DROGAS, SAÚDE E A CIDADANIA POSSÍVEL (Dênis Petuco)

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Drogas, saúde e a cidadania possível Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro Transformam o país inteiro num puteiro Pois assim se ganha mais dinheiro Cazuza – O tempo não pára

No princípio, era o caos. Seres vivos habitavam um mundo em transformação, fazendo as coisas que os seres vivos fazem. Havia seres capazes de mover-se, e seres fixos, e tanto uns quanto os outros incorporavam em si outros seres, e respiravam gases. Alguns dedicavam um tempo ao descanso, ao sono. Outros buscavam a luz do sol como forma de fixar nutrientes necessários à vida. Naquele momento, ainda não havia nada que indicasse a estes seres uma diferença entre um “animal” e um “vegetal”, por exemplo. E para a maioria destes seres, ainda hoje não há. Não seria forçado dizer que um dos principais pontos de diferenciação entre os humanos e os outros seres, é o modo absolutamente característico com que damos nomes às coisas, e as diferenciamos umas das outras. Deste modo, nós separamos os seres em animais e vegetais, e criamos ainda um “reino mineral”, composto por tudo que “não é vivo”, e separamos a nós mesmos de todos os outros. Neste mesmo espírito, seguimos dando nome às coisas, classificando-as. Passam a existir as coisas de comer (normalmente outros seres vivos), coisas de beber, e a estas coisas chamamos “comida” e “bebida”. Esta é a forma que temos para sentir que entendemos as coisas, que as compreendemos. Que as dominamos. - Mas o que isto tudo tem a ver com uso de drogas? Drogas são coisas que introduzimos no nosso corpo, e que não são simplesmente comidas ou bebidas. Dizendo de uma maneira mais clara: as únicas coisas que entram no nosso corpo, e que não são nem comidas, nem bebidas, são as drogas. Então, a gente diz assim: comemos comidas, bebemos bebidas, usamos drogas. Nós não falamos de usar comida, usar bebida... Nós não falamos em “comer drogas” (mesmo que muitas delas sejam ingeridas como comidas). Tampouco em “beber drogas” (ainda que muitas drogas sejam consumidas deste modo). Nós somos assim; com este nosso jeito tão humano de dar nomes às coisas, de separá-las, para entendê-las. E para criá-las. - Mas, afinal de contas, o que são drogas? Segundo a Organização Mundial de Saúde, que é o órgão que a ONU criou para dar conta da articulação dos países em prol da saúde no mundo, droga é toda aquela substância que, uma vez introduzida no corpo, altera uma ou algumas de suas funções. Sendo assim, todo medicamento deve ser considerado uma droga (e é por isto que as farmácias também são conhecidas como “drogarias”!). Quando tomamos um remédio para dor de cabeça, por exemplo, estamos buscando alterar o funcionamento de nosso corpo, fazendo parar a dor de cabeça. Quando tomamos um chá para resolver problemas estomacais, é a mesma coisa: estamos conscientemente buscando alterar o funcionamento de nosso organismo, com vistas à produção de bem estar. Mas não estamos aqui falando de qualquer tipo de droga, mas sim de um tipo bastante específico. Estamos falando aqui de drogas que alteram o funcionamento, não de uma parte de nosso organismo, mas sim de nossa percepção da realidade, de nossas emoções, de nossos sentidos. Ou, para usar outros nomes (olha eles aí de novo),


podemos dizer que estamos falando de substâncias que alteram o funcionamento do Sistema Nervoso Central. Mas mesmo aqui, ainda não conseguimos ter uma definição que consiga abarcar todas as diferentes possibilidades de substâncias (e de usos de destas substâncias!): podem ser drogas usadas em contextos religiosos, em festas, usadas para aumentar o rendimento em período de provas, para relaxar, para aumentar a atenção, para acalmar, para dar sono, para tirar sono, para ter experiências psicodélicas, para ter experiências místicas, para diminuir a angústia e o sofrimento, para dar coragem, para tirar a fome, para ficar mais atento... Enfim: os desejos e os sentidos que as pessoas dão às práticas relacionadas ao uso de drogas são tão diversos, e o impacto destes usos na vida e na saúde de cada indivíduo pode ser tão distinto, que se torna realmente muito complicado dizer qualquer coisa mais geral sobre o tema. No limite, trata-se de conhecer mais de perto cada caso, cada diferente realidade, cada circunstância. Há, entretanto, algumas coisas que podemos dizer. Podemos dizer, por exemplo, que existem muitas pessoas que têm problemas com o uso de drogas. Da mesma maneira, também é certo dizer que existem outras tantas pessoas que usam drogas sem que isto represente necessariamente uma fonte de problemas. Também sabemos que existem pessoas que tem problemas quando usam determinadas drogas, mas que conseguem administrar mais razoavelmente outras. Existem as pessoas que vão experimentar as drogas, e abandonar depois de um tempo, e outras que vão seguir usando por muitos anos. Algumas, para o resto da vida. Vivemos na era da informação. Com um clique, podemos conhecer países, os sintomas de uma doença, a história de um povo. Na escola, no cursinho, na universidade, discutimos e construímos conhecimento a respeito do que é certo e do que é errado. Fazemos nossas escolhas, e em grande parte das vezes, nos sentimos informados a respeito de nossas próprias decisões. Com respeito às drogas, não é diferente. Mesmo em se tratando de um assunto tabu, do qual é complicado falar com os pais, com os professores, nunca houve tanta informação disponível sobre drogas. Ok, tá certo... É verdade que grande parte é a velha baboseira moralista que fica só repetindo frases prontas, sem dizer coisas que realmente interessam. Mas, para aqueles que se sentem curiosos, e que têm a possibilidade de acesso (leia-se “grana”), há uma imensa variedade de publicações, sites, livros, artigos, filmes, revistas, palestras em MP3 e em vídeo, chats, fóruns, comunidades no orkut. E de um modo geral, sabemos muito bem que o uso de drogas pode ser perigoso, e é potencialmente danoso. - Por que, então, as pessoas seguem usando? É uma boa pergunta. E como toda boa pergunta, tem zilhões de respostas. E provavelmente, todas estão certas. Mas, no limite, todos nós fazemos coisas que nos trazem algum tipo de prejuízo, com maior ou menor consciência destes atos. Afinal, quem de nós não come comidas gordurosas, ou bebe refrigerante? Quem de nós não deixa de ler um livro para ver novela, ou um enlatado americano? Lama Padma Santem, em uma palestra durante o Fórum Social Mundial de 2005, ao lado de Leonardo Boff e Fritjof Capra, dizia: “Se todos fizéssemos apenas aquilo que julgamos ser o correto, caminharíamos todos os dias pela manhã, provavelmente faríamos yoga ou meditação, comeríamos menos carne vermelha... No entanto, todos conhecemos o poder do chocolate”. Quando pensamos deste jeito, não fica tão difícil compreender as pessoas que usam drogas. Os motivos para experimentar são os mais diversos, e as razões para seguir usando são igualmente inumeráveis; tentar achar respostas a partir destas perguntas não me parece muito produtivo... Mas perceber, em cada um de nós, como nos


relacionamos com coisas que sabemos que nos fazem mal, deveria ser o bastante para produzir empatia e compreensão para com as pessoas que usam drogas, e ainda mais para com aquelas que venham a ter problemas decorrentes destes usos. Todos concordam que é preciso investir em prevenção. É preciso investir na produção de conhecimento sério, relevante e reflexivo sobre as drogas e seus usos, como é igualmente importante divulgar estas informações. É preciso investir em políticas públicas promotoras de saúde (como investimento em educação, desenvolvimento sustentável, cultura...). Mas, o que fazer quando a prevenção não funciona? O que fazer quando as pessoas, mesmo diante de toda a informação, insistem em usar drogas? Vamos enxotar estas pessoas da sociedade? Prendê-las? Obrigá-las a tratamento em instituições religiosas? Obrigar a freqüentar grupos do tipo Narcóticos Anônimos? Vamos fazer de conta que isto não existe? Por certo, nenhuma destas alternativas parece adequada, e algumas podem ser consideradas uma afronta às mais elementares noções de Direitos Humanos. Na Constituição Brasileira, está escrito, no artigo 196, que a saúde é um direito de todos e dever do Estado. Não está escrito ali que “saúde é um direito de todos, com exceção das pessoas que usam drogas”. Além disto, o SUS, que é o sistema de saúde no Brasil, diz que as pessoas deverão ter acesso a tudo aquilo de que precisam para proteção e cuidado de sua saúde (e chamam isto de “princípio da integralidade”), e que as necessidades diferentes devem ser tratadas de modo diferente (“princípio da eqüidade”). Além do mais, a gente ainda precisa lembrar que o Brasil assinou uma série de documentos internacionais, que definem saúde como um bem estar físico, mental e social, com direito a uma vida digna, meio ambiente sustentável, trabalho, educação, lazer, cultura... Ou seja: assumimos que para nosso país, saúde é muito mais do que apenas estar livre de doenças. - Mas, o que este amontoado de legislação tem a ver com uso de drogas? Tem tudo a ver. O que estes textos legais nos dizem é que as pessoas que usam drogas são seres humanos. Sendo seres humanos, têm direito a todos os direitos que qualquer pessoa tem, pelos simples fato de serem também pessoas. O “princípio da eqüidade” descrito no parágrafo acima nos indica que aquilo que uma pessoa tem de diferente deve ser considerado para ampliar seus direitos, e não para diminuí-los. Neste sentido, as pessoas, quando têm problemas de saúde decorrentes do uso de drogas, têm o direito de acesso ao tratamento mais adequado para seu caso. E, ao contrário do que muita gente pensa, tratamento de saúde para pessoas que usam drogas não é sinônimo de internação!!! Um período em uma clínica ou comunidade terapêutica (que é o nome das “fazendas de recuperação”) pode ser importante para algumas pessoas, mas não é o mais indicado para todas. E talvez seja justamente este o ponto mais importante sobre o qual eu quero conversar com você, neste texto.

Pessoas diferentes, caminhos diferentes No caminho é que se vê A praia melhor pra ficar Tenho a hora certa pra beber... Chico Science – A Praieira

Durante muito tempo, em face de toda uma cultura manicomial e sanitária que privilegiava as internações hospitalares e as intervenções medicamentosas, construiu-se na sociedade a idéia de que tratamento para pessoas que usam drogas é sinônimo de


internação. Como se fosse uma doença da vontade, o uso problemático de álcool e outras drogas foi tratado como falha moral, e os projetos terapêuticos guardavam – ainda guardam – uma forte carga punitiva. Saúde é um Direito. Sendo um Direito, não deve ser tratada como um Dever. Os transtornos relacionados ao uso de álcool e outras drogas são fartamente documentados em inumeráveis estudos das mais diferentes áreas das ciências da saúde. Há todo um conjunto de políticas de atenção dirigidas a estas pessoas, sem falar nos incontáveis profissionais e instituições que atuam na área. Em resumo, há hoje um consenso de que o uso problemático de álcool e outras drogas é um assunto da área da saúde. As pessoas com problemas de saúde não são cidadãos de segunda classe. Sua autonomia não fica em suspenso durante o período em que se encontram doentes, salvo em casos muito específicos, como quando há real risco de vida para a própria pessoa, ou para terceiros; nestes casos, existe a possibilidade de internar a pessoa, mesmo contra sua vontade manifesta, com autorização do sistema judiciário, até que os riscos tenham passado, e a pessoa possa novamente decidir por si mesma. Afora estes casos extremos, o direito de decidir deve não apenas ser preservado, mas ampliado e incentivado. Saúde é cidadania. Quanto maior a possibilidade de livre manifestação de autonomia, maior o estado de saúde de uma pessoa. Ampliar a autonomia do sujeito – a capacidade de tomar decisões diante da vida – deve ser o objetivo perseguido pelos trabalhadores de saúde (e em especial, pelos trabalhadores da área de saúde mental). A idéia é que o itinerário de cuidado de cada pessoa é único, construído com sua participação, no seu tempo, respeitando seus processos e singularidades. Afinal, se diante de algumas doenças, podemos nos dar ao luxo de termos um certo número de “procedimentos padrão” (como a administração de penicilina para pessoas com pneumonia, por exemplo), com as drogas é tudo diversidade. Não existem receitas prontas que possam servir a todos os casos, nem um doente incapaz que precisa ser salvo de sua própria vontade: há, isto sim, um sujeito implicado no processo de cuidado. Não há um “culpado a ser punido”, nem um “coitadinho a ser protegido”: há um cidadão, sujeito de direitos e deveres, que busca ajuda para construir um processo de cuidado. E é com base neste acordo ético e - por que não dizer? - político, que deve ser construído um itinerário de cuidado, um projeto terapêutico, pessoal e intransferível. É neste momento que o cuidado em saúde e a educação se aproximam. Paulo Freire, importante pedagogo brasileiro já falecido, criador da Educação Popular, dizia que ninguém educa ninguém, mas que todos nos educamos mediados pelo mundo. Desde os anos 70, diversas pessoas, em todo o Brasil, buscam pegar elementos da pedagogia de Paulo Freire, adaptando-os aos cuidados em saúde, e trazendo um conjunto de idéias que ajuda muito na construção de um projeto terapêutico individualizado, não para o indivíduo, mas com o sujeito. Ou seja: o que está sendo dito aqui se opõe radicalmente à idéia de que especialistas que custam uma fortuna possam ter a solução para o uso de drogas, como num passe de mágica. A “mágica”, na verdade, é a construção compartilhada de um itinerário terapêutico. Uma construção que é feita juntamente com a própria pessoa que sofre em função de seu uso problemático de álcool e outras drogas, a partir de um amplo repertório de possibilidades, e que pode envolver ainda familiares, amigos e redes sociais. - Hummm... Um repertório, é? Então existem alguns serviços, algumas estratégias específicas para o tratamento de pessoas que usam álcool e outras drogas, não é mesmo? Que estratégias são estas? Elas podem ser combinadas?


Sim, existem, e podem ser combinadas. Quando a gente estuda história, a gente vê que tem bastante gente, já há bastante tempo, pensando e produzindo idéias para cuidar das pessoas que usam álcool e outras drogas. Nem sempre os resultados foram bacanas, e o cuidado ficou muito próximo do controle. Por vezes, acabaram deixando a vida das pessoas pior do que se não houvesse nada. Mas, em outras tantas vezes, o resultado foi bacana, e se conseguiu levar benefícios a muitas pessoas. É a partir desta história – da minha visão desta história – que eu quero falar um pouco sobre as diferentes formas de cuidado para pessoas que usam drogas. Diferentes pessoas, diferentes necessidades, diferentes estratégias de cuidado. Como saber qual o caminho a seguir, frente a tantas estradas possíveis? A resposta, um poeta pernambucano já nos deu, lá nos anos 90: “No caminho é que se vê a praia melhor pra ficar”, cantava Chico Science, e a gente segue tentando aprender que, na prática, a teoria é outra... Na prática, por exemplo, a gente descobre que nem todo mundo quer, ou que nem todo mundo consegue parar de usar álcool e drogas. Tem aqueles que querem parar com algumas, mas seguir usando outras. E aí? O que fazer? Vamos embarcar naquele velho papo de que a gente só pode ajudar aqueles que querem parar de usar drogas? Que “quem não quer se ajudar, não há o que fazer”? Ou vamos entender que as pessoas são diferentes, e que o cuidado de que precisam é igualmente distinto? Existem diversas estratégias de cuidado preparadas para ajudar às pessoas que desejam parar com o uso de drogas. Todas elas podem ser úteis, a depender da pessoa, do seu momento de vida, de como e quanto usa drogas... O ideal é que se possa contar com a ajuda de um bom profissional da área, que poderá ajudar na construção daquilo que costumamos chamar de um “projeto terapêutico individualizado”. A depender de cada caso, este itinerário de cuidado pode incluir um momento inicial de desintoxicação, que pode ser em um hospital, clínica, ou mesmo em casa, a depender das condições familiares e do estado de saúde do sujeito. Mas, em muitos casos não existe tal necessidade, e podem-se buscar outras opções: psicoterapia, grupos do tipo Narcóticos Anônimos, a freqüência a um Centro de Atenção Psico-social (CAPS). Para as pessoas que têm simpatia por alguma religião, há também algumas boas Comunidades Terapêuticas... Mas, o mais importante de tudo: jamais abandonar o protagonismo neste processo. É preciso colocar-se na condição de sujeito, e pensar junto nas opções de cuidado. Decidir. Puxar para si a responsabilidade por seu próprio caminho terapêutico. A tomada de consciência para o cuidado, o surgimento de uma preocupação com a própria saúde, são questões complexas para todas as pessoas. Do momento em que descobrimos que algo pode nos trazer problemas, até o momento em que abandonamos esta prática, pode ir-se muito tempo. E às vezes, este momento nunca chega... Com relação às drogas, isto não é diferente. Há quem diga que é preciso deixar às pessoas jogadas a própria sorte, até que decidam abandonar o uso e procurar ajuda. De minha parte, acho isto pouco eficiente, e muito perigoso. Acredito que não precisamos esperar que uma pessoa sinta vontade de parar de usar drogas para ajudá-la a cuidar de sua própria saúde, e neste sentido, a idéia de Redução de Danos é bastante importante. Por Redução de Danos, entendemos um conjunto de idéias e estratégias que tem por objetivo reduzir riscos e danos associados ao uso de drogas. São práticas direcionadas às pessoas que usam drogas, e que não querem ou ainda não se sentem prontas para abandonar o uso. O que significa dizer, de modo bastante simples: não é


porque eu uso drogas, que eu preciso me submeter a práticas descuidadas, que me colocam diante de riscos que eu poderia evitar. Existem diversas estratégias bastante simples e diretas, e que contribuem para reduzir riscos e danos relacionados ao uso de álcool e outras drogas. Deixar o carro ou a moto em casa quando beber, por exemplo, é uma clara estratégia de redução de riscos! Ninguém está pedindo que você abandone o álcool para sempre; mas se você puder deixar o carro em casa, ao menos nas noites em que optar pela bebida, já estará contribuindo para diminuir os riscos de um acidente que pode prejudicar a você mesmo, e outras pessoas também. Com relação às outras drogas, é preciso ter em conta o seguinte: faz algumas décadas, o mundo vem trilhando um caminho que privilegia a repressão como meio de controlar o uso de drogas. Com isto, aumentamos ainda mais os riscos; se antes estavam associados apenas a agravos à saúde, soma-se a estes riscos, hoje em dia, aqueles associados às violências produzidas em um contexto de criminalização das relações de produção, circulação, comércio e consumo de drogas. Ou seja: se você resolver usar drogas proibidas, é preciso levar isto em consideração, e construir estratégias para diminuir os riscos associados, não apenas ao uso de drogas, mas às diferentes formas de violência relacionadas a esta realidade. Além dos cuidados para não levar um tiro nas disputas entre grupos de traficantes rivais, é preciso que você busque conhecer os seus direitos. Um dos muitos problemas produzidos pela criminalização do uso de drogas é o incremento a corrupção policial. Sendo assim, é extremamente importante que você discuta e conheça as leis de drogas do seu país, para não ser vítima de problemas que não têm nada a ver com o uso de drogas em si, mas que possuem grande potencial para gerar dores de cabeça... Assim, depois de mapear os riscos decorrentes da criminalização, vejamos os danos e riscos que podem ser reduzidos, em se falando do uso de drogas propriamente dito. Neste sentido, há diferentes recomendações, relacionadas a diferentes drogas. Se você fuma maconha, por exemplo, já estão disponíveis no mercado uma série de equipamentos que promovem a redução dos danos causados pelo consumo de cannabis; narguilés, bongs e outros dispositivos com água são ótimas ferramentas, pois retém o alcatrão e resfriam a fumaça. Se você usa drogas injetáveis, não compartilhe agulhas ou seringas, lembrando que também se pega Aids e hepatites compartilhando a colher ou copo de diluição. Se você prefere ecstasy, beba bastante água e bebidas doces. Pelo menos um litro, ao longo do tempo em que você estiver sob efeito; há um forte aumento da temperatura corporal, ainda que você não note. Se você vai usar alucinógenos, faça um plano de viagem. Seu estado de ânimo e suas companhias serão fundamentais para evitar uma bad trip. Não use se você estiver só; busque a companhia de pessoas amigas. Se você fuma crack, saiba que o cachimbo pode ser um vetor de transmissão de algumas doenças, como hepatites e herpes, por exemplo. Nunca pegue latas do lixo, pois pode haver contaminação por urina de ratos; o risco de leptospirose nestes casos é alto, podendo ocasionar até mesmo a morte. E lembre-se: caso algum amigo – ou você mesmo! - passe mal, não tenha medo de ir a uma emergência hospitalar; vocês não correm nenhum risco de serem presos. Porém, muito mais importante que decorar algumas estratégias, é a adoção de uma atitude de cuidado para consigo mesmo que vai fazer a diferença. No fundo, é disto que nos fala a Redução de Danos: de cuidado, e de autonomia para pensar a própria vida, para fazer escolhas, para repensar. No meio do caminho, a gente pode escolher parar, dar um tempo, ou mesmo dar um tempo para pensar em parar. Enfim... Isto é


saúde: esta capacidade de fazer escolhas, de se responsabilizar por elas, e de construir uma vida significativa em torno disto. Esta capacidade de parar no meio do caminho, perguntar a si mesmo se a viagem é realmente interessante, e mudar a direção dos pés, caso seja este seu desejo, sua escolha, sua decisão. Liberdade pra ser livre. Pra não se perder por aí... __________________ - Tá... Mas tem ainda uma coisa: lá atrás, tu disseste esta é a “tua visão desta história”. O que tu queres dizer isto? Existem outras visões? Sim, existem. Há, por exemplo, aqueles que acreditam que as drogas devem seguir sendo tratadas como um problema de segurança pública, de polícia. Existem ainda os que acreditam que a internação e a medicalização devem ser os pontos de partida de qualquer itinerário terapêutico. E existem os que acham que apenas a religião salva... Há também os que dizem que este não é um problema sério, e que estas pessoas devem arcar com as conseqüências de suas escolhas... De minha parte, entendo que o uso de drogas existe e seguirá existindo, por fazer parte do amplo repertório daquilo que nos faz humanos. Afinal, nunca houve uma única civilização na qual as pessoas não fizessem uso de substâncias para alterar sua percepção da realidade, para manipular suas emoções, seus sentidos. Não acredito que a criminalização possa diminuir o uso de drogas, e percebo que existe uma série de danos produzidos justamente por esta mesma criminalização que teria como objetivo proteger a sociedade. Acredito, por fim, que as pessoas que têm problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas têm os mesmos direitos a atendimento de saúde que qualquer outra pessoa, não importando se estes problemas estão relacionados ao consumo de qualquer coisa. É a partir destas idéias, destas convicções, que eu falo de cuidado em saúde dirigido a pessoas que usam álcool e outras drogas. Acredite, isto faz toda a diferença.


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