Mutações: O futuro não é mais o que era

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que se fala dele, a própria fala ‘faz o acontecimento’”. Esta ideia de acontecimento que nos cerca redefine a noção de “tempo”. Em que medida, no mundo veloz e volátil, “o acontecimento não seria feito de aparecimento abrupto, como ele mesmo se define (e-venit) mais que uma maturação? Ou, em que medida devemos conceber como um encontro com aquilo que ela supõe de Exterior, e mesmo de não integrável, no lugar de ser um resultado?”. Entendamos por resultado aquilo que diz Valéry: o que não existe mais está no coração do que existe,“o passado sendo o próprio ser”. Por “encontro Exterior”, Jullien quer certamente dizer acontecimento sem fundamento, sem passado nem futuro. S onho, r eli gião, feti che

Borges não cessou de escrever sobre o tempo e o sonho. Mais do que contrapor realidade e imaginação, o sonho é fusão de tempos ou de estados alterados do próprio tempo. O sonho de Coleridge é um belo exemplo. Borges narra que, no verão de 1797, o poeta inglês Samuel Taylor Coleridge, momentos depois da leitura de uma passagem de Purchas, que se referia à edificação de um palácio por Kublai Khan, caiu em sono e sonhou. O texto de Purchas germinou sonhos: imagens visuais e palavras; “ao cabo de algumas horas acordou com a certeza de ter composto, ou recebido, um poema com cerca de trezentos versos. Recordava-os com singular clareza e pôde transcrever o fragmento que perdura em suas obras. Uma visita inesperada o interrompeu e lhe foi impossível, depois, recordar o resto”. Em outro texto, Borges cita ainda Coleridge: “Se um homem atravessa o Paraíso em um sonho e lhe derem uma flor como prova de que lá esteve e, ao acordar, encontra uma flor em sua mão... Então?”. Coleridge possuído por outro tempo. A Igreja, por seu lado, teme mais o devaneio que o sonho. No combate ao devaneio e ao tempo livre, ela propõe formas muito eficazes que têm como efeito ocupar o corpo e fatigar o espírito, controlar o tempo: “Rezar e trabalhar”. Em um ensaio sobre a melancolia, Jean Starobinski mostra que, sem tempo para pensar e ter prazer, ou melhor, sem “tempo vazio”, o homem que reza e trabalha aprisiona o devaneio e a melancolia. Com efeito, escreve ele, o trabalho tem por tarefa ocupar inteiramente o tempo que não é dado à oração e aos atos de devoção: 30

Mundos possíveis

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