alejandro Jodorowksy e no sombrio roccult and roll do Thee Temple Ov Psychic Youth de Orridge, entre atos semelhantes. Como a maioria dos termos esotéricos, “ocultura” abre-se a diversas interpretações, e não devemos esperar que se limite a uma só. Segundo o “empresário subcultural” Carl Abrahamsson, devemos ver a ocultura como “um termo geral para qualquer coisa cultural, mas decididamente oculta/ espiritual”, um resumo que certamente cobre um amplo terreno, permitindo que os artistas explorem algo mais que sua entediante apatia e dando aos ocultistas uma nova maneira de examinar seus interesses. No mínimo, a ocultura instigou muita ação, de publicações luxuosas como Abraxas: International Journal for Esoteric Studies, da Fulgur Esoterica; Fenris Wolf, de Abrahamsson, Strange Attractor Journal, de Mark Pilkington, e Clavis: Journal of Occult Art, Letters, and Experience, de William Kiesel, a textos colecionáveis da Scarlet Imprint, da Jerusalem Press (especializada em Austin Osman Spare) e da Ouroboros Press. Há conferências, seminários, simpósios, lançamentos de livros, palestras, exposições e eventos que proliferam como espíritos errantes, libertados por algum aprendiz de feiticeiro. Para algo que seja invisível, parece estar claro que o oculto, pelo menos no mundo da arte, está recebendo uma grande atenção.

XX 82 A ÓTICA

EXTÁTICA

PAULA ALZUGARAY

NO CAPÍTULO FINAL DE ILUSÃO ESPECULAR, UM CLÁSSICO BRASILEIRO DA TEORIA DA IMAGEM, ARLINDO MACHADO DISCORRE SOBRE OS MUNDOS ARTIFICIAIS

CONSTRUÍDOS PELA FOTOGRAFIA. Seu ponto está nas distorções manifestas pelas “lentes bizarras” da fotografia – a teleobjetiva e a grande-angular – que geram imagens “da ordem fantasmática de uma alucinação” e impossíveis à percepção do olho nu. Machado recorre aos escritos do cineasta Serguei Eisenstein sobre as estratégias de representação da figura humana em arrebatamento místico, na obra do pintor El Greco. O corpo alargado no centro e afunilado nos pés e na cabeça corresponderia ao efeito produzido pelas objetivas de distância focal curta. A grande-ocular, que o cineasta chamava de “lente extática”, se remetendo ao sentido etimológico da palavra êxtase, está no cerne de seu interesse por El Greco. Do grego ékstasis, (fora do seu estado, fora da normalidade), a ótica extática que moveu Eisenstein e El Greco também guia o interesse que artistas contemporâneos, como o norte-americano Tony Oursler e o brasileiro Mario Ramiro, nutrem por aquilo que não pode ser visto a olho nu e é impresso em papel fotográfico.

IMPONDERÁVEL

Cientistas do século 18 usavam o termo imponderável para descrever o magnetismo, a eletricidade e outras energias não quantificáveis. Nos domínios do imponderável – e de tudo aquilo que não pode ser determinado com acuidade – está a “fotografia de pensamento”, que envolve a crença de que a chapa fotográfica é sensível a pensamentos, sonhos e outras forças vitais, e que surge como reação cultural espontânea às descobertas científicas que tornaram o invisível visível – notadamente o raio X, no

O interesse nas relações entre os sistemas de crenças e a autenticidade das imagens aproxima as obras do brasileiro Mario Ramiro e do norte-americano Tony Oursler, ambos colecionadores de fotografias de fenômenos paranormais

Frame do filme My Saturnian Love(s) (2016), de Tony Oursler

fim dos anos 1880. A fotografia do pensamento, a fotografia de espíritos, a fotografia de óvnis e de outras manifestações do paranormal começam a ser colecionadas por Tony Oursler em meados dos anos 1990. Esse acervo está compilado hoje em projeto exibido no CCS Bard College, em Nova York, até o fim de outubro, e no MoMA NY, até janeiro de 2017. Tony Oursler: The Imponderable Archive revela dois séculos de interseções entre descobertas científicas, avanços tecnológicos e fenômenos ocultos. O projeto é composto de filmes, uma publicação de 600 páginas e uma instalação com 2 mil documentos. “Um aspecto importante sobre a construção desse arquivo é que aconteceu de forma não objetiva. Em outras palavras, segui meu instinto e explorei os temas visual e culturalmente, deixando-os encontrar sua conexão natural”, diz Tony Oursler à seLecT. Na instalação, essas conexões estão delineadas em mesas, onde as imagens são organizadas em narrativas diversas, um modus operandi que remete à metodologia do Atlas Mnemosine, do historiador Aby Warburg (1866-1929), inspiração reconhecida pelo artista. Imagens de criptologia conectam com gravura japonesa dos anos 1700; a luz negra do físico Robert Willliams Wood relaciona-se à iluminação de sessões espíritas dos anos 1920; e afinidades surgem ainda entre oráculos, testes de Roscharch, filmes de terror, física quântica e radioatividade. “Eu queria mostrar coleções dentro da coleção, e também justapor certas coisas que poderiam ser consideradas opostas. Realmente, gosto dessas contradições. Há uma pequena sequência relacionada à evolução e à criptozoologia que inclui conexões engraçadas, como o Homem de Piltdown (fraude científica que simulava espécie desconhecia de homem primitivo) e as sereias”, diz Oursler. “Tentei focar em como uma coisa leva a outra e assim ganha um sentido histórico ou conceitual. É como cinema e fantasmagoria, uma relação óbvia, que muitas vezes não é feita.” Imponderable (2015-2016) é um longa-metragem imersivo, apresentado no MoMA em um ambiente cinemático em 5-D, com efeitos sensoriais, cheiros, vibrações etc., utilizando-se de uma espécie de pepper’s ghost, dispositivo fantasmático do século 19. O roteiro traça uma historia social, espiritual e empírica da imagem virtual, que passa pela intrigante história familiar do artista e o envolvimento de seu avô, Fulton Oursler, com a paranormalidade. O elenco de personagens inclui Sir Arthur Conan Doyle e membros da família Oursler. Já no filme My Saturnian Lover(s) (2016), George Adamski, o primeiro fotógrafo de óvnis, viaja para a Lua, Saturno e Vênus, e vive um enredo de pulp fiction com alienígenas.

Abaixo e na página à direita, frames do longa-metragem imersivo The Impoderable (2015-2016), de Tony Oursler

Catur, nonecul laborio rporum reped quo delibus exceptatiat. Aximolu ptatur ande viderioribus maxim quas ab inullaut harum esti con

RUÍDO BRANCO

O comandante Louis Darget (1847-1923), oficial de cavalaria e amante da fotografia, é tido como o inventor da fotografia de pensamento – hoje considerado o primeiro conjunto de imagens abstratas mecanicamente produzidas. Darget mantinha um espaço de trabalho em seu apartamento, em Paris, chamado cabinet fluidifié. Ali eram guardadas, em pequenos envelopes presos às paredes, imagens de uma coleção de fotografias do fluido vital, do pensamento e de espíritos. O espaço é homenageado por Mario Ramiro na instalação Gabinete Fluidificado (2013), que reúne cerca de 400 reproduções fotográficas de sua coleção de imagens que documentam supostas ocorrências de materializações de espíritos, exalações de ectoplasma e manifestações paranormais, ocorridas no Brasil ao longo século 20. A coleção de Mario Ramiro começa com três imagens de Militão de Azevedo (1837-1905), que, segundo o artista, parecem fazer um comentário à fotografia espiritualista surgida em 1861 nos EUA. “Depois dele, os primeiros registros no âmbito do espiritismo são de 1921 e, de lá até os anos 1980, a produção dessas imagens se dará num contexto religioso ou de ‘experimentação’ da nova ‘ciência do espírito’. As últimas imagens que tenho foram feitas nos anos 1980, no contexto da fotografia de incorporações do Dr. Fritz”, diz Ramiro à seLecT. Segundo o pesquisador, a “última novidade” de contatos com o mundo dos espíritos ocorreu no fim dos anos 1950, com as declaradas comunicações obtidas pelo sueco Friedrich Jürgenson, cantor de ópera e pintor, por meio do rádio. Depois, essa técnica seria praticada no Brasil pela escritora Hilda Hilst, “a mais famosa comunicadora entre nós”, diz ele. “Depois existem registros de supostas manifestações pela tevê e por fax, exatamente no mesmo período em que essas tecnologias foram sendo empregadas na produção experimental dos artistas dos anos 1980. Não é curioso esse paralelismo?” A radiocomunicação com o Além é abordada em Rede Telefonia (2009), peça sonora criada em parceria com a cineasta Gabriela Greeb, a partir das escutas e gravações realizadas por Hilda Hilst nos anos 1970. Nesse período, ela realizou diversas experiências com a chamada Transcomunicação Instrumental (TCI) – técnica que facilitaria a comunicação entre os vivos e os mortos via aparelhos eletroeletrônicos. “A escritora escolhia um espaço ‘vazio’ entre duas estações de rádio e registrava em fita magnética alguns minutos daquele chiado característico conhecido como ‘ruído branco’. Esse chiado seria o meio utilizado pelos

“A pretensa autenticidade dessa imagens é o que menos importa. O segredo que se encerra nos fenômenos descritos por um sistema de crenças ou por outro é o que nos estimula como artistas, escritores ou curadores”, diz Mario Ramiro

Catur, nonecul laborio rporum reped quo delibus exceptatiat. Aximolu ptatur ande viderioribus maxim quas ab inullaut harum esti cone officienihil eiurempos as adis quam renihil eicit

espíritos para entrar em contato com o nosso mundo e se fazer ouvir por breves sussurros”, explica Ramiro. Rádio Dante (2014) é outra obra que lida com a parafernália espiritual-eletro-magnética. Trata-se de escultura sonora que reúne imagens de moldes de máscaras mortuárias, um aparelho de rádio sintonizado entre estações, um microfone e um amplificador. Suscetível à aproximação do corpo do espectador, o dispositivo produz modulações sonoras monótonas, constantes e “infernais” – o que inspira o título da obra. Além do interesse nas relações entre os sistemas de crenças e a autenticidade das imagens, há certa dose de humor macabro e de surrealismo teatral que aproxima as produções desses dois artistas do Norte e do Sul do continente. “Meu interesse real é nos sistemas de crenças que nós construímos e como eles operam culturalmente”, diz Tony Oursler. “Não estou falando só de crenças religiosas, mas de estruturas de consciência. Uma das coisas que aprendi ao escavar meu arquivo é que o pensamento mágico está vivo e passando bem. Mas o que acredito mesmo é na arte como atividade cultural sustentável e generativa.” “A pretensa autenticidade dessas imagens é o que menos importa”, diz Mario Ramiro. “Alguém já procurou desmascarar a veracidade da ressurreição de Lázaro retratado por Rembrandt? O segredo que se encerra nos fenômenos descritos por um sistema de crenças ou por outro é o que nos estimula como artistas, escritores ou curadores que se debruçam sobre essas histórias como parte de nosso universo cultural. Essas imagens e sons falam de possibilidades de desvendar o grande segredo por trás da morte. Nisso, essa forma de arte, quando não voltada apenas para uma paródia do paranormal, parece querer apontar para alguma coisa mais essencial na vida que é apenas a ‘crítica institucional’!”

A SOCIEDADE CAVALIERI

PIERRE MENARD

Capa do catálogo da exposição A Sociedade Cavalieri 1585-1914

A série Monstros do Mundo Moderno e Antigo seria a pedra fundamental de uma sociedade secreta de artistas gravadores

A OBRA VISÍVEL DE GIOVANNI BATTISTA DE CAVALIERI, GRAVADOR ITALIANO DO SÉCULO 16, É COMPOSTA DE REPRODUÇÕES DE PINTURAS DE GRANDES MESTRES, COMO RAFAEL E MICHELANGELO, CÓPIAS DE BUSTOS DE NOTÁVEIS DE SUA ÉPOCA E A MAIS INCOMUM COLEÇÃO DE CRIATURAS MONSTRUOSAS QUE A INVENTADA RENASCENÇA

TENTOU ECLIPSAR. Essa última, a série Monstros do Mundo Moderno e Antigo, seria a pedra fundamental de uma sociedade secreta de artistas gravadores que transportariam a obra de Cavalieri até a cultura contemporânea. Se o nome de Cavalieri não é extremamente conhecido pelo grande público, os nomes dos artistas que ao longo dos anos foram membros da sociedade secreta fundada em sua homenagem certamente são. Foram membros dessa sociedade artistas como Rembrandt, Van Dyck, William Hogarth, Wenzel Hollar, Goya, Daumier e Alexandre Bida, entre outros. O conhecimento que esses artistas passavam uns aos outros era o método de que Cavalieri se utilizava para criar imagens de monstros, seu tema específico. Com esse algoritmo aplicado às artes gráficas, gravadores de várias gerações criaram uma variedade de monstros, seres antropomórficos, que seriam a influência do grotesco contemporâneo aparente desde em desenhos animados e caricaturas até a obra de artistas como Patrícia Piccinini e Paul McCarthy. Existem historiadores respeitados que citam a participação de alguns artistas membros da Sociedade Cavalieri para a criação de movimentos como o Simbolismo, o Dadaísmo e o Irrealismo. Cavalieri e sua sociedade também alertavam sobre a tolice da beleza e o caráter alienante da idealização de formas e pensamento, algo perigoso e até herético para seu tempo. Temas esses que são hoje objeto de estudo nas universidades francesas. No entanto, toda a evidente influência da Sociedade Cavalieri só seria redescoberta em 1973, quando o professor Phillipe Bida, descendente do artista Alexandre Bida, publicou seu estudo sobre essa sociedade pela Universidade Autônoma de Toulouse, na França. A primeira exposição que acolheu sob o mesmo teto várias gravuras de artistas membros só teria ocorrido em 1998, no Museu de Estampas de Paris. Desde então, várias exposições foram realizadas pelo mundo, inclusive no Brasil, nos espaços expositivos da Caixa Cultural, realizadas por esse discípulo de Cavalieri que vos escreve.

Pierre Menard é prof. Adjunto da Universidade Autônoma de Toulouse e Vice-diretor do Instituto Artístico da Universidade de Toulouse

Em sentido horário, Estudo para Capitão Pato (1624), de Claude Gellé (ou Lorrain) (1600-1682), da coleção do Museu de Arte de Nancy; Humano Que Habita Feroz Grifo, da série Obra Na Qual Se Veem Monstros de Todas as Partes do Mundo Antigo e Moderno (1585), de Giovanni Battista de Cavalieri (1525-1601), do Acervo Museu Britânico; e Gulielmus Hogarth (1743), de William Hogarth (1697-1764), da Galeria Britânica de Bristol

This article is from: