Concepções de Liberdade: uma leitura de Benjamin Constant

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CONCEPÇÕES DE LIBERDADE Uma leitura de Benjamin Constant

Douglas Weege

RESUMO Porque não podemos mais ser antigos? Quais as realidades encontradas em uma e outra concepção de liberdade? Qual a influência dessas concepções na sociedade? Perguntas como essas buscarão ser respondidas neste trabalho. Tanto a concepção de liberdade antiga quanto a moderna referem-se a uma atitude e/ou ação. Em ambos os contextos trata-se de uma liberdade para realizar algo. Deste ponto de vista, não faz sentido falar em liberdade positiva ou negativa. Entretanto, parece haver identificação deste último juízo de valor com a liberdade dos modernos. A subjetividade, o comércio e o governo representativo são questões centrais para a compreensão das duas concepções de liberdade, seja pela sua ausência ou o inverso. Constant, buscará uma conciliação entre essas duas concepções de liberdade.

Palavras-chave: Benjamin Constant – Liberdade – Subjetividade


1 INTRODUÇÃO O presente trabalho visa esboçar a reflexão das concepções de liberdade realizada por Benjamin Constant em 1818. O intuito é fazer breves apontamentos sobre a concepção de liberdade antiga em contraposição aos modernos e verificar a impossibilidade de impor na sociedade moderna a concepção antiga. Notaremos os perigos iminentes nas duas concepções e identificaremos a possibilidade ou não de conciliação dessas noções. Finalmente explicitaremos como essas noções e a adoção delas influenciam diretamente a vida pública de um povo, estado ou nação. O texto da liberdade dos antigos comparada à dos modernos (1818) de Benjamin Constant (1767-1830) trata-se de uma reflexão mais realista do autor. O pensador busca apontar quais as formas políticas adequadas para o mundo moderno em contraposição aos antigos. Benjamin destaca em suas afirmações os modelos de liberdade (política) do mundo antigo. O autor pressupõe, embora não fale disso, certa “natureza humana” em que o homem deseja/anseia ser livre. É preciso haver distinção de duas formas de liberdade, segundo Constant. Com base nesta necessidade busca analisar e comparar duas concepções de liberdade e que influem diretamente na vida pública da sociedade. Antes, porém, de explicitarmos estas duas concepções, podemos adiantar que, segundo o pensador, é extremamente inviável a tentativa de transpor o sistema político do mundo antigo, ou que funcionava no mundo antigo, ao mundo moderno. De forma simples e direta tal inviabilidade evidencia-se pelas diferentes realidades iminentes em cada época. Seria, neste sentido, uma completa incoerência, desrespeito e negligência com o contexto social atual, no caso da época em que está inserido.

2 CONCEPÇÃO DE LIBERDADE NA ANTIGUIDADE Constant, de forma direta e clara, salienta a concepção de liberdade na antiguidade. Notamos claramente algumas características fundamentais entre os antigos, das quais precisamos citar especificamente duas, isto é, a ausência de subjetividade e a não presença de um governo representativo. Constant busca deixar claro que, embora alguns pesquisadores enxerguem certos indícios de representatividade no mundo antigo, não há como encontrar na antiguidade um modelo de governo representativo como encontramos na modernidade, mais especificamente no contexto da revolução francesa. Devemos mencionar ainda que a ausência de subjetividade reflete a não presença de discussões de interesses pessoais nas questões públicas, como vemos em Constant:


Entre os antigos, o indivíduo, quase sempre soberano nas questões públicas, é escravo em todos seus assuntos privados. Como cidadão, ele decide sobre a paz e a guerra; como particular, permanece limitado, observado, reprimido em todos seus movimentos; como porção do corpo coletivo, ele interroga, destituí, condena, despoja, exila, atinge mortalmente seus magistrados ou seus superiores; como sujeito ao corpo coletivo, ele pode, por sua vez, ser privado de sua posição, despojado de suas honrarias, banido, condenado, pela vontade arbitrária do todo ao qual pertence. 1

Nota-se, pois, que o ideal para o antigo, e que cativa de modo fácil ideologicamente um moderno, é a participação efetiva nas decisões públicas com vista no bem comum da sociedade. Entretanto, cabem aqui algumas ponderações. O cidadão livre na antiguidade é, no sentido mais intuitivo, livre, isto é, tem todo o tempo disponível para pensar e deliberar em praça pública. O que possibilita isso? Diversos fatores, entre eles a escravidão. Totalmente incontestável na atualidade e com presente contestação na modernidade à escravidão exercia papel fundamental para os cidadãos livres. Embora, segundo estudiosos, na antiguidade o escravo exercesse diversas profissões, tivesse a possibilidade de adquirir bens e até mesmo comprar sua liberdade, ainda assim, é no mínimo discutível esta questão, entretanto, os escravos possibilitavam o ócio para que os cidadãos livres pudessem debater e deliberar sobre os interesses coletivos, mas sobre isso já falamos o suficiente. Vale ressaltar apenas, antes de continuarmos, que cidadão livre é o homem com maioridade, nascido na polis. São excluídos os estrangeiros, mulheres e escravos. Outro fator contribuinte para o exercício da liberdade antiga refere-se à extensão e/ou tamanho da polis. As polis eram cidades extremamente pequenas, o que facilitava e muito a administração e organização. Constant faz uma ressalva em sua análise em relação à democracia ateniense, fundamentalmente pelo comércio que havia nesta cidade. Menciona que se há alguma semelhança com a liberdade dos modernos na antiguidade esta se pode perceber em Atenas. Entretanto, deixa claro que embora alguns verifiquem em Atenas traços da modernidade ainda estava longe do que realmente se encontra no mundo moderno. Sendo assim, qual era o perigo da concepção de liberdade na antiguidade? Constant responde: O perigo da liberdade antiga estava em que, atentos unicamente à necessidade de garantir a participação no poder social, os homens não se preocupassem com os direitos e garantias individuais.2 De fato, é possível perceber em diversos contextos da antiguidade esta realidade, isto é, rotineiramente os direitos individuais eram exclusos em detrimento da 1

CONSTANT, Benjamin Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos, http://caosmose.net/candido/unisinos/textos/benjamin.pdf acessado em junho de 2012. Pág. 01. 2 IDEM. Pág. 06.

In:


participação direta dos cidadãos nas questões públicas. Como Constant salienta: nada é concedido a independência individual, nem mesmo no que se refere à religião.3 Como vemos, até mesmo o que há de mais subjetivo, no caso a religião, era verdadeiramente vigiado. Até aqui isto é suficiente. Retomaremos esta concepção de liberdade no decorrer do texto.

3 CONCEPÇÃO DE LIBERDADE NA MODERNIDADE De modo simples poderia ser dito que as principais características presentes na antiguidade no que concerne a concepção de liberdade não aparecerão na noção moderna do termo. De fato, as duas principais características que destacamos na antiguidade validam o que acabamos de mencionar, ou seja, na concepção moderna de liberdade temos como características fundamentais a forte presença da subjetividade e o governo representativo. Como consequência de um governo representativo os indivíduos buscam assegurar na vida pública seus interesses pessoais. Como Constant informa:

É para cada um o direito de não se submeter senão às leis, de não poder ser preso, nem detido, nem condenado, nem maltratado de nenhuma maneira, pelo efeito da vontade arbitrária de um ou de vários indivíduos. É para cada um o direito de dizer sua opinião, de escolher seu trabalho e de exercê-lo; de dispor de sua propriedade, até de abusar dela; de ir e vir, sem necessitar de permissão e sem ter que prestar conta de seus motivos ou de seus passos. É para cada um o direito de reunir-se a outros indivíduos, seja para discutir sobre seus interesses, seja para professar o culto que ele e seus associados preferem, seja simplesmente para preencher seus dias e suas horas de maneira mais condizente com suas inclinações, com suas fantasias.4

As cidades no mundo moderno já não são pequenas como na antiguidade. Com o fim da escravidão, segundo Constant, os homens foram obrigados a trabalhar, o que inviabilizou aquela participação direta que havia dos cidadãos livres antigos. Outra questão central e que transforma a concepção de liberdade no mundo moderno é o comércio. Se na antiguidade o comércio era, nas palavras de Constant, um acidente feliz,5 na modernidade trata-se da condição normal, o fim único, a tendência universal, a verdadeira via das nações.6 Evidencia-se, portanto, no mundo moderno: um estatuto de igualdade social; o reconhecimento da pluralidade de interesses e valores; a primazia do econômico – 3

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comércio/trabalho. A questão central desta concepção de liberdade passou a significar: a segurança dos privilégios privados; e eles chamam liberdade às garantias concedidas pelas instituições e esses privilégios.7

4 UMA TENTATIVA DE CONCILIAÇÃO Após apontarmos muito brevemente as questões centrais do que Constant caracteriza tanto a liberdade antiga quanta a moderna, podemos agora esboçar uma tentativa de conciliação destas duas concepções de liberdade até porque já alertamos, com auxílio do pensador, os perigos de cada uma delas. Pois bem, notamos em Constant, a tentativa de conciliar o direito à participação do poder político, fortemente presente entre os antigos, com os direitos individuais, característico dos modernos. Em nenhum momento percebemos em Constant uma tentativa de transpor a concepção antiga de liberdade aos modernos, ao contrário, ele critica essa postura. Entretanto, busca enfatizar em todo momento algo fundamental entre os antigos e que se perdeu no mundo moderno, ou seja, a participação efetiva do poder político. O perigo justamente do poder representativo é a negligencia por parte de cada indivíduo das questões, se assim podemos dizer, mais globais e/ou do todo. Vale lembrar que Benjamim escreve em 1818 e vemos em pleno 2012 o quão atual é a reflexão do autor. Nota-se que esta conciliação entre as duas concepções de liberdade, no que concerne aos seus aspectos indispensáveis supracitados, permite um equilíbrio ainda não alcançado. Pois se há quase 200 anos Constant percebe a negligencia do povo no que concerne ao direito de participação do poder político quanto mais hoje, dois séculos à frente. A tentativa e/ou proposição não é só de eleger o seu representante, mas fiscalizá-lo. Conforme sugere Constant: O sistema representativo é uma procuração dada a um certo número de homens pela massa do povo que deseja ter seus interesses defendidos e não tem, no entanto, tempo para defendê-los sozinho.8 E continua: Assim também os povos que, para desfrutar da liberdade que lhes é útil, decorrem ao sistema representativo, devem exercer uma vigilância ativa e constante sobre seus representantes (...).9 Não se trata apenas da preocupação com a coletividade em detrimento de muitas causas particulares, como nos antigos, nem a preocupação única com os interesses particulares esquecendo-se da sociedade.

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IDEM. Pág. 03. IDEM. Pág. 06. 9 IDEM. Pág. 06. 8


Por questões até mesmo óbvias em relação às realidades diversas do mundo antigo para o moderno ou, até mesmo, para o atual, não podemos mais ser modernos. Basta pensarmos na legitimidade que o mundo antigo dava para a escravidão. Como o mundo atual lidaria com a exclusão das mulheres? Embora elas tenham conseguido o direito ao voto há muito pouco tempo parece inconcebível pensar na sociedade atual as mulheres não terem voz ou poder para deliberar em questões públicas. Uns trabalharem para que outros tenham tempo ocioso? Bem, é óbvio que numa visão radical poderíamos apontar uma série de problemas que o mundo atual ainda enfrenta. Mas é preciso salientar que em muitas coisas a sociedade moderna já evoluiu. Entretanto, ainda carece dessa vontade e exercício de liberdade, seja de concepção antiga, de participação efetiva nas decisões públicas. Falta veementemente a fiscalização, o compromisso a preocupação com a coletividade. Sendo assim, parece cabível, nestes pontos que mencionamos, pensar numa conciliação entre as concepções de liberdade antiga e moderna. Elas se complementam e contribuem para que num novo mundo, que é o moderno e o atual, que alguns já chamam pós-moderno, as questões públicas sejam bem resolvidas e no exercício da liberdade se alcance o mais próximo possível a igualdade de condições entre todos os indivíduos.

6 BIBLIOGRAFIA

CONSTANT, Benjamin Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos, In: http://caosmose.net/candido/unisinos/textos/benjamin.pdf acessado em junho de 2012. GUSMÃO, L. A. S. C. “Constant e Berlin: a liberdade negativa como a liberdade dos modernos”. In: SOUZA, J. (Org.). Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea, v. 1. Brasília: Ed. UnB, 2001, p. 39-62.

PIVA, P. J. L & TAMIZARI, F. Cadernos de Ética e Filosofia Política 16, 1/2010, pp. 188207.


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