devolva meu lado de dentro

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Ai, Nine. Estou com as entranhas reviradas pela sua poesia. As palavras se atropelando com uma força absurda dentro de mim, mal estou conseguindo formular as frases. Ler todas, uma a uma, sentindo meus olhos correndo com medo e desespero, foi uma experiência diferente de tudo que já senti quando me deparei com qualquer trabalho seu. Sinto que você escreve para enlouquecer o pensamento, enlouquecer o jeito que a linguagem pensa. Em sua maioria não são poemas fáceis porque muda o jeito que estamos acostumados a ler, ver e ouvir as palavras falarem. Mas em contrapartida é veloz, não consegui parar até chegar ao fim - como quando a gente sente muita fome e vê a comida chegando perto, ela pode até ter sido feita com os mais desconhecidos ingredientes, pouco importa, nessa hora queremos tomar, dilapidar, tragar, corroer, absorver, possuir e depois eliminar - tudo numa espécie de transe. Me senti assim. Seu lado de dentro me mostrou uma mulher que, arrisco dizer, ainda não conhecia. A mulher que trouxe para as páginas rios enfurecidos, tropeços, pássaros que se alimentam de pedaços perdidos. A mulher que sente o cheiro dos rasgos, que costura olhos enquanto faz pedidos ao leitor, que tem um motor queimando o peito. E o mais importante, que escolheu estar à margem de um rio doce para escorrer imprevisível pela sua própria pele. Nem sei se sei mais o que dizer, só posso mesmo agradecer por você ter tirado o lacre da boca, Nine. Quero voltar e ler mais uma vez, será impressão ou a minha vontade ficou presa lá? Na minha opinião a fonte não poderia ser outra. Entrou em sintonia com essa sensação do estado cru das coisas, do esboço das nossas reações brutas - ainda não trabalhadas, modificadas ou manufaturadas. Usar a máquina de escrever requer força nas mãos, o que você prova agora mais do que nunca, não lhe falta.

Amor, maior ainda. Lê


DEVOLVA MEU LADO DE DENTRO


©2012 SINHÁ sinhacrua.tumblr.com todos os direitos estão liberados para reprodução não comercial. qualquer parte desta obra pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação, etc. desde que não tenha objetivo comercial e seja citada a fonte (autor e editora).

capa:

sinhá foto:

renan rêgo direção de arte:

daniel minchoni tratamento:

sidnei sanches revisão:

leticia torres

Catalogação na Fonte: Biblioteca Pública Estadual Câmara Cascudo ___________________________________________________________ S615d Sinhá Devolva meu lado de dentro / Sinhá. – Natal (RN) Jovens Escribas, 2012. 70p. : il. ISBN 978-85-64380-09-7 1.Poesia brasileira. I.Sinhá, pseudônimo de Eveline Gomes. II. Título. CDD B869.1 CDU 869.0(81) – 1 2012/03 ___________________________________________________________


SINHÁ



vou continuar escrevendo mesmo quando a tinta secar. leticia torres em “por cada uma�.


para daniel, pela palavra de todo dia. para josĂŠ e luiza, pelas coisas do chĂŁo.



Feita de palavras, tintas e pássaros... “Devolva meu lado de dentro” é raro. Tão raro quanto os pássaros atravessados em Sinhá. Assim também são as palavras tecidas por ela, essa mulher ventania, poeta das tardes, da revolução, dos amores e das ruas pintadas de saliva. Sua construção poética corta, sangra, voa e nos leva para lugares onde a delicadeza e a fertilidade andam com os pés na areia. Ela desenha verbos e vira mar em plena metrópole de São Paulo. Sua poesia traz saudade, daquela mais gostosa de sentir. Tem um quê de Haikai, indo muito além, como Sinhá mesma gosta de dizer “além de mim”... Em poucas palavras, sua poesia possibilita a leitura de mundos inteiros, quando sentimos tudo, deixando de lado a frieza do mundo. Desde o copo americano de café onde cabe o amor perdido, até os “cacos de vidro, presos ao cimento do seu medo”, sua poética é peculiar. Basta ler versos como enxaqueca, você e esta dor que não me saem da cabeça.



Desde o primeiro contato com a poesia de Eveline, a percepção maior é de uma poética cinematográfica e desnuda. Talvez seja a agulha imaginária que existe em suas mãos, costurando linhas ou mesmo suas referências de vida nas ruas das cidades e nos lugares mais sagrados. Ela dialoga com o minimalismo de Itamar Assumpção e descostura infinitos em nosso peito, ocupando um espaço importante na literatura em que as imagens são cada vez mais escassas. Por isso, seus poemas são lugares onde os pássaros moram ...constroem seus ninhos, com galhos meus. arrancam suas penas, querem minha pele. esses pássaros, que se alimentam de pedaços perdidos. sou devorada enquanto voo”. Ela é devorada e nos devora com suas fatias generosas de humanidade. Este livro é um pedaço de mar, de sonho, de uma literatura preciosa, de uma poeta que nasce com os olhos atentos aos acontecimentos de dentro e de fora. E o principal, um livro que fala sobre o ser humano, simplesmente e sem pretensões maiores, por isso é tão gigante e sagrado. Depois de lê-lo é quase impossível devolver o lado de dentro. Ele não voltará nunca mais a ser o mesmo.

Michelle Ferret



a mão pequena que limpou areia das pernas, tira o lacre de todas as bocas, porque precisa ouvir alguma voz que lhe conte uma boa história. mas pena. agora, só existe a história dos corações diminuídos.

sinhá

os olhos fortes resistem o sono devoto ao agoniado motor no peito que queima.

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devolva meu lado de dentro

a noite n達o me deixa dormir.

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sinhá

seu cheiro de uva pisada me afogava junto às peras bêbadas, desfalecidas não alcançávamos a borda da tigela trincada dos anos. você brincava de mergulhar a colher no caldo vermelho, a tempestade batia nossas cabeças, minha e das peras, na cerâmica amarela. e a gente ali com o corpo-esponja-de-vinho esperando só sua boca.

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devolva meu lado de dentro

enchentes de dor escreveram nos muros do meu peito. secou. ficou a marca até onde você foi. mude pra outro lugar e esqueça o endereço da minha cabeça.

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sinhá

quero estar à beira do rio que cai dos teus olhos.

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das saudades que conhecia ficou estranho na dobra do dia como se esperasse o chamado e voasse pra dentro das penas escuras.

devolva meu lado de dentro

na festa dos urubus empoleirados elas eram as mais bonitas. a pele vestida de palavras no claro do caminho se escondia. uma mancha no vestido insistia em brotar pra escorrer com a รกgua o que era vida.

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sinhá

você, esse rio doce, mas prefiro mar. da minha montanha de sal espero desaguar em grãos pras minhas tonturas dessa baixa pressão.

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devolva meu lado de dentro

quando um corpo vĂŞ outro certo corpo. abrem-se cortes pequenos de onde saem mĂŁos. muitas, milhares nervosas apertam-se sem selar a paz desse corpo-corpo.

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só, preciso que me conte como será isso, essa vontade de ir?

sinhá

em todos os meus cantos ouço sua voz a lavar pés, a levar tudo daqui. você levanta minha pele devagar e cobre-se dela. eu vejo e deixo que me esmague os órgãos pra lhe caber assim tão grande. até respiro pouca pra não enlouquecer seu sonho.

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devolva meu lado de dentro

procuro beleza nos espelhos que me cercam, nos ombros um jogo leve. escuto o grito que sai das tuas janelas e tudo cai cacos cortando pensamentos, braรงos concretados, caos de nossa vontade.

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sinhá

o riscado da sua boca quer meu nome a pele de azulejos frios descasca à falta de rejunte desse silêncio que não ergo dessa febre que não passa dessa dor que tem seus espelhos. deve ser castigo pra esses bons meninos que não somos.

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devolva meu lado de dentro

uma risada de bruxa lĂĄ fora e o corpo com tanto tamanho e perdido equilĂ­brio morto num sofĂĄ que espinha as costas como cutucadas tapas na cara desse lamento sujo da verdade.

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sinhรก

no telefone curto, o amor mudo.

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devolva meu lado de dentro

no meu peito não tem miséria, é carne farta de coração.

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sinhá

a poeira deita sobre os livros, frascos, sobre o corpo. falta forças, panos limpos, transparência de água pra esfregar o caldo grosso, a lama, que invade a casa com o rio de pesar subindo feroz.

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devolva meu lado de dentro

as lĂĄgrimas sĂŁo todas tintas, quem chora colore o mundo.

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sinhĂĄ

quero vocĂŞ num conta-gotas dissolvido pingando em meu peito, nossa tortura chinesa.

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quero minha dor.

devolva meu lado de dentro

quem não sente dor dilacera língua perde dedos e dentes fica em pedaços anestesiado num corpo-nada.

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sinhá

minhas unhas têm cor de carne é pele sua ainda aqui na ponta dos dedos com vida. e não vou esconder quero ser culpada do sangue no vestido da falta de ar do desenho de saliva no corpo.

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devolva meu lado de dentro

enxaqueca. você e esta dor que não me saem da cabeça.

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fiquei com medo de mim.

sinhá

ele gagueja: tenho medo de você, sua mente, não consigo ler. de olhos abertos a noite fica. considerei que era correnteza de álcool na veia, fumaça demais, ou porque nada me conhece. e a cabeça, revirando os baús da maldade não encontrou nada que mirasse seu peito.

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devolva meu lado de dentro

a cidade fria não larga meu osso escuto o barulho da usina gente moendo marmita, vontades sem vida, fumaça, pólvora e gasolina.

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sinhá

barulho rasga pano, lâmina, espero você até o último cubo de gelo derreter.

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devolva meu lado de dentro

sua medida estava em quase tudo, nĂŁo nas roupas que secavam sujas. encolhido, perdia os pĂŠs frios na caixa de papelĂŁo. revirava a vida, dentro de nossos olhos.

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sinhĂĄ

fecha os olhos e tudo vira noite. corta o cĂŠu corta o corpo com as luzes e a certeza do que parece seu.

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nĂłs, derramamos juntos.

devolva meu lado de dentro

deu seus olhos pra segurar em minhas mĂŁos que derretiam com suas lĂĄgrimas.

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sinhá

boiando na água até o pescoço corações afogados pedem socorro de boca na boca.

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cuidado com os espinhos das rosas em mim.

devolva meu lado de dentro

cortes aparecem no corpo por onde nascem rosas, um corpo-jardim. o meu sangue pensam 谩gua, e desse beber crescem cada vez mais vermelhas, e pingam, pingos quentes, e d贸i.

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sinhá

ele sabe os meus disfarces, dos com cheiro de guardado aos que hoje as mãos despem. mas ele ainda não conhece, o disfarce rasgado de ser eu.

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devolva meu lado de dentro

sempre parece estar com a arma carregada e apontada pra mim. mas veja, olhe bem: meu corpo nĂŁo tem mais onde furar. agora sĂł resta, vocĂŞ queimar minha roupa.

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sinhá

saudade de ver, de ver de perto o tempo que passa no seu rosto, os riscos, o novo desenho dos olhos, da boca, as rugas que invadem pra morar em você, como se não tivessem encontrado lugar melhor pra serem rios, e sei, busca inútil, não encontrarão. seu rosto é a melhor paisagem, é areia em mim.

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devolva meu lado de dentro

quero secar vocĂŞ, do nosso suor, no meu varal.

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sinhá

sinto coçarem minhas carnes por dentro, e vejo meu corpo abrir em buracos, não tenho mais pele, só ouço o som dela, em suas mãos, em seu tambor.

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cada vez que me olhava, roubava um pouco minhalma.

devolva meu lado de dentro

eu estava dentro de uma garrafa e ele chovia em mim. torcia seu corpo cansado que enchia tudo em volta atĂŠ a boca. mergulhada no seu resto seca do meu ar fiquei ali sem quase nada de tudo que ele levou.

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sinhรก

nas mรฃos de quem estamos nรณs? ferozes costurando as paredes que caem afundadas na noite de nossos olhos.

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devolva meu lado de dentro

ele vira a esquina batuca a caixa de cigarros, faz samba pra fumar. do seu alto caem sopros de mulheres que o adoram feito um deus de rua.

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vá e carregue toda desonestidade do seu silêncio.

sinhá

pisou forte nas mãos e chutou longe minhas armas de fome pouca, rastejo até elas, seu rio está ali.

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devolva meu lado de dentro

sentamos à cama, sobre a colcha xadrez, e comemos nossos coraçþes.

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sinhĂĄ

encolhida em mim, a dor parece menor.

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quero te costurar do meu jeito.

devolva meu lado de dentro

entre dedos e medos, linhas e agulhas que me consomem e me cercam pelos lados. acuada, junto os pedaços, migalhas caem, de todos os meus restos de você.

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sinhĂĄ

vocĂŞ esquentou aqui dentro das minhas roupas de pele.

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hoje acordei com o gosto da açúcar-da-cana em rodelinhas. o cuidado com o tamanho de cada pedaço, me fazia pensar que existia um cálculo específico pra cortar cana-de-açúcar em rodelinhas. agora sei que era mesmo matemática de avô. hoje acordei com saudade dele, com saudade do meu sertão de cabelos brancos.

devolva meu lado de dentro para josé

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sinhรก

queria caber dentro de uma caixa, queria que todas as minhas coisas coubessem dentro de uma caixa, queria ser pouco, queria ser menos, mas jรก me espalhei tanto que todo lugar me tem.

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devolva meu lado de dentro

meus pés sobre os dele, às vezes, machucava, mas não doía, nada doía entre nós. abraçados, eu andava seus passos. meus pés que cresciam, muito escorregaram dos pés tão andados dele, mas a gente sorria, e voltava pelo corredor do nosso mundo, de dois corpos, de dois pés.

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sinhá

seu nome, entre as coisas, que ocupam espaço, e ainda assim, permanece pálido, perdido, no que é tão vasto. coisas soltas, que caem pelos lados, onde tropeço, e caímos, procurando o chão.

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sem linhas, sĂł veias e o silĂŞncio quente do nosso sangue, costuraram seus olhos em mim.

devolva meu lado de dentro

quando nos vimos, caiu uma tempestade de agulhas que costuraram vocĂŞ em mim.

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despida de você, despeço de mim.

sinhá

minhas vestes de pele sua, inundam correntes de suor. em cada poro um botão, desbotada. 61


parecia que estava sendo vista pela primeira vez.

devolva meu lado de dentro

esse sujeito que determina, seu estado de sofrer açþes, como as coisas que acabam e ainda deixam sinais de vida. em seu peito frio, o sangue que corre gela meus olhos, agora cegos, em suas cores.

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sinhĂĄ

pĂŠs cobertos com pĂł de ouro, pulando os muros do seu corpo, corta pernas nos restos de garrafas. cacos de vidro presos ao cimento do seu medo.

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devolva meu lado de dentro

meu amor tĂĄ perdido, pedindo abrigo, cafĂŠ em copo americano, pĂŁo de ontem.

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sinto a presença dele em chaves.

o movimento cadenciado das chaves seguras em sua mão, era música, a minha preferida. ouvir aquele som me dava uma sensação de alívio: ele não tinha me esquecido. os metais que balançavam, eram as chaves da nossa vida. hoje, as portas já não são as mesmas, mas basta ouvir nosso código, mesmo pelas chaves de outros, que volta em mim a criança que esperava por ele todos os dias. sinhá

para antônio

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devolva meu lado de dentro

pela rua esqueço de fechar o vestido, agora tudo parece tão besta o acaso rasgando meus panos pele muros de pedra capas de discos.

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sinhá

meu sangue é quente, se achegue, venha coar seu café.

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sou devorada enquanto voo.

devolva meu lado de dentro

sou buracos onde pássaros vêm morar. constroem seus ninhos, com galhos meus. arrancam suas penas, querem minha pele. esses pássaros, que se alimentam de pedaços perdidos.

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fiquei sem saber o que era corpo e o que era cĂŠu.

sinhĂĄ

pago os olhos da cara pela tua boca.

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devolva meu lado de dentro

o asfalto separava o amor. daqueles que jรก nascem uma รกrvore inteira. quando o olho-olho vale a pele toda.

70


escrevo, porque palavras s達o o que nos restam quando longe. e longe tenho estado de mim.


compre no min.com@terra.com.br ou no evelineg@gmail.com

Devolva meu lado de dentro foi composto em tipologia Kingthings Trypewriter 2 corpo 11, em papel p贸len bold 90g/m2 e impresso na Gr谩fica Fastprint em abril de 2012 para a editora Jovens Escribas.



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