Ciencia e mito wolfgang smith

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que caracteriza a natureza do pensamento científico. O que está em questão, aí, não é realmente uma redução do conceito à sua expressão linguística (a qual é impossível), e sim uma renúncia, da parte do cientista, a qualquer conhecimento que diga respeito à essência das coisas. Aquilo de que o cientista abdica, por conta do fechamento epistêmico, é exatamente do tipo de conhecimento próprio do filósofo enquanto tal; pois, em verdade, o que o filósofo busca é uma revelação da essência em “um encontro iluminador com o próprio ser do objeto”, nas palavras de Borella. Por outro lado, aquilo a que o filósofo renuncia, por sua vez − em função de uma espécie de “humildade especulativa” −, é a todos os fechamentos imagináveis do conceito diante de seu objeto; parece que Whitehead falava pela filosofia em si quando declarou que a “exatidão” era “uma farsa”. Guiado desde o começo por uma intuição suprarracional, a qual poderia bem ser chamada de senso de “espanto”, o filósofo usa os conceitos como meios para alcançar uma verdade supraconceitual com um ato não discursivo de visão contemplativa. Como exprimiu Borella, magistralmente: “A filosofia é o amor à divina Sophia, isto é, à auto-revelação do próprio Princípio; ela é o desejo de conhecimento pelo qual o Absoluto se conhece a si mesmo”. Essa é a concepção tradicional, autêntica, de filosofia: algo muito distante, evidentemente, do que veio a ser hoje em dia a filosofia acadêmica![ 63 ] Voltando à ciência, podemos ver, à luz da análise de Borella, que há uma oposição inicial entre a ciência no sentido contemporâneo e a filosofia propriamente dita. Não somente ambas as disciplinas tendem a fins distintos, como também o ato constitutivo da ciência − a saber, o fechamento epistêmico do conceito − é antagônico à busca filosófica.[ 64 ] Agora temos de perguntar a nós mesmos: qual exatamente é o fim da ciência, o objetivo que, de jure, conclui a sua busca? Em resposta a essa questão, Borella defende que a ciência alcança seu termo precisamente no domínio pragmático, ou seja, na forma de uma tecnologia: “Para cada ser vivo, há unicamente dois modos de parar de pensar: contemplar ou agir”. Ora, esses reconhecimentos incisivos principais, ainda que sucintos, bastam para caracterizar a empreitada científica em linhas mais gerais. O efeito genérico do fechamento epistêmico, percebe-se, é deixar de fora a essência e, logo, o ser. E isso significa que a ciência é compelida a reduzir os fenômenos a “puras relações”, isto é, relações que são independentes dos seres que nelas participam. O exemplo primário de Borella para essa redução advém da física de Galileu, na qual os corpos reais são substituídos pela ficção dos “pontos de massa”, entre os quais são dispostas as relações contempladas pelo físico. Conforme explica Borella: Há, portanto, uma identidade de natureza entre o conceito e seu objeto, uma vez que esse também é um conceito, ao passo que, no conhecimento filosófico, o conceito é apenas um meio pelo qual se conhece o objeto: essencialmente transitivo, ele permanece assim ontologicamente aberto. O universo galileano é, portanto, um universo de conceitos-objeto que se movem em um espaçotempo imaginado. A geometrização do espaço acarreta o desaparecimento de toda distinção qualitativa.

A que propósito serve então essa concepção galileana − esse universo putativo? Seu fechamento epistêmico torna filosoficamente inútil essa noção: o conceito galileano não se presta a um conhecimento de essências, a um conhecimento do ser. Seu único uso possível − sua única função factível e legítima − diz respeito, por conseqüência, à esfera da ação, isto é, àquilo que, no jargão científico, denomina-se “predição e controle”. Logo, a física de Galileu se adéqua à concepção baconiana de uma ciência, um modo de conhecer, se podemos chamá-lo assim, em que a verdade e a utilidade “são, aqui, a mesma coisa”, segundo diz o próprio Bacon. Deve-se notar que Borella não alega apresentar uma filosofia da ciência. Ele deixa claro que, para


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