Devarim 39 (ano 14, agosto 2019)

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cócegas no raciocínio

sou esquerdopata Em 13 anos (bar-mitsvá) e 39 números de Devarim (3 vezes bar-mitsvá), é o primeiro Cócegas em 1ª pessoa. Porque acho justo, depois de todo esse tempo e todos esses textos, que se conheça meu viés, ou meus vieses, já que nenhuma opinião, posição, ideologia ou religião são verdades absolutas. Até Deus (o do Tanach) se permitia deixar convencer.

E

tiquetas estão substituindo conversas e debates. Diferença de opinião se resolve com um adjetivo e pronto, está resolvida a questão. Bandido e mocinho. Verdade e mentira. Heróis e vilões. Não me colaram (ainda) esta etiqueta na testa. Mas das etiquetas que já vi coladas em certas pessoas (e suas ideias), cheguei à conclusão de que ela me cabe. Sei que a intenção é pejorativa, mas com isso já estou acostumado. Já nos colaram e continuam colando outras etiquetas de intenção pejorativa, como a de ‘sionista’, e bem antes disso, de ‘judeu’. Bem, mesmo sabendo da intenção pejorativa, nunca tentei me justificar ou defender por ser judeu ou sionista. Sempre, sim, tentei e ainda tento explicar o que acho que sou como judeu e como sionista. Acho que neste espaço de Devarim, anos e textos depois, não preciso explicar o que acho que é o judaísmo e o sionismo. Mas sinto-me desafiado a explicar por que acho que me cabe a etiqueta de esquerdopata (embora não concorde com o termo em sua estrutura etimológica). Ou melhor, vou tentar explicar o que EU acho que significa ser esquerdopata, descartando o lado pejorativo, assim como descartei a intenção pejorativa de quem pronuncia,

Paulo Geiger

com esta intenção, as palavras ‘sionista’ e ‘judeu’. Deixo a intenção pejorativa na cabeça de quem a tem. Como judeu sionista, acho que sou esquerdopata porque meu ideal sionista não se esgota quando o povo judeu tem um estado, uma bandeira e um hino. Mesmo orgulhoso que sou de um estado que em apenas 71 anos fez tudo o que fez de bom e continua fazendo, mesmo que me emocione com a bandeira e o hino. Mas o esquerdopata que há em mim não se basta com a bandeira e o hino, e busca no sionismo algo mais profundo, mais histórico, mais ligado ao povo ao qual Howard Fast se referiu como ‘aquele maravilhoso povo de outrora, para o qual a resistência à tirania é a verdadeira obediência a Deus’. Meu sionismo de esquerdopata é o sionismo da utopia que atravessou 2.000 anos e foi se realizar na síntese de várias ideias, que transcendem o ufanismo patriota: 1) a ideia sionista original, de que o povo judeu se formou tendo como parâmetros de sua identidade o conteúdo conceitual e comportamental de sua religião, e o vetor de um futuro comum numa terra comum, a Terra Prometida, que seria Sion; 2) a ideia do fundador do sionismo contemporâneo, Herzl, que idealizou um estado moderno, estado judeu e estado de todos os seus cidadãos, consentâneo com os ideais democráticos e de coexistência das diferenças; 3) a ideia da revolução interna do povo judeu, o sionismo realizador e obreiro, que arregaçou as mangas e construiu, continua construindo, na simplicidade do trabalho criador, a verdadeira base de toda nação e toda sociedade e todo país e

todo estado; 4) a ideia de que o sionismo é valor do povo judeu como um todo, uma visão unificadora do povo judeu em toda a sua história, por reconhecer, sentir, instituir Sion como seu centro virtual e real. Virtual como ponto de partida no passado e porto de chegada em qualquer futuro, base cultural e fonte permanente de seus valores, como queria Achad Haam. Real como estado judeu atuante, o músculo que realiza e garante ao povo judeu o controle de seu próprio destino; 5) finalmente, síndrome inequívoca de esquerdopatia, a ideia e o conceito de que o sionismo é também o instrumento de inserção do povo judeu e do estado judeu nos ideais e na utopia redentora de um planeta e de uma humanidade que ainda estão ameaçados por ideologias e políticas imediatistas, por desigualdades profundas, por nacionalismos que beiram o chauvinismo, por preconceitos que se renovam e se multiplicam assustadoramente, por radicalismos de todas as cores que desistiram de pensar e conversar em busca de um bem comum e preferem colar etiquetas.

Revista da Associação Religiosa Israelita-ari

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