Luxúria

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1 - NEWCASTLE

O carro preto cortava a forte chuva da estrada com extrema facilidade. O motorista era muito experiente e conhecia cada curva, transparecendo uma calma tremenda que refletia nos dois jovens do banco de trás. A proximidade de Newcastle só colocava um ponto final numa longa e cansativa viagem. A garota se chamava Cherry e o garoto Mike, os irmãos gêmeos White. Observavam aquele clima chuvoso pela janela do carro e concluíram que não combinava muito com a serena Baltimore. Chegaram a pensar que a Europa não era o lugar certo para eles. Cherry, mesmo com seu casaco rosa e de braços cruzados, tentava em vão diminuir o frio que sentia. Sua pele, que já era branca, agora estava mais pálida que nunca. Tinha cabelos castanhos que, mesmo amarrados em um rabo de cavalo, tocavam levemente seu rosto irritando-a. Olhou para seu irmão, que estava sentado o mais distante possível, muito absorto em seu rock pesado “WISH I HAD AN ANGEL”. Ele, que antes tinha os cabelos idênticos aos dela, agora os exibia negros artificialmente, escorridos e com algumas mechas avermelhadas cobrindo frequentemente um de seus olhos. Ela lembrava-se de como era seu irmão antes, mais vivo, elegante e alegre. Agora suas roupas, sempre negras, eram pesadas e apáticas, usando sempre algo nos braços. Embora o físico não tenha se alterado, uma vez que sempre fora atlético, diferente da magricela que ela era, não o via mais animado para os esportes. — Vai continuar sem falar nada? — Tentou mexer com ele. Mike não moveu um músculo e continuou a ouvir sua música.

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Derrotada, preferiu voltar a observar a janela e suas gotas de chuva. Foi um certo dourado distante que lhe chamou a atenção. “Luzes!”, pensou. Aquilo mais parecia um vilarejo. Exatamente como Mike imaginava, extremamente diferente de Baltimore. A cidade era repleta de monumentos antigos, becos e ruas estreitas feitas de pedra, porém com muitas casas modernas. Ambos criaram expectativa de que a longa viagem terminara e que finalmente conheceriam o novo lar ali mesmo, mas o carro continuou e, novamente, estavam em outra estrada escura. — Onde vamos morar afinal de contas? — falou Mike, rompendo o silêncio com sua voz grossa. — Ah, senhor, a sua casa fica distante da cidade. Isso é muito comum por aqui! — falou o motorista. — Ótimo! — resmungou o garoto, aumentando ainda mais o som de sua música. Dezesseis anos era a idade dos irmãos. Mas quando Mike agia daquela maneira, Cherry tinha certeza de que a idade mental de seu irmão diminuía consideravelmente, fazendo-a parecer mais velha. Na verdade, ela sempre se considerou a mais velha, desde as atitudes ou mesmo no modo em que encarava as coisas. Mike levava tudo muito a sério, sempre buscava um lado sentimental de tudo. Dramatização sempre fora com ele. Apesar de seu físico, sofreu muito nas mãos de Cherry quando eram pequenos. Ela ainda tinha saudades dos velhos tempos. O fato de deixar sua casa e amigos para morar na Europa foi encarado da pior maneira por Mike. Ele tentou de tudo: ataques de raiva e muita discussão, mas no final não houve alternativa.

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“Eu estava indo tão bem”, pensava referindo-se a tudo o que ele conseguiu conquistar nos seus dezesseis anos de vida: popularidade, sucesso no seu esporte favorito, garotas... Tudo ficou em Baltimore. Embora a chuva caísse com mais força, Mike podia ver que o carro atravessava uma estrada inteiramente verde. Parecia estranho. Era um enorme campo que se perdia no horizonte, havia poucas árvores e aquele era um visual típico de desastres naturais, furacões, etc. Ele fitou um borrão gigantesco à frente tentando ao máximo definir o que era. — Chegamos, crianças! — disse o motorista parando em meio ao nada. Cherry olhou para fora, avistou um portão e um enorme muro, mas nada de casa. O portão se abriu automaticamente quando o motorista usou uma espécie de controle. E assim o carro entrou. Os irmãos esperaram ver finalmente a casa, porém se depararam com uma nova estrada. O borrão crescia descomunalmente, mesmo com a chuva incessante era evidente que ali na frente existia algo enorme. Ao se aproximarem, constataram que não era uma casa e sim um enorme castelo repleto de luzes acesas e com a grande porta da frente aberta. Cherry arregalou os olhos e se tivesse olhado para seu irmão, teria visto a mesma expressão. Não era um castelo qualquer, daqueles que alguns poderosos constroem aos montes. Era um castelo absurdamente gigantesco! Mike conseguiu ver pessoas do lado de fora do castelo em duas fileiras. Todos uniformizados à frente da enorme porta do castelo: os homens de terno e as mulheres com roupas formais de limpeza. O carro finalmente parou ao pé de uma extensa escada de mármore. Um dos homens desceu correndo com um guarda-chuva. 4


— Vamos, senhorita! Não queremos que fique resfriada. — falou o homem. E, em seguida, outro apareceu e fez o mesmo com Mike. Cherry não conseguia acreditar, era um castelo de verdade! Tudo o que sabia sobre castelos vira em filmes e desenhos animados. Seu interior, porém, não era como ela imaginara. Observava que tudo era muito moderno, desde as luzes aos eletrodomésticos, enquanto entravam mais no aconchegante castelo. Mike escutou sussurros baixinhos vindos dos criados. “O que houve com os pais?” — alguém perguntava. “Foram presos”. Antes que ele pudesse encarar quem disse aquilo, eles já haviam desaparecido, e só o homem do guarda-chuva os conduzia à frente.

Finalmente pararam em um enorme salão, onde Cherry pôde reparar que havia vários quadros com pinturas estranhas. Alguém os esperava. A primeira impressão dela foi de estar de cara com uma bruxa de contos de fada. A senhora à sua frente tinha cabelos acinzentados, nariz torto, era muito alta e suas sobrancelhas desenhadas transpareciam um aspecto de desprezo, aumentando ainda mais o “charme natural” daquela mulher. — Olá, vovó! ― disse ela calmamente à mulher, que analisava a garota com os olhos. — Cherry, eu suponho? — disse a voz suave. — Sim. — respondeu a garota calmamente.

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Mike estava muito desconfortável com aquilo. Suspeitava que a mulher que estava à sua frente logo falaria coisas desagradáveis. — Eu soube de seus pais há pouquíssimo tempo. Foi lamentável! — falou. — Eles foram injustiçados e ninguém fez nada! — soltou ele, e sua voz ecoou pelo enorme salão. A senhora olhou para o garoto com desprezo, como se fosse um inseto esquecido por ela. — Meu querido, receio que você não deveria ter muitas esperanças. — Antes que Mike começasse um debate, ela continuou com uma voz firme. — Vocês devem estar muito cansados. A escola de vocês não admite falta nem no primeiro dia de aula. Christine, a criada, mostrará seus quartos e amanhã explicará as regras. Boa noite! — Desculpe... — Sim? — perguntou a senhora encarando Cherry com um sorriso no rosto. — Seu nome... ― Ana Belle. ― falou se despedindo e desaparecendo em seguida pelas portas do castelo. Christine era uma mulherzinha minúscula, porém parecia ser muito mais acolhedora do que a avó dos dois. ― Senhor, este aqui é seu quarto! ― Ela abriu uma porta revelando um enorme espaço. Mike, por um segundo ou dois, olhou com espanto o lugar, mas rapidamente entrou batendo a porta. — Ele não fala muito, não é? — disse a mulher. Cherry assentiu. Finalmente chegaram ao quarto seguinte, que parecia um tanto maior. Ela se despediu da criada e notou que suas coisas já estavam todas muito bem arrumadas. Sua cama era enorme e a cortina rubi dançava na noite. 6


A janela terminava no chão. Cherry sentou- se no degrau de mármore e ficou admirando a noite chuvosa. Queria estar com seu irmão agora e não tão distante, mas mesmo perto dele ainda se sentia distante. Era sua única família.

Em seu quarto, Mike já estava deitado na cama. Reto e sem vida, ele olhava para o teto. As lágrimas já haviam secado, ele sentia vontade de ir ao quarto de sua irmã e abraçá-la, mas não conseguia. Era covarde e estava destruído, pensava. Olhou para o lado e observou um armário em que todas suas revistas e livros estavam já arrumados. Conseguiu ver dali o livro que sua irmã lhe dera de aniversário, “A Cabana”. Ele havia lhe dado o último livro da série “Harry Potter”, de que ela tanto gostava. Seus olhos finalmente ficaram exaustos e em segundos já estava em um sono pesado.

Cherry não tinha certeza absoluta se amanhecera. O céu estava escuro ainda, mas a criada Christine chamava pelo seu nome com carinho. — Senhorita, já está na hora de levantar! Ainda estava muito sonolenta e sentiu uma leve vontade de dar umas boas “travesseiradas” na pequena mulher à sua frente. Levantou-se e tomou um banho muito rápido, demorando apenas para secar seu cabelo, até ficar decente. “Primeiro dia de aula, vou ser comida viva”. De cabelo seco, tinha de pensar em que roupa usaria. Alguém bateu à porta. — Senhorita, seu uniforme! — disse a criada entregando um conjunto de uniforme composto de uma blusinha formal, jaqueta e uma saia xadrez.

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— Uniforme? — perguntou Cherry, horrorizada com o tamanho da saia. Pequena demais. — Sim. O Saint Marie é muito exigente na uniformização dos alunos! “É um colégio católico. Não acredito!”. Vestiu-se rapidamente e procurou algo em sua mala que pudesse colocar em seu cabelo, pois não queria ficar igual a um robô uniformizado. Finalmente encontrou um laço vermelho que sua mãe lhe dera. Um tempo depois, Christine voltou a bater em sua porta para informar que o café estava à mesa. Desceu as escadarias e encontrou Mike. Seu cabelo meio bagunçado e as mangas de sua roupa estavam claramente puxadas, exibindo seus braços por completo. — Assim você vai arrasar os corações das menininhas! ― Cale a boca! ― disse ele, finalmente rindo. Cherry desejou ver mais daquele sorriso, mas Mike novamente se fechou. Deixando-a angustiada por vê-lo assim. Desfez-se daquele desejo e olhou para a mesa que estava incrivelmente arrumada, repleta de frutas e bolos, juntamente com sucos de diversos sabores. Mike não fez nenhuma cerimônia e abocanhou um pouco de tudo, mas Cherry ficou intrigada com algo. — Christine! — Sim, senhora? — respondeu imediatamente a criada preocupada. — Onde está a vovó? — Ah, sua avó já saiu... Ela me pediu para orientar vocês sobre os horários. 8


A porta dos fundos se abriu e uma garota morena entrou na sala. Aparentava ter uns quinze anos, tinha uma linda pele caramelada e cabelos negros maravilhosos, usava um laço parecido com o de Cherry na cabeça e também estava uniformizada. — Ah, sim, essa é minha filha, Lara! — disse Christine animada, chamando a garota. — Ela também estuda na mesma escola de vocês. Se precisarem de alguma coisa, ela poderá ajudar. Mike olhou brevemente para garota e voltou para seu bolo, a irmã deu um sorriso amistoso, a criada olhou para o relógio e disse apressada: — O motorista já deve estar esperando lá fora. Por favor, se apressem! Lara saiu da sala educadamente e se dirigiu para fora do castelo, Cherry engoliu o café e se apressou em segui-la. A razão de terem acordado tão cedo foi imediatamente esclarecida depois do tempo que os irmãos gastaram dentro do carro. O sol foi mostrando o seu brilho aos poucos, e o carro ainda estava na deserta estrada. Agora, com luz, Mike pôde ver como eram os arredores de onde iriam morar. Basicamente tudo se resumia a um imenso campo verde que se perdia no horizonte, havia lá algumas árvores secas e vacas pastando. “Meu Deus! Estou no fim do mundo”, pensou ele. Exatamente duas horas depois, o carro chegou à civilização. A cidade, que antes tinha se revelado um vilarejo, agora mostrava suas lojas de luxo entre outras coisas modernas. “Cidade pequena de nariz empinado”, pensou Cherry, referindo-se à qualidade das lojas, muitas de marcas famosas. Quando o motorista diminuiu a velocidade, os irmãos se inclinaram para janela tentando focalizar a escola. Lara, que não abrira a boca durante toda a “viagem”, finalmente falou: — Vocês vão gostar daqui. Saint Marie é uma escola muito boa!

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— Me preocupo é com os alunos — disse Cherry, realmente se esforçando para ver a escola e algum aluno. — Não precisa se preocupar, nossa escola seleciona a dedo seus alunos. Você vai entender quando chegar. — Espero que esteja certa. Não quero confusão com nenhuma garota logo no primeiro dia. — Vejo muito disso nos seus filmes adolescentes. — disse a filha da criada. — Na vida real é pior ainda. — falou Cherry. Mike revirou os olhos, talvez fosse uma pitada de ciúmes ou inveja pela irmã já estar fazendo sua primeira amizade, mas simplesmente não acreditava nessa de “nossa escola escolhe a dedo seus alunos”. Quando o carro parou, os dois concluíram que a enorme catedral que viram na verdade era a escola. “Tenho a ligeira impressão de que vou sair daqui freira”, pensou Cherry. Mas, olhando para sua pequena saia, concluiu seu pensamento: “Uma freira bem safada”. Quando deixaram o carro, Lara rapidamente se juntou a um bocado de garotas, deixando os dois irmãos sozinhos. Não estavam na mesma sala, o que era comum pois a maioria das escolas têm a tradição de separar irmãos gêmeos. Mike deu alguns passos para frente e a princípio não achou nada de anormal na escola. Ninguém deu a mínima para os dois, eram alunos extremamente bem arrumados e talvez o anormal fosse que não eram iguais aos alunos que havia em sua velha escola. Não estavam ali os alunos que riam exageradamente alto, na verdade todos conversavam tranquilamente em seus respectivos grupinhos.

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Ninguém chegava de bicicleta ou skate. Todos chegavam de carros importados. Chegaram, assim, a conclusão do nível de pessoal que estudava ali: ricaços. Assim que entraram na escola, dois homens bem arrumados e com crachás em suas roupas vieram ao encontro de Cherry e Mike. — Cherry, eu suponho? — falou o careca. Ela concordou tentando parecer educada o bastante para responder a uma pessoa tão culta. — Venha comigo, por favor. Vou lhe mostrar a sua sala. Ela reparou que ali se separaria de seu irmão Mike. Não seria uma separação eterna e sim questão de horas, mas algo metafórico em seu coração, algo inexplicável, dizia que aquilo significaria uma separação verdadeira, algo que deixaria os dois mais distantes do que já estavam. — Boa sorte, Mike! ― disse Cherry olhando para o irmão enquanto se distanciava, esperando uma resposta dele. — Para você também. — respondeu com um sorriso lateral. Uma energia positiva invadiu o seu ser. “Talvez não seja tão ruim...”, pensou. O homem que ficara com o garoto era bem estranho, parecia uma espécie de mordomo escolar. — Vamos então, senhor White! — disse chamando Mike pelo outro nome. Ele respirou fundo. — Vamos. Cherry já estava cansada de tantas escadas e corredores, e seu nervosismo quanto a isso era evidente. Tinha certa apreensão quanto a como seria a recepção da sala, provavelmente cheia e já em aula, quando ela entrasse pela porta. O homem careca finalmente parou.

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— Sua grade de horários — disse, entregando uma pequena tabela. — Nós, do Saint Marie, lhe desejamos um ótimo ano de estudos. Cherry encarou a porta à sua frente por um segundo e entrou. Foi inesperado, mas a turma sequer olhou para a garota que entrou na sala. Todos estavam muito distraídos cochichando alegremente. O professor estava sentado à sua mesa e digitava em seu notebook enquanto a turma conversava. A sala estava bastante cheia. Os olhos de Cherry percorreram rapidamente a sala à procura de uma cadeira. Havia uma sobrando logo na frente da sala, ao lado de uma menina loira de rabo de cavalo. ― Olá! Sou Francine Caramelize! — disse a loira com sotaque francês, antes mesmo que Cherry pudesse respirar. — Cherry White! — respondeu, tentando ao máximo causar uma boa impressão. — Adorei seu laço! — disse a garota simpática, e em seguida voltou a conversar com outras garotas que estavam ao seu lado. Era tudo sincronizado de um jeito engraçado, como se todos estivessem se conhecendo naquele exato momento. Geralmente nas escolas, ainda mais no segundo ano, a maioria dos alunos já se conhece e quando um novato entra no ambiente, ele rapidamente sente que seu lugar não é ali. É claro que depois descobre que precisa se infiltrar para sobreviver. Mas naquela sala não era assim. Ninguém parecia se conhecer há tanto tempo, era uma grande sala de alunos novatos. O professor fechou seu computador e começou a falar sem parar, deixando Cherry sem a menor ideia de qual matéria se tratava. Se deu conta de que era história e se distraiu por um segundo olhando para a sala. Eram alunos muito bem arrumados.

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Quase todos tinham seu computador sobre a mesa, porém sua atenção se ateve a um jovem no final da classe. Ele era alto, forte e conversava descontraído com seu amigo à frente. Tinha o cabelo perfeitamente ondulado e castanho dourado. “Nossa, que sorriso!”, pensou ela, se referindo a um sorriso quase aberto, extremamente angelical. O celular vibrou em seu bolso e ela acordou para vida, dando conta de que tinha um celular. _____________________ Mensagem: O NOME DELE É DAVID! GOSTOU? _____________________ Seu coração quase saltou pela boca. Escutou um risinho vindo de trás. Francine estava com um celular na mão. — Bluetooth. — sussurrou a garota em risos. “Maldita tecnologia!”, pensou Cherry. Passaram-se três aulas exaustivas e puxadas para um primeiro dia de aula. Cherry estava desesperada para ver como seu irmão se saíra até agora. No intervalo, todos os alunos foram para a área externa da escola, que ficava na parte de trás. — Cherry, aqui! — gritou Lara. Ela estava com um bocado de amigas sentadas perto de uma árvore e reparou que o espaço externo da escola parecia um enorme jardim. — Como foram as aulas? — perguntou ela entre risos. ― Um tédio. Não entendi um terço do que os professores falaram.

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― Essa escola é muito puxada. Eu me mato de estudar para as provas. Se não fosse pela sua avó, eu nunca estaria aqui! — Como assim? ― perguntou Cherry. Lara falou baixinho. — Ela é quem paga meus estudos. ― falou a garota meio envergonhada. Cherry agora tinha uma imagem um pouco diferente da avó. Depois do silêncio que se fez, as duas observaram os alunos passarem conversando, todos descontraídos, mas ainda com a atitude calma e estranha que não era nada comum nos colégios normais. — Eles são tão... ― Calmos? Comportados? Irritantemente educados? — perguntou Lara sarcástica. ― É... não consigo entender. — Você só precisa entender que são todos alunos de famílias ricas, a maioria tem etiqueta. ― Eu tive a impressão de que muita gente estava se conhecendo hoje. — Isso é extremamente comum por aqui. Os alunos de Saint Marie são filhos de pais que viajam pelo mundo inteiro a negócios. Alunos se matriculam e saem com muita frequência, são poucos que assim como eu estão aqui desde pequenos. Cherry havia encontrado o motivo para o total desinteresse dos alunos quando a viram entrar na sala. É claro que ela ignorou o fato de alguns garotos a olharem e fazerem um barulho estranho. Mas antes que abrisse a boca para fazer mais perguntas a Lara, ela viu...

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Estavam em sete e andavam juntos, jovens extremamente bem arrumados. Os alunos da escola podem não ter se importado quando Cherry aterrissou na escola, mas esses jovens, sem sombra de dúvida, chamaram a atenção de todos. Eles pararam no meio do jardim e olharam para os lados. Ela achou aquilo muito engraçado: “São palhaços ou algo do tipo?”. Quando avistaram alguns conhecidos, separam-se. Ela não pôde deixar de notar um dos jovens. Era um pouco alto e tinha um cabelo negro e comprido, de forma que uma parte ficava atrás da orelha e a outra ficava livre para, às vezes, cobrir seu rosto. Tinha uma cor levemente bronzeada, e ela concluiu que deveria ser claro igual a ela, mas os benefícios do sol fizeram melhor a ele. “Bronzeamento artificial?”, pensou. Tinha olhos negros que cintilavam de longe e seu sorriso era cheio de dentes. Algo provocante demais e muito desconfortável. Se fosse possível, interpretaria aquele sorriso como algo que representasse desejo. Nunca vira na vida alguém tão atraente, mas que lhe causasse também uma estranha repulsa.

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2 - IRA

Horas antes, Mike precisou subir várias escadas até chegar à sua sala. O homem velho lhe entregou um papel com a grade de horários e abriu a porta para ele entrar. Foi a pior experiência que ele já teve. Assim que ele pisou dentro da sala, todos pararam de conversar para olhar aquele excêntrico garoto de cabelos esquisitos. Pôde ouvir vários risinhos e comentários até encontrar uma cadeira bem no fundo da sala. Os olhares continuaram até o professor dar uma tossezinha para chamar a atenção da turma. Todos foram silenciando aos poucos, mas ainda teve um último comentário. — Quem é o vampiro? A sala inteira se encheu de risadinhas, até mesmo o professor pareceu rir por um segundo. Mike conseguiu ver de quem fora o comentário. Era um rapaz corpulento, ruivo, com um nariz torto, como se estivesse cheirando algo podre. — Você morde, Vampirinho? — falou novamente o garoto. — Quer vir aqui descobrir? — disse Mike levantando e abrindo os braços ameaçadoramente. O garoto loiro levantou e antes que a sala estourasse em alegria e emoção, o professor gritou: — Sentados! Mas Mike não se sentou. — Senhor White, para diretoria, por favor. — disse o professor sério. — Ótimo! 16


Ele pegou suas coisas e saiu da sala em dois segundos, aliviado. Agora só precisava encontrar a sala do Diretor, mas antes que começasse a buscar na escola inteira, uma garota loira de cabelo repicado saiu da sala. — Vamos, o professor me mandou levá-lo até a Diretoria. Creio que você não deve saber onde é. — Ótimo. — repetiu. Eles andaram em silêncio por dois ou três minutos. — Então... primeiro dia agitado?— falou a garota. Mike continuou em silêncio. — Não é de conversar muito, né? —tentou novamente. Nada... — Meu primeiro dia foi horrível também. Não é nada contra os americanos, é mais com as diferenças. — Você é americana também? — perguntou Mike finalmente. — Ora, ora, então ele sabe falar! — riu a garota, mas ele fechou a cara— Sim, sou de Nova York. E você? — Baltimore... — Baltimore? — disse ela rindo. — Você ia ser zoado em NY também — Cale a boca! — resmungou ele, olhando para o outro lado. ― Você é bem esquentado, sabia? Mike assentiu por um segundo e respirou fundo. — Desculpe. — disse ele meio sem jeito. 17


— Ah, relaxe, primeiro dia é primeiro dia! — disse ela. Mike pôde admirar melhor a garota. Era magra, no estilo das modelos, seu cabelo loiro picotado dava a impressão de que era uma espécie de fada, muito linda. Isso era um fato. — A diretoria... — sussurrou ele quando percebeu que estavam andando para lugar nenhum. — Você quer mesmo ir para a diretoria? — perguntou a garota incrédula. — Eu pensei que era para onde estávamos indo. — Não. Vamos andar por aí até a hora do intervalo. Mike corou ao ouvir aquilo. Fazia séculos que não saía com uma garota. Mas, para seu azar, a garota reparou em sua reação. — E não encare isso como uma cantada, beleza? — disse ela sorrindo. ― Eu não... ― Ah, meu nome é Sarah! — Mike. — Eu sei. — disse ela brincando. Ele não percebeu o tempo passar. Era simplesmente fácil ter uma conversa com Sarah. Conversavam sobre matérias de que gostavam e não gostavam. Mike odiava matemática e sempre teve muita dificuldade. Não sabia se estava caído por ela, mas sem dúvida não queria voltar para a sala de aula. — Vamos sentar — convidou ela, apontando para uma pequena escadaria que dava de frente para o jardim. Ela sentou no primeiro degrau, de uma forma extremamente delicada. Mike ficou largado. Continuaram falando sobre como era difícil aprender matemática 18


e outras matérias. Sarah ria e comentava que estava ótima nessas matérias. Foi então que um pequeno passarinho pousou entre as pilastras que sustentam a escola. Ele era azul e Mike nunca havia visto algo parecido, ficou paralisado e com o braço esquerdo colocou a mão na mochila. Com cuidado, tirou um caderno com uma caneta pregada nele, abriu o caderno com um giro e começou a rabiscar concentrado. Sarah ficou espantada com a rapidez do garoto e ficou só observando. Mike estava hipnotizado no papel, olhava para frente na direção do pequeno pássaro, segundos depois voltava total atenção para o papel. O lápis riscava ligeiramente a folha. Sua mão era firme, mas ao mesmo tempo delicada. Movimentos rápidos e ligeiros nem sequer chegaram a assustar o pássaro que cantava feliz. Depois de alguns minutos, o passarinho estava em sua folha de caderno, em preto e branco. Imortalizado. — Ok. Isso foi incrível! — disse ela pegando o caderno da mão de Mike. — O quê? — falou confuso, voltando à realidade. — Você desenhou em pouco tempo e está perfeito. — Sarah estava realmente espantada. — Er... Nunca tinha visto um pássaro azul, tive que desenhar, é uma mania que eu tenho! — Cara, você é bom! — Ela olhou para ele por um segundo, apertando seus olhos para ele, pensando em algo. — Deveria ir ao parque da cidade, tem vários animais interessantes. Ele balançou a cabeça. — Você me desenha? — perguntou ansiosa. Mike corou no mesmo segundo, mas depois de um tempo ele focalizou a linda garota em sua mente. 19


Ela era escultural, como uma modelo. Seus olhos eram azuis iguais aos do pássaro e sua pele era de um tom alaranjado inexplicável. Ele pegou o caderno de volta e abriu em outra página. — Legal! — disse animada. E começou a inventar uma pose, mas Mike não se importava, porque já tinha a garota com sua pose perfeita na cabeça. Desenhou o esboço sem tirar os olhos dela. Concentrado, penetrado, completamente absorto naquela imagem. Sarah percebeu que ele estava envolvido no desenho e seu sorriso exagerado passou a se alinhar corretamente e seus olhos encontraram-se com os dele. Uma sensação estranha tomou o peito de Mike, seu rosto esquentou muito, então tratou de respirar bem fundo. Começou a fazer os detalhes. Olhando freneticamente para a folha e em seguida para a garota. Ele fazia sem parar, sem cansar nunca; precisava disso, precisava fazê-la perfeita. Sua mão dançava no papel, e Sarah nunca vira nada igual. Estava maravilhada. Os olhos dos dois se encontraram novamente. Ele estava preso naquele azul, tão cheio de vida e beleza. O lápis fazia seu trabalho sozinho, contornando o mesmo traço várias vezes. Mike estava perdido naquele olhar... — SARAH! Mike pulou assustado, Sarah virou para olhar quem havia gritado. Era um garoto alto e bastante corpulento. Tinha os cabelos loiros e desgrenhados, os braços alargados e as mãos em punho, parecia bufar como um touro. — Richard. — disse ela com tédio. Antes que o garoto se aproximasse, ela falou baixinho. — Meu primo superprotetor. Mike levantou, pois não queria se sentir inferior ao brutamonte. Mas algo estranho aconteceu assim que ele se movimentara para levantar, um impulso 20


poderoso bateu forte em seu peito e o lançou para trás, sentando-se novamente. — RICHARD! — gritou Sarah. Mas Mike não entendera. Não vira o garoto fazendo nada, ele estava parado a metros de distância. Então, por que ela estava brigando como se ele fosse o culpado? — Eu vou indo, Mike, se cuida— disse Sarah meio assustada. Ele não disse nada, ainda estava confuso. Ela foi ao encontro de seu primo e também não disse nada. Richard bufava com cara de ódio e ira, os dois foram embora e Mike não conseguiu ouvir sobre o que estavam discutindo. Depois de um tempo ele voltou a si. Levantou, guardou suas coisas e viu vários alunos saindo sem parar de suas salas até o jardim. Não queria ir atrás de Sarah, não estava com medo, mas confuso. Queria saber onde estava sua irmã Cherry. Era só uma escola, ela não estava necessariamente em apuros. Mas teria tido a mesma experiência que ele quando entrou na classe? Não queria que sua irmã passasse pela mesma humilhação. — Olá, amigo! — Mike quase saltou para frente com tamanho susto. Um garoto muito robusto para sua idade estava bem atrás dele, havia também outros dois mais atrás. Ambos muito fortes para sua idade. Ele não respondeu, só os encarou. Nunca havia visto os três na vida e estava claro que vieram com más intenções. Ele pensou por um segundo nas suas opções, mas perderia em todas. — Só viemos dar uma palavrinha com você— disse o garoto com um sorriso. Mike não se mexeu um milímetro. — Fique longe da Sarah, amigo, se não quiser se dar mal. — Mike riu alto, eliminando o sorriso do garoto.

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― E o que vocês são? A máfia ou algo do tipo? — perguntou rindo. Os dois garotos detrás se aproximaram ameaçadoramente, mas o jovem acenou para eles pararem. — Você é americano, não é? — perguntou o rapaz, mantendo a calma. ― Sim. — E acredito que seja novato aqui, porque ninguém seria burro o bastante para falar desse jeito com a gente. — E o que “a gente” seria? — perguntou Mike, zombando. — Nós somos leais aos sete! — falou orgulhoso. — Sete? — perguntou Mike — Sete o quê? — Você foi avisado. — e dizendo assim o garoto se virou e foi embora junto com os amigos. — Cara, que escola mais doida! — disse colocando a mão na cabeça. Ele estava faminto e se lembrou de que Christine, a criada da casa, havia posto algo em sua mochila, era uma caixa com um delicioso bolo dentro. O retorno para a sala de aula foi mais fácil. Os alunos já não riam, com exceção do garoto que o zoara da primeira vez. Mas ele não deu a mínima atenção, abriu o seu caderno enquanto a professora começava a tagarelar. E lá estava o desenho de Sarah, mas a garota em pessoa não estava na sala. Suas coisas também não. Ele só pôde olhar para o desenho. Na última aula, o professor foi interrompido bruscamente por um bater na porta. Logo em seguida um grupo de jovens entrou na sala. Eram muitos. Ficaram parados, encostados no quadro e de frente para a turma até que um garoto de cabelos negros começou a falar:

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— Boa tarde a todos! Eu sei que devem estar cansados e loucos para fugir da aula do senhor Fray! — O professor simulou um sorriso. — Mas como é de costume, sempre realizamos uma festa de começo de ano. Antes eu gostaria de saber se temos algum novato nessa sala. Mike engoliu em seco. — Brincadeira, gente. — disse o garoto, e todos riram. ― Eu sei que a maioria de vocês deve ser de novatos, apesar de que nessa turma temos o maior número de alunos que estão aqui há mais de dois anos. Foi aí que Mike deu uma boa olhada nos jovens que estavam à sua frente. Sete ao todo. Havia esse garoto de cabelos longos e negros no meio, uma garota linda ao seu lado de cabelo curto igualmente negro, que o olhava de lado, um jovem que ele mesmo admitia ter boa aparência, igual a dos modelos “teens” que as meninas tanto suspiravam. Seu cabelo era meio comprido e ondulado, castanho brilhante e o ajeitava freneticamente. Em seguida estava um garoto com vestes largadas, também tinha um bom visual, mas era pálido como se estivesse com muito sono. Passava a imagem de que precisava ficar de pé por obrigação. Do seu lado havia uma garota de cabelos dourados. Era atraente, mas era cheia de acessórios brilhantes em seu corpo. Brincos, anéis em todos os dedos, cordões aos montes. Chegava a ser exagerado ter aquilo tudo de uma vez. Mas estranhamente lhe cabiam bem. Logo ao lado, um rapaz que aparentava ser o mais velho do grupo. Tinha uma cara azeda como se fosse imparcial ao que estava acontecendo. Ele olhava a cada segundo para seu relógio, como se tivesse algo mais importante para fazer. Foi o último que mais chamou a atenção de Mike. Era um garoto robusto demais e de cabelos loiros, com uma cara de ódio que parecia fazer parte de sua expressão normal. Richard, o primo de Sarah. 23


Seu olhar encontrou o de Mike, como um lobo encontra sua presa. Antes que ele pudesse fazer qualquer coisa, o garoto loiro que o chamou de vampiro resolveu se manifestar: — Temos um novato especial. É essa figura aí atrás! — disse apontando para Mike, fazendo todos rirem imediatamente. ― Ah, seu nome? — perguntou animado o garoto de cabelos negros. — Mike. Mike White. — disse tentando se controlar “O que está havendo comigo?”. Ele sentia algo parecido com uma ameaça. — White? ― surpreendeu-se o garoto. ― Ora, ora. Eu conheço a sua avó. Ela é uma senhora muito influente nessa cidade. Bem, nem tanto quanto eu, é claro! Começou a rir e as garotas fizeram o mesmo, já os rapazes não. — De qualquer modo, meu nome é Alphonse Asmodeus. Nossas festas são feitas no meu castelo. Provavelmente seus motoristas devem conhecer o lugar. Alphonse ignorou completamente o professor e sua aula. Falava sem parar nas modelos famosas que ele mesmo convidou, e que sem dúvida a festa ficaria marcada para a história. Mike conseguiu perceber logo que ele era o tipo de cara paquerador, pois as garotas da sala retribuíam seu olhar com risinhos. Richard não tirava os olhos de Mike, e ele estava incomodado com isso. Na sua antiga escola nunca havia entrado em nenhuma briga. Tinha amizade com tanta gente que não conquistara nenhum inimigo nem nada do tipo. Era tudo tão fácil em Baltimore... Como se todas as portas se abrissem para ele, era simples conviver com as pessoas de lá. Sua fase de revolta começou quando ele soube da prisão dos pais. Deixou a escola e não atendia aos telefonemas dos amigos. Pintou os cabelos e comprou roupas completamente diferentes das que usava antes. Teve apenas alguns dias para fazer tamanha alteração no visual, pois eles iriam se mudar 24


para Newcastle. — Então, senhoras e senhores. Nem sequer pensem em faltar a essa festa. Os melhores prazeres da vida estarão lá! — E assim o garoto chamado Alphonse se despediu da turma. ― As festas dos sete são as melhores! — gritou alguém do meio da sala assim que “Os sete” foram embora. A turma toda se encheu de animação e empolgação. Mike sentiu-se um completo alienígena por ser o único que achara estranha a frase “os melhores prazeres da vida estarão lá”. Mas, afinal de contas, onde estava Sarah? Mike não conseguia parar de pensar naquilo. Ele havia conhecido a garota há algumas horas, mas ela era especial, sentia que precisava falar com ela mais uma vez, só mais uma vez. — Professor, posso ir à enfermaria? — O professor deu uma olhada rápida para Mike, foi o suficiente para lhe dar a permissão. Precisava saber onde ela estava e não fazia a mínima ideia de onde começar a procurar. Apesar do enorme colégio, não foi preciso andar muito. Ele avistou de longe dois jovens, Richard e Sarah. “Será que se eu der a volta por outro caminho eu consigo escutar a conversa?” Ele se referia a outro corredor onde havia muitas plantas e era impossível que os dois vissem Mike ali atrás. E chegou do outro lado em segundos. — Por que, Sarah? — perguntava o garoto tentando conter sua raiva, talvez por afeto, pensou Mike: ― Não entendo porque você faz isso. — Fazer o que, Richard? — disse a garota de braços cruzados. ― Ter uma vida social? Sarah parecia tão magra e insignificante perto do brutamonte à sua frente. Agora passava a impressão de que não tinha medo algum do rapaz. — Você sabe que eu tenho uma reputação a zelar. Não posso permitir que você saia com um perdedor daqueles! — Mike sentiu uma enorme vontade de 25


entrar na conversa, com chutes e pontapés. Richard disse aquilo tudo com muita facilidade, como se fosse algo normal de se dizer. — Eu não estava saindo com ele e não me importo com esse seu grupinho idiota! — disse ela com raiva. Mas Richard estava com mais raiva, parecia que ia avançar com fúria na garota. Mike sentiu um impulso de protegê-la. — Sarah... Você sabe que eles são minha vida. — Estava claro que o garoto estava se contendo ao máximo. Veias no seu pescoço apareciam nitidamente, ela recuou alguns milímetros. — Isso não é vida. — falou séria. — Por que você não escuta sua namorada? Ela sim sabe o que é melhor para você, não eles! — Sarah, por favor, para o seu bem, me escute! — Estava suplicando agora. Os dois ficaram em silêncio. — Eu não queria ter sido envolvida nisso! — A voz de Sarah saía baixa e esganiçada. Mike pôde ver seus olhos se encherem de água. — Me perdoe... — Me deixe em paz! — falou ela alterando sua voz e saindo em segundos do corredor, deixando seu primo sozinho. Mike não se mexeu. Richard estava de cabeça baixa em frente à parede, pensativo. Ele observou seus punhos se fechando e tremendo de raiva novamente. Era como se uma onda de fúria rompesse de seu peito, a respiração de Richard tornava-se mais rápida e havia uma careta no seu rosto, uma fúria infernal. PAM! Foi tudo em segundos. Mike caiu para trás com o enorme barulho. Demorou um pouco para que entendesse o que realmente havia acontecido. Ficou em 26


pânico. — Meu Deus... — falou baixinho. Mike nunca usou drogas, apesar das situações apelativas de sempre. Não estava imaginando coisas. O garoto que estava poucos metros à sua frente fez um buraco enorme na parede de concreto com apenas um soco. Estava difícil de respirar. Levou as mãos à boca para conter o barulho que iria provocar. “O cara fez um buraco na parede!”, pensava milhares de vezes sem parar, “UM BURACO NA PAREDE!”. O buraco era enorme e ainda se alongava com os pedaços que caíam. Richard parecia ter se acalmado depois do soco monstruoso. Já estava andando para bem longe de onde Mike estava, então não escutou sua respiração assustada. “Preciso me acalmar”, pensou Mike. Ele aspirou grande quantidade de ar para os seus pulmões, por isso tossiu muito. Levantou com dificuldade, já não se via mais Richard. Ele foi ver mais de perto o enorme buraco. O que afinal estava acontecendo ali? O que era esse grupo dos “sete” afinal? Era tudo muito confuso e o sinal indicando que as aulas terminaram deixou tudo pior. Pior porque ele se lembrou de Cherry, sua irmã, a única família verdadeira que ele tinha naquele momento, e faria de tudo para protegê-la.

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3 - SETE PECADOS

Horas antes, Cherry acordou do transe em que estava, o garoto estava tão longe dali com seus cabelos negros descendo até o pescoço, deitado na grama do jardim. Parecia bem à vontade, mesmo rodeado de tanta atenção. Era intervalo ainda. Duas jovens passavam suas delicadas mãos sobre o cabelo do rapaz, parecia um deus ou uma espécie de rei bizarro. — Dá para acreditar nisso? — falou Lara. — Mas o que significa isso? — perguntou Cherry, incrédula, se achando um pouco ridícula, pois as outras garotas não pareciam se importar com a cena. — Significa que quem tem dinheiro faz o que quer nessa escola — falou a garota, voltando a conversar com as amigas que estavam do seu lado. Cherry deu outra olhada para as duas garotas lindas que o cortejavam sem parar. — Hoje tem poucas, ultimamente ele tem saído com quatro ou mais. Ela se espantou: “Quatro ou mais?”. — Mas quem é esse cara afinal? Lara olhou para ela e respirou fundo. — Alphonse Asmodeus, o aluno mais rico da nossa escola e da nossa querida cidade. — Ela falou baixinho — Mais rico até que sua avó! Cherry não queria saber dos detalhes financeiros, mas deixou Lara continuar. — Ele é bem popular aqui porque faz parte dos “sete”! — “Sete”? 28


— Sim. São os sete jovens mais influentes da nossa cidade. Alguns dizem que são os mais influentes de toda a Europa, mas eu não sei... Seus pais são bilionários importantes e todos moram em mansões gigantescas ou em castelos iguais ao seu! Cherry se perguntou que espécie de lugar maluco era aquele em que ela e seu irmão foram parar. — Quase sempre andam juntos e possuem muitos seguidores que fazem de tudo para entrar na fraternidade deles. — Que coisa mais sinistra! — falou Cherry, lutando para desviar os olhos do atraente jovem. — O mais sinistro é como eles chamam um ao outro. — Como assim? Ela nunca fora atraída por fofocas, mas queria saber mais sobre essas pessoas. — Cada um deles tem um apelido. — Lara estava sussurrando. — Apelidos que representam um pecado capital. — Pecados capitais? — perguntou Cherry, meio que surpresa, pois esperava algo mais banal. — Gula, Inveja, Preguiça... essas coisas? — É. — Lara concordou. — Muita gente já os viu se chamando assim... — E esse Alphonse... Eles o chamam de quê? — ela estava intrigada — Quer dizer... Que pecado ele é? — Riu. — Luxúria. — disse Lara revirando os olhos. Cherry tomou um susto quando percebeu que o garoto olhava para ela e sorria. Imediatamente desviou os olhos fazendo uma cara séria. — É bem a cara dele mesmo... 29


Lara empurrou Cherry para o lado. — O que foi? Mas ela percebera que algo quase a acertara em cheio, era uma bola de futebol. — Ah, desculpe! Eu te acertei? À primeira vista Cherry pensara que vira um anjo, mas não era. O aluno de sua sala, o alto e forte, de cabelos castanhos e, para completar, com o sorriso mais angelical do mundo. David estava bem a sua frente. — Não! Aquele “não” saiu muito esquisito, e Lara soltou uma risada baixinha. — Meu nome é David. Você está na minha sala, não é? ― perguntou se aproximando dela, fazendo a garota se encolher. Cherry não era nada feia. Seus cabelos castanhos muito bem penteados faziam qualquer um lembrar-se de uma boneca, principalmente com seu laço na cabeça. Sempre teve cabelos longos, seu pai adorava isso nela. David parecia estar apreciando cada pedaço de seu rosto. ― Cherry. ― disse ela em resposta. Atrás dele, Cherry pôde ver uns jovens gritando para ele retornar com a bola do jogo. David deu um último sorriso e saiu. Ela não viu mais o garoto Luxúria. Todos se dirigiam para suas aulas anunciando assim o fim do intervalo. Novamente se despediu de Lara, que era uma série a menos que ela. Estava tão perdida que não fazia a mínima ideia de onde seria a sua próxima aula. Seu hábito de perder as coisas a atacou novamente, o papel que continha a informação de salas e matérias se perdera.

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— Droga! — resmungou baixinho. — Precisa de ajuda? — O anjo voltara. Cherry se viu em uma cena clichê de filmes românticos para adolescentes, que ela não dava a mínima. Mas olhando para David, ela só desejava ser desesperadamente a mocinha da história. — Sim, a sala de História... — Venha comigo. “Sim, para o infinito e além”, pensou Cherry ao ouvir o garoto chamando-a. Eles subiram as escadas. O colégio era extremamente frio. Parecia mais uma enorme catedral. David seguia em frente com um sorriso fixo que não desaparecia nunca. Ela começou a imaginar coisas sem sentido: “Será que ele é assim sempre?”. Chegaram, enfim, a sua sala e dessa vez, diferente de antes, os alunos olharam para Cherry muito intrigados para saber se os dois estavam juntos. David avistara cadeiras vazias, mas nenhuma em que ele pudesse sentar perto de Cherry. Finalmente, desistindo, ele foi para um lado e Cherry para outro. A garota nunca havia prestado tão pouca atenção em uma aula. De todas as maneiras possíveis, tentava encontrar o olhar de David, que sempre retribuía com um sorriso. “Poderia existir alguém tão cativante?”. Queria encontrar algum defeito. “Alguém tão feliz deve ter algum passado negro”. Mas o que tinha ela a ver com isso?

Finalmente olhou para outra coisa que não fosse David. A janela aberta, mostrando um céu chuvoso, deixou sua mente vagar longe. Seus pais estariam bem? Presos injustamente, os dois trabalhavam em uma empresa americana que estava na mira do FBI. O dono conseguiu fugir e incriminar seus pais. Os 31


advogados eram bons, mas demoraria um tempo para que fossem soltos e sua avó era o único parente vivo de quem eles ouviram falar. Ela se lembra que foi tudo muito difícil para os dois. Mike era o mais apegado à mãe e não suportou a notícia. Seus pais não ficaram necessariamente presos, mas sim sob custódia do FBI. Mesmo assim foi difícil. Seu primeiro dia na escola até agora tinha sido bom e tranquilo. Em sua casa ela já tinha uma nova amiga, Lara, a filha da criada Christine. Não importava se seu irmão havia se tornado um revoltado, ela tinha companhia para fazê-la esquecer dos problemas, Mike que se virasse. Segurava a cabeça para não despencar, seu queixo já doía um pouco, não conseguia prestar atenção no professor à sua frente. “Primeiro dia de aula e eles já pegam pesado assim?”, pensou. — Podem entrar! — disse o professor fazendo Cherry acordar de seu transe. Um grupo de jovens entrou na sala, e ela os reconheceu imediatamente. Eram os tais “sete”. — Bom dia, galera! Eu vim avisar sobre a festa costumeira que todo ano... Alphonse era seu nome. Não sabia como e nem por que, mas seus cabelos arrepiaram estranhamente assim que aquele rapaz começou a falar. Ele não era tão alto como David, e nem tão forte. David tinha cabelos angelicais e bem arrumados, esse garoto tinha cabelos escuros que desciam até o pescoço. Se ele não jogasse uma metade dele atrás da orelha, ia ser impossível ver seu rosto, que era algo nunca visto por ela. Havia ali um sorriso perpétuo. Parecia que não importava a expressão que o garoto usasse o sorriso sempre faria parte. Tinha olhos negros que cintilavam, como se emanassem vida. Sua voz era algo mais estranho, pois era parecida com uma cantiga melosa, seu sotaque europeu era forte e atraente para qualquer garota, mas Cherry estava inexpressiva e desatenta a tudo o que ele falava. 32


— Eu vou entregar-lhes os convites. — E dizendo assim, o garoto começou a passar de mesa em mesa, entregando um panfleto exageradamente colorido. Cherry nunca ligou para festas, seu irmão Mike era mais animado, mas agora era uma pessoa sem vida. Alphonse era uma pessoa que em nada se parecia com ela. As garotas suspiravam e trocavam comentários sem parar. Ele piscava para todas como se já tivesse tido algum tipo de relação com cada uma delas. Era esse o motivo do apelido Luxúria? O que ela sabia sobre os sete pecados? Só o que a maioria das pessoas sabia, pensou ela, olhando para cada um daqueles jovens que estavam de pé. Ficou imaginando quem seria quem, mas seu pensamento foi interrompido quando o Luxúria colocou o panfleto em sua mesa. Cherry percebeu que havia outra coisa ali. Seus cabelos arrepiaram estranhamente, ela pegou um pequenino cartão escrito. “ME LIGA!” E ali havia um número de celular. Era um cartão de verdade, com letras digitadas. “Quem ele pensa que é?”. O jovem e seus amigos se despediram da sala e foram embora. Cherry levantou e foi atrás deles. — Ei! — gritou feito louca no corredor silencioso. Os jovens olharam de relance para trás, mas continuaram seu caminho resmungando e rindo. Cherry não ia desistir. “Para cima de mim não, amigo!”, pensou. — EU DISSE, EI! — O garoto parou com um sorriso, os outros continuaram andando. — Olha, agora estou meio ocupado. Eu te dei meu telefone, não é? 33


Cherry não acreditou naquelas palavras. Como alguém podia ser assim? — Sim. E eu estou devolvendo! — ela jogou o papel em cima dele. — Você deve ter me confundido com outra pessoa! E assim girou para voltar à sala, mas o garoto a pegou pelo braço. Cherry nunca sentira aquela sensação na vida. Uma corrente elétrica passou por todo seu corpo. O que era aquilo? — Acho que você não entendeu. Esse é meu telefone. — falou rindo — Você pode ligar para esse número que eu vou atender, assim nós podemos marcar algum lugar para sairmos. Ele disse aquilo como se fosse a coisa mais normal no mundo. Como se ela fosse a ignorante ali, que não havia percebido o óbvio. — Você tem algum problema mental? — perguntou Cherry, dando indícios de nervosismo. — Como? — perguntou Alphonse confuso. — Perguntei se você tem algum problema mental! — falou mais alto a garota. “Controle-se, Cherry...mantenha a calma”. — Não. Por que você pergunta isso? — Novamente com a expressão de inocente que só fazia a raiva dela aumentar. — Porque só tendo um parafuso a menos para achar que eu vou telefonar ou muito menos querer sair com alguém que eu nunca vi na vida! — Mas eu pensei... — Pensou errado! — atacou ela balançando a cabeça. — Então, pegue esse seu cartão idiota e dê para outra garota, talvez uma lesada o bastante para querer sair com um idiota feito você! Ela ficou esperando uma reação das piores. Mas não foi o que houve. O garoto agora estava maravilhado com aquilo tudo. 34


Era como se tivesse acabado de dar um show maravilhoso e ele adorado cada parte. Ela se sentiu uma espécie de macaca de circo fazendo aquela confusão toda por um cartão. E tudo o que conseguira foi fazer aquela pessoa, que parecia melhor do que ela em tudo, dar gargalhada. Cherry ficou tão vermelha que voltou para sala bufando, deixando o garoto rindo freneticamente no corredor. “Quem ele pensa que é?”, “QUEM ELE PENSA QUE É?”, pensava repetidas vezes. Sentou-se em sua carteira, ignorando o olhar do professor para a aluna que saiu repentinamente da sala. Mas não importava, porque ela acabara de ser cantada pela luxúria em pessoa.

A aula passou voando. Cherry só conseguiu entender os últimos dez minutos. Ela levantou ainda zangada e, sem perceber, deixou suas coisas caírem. — Droga! — Mas antes que pudesse abaixar para pegar suas coisas, David surgiu do nada para socorrê-la. — Com pressa? — perguntou ele calmamente. De repente sua raiva sumira completamente, pois seu anjo voltara. — Obrigada. David, não é? ― fingiu, “Garotas têm que se fazer de esquecidas, às vezes”. — Sim! — disse o rapaz sorrindo. Ela queria gastar alguns minutos com ele, minutos que apagariam a cena anterior. Mas os amigos de David entraram na sala e o retiraram de lá. Cherry retribuiu com um sorriso, ela ficaria sozinha, com seus pensamentos, já que Lara fora para casa de uma amiga. Esperava não encontrar Alphonse tão cedo. Havia uma limusine esperando por ela, nenhum dos outros alunos pareceu se importar, era como se fosse algo comum para eles. 35


Mike já estava dentro. — Como foi seu primeiro dia? — perguntou repleta de esperança de que seu irmão conversasse com ela sobre o seu dia, que deveria ter sido mais interessante que o dela. Mike estava meio pálido, mais do que de costume. Então ela desistiu e olhou pela janela. — Foi estranho. E o seu? Quase pulou de susto. Mike respondera do nada. — Estranho demais. A conversa entre os dois não foi muito longa, só falaram sobre as difíceis matérias de primeiro dia e sobre alunos esnobes, mas nenhum dos dois comentou realmente o que ocorrera. O carro finalmente estava deixando a escola. Cherry deu uma olhada rápida na janela e pôde ver um garoto encostado na parede, com um sorriso no rosto, olhando para ela. Mais uma vez todos os pelos de seu corpo se arrepiaram imediatamente. “Idiota”, pensou com raiva.

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