Teatro no ônibus

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RUDINEI BORGES

TEATRO NO テ年IBUS pesquisa cテェnica da Trupe Sinhテ。 Zテウzima

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TEATRO NO ÔNIBUS

Para o encontro que acontecerá a seguir, arrumamos a casa e o quintal; preparamos a mesa; a cama onde dormirá o nosso hóspede terá lençol limpo e perfumado. Cartas e fotografias antigas estarão à vista, na sala. Ficaremos à espera no portão da casa. E quando avistarmos o hóspede, ao longe, o nosso coração palpitará. Veremos que somente a sua presença, o seu olhar e a sua conversa importarão. Lampejos, lutas, retalhos, pó e sonhos configuram a tessitura árdua da história: ato de mover a vida e o teatro, criar testamentos que serão lidos e relidos. Aqui, nestas primeiras notas, desvelamos linhas, traços e contornos da pesquisa cênica da Trupe Sinhá Zózima. A composição proposta por Rudinei Borges, em Teatro no ônibus, apresenta os movimentos de investigação do grupo e considera, sobretudo, uma ideia que se rebela em nossas conversações inúmeras: a perspectiva de um Teatro do encontro. ANDERSON MAURÍCIO Diretor e ator Trupe Sinhá Zózima


coordenação editorial/texto/diagramação/revisão RUDINEI BORGES projeto gráfico/criação de arte DEBORAH ERÊ pesquisa de imagens ANDERSON MAURÍCIO ____________________________________________________________ Borges, Rudinei Teatro no ônibus: pesquisa cênica da Trupe Sinhá Zózima / Rudinei Borges. – São Paulo: Cooperativa Paulista de Teatro, 2013. ISBN 978-85-61343-09-5 1. Teatro brasileiro. 2. Trupe Sinhá Zózima. I. Rudinei Borges ____________________________________________________________

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RUDINEI BORGES

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Cenário do espetáculo Cordel do amor sem fim. Foto por Daniel Abicair.

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AOS QUE TRABALHAM PELA UTOPIA.

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Anderson Maurício Foto: Acervo da Trupe Sinhá Zózima

Priscila Reis Foto por Maíla Barreto.

Tatiane Lustoza Foto: Acervo da Trupe Sinhá Zózima

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AOS LABUTADORES: ANDERSON MAURÍCIO, PRISCILA REIS E TATIANE LUSTOZA.

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O DIÁLOGO É O CAMINHO PELO QUAL OS HOMENS ENCONTRAM SEU SIGNIFICADO ENQUANTO HOMENS [Paulo Freire]

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O motorista do ônibus onde foi apresentada a peça Dentro é lugar longe. Foto por Christiane Forcinito.

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ÍNDICE -

10 | TEATRO NO ÔNIBUS: pesquisa cênica da Trupe Sinhá Zózima.


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NOTAS SOBRE A TRUPE SINHÁ ZÓZIMA PRIMEIRA PARTE

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PLANTAR NO FERRO FRIO DO ÔNIBUS O NINHO fagulhas n.1

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TRAJETÓRIAS fagulhas n.2

27

MOVIMENTOS DE PESQUISA fagulhas n.3

40

PROCESSOS DE CRIAÇÃO fagulhas n.4

52

PROJETO ARTE EXPRESSA fagulhas n.5

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NOTAS SOBRE TEATRO DO ENCONTRO SEGUNDA PARTE

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60

POR UM TEATRO NO ÕNIBUS fagulhas n.6

73

DO ENCONTRO COMO PRINCÍPIO fagulhas n.7

89

TEATRO DO ENCONTRO E UTOPIA fagulhas n.8

110

DENTRO DA PRAÇA O POVO INTEIRO CANTANDO fagulhas n.9

123

TEATRO DO ENCONTRO E NARRATIVAS DE VIDA fagulhas n.10

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MEMÓRIAS E ESTIRADAS TERCEIRA PARTE

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131

O TEATRO-VIDA DE LÍDIA ZÓZIMA fagulhas n.11

138

ATRÁS DO VOILE fagulhas n.12

142

DENTRO DO ÔNIBUS fagulhas n.13

148

UM ÔNIBUS CHAMADO JACAREÚBA fagulhas n.14

154

QUANDO O ÔNIBUS VIRA CASA fagulhas n.15

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PRIMEIRA PARTE

NOTAS SOBRE A TRUPE SINHÁ ZÓZIMA -

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A atriz Tatiane Lustoza no espetáculo Cordel do amor sem fim. Foto: Acervo da Trupe Sinhá Zózima.

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PLANTAR NO FERRO FRIO DO ÔNIBUS O NINHO FAGULHAS N. 1

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Sentir saudade é o ato mais sublime de todos os seres. Das pedras. Das rosas. Das pessoas. Das portas. Das árvores. Dos cães. Das estrelas. Do limo. Só a saudade faz a gente sonhar-acreditar que a vida-teatro é lavoura intensa. Vazão-vazão. Vamos-vamos. Que teatro é morada de todos. Casa de fazer farinha/remendar retalhos/remo de rezar imagens. Vazão-vazão. Vamos-vamos. Que estamos na cidade. Que somos a estrada. A palavra. Feito arrimo. Feito arroio. Feito cordel. Vazão-vazão. Vamos-vamos. Inventar ESPAÇOS. Re-inventar passos. Poços. Com ritmo. Rito. Roda. Residir. Ir. Construir. Pintar com barro & lama. Praças. Feiras. Ruas. TERMINAIS. TERRA. Minerais. Residir: Ir. Construir. RESIDIR: amar o ventre da cidade. IR: tecer caminhos na carpintaria dos rostos. CONSTRUIR: levantar canteiros paredes cumeeiras. Celebrar o clarão. Espalhar o clarão. Que galo sozinho não tece manhã. Cavoucar olhos d’água. Amar a cantoria. Sentir no CORPO a cantoria. Cantar o corpo. A PALAVRA. A poesia dos povos. O labor dos povos. Amar o CHÃO. O barro. Mulheres de carvão. Senhoras. Sinhás. SINHÁ ZÓZIMA. Mãe com menino no colo. Mulher de branco na venda. Rachar o tempo. Raspar rebarbas. Polir tesouros. Aguar os olhos. Costurar ruas com brisa & breu. Ver pela janela: aquarela. Ver de perto. Sentir o perfume doceazedo da multidão. Ser TRUPE. Sentir-enxugar o sangue grosso-bruto-puro do homem-cru da cidade. Plantar no ferro frio do ônibus o ninho. Colher o pássaro. Livre.

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Encontrar nos olhos: suor afago cheiro. Encontrar nas mãos: cravos poEIRA fé. Encontrar no pé: esteio estio sol: POesia. Dizer tu. Dizer eu. Dizer nós. Repartir o arroz. O feijão. O chá. A cachaça. A erva cidreira. Ser pessoa. Ser sujeito. Ser multidão. Lembrar. Lembrar sempre: que esquecer é oprimir. Celebrar a memória abrupta dos rostos. A memória do chão. Do fóssil. Do sonho. Da força. Re-inventar. PRONUNCIAR. Movimentar. Teatro não é marasmo. Pedra. Teatro é vida-terra-água. Tamborete. Terreiro. Re-inventar. Pronunciar. Movimentar. Espaço não é marasmo. Espaço é canção de roda. Roda de ÔNIBUS. Ciranda. Samba. Carimbó. Que todos os paços são públicos. Que coletivo é cingir ribanceiras. Que poço é onde a mãe a vó o pai a dona joana-rezadeira o seu josé-motorista o andré-passageiro plantam a água com cor de sonho. Gosto de aurora. Vamos-vamos. Por um TEATRO DO ENCONTRO SEM FRONTEIRAS. Pelo direito à arte. Por um transporte coletivo digno. Por um espaço verdadeiramente público. Pela MEMÓRIA & CULTURA DO POVO como cerne/morada. Pela liberdade de IMPRESSÃO. Pela liberdade de UTOPIA. Porque todo teatro é vida. Toda vida é encontro. Todo encontro é memória. E ninguém morre quando vive na memória de alguém. Ninguém Morre.

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Atriz Cleide Amorim no espetáculo Cordel do amor sem fim. Foto por Thiago Teixeira.

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TRAJETÓRIAS FAGULHAS N. 2

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As atrizes Alessandra Della Santa, Maria Alencar e Priscila Reis no espetáculo Dentro é lugar longe. Foto por Christiane Forcinito.

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A Trupe Sinhá Zózima é um grupo brasileiro de teatro, fundado na cidade de São Paulo, em 2007, pelos artistas-pesquisadores Anderson Maurício, Priscila Reis e Tatiane Lustoza. E pelos ex-integrantes Evie Milani, Fernando de Marchi e Vanessa Cabral. O ônibus [Omnibus: para todos] é o lugar onde a Trupe tece um teatro do encontro sem fronteiras, com inspiração na filosofia do diálogo de Martin Buber [1878-1965], na poética do espaço de Gaston Bachelard [1884-1962] e na pedagogia de Paulo Freire [1921-1997]. Estes estudos foram adotados a partir de inquietações artísticas e no desenvolvimento do trabalho cênico do grupo. Fundamentam os cinco movimentos de pesquisa da Trupe: o espaço, o público, a atuação, a produção e a dramaturgia. A estirada, caminhada da Trupe, surge da experiência vivida na concretude de cada ser humano, porque “o artista não cria como vive, vive como cria”. ¹ ____________________________ ¹ Palavras do poeta Jean Lescure.

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O nome da Trupe é uma homenagem à Lídia Zózima, atriz e professora de teatro da Fundação das Artes de São Caetano do Sul, SP. É de lá que vêm os atores da Trupe. Para Ariane Mnouchkine [1939], fundadora do Théâtredu Soleil, a palavra trupe é um vocabulário de combate e de ordem, mantém uma relação intrínseca com a luta, transformada em militância e engajamento no teatro. O projeto de um teatro para todos encarna este valor transcendental que vincula cada um. Transcendência próxima ao religioso, não da religião e as suas derivações, mas do sublime, do espiritual e, fundamentalmente, do outro. Para Lídia Zózima, o artista precisa se conhecer como pessoa, como ser humano. Também há a necessidade vital de atentar para a natureza, observar e viver os movimentos da natureza. O artista precisa se aproximar de todos os seus sentidos, como também dos elementos naturais: fogo, água, ar e terra. Também do estudo dos arquétipos, da mitologia e dos movimentos propostos pelo teórico da dança Rudolf Von Laban [1879-185]: torcer, pressionar, pontuar, flutuar, socar, chicotear, deslizar e sacudir. Já a palavra Sinhá, variante – na linguagem das ruas – do termo Senhora, resulta de uma opção da Trupe por um teatro popular, que visa ir fundo às raízes da cultura brasileira, da dramaturgia, da literatura e das artes produzidas no país. Em 2009, o documentário Teatro e Circunstância do SESCTV apontou a Trupe Sinhá Zózima como um dos grupos que se inscrevem e representam as novas tendências do teatro atual, por desenhar com vigor e nitidez os contornos de um movimento artístico, que cresce e se avoluma a partir da consciência social, marcadamente caracterizado pela vontade de tirar o teatro dos guetos e democratizá-lo, levá-lo a novos públicos, aos excluídos e aos socialmente não privilegiados – velho sonho jamais plenamente alcançado. O não- lugar o foi título dado para o bloco de documentário que tratava das diferentes formas de encenação em locais mais acessíveis à população, como a proposta apresentada pela Trupe Sinhá Zózima. O grupo que encena a peça Cordel do amor sem fim, mostra que é possível fazer teatro fora da caixa preta convencional. O mesmo raciocínio é defendido por José Celso Martinez Corrêa [1937], do Teatro Oficina Uzyna Uzona, no centro de São Paulo, que após anos de intervenções arquitetônicas conseguiu adaptar o teatro a um projeto mais inclusivo, no qual o público se aproxima mais do espetáculo.

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A Trupe, como destaca o critico e teórico Sebastião Milaré, “propõe outro dialogo com a cidade: do ponto de vista do ônibus, ou seja, do transporte coletivo”. Desbravar o arcabouço do ônibus como espaço cênico e falar diretamente ao trabalhador, ao homem simples, aquele que quase nunca vai ao teatro, que passa horas inúmeras dentro de um ônibus, aquele que tem o próprio corpo abatido dia a dia pelas insuficiências do transporte coletivo, é um dos pontos cruciais e fundantes dos movimentos de pesquisa desenvolvidos pelo grupo, desde a sua origem. Segundo a crítica Marília Beatriz, na Trupe Sinhá Zózima “há uma inversão do papel teatral. O véu de teatro como um objeto eleito para poucos, fica por terra no momento em que se busca, no ônibus, a fatura da arte cênica”. Para a artista Nina N. Hotimsky, se hoje temos um número bem razoável de edifícios teatrais tradicionais, entraves do ponto de vista de sustento fazem com que o local de apresentação ainda seja um problema para grupos de teatro. Mas o ônibus, a arena intimista da Trupe Sinhá Zózima, tem outras razões de ser, que não a da viabilidade comercial. Realizar um trabalho cênico dentro de um ônibus em movimento é promover choques entre a realidade e a ficção, vivenciados pelos passageiros em tempo real. “A delicadeza com que os atores sustentam essa linha tênue entre realidade e fantasia é uma das maiores qualidades da Trupe”, destaca a crítica Deolinda Vilhena. O teatro no ônibus, como comentou o crítico Matteo Bonfito, pretende materializar a metáfora da vida como viagem, como trajetória dinâmica, pois, para Bachelard, “todo espaço verdadeiramente habitado traz a essência da noção de casa. É graças à casa que um grande número de nossas lembranças estão guardadas e se a casa se complica um pouco, se tem porão e sótão, cantos e corredores, nossas lembranças têm refúgios cada vez mais bem caracterizados”. A pesquisa do ônibus como espaço de experiências e encenações possibilita não só o encontro do público e do artista, mas uma relação do Eu com o Tu, porque – nas palavras de Martin Buber – “o Eu se realiza na relação com Tu; é tornando Eu que digo Tu”. A primeira montagem da Trupe foi a peça Cordel do Amor sem fim [2007], de Claudia Barral, com direção de Anderson Maurício, em um ônibus que circula pela cidade, enquanto em seu interior, entre os “passageiros”, desenrola-se uma trama regional, falando de um amor impossível no sertão, às margens do Rio São Francisco. Há intensa gama de significados na contradição da cena,

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como escreveu Sebastião Milaré, representada no interior do ônibus e a paisagem urbana que ele percorre. Para o pesquisador de teatro Valmir Santos, “o espetáculo prima por um elenco que sustenta a sua verdade no olho – como a enamorada Teresa enxerga no amante que promete retornar um dia. O palco mais evidente é o corredor do ônibus, daí a proximidade movediça da qual o espetáculo se safa com interpretações e cantigas que garantem a viagem do início ao fim, sem sucumbir aos solavancos, aos olhos surpresos da janela do outro veiculo emparelhado ou mesmo na breve interação com os passantes na calçada, numa parada ou outra”. A peça foi apresentada mais de 300 vezes em vários estados brasileiros. Também foi encenada no continente europeu. Prosseguindo a investigação estética, a Trupe realizou, em 2009, a adaptação do monólogo Valsa n° 6 [2009], de Nelson Rodrigues, Na Revista Camarim, publicação da Cooperativa Paulista de Teatro, o critico Edgar Olímpio de Souza destaca que a peça desconstrói a cena com ousadia e atrevimento na linguagem. A peça, no mesmo ano, concorreu ao prêmio da Cooperativa de melhor espetáculo em espaço alternativo. Para o jornalista Miguel Arcanjo Prado, “a direção de Anderson Maurício inova ao utilizar com propriedade tanto o interior quanto a área externa do ônibus, como quando os atores surgem, de repente, nas janelas, surpreendendo os passageiros. A direção musical de Thiago Freire, assim como o figurino soturno de Priscila Reis e Tatiane Lustoza, ajudam a compor o ambiente de alucinação e mistério da peça”. Um dos detalhes interessantes dessa montagem, é que o preço do ingresso foi o mesmo da passagem de ônibus. Em 2009, a Trupe Sinhá Zózima recebeu o Prêmio Míriam Muniz da Fundação Nacional das Artes [FUNARTE] para montagem do espetáculo O poeta e o cavaleiro, com direção de Alexandre Lindo e livre inspiração da obra de Pedro Bandeira, proeminente autor de literatura infantil no Brasil. A peça estreou em 2010. A dramaturgia realoca a problemática do transporte coletivo para uma história contada a partir da linguagem do palhaço. É o primeiro experimento cênico do grupo fora do ônibus convencional. O cenário lúdico contava com um ônibus inflável. A montagem foi apresentada em praças de varias cidades e também participou do Projeto Teatro nos Parques da Cooperativa Paulista de Teatro.

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Após montar três espetáculos, a Trupe chega a um dos principais momentos de sua trajetória. Em outubro de 2009, cria, com apoio da São Paulo Transporte S.A (SPTrans), responsável pelos ônibus municipais, o projeto Arte Expressa: Mostra de Teatro no Ônibus. Neste projeto, a encenação teatral é lançada para uma realidade outra: doze grupos de teatro foram convidados a encenar peças curtas em ônibus que circulam no Complexo Viário Expresso Tiradentes, num percurso que vai do centro da cidade ao bairro Sacomã e região de Heliópolis, a maior favela paulistana. No projeto Arte Expressa a Trupe realizou uma pesquisa sobre a relação dos passageiros de ônibus com as artes. Foi constatado que 75% das pessoas que usam aquela linha do transporte municipal nunca tiveram nenhum contato com as artes cênicas. 95% escolheriam para se locomover um ônibus, onde houvesse encenações teatrais. A percepção da realidade cruel do transporte coletivo, como também a força e a avidez da cultura do povo levou a Trupe, em 2011, a reaver a caminhada e a alicerçar os movimentos de pesquisa, além de realizar rodas de leitura, encontros, debates e oficinas. O desejo de reavivar a pesquisa artística a partir da memória e cultura do povo leva a Trupe a buscar um terminal de ônibus na grande metrópole, onde possa estruturar e ativar o projeto atual. Em 2011, o grupo inicia o programa Artistas Residentes e recebe o dramaturgo paraense Rudinei Borges. O desejo de reavivar a pesquisa artística a partir da memória e cultura do povo leva a Trupe a iniciar uma de suas mais importantes investidas, o Projeto Arte Expressa: Residência artística na região do Terminal Parque D. Pedro II e Expresso Tiradentes. Em 2012, a Trupe Sinhá Zózima foi contemplada pela 20° Edição da Lei de Fomento para a cidade de São Paulo com o projeto PLANTAR NO FERRO FRIO DO ÔNIBUS O NINHO. A Trupe também foi indicada ao Prêmio de Grupo Revelação 2012 da Cooperativa Paulista de Teatro. O grupo conta atualmente com os artistas-pesquisadores: Alessandra Della Santa-Santana (atriz), Anderson Maurício (Diretor de teatro e ator), Júnior Docini (Ator), Maria de Alencar (Atriz), Priscila Reis (Ator), Rudinei Borges (Dramaturgo) e Tatiane Lustoza (Atriz e produtora). Com os redatores Alex Maurício e Márcia Nicolau. Com a documentarista Luciana Ramin e com os fotógrafos Christiane Forcinito e Danilo Dantas. Com o trabalho de produção

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de Thaís Polimeni. Com o webmaster Danilo Peres. Desenhos de Guilherme Kramer. E com as artes visuais de Deborah Erê. A Trupe Sinhá Zózima segue em direção de sua própria estirada, a longa caminhada que á a própria vida. Caminha para um teatro que não nega as suas referências históricas ao longo de sua formação e vivência artística, mas que busca um movimento próprio de viver a arte, que é o teatro do encontro sem fronteiras.

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MOVIMENTOS DE PESQUISA FAGULHAS N. 3

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O ator Leonardo Cônego na carpintaria O sentido e as águas. Foto por Danilo Dantas.

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Os movimentos de pesquisa propostos pela Trupe Sinhá Zózima resultam de experimentos cênicos realizados desde 2007 em ônibus e terminais da cidade de São Paulo. A palavra movimento na pesquisa da Trupe tem um sentido/razão próprio e especial, trata-se, segundo as reflexões de Rudolf Von Laban [1879-1958], de entender o pensamento [mente, cultura] e o movimento do corpo [natureza] como corponectivos, ou seja, trazidos juntos. Na verdade, Laban afirma que “... quando se aprende a raciocinar em termos de movimento” já estamos postulando que pensamento é movimento. Neste sentido, acreditamos que a pesquisa cênica é, sobretudo, ação do corpo, que age e pensa, porque os aspectos físicos, químicos, biológicos, emocionais, intelectuais são parte de um só corpo. Assumir o movimento como pesquisa é comprometer-se com a estirada, a longa caminhada, que é a própria vida. Ou seja, a arte/vida é o próprio movimento que queremos entender no nosso cotidiano diário e no cotidiano das pessoas. Pesquisar, assim, é agir/pensar com as pessoas, olhá-las e entendê-las com o próprio corpo, o corpo do artista em cena, na vida – o artista encenando a própria caminhada-longa que é a existência, que é o verdadeiro encontro com o outro, como prenuncia sabiamente Martin Buber no livro Eu e Tu. São cinco os movimentos de pesquisa que orientam/norteiam o nosso estudo cênico: - Espaço; - Público; - Atuação; - Dramaturgia; - Produção.

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1. DO ESPAÇO MOVIMENTO I QUANDO O TEATRO REINVENTA O ESPAÇO A arquitetura do ônibus é resignificada/reinventada por inúmeros elementos cênicos, como o cenário, a iluminação, a sonoplastia e o figurino. Esses elementos compõem um ambiente, no qual o ônibus não é mais apenas um meio de transporte. Ele é recriado como espaço, passagem onde os atores, seus personagens e o público vivenciam uma realidade outra. MOVIMENTO II QUANDO O ESPAÇO REINVENTA O TEATRO A arquitetura do ônibus não é modificada, não há elementos cênicos, porque o espaço – como afirma Laban – não é para ser preenchido, pois ele não é espaço vazio, não é algo que vai ter vida depois que a pessoa se coloca nele. Portanto, coexistimos e convivemos com o espaço. O ônibus, espaço vivo, local usado pelas pessoas para locomoção, reinventa o teatro. Os atores são inseridos numa realidade outra, que não é o palco, não há luzes, cenários elaborados e sonoplastia. Há apenas o público, os próprios atores e o ônibus. O limiar entre o real e o imaginário é rompido pela comunhão/cumplicidade entre público e atores. Esse encontro acontece mediante a palavra proferida pelos atores, por meio de seus personagens. A relação, a reciprocidade, é fundada através da palavra/ corpo, que é força motora, capaz de superar a distância e propiciar o encontro verdadeiro entre as pessoas.

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2. DO PÚBLICO MOVIMENTO I QUANDO A TRUPE ENCONTRA O PÚBLICO A pesquisa encontra no público, em passageiros de ônibus, a fundamentação para o processo de criação cênica. Um estudo profícuo de memórias, lembranças, histórias e relatos de passageiros alimentam a construção de uma dramaturgia do encontro, como também de todos os outros elementos cênicos. Os integrantes da Trupe protagonizam a pesquisa de campo, tornam-se também eles passageiros de ônibus. Nesse contexto, dialogam com outros passageiros, assumindo o ofício de ouvintes de memórias, lembranças, histórias e relatos, estabelecendo uma relação de reciprocidade. Neste momento, passam a vivenciar e a observar o cotidiano, a conjuntura estabelecida dentro e fora do ônibus. A fala, o dizer das pessoas, a cultura popular, cinge a paisagem urbana, compondo um legado diverso e rico, visto – na maioria das vezes – de modo pejorativo pela cultura considerada erudita ou apropriado pela indústria cultural. A Trupe atua com um olhar outro. O artista é um pesquisador que quer entender o cotidiano do homem considerado comum, daquele que guarda na simplicidade de suas ações, encanteria. Neste sentido, não há mais o lugar do artista versus o lugar do passageiro. Nesse processo, é estabelecido um diálogo, são duas pessoas numa conversa espontânea, as duas desejam se conhecer-reconhecer, desenhando o que nas rodas mais simples é chamado apenas de encontro. Trata-se, assim, de reavivar uma ação/utopia antiga do ser humano, isto é, encontrar o outro, olhar o seu rosto, vê-lo e ouvi-lo.

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MOVIMENTO II QUANDO O PÚBLICO ENCONTRA A TRUPE Entre 2007 e 2012, um público com características diversas, e até paradoxais, encontrou a Trupe Sinhá Zózima: pessoas que usam o ônibus como transporte e outras que desconheciam o coletivo urbano; frequentadores de teatro e pessoas que nunca foram a uma encenação teatral; transeuntes, homens e mulheres em ruas-alamedas-becos-avenidas que veem com estranhamento/ admiração o espetáculo no ônibus. O espetáculo e o ônibus conduzem verdadeira travessia/passagem pela cidade, cingindo o cotidiano, a realidade multifacetada e muitas vezes cruel. Eles acreditavam que o lugar do teatro era outro, um casarão antigo, uma espécie de castelo kafkiniano inacessível, onde jamais poderiam entrar. Quando entram no ônibus encontram outra possibilidade de vivenciar o teatro. No emanharado de vivências, surge uma questão imprescindível para este movimento da pesquisa: pessoas próximas dos atores, diante deles, frente a frente: não há palco, não há limite espacial entre ator e público. O que vemos é a presentificação corporal do público, compartilhando o espetáculo. As barreiras são rompidas. O público encontra a possibilidade de vivenciar a arte. Assume e ocupa um lugar outro, que não é o mesmo assumido pelo público nos teatros convencionais – espectador, aquele que vai apenas para ver. Isso concerne numa vivência/realidade decisiva no encontro do público com a Trupe. Essa pesquisa é um estudo da possibilidade de entendimento do público como sujeito-participante da encenação. Não se trata apenas de um espectador que assistirá passivamente o espetáculo apresentado, pois o lugar é outro e também o público é outro. Interessa-nos pesquisar a ação/reação do público, como também a possibilidade de interação ator e público durante a encenação.

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3. DA ATUAÇÃO Para o todo Para a terra Para que cada um de nós Sejamos melhores. [Lídia Zózima] A criação teatral da Trupe Sinhá Zózima está centrada, sobretudo, na pesquisa do trabalho do ator. A formação da Trupe resulta do encontro de atores preocupados fundamentalmente com o caráter humano da encenação – perspectiva experienciada nas aulas inspiradoras da Professora Lídia Zózima na Fundação das Artes de São Caetano do Sul, em São Paulo. Portanto, no entendimento do grupo, o trabalho do ator se caracteriza por um olhar corajoso e verdadeiro para si mesmo, para o outro e para o mundo. Há um compromisso/cumplicidade em vivenciar o movimento, assumir-se como corponectivo: pensar e agir numa interação vívida do corpo e da mente. O ator, durante o processo de criação, deve encarar-se e questionar: como posso falar da dor do outro se não conheço a minha? É um retorno inegável para o começo, para a própria vida. E para o próprio corpo, que – como afirma Mônica Allende Serra – não acaba na pele, ele se estende por um mini território ao redor... gozamos deste espaço corpo extra como uma casa se estende por seu jardim em volta. “Conhece-te a ti mesmo” é o primeiro passo da estirada, longa caminhada, rumo à construção do personagem. Mas nem sempre somos os mesmos, como afirmou Heráclito, por isso os resultados cênicos são diversos: contemplam vozes múltiplas e muitos corpos. Até então, olhar para o próprio ator e para o outro nos levou a vozes sertanejas, como na montagem Cordel do amor sem fim [2007] de Cláudia Barral; a sussurros e gritos em Valsa nº 6 [2009] de Nelson Rodrigues; ao murmúrio/ TEATRO NO ÔNIBUS: pesquisa cênica da Trupe Sinhá Zózima. | 33


riso/risada em O poeta e o cavaleiro de Pedro Bandeira [2010]; aos olhares do povo no ônibus, vivência em que o ator encara o estranhamento/admiração das pessoas, frutos do trabalho no projeto Arte Expressa – Mostra de Teatro do ônibus [2010]. Todos esses processos nasceram da inquietação do ator, do desejo de encontro consigo mesmo e com o outro. Esse movimento de pesquisa passa pela atitude/ação de experienciar. O verbo experienciar é um conceito unificador que trata do todo de uma pessoa. Quando se emprega o termo experienciar, significa experienciar intelectualmente, emocionalmente, também. “Vamos plantar uma árvore para entender como surgiu a nossa floresta”, afirma Lídia Zózima. É o que a Trupe busca em nossos ensaios. É preciso experienciar para atuar. Estamos no mundo, somos movidos por ele. Mas não podemos esquecer que também nós, com nosso suor e labuta, o movemos.

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4. DA DRAMATURGIA O projeto de pesquisa dramatúrgica da Trupe Sinhá Zózima orienta-se a partir do diálogo/confronto entre memória/história oral, textos literários e obras de artes diversas, como fotografia, música, cinematografia e pintura. A pesquisa contempla as seguintes proposições/metodologias/hipóteses: I. Lembrar é um modo de incluir. Esquecer é um modo de excluir. II. Ouvir/documentar a memória das pessoas, principalmente de trabalhadores [passageiros de ônibus], é tecer caminhos/práxis para um Teatro do Encontro. III. A criação dramatúrgica resulta, sobretudo, da palavra/memória das pessoas, dos lugares e das coisas. IV. A criação dramatúrgica não é uma operação de registro stricto sensu da realidade, mas a carpintaria de impressões dos atores e dos dramaturgos em diálogo com a memória/história oral das pessoas. V. O dramaturgo precisa dialogar profundamente com o poeta. “O poeta é o que sonha o que vai ser real”. [Milton Nascimento e Fernando Brant] VI. Construir rodas de memórias, ateliês biográficos. VII. O dramaturgo é aquele que colhe palavras, gestos e hiatos.

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VIII. Descobrir encanteria/encantaria na mitologia de cada ser humano. IX. “A história de vida de uma pessoa é a narrativa que ela constitui sobre si mesma. Esta narrativa baseia-se, com certeza, nas premissas de mundo e nas experiências por ela vividas. Essas experiências, as mais significativas, vão constituindo o conjunto de marcos que forma a memória de cada um de nós”. [Karen Worcman] X. A criação cênica e dramatúrgica é a impressão de registros de memórias e do cotidiano de pessoas em lugares/conceitos paradoxais: cidade & campo, privado & público, casa & rua, profano & sagrado, velho & novo, feminino & masculino. XI. A captura da realidade-memória acontece mediante inúmeros registros: fotografia, escrita, cinema, desenho, música, pintura e palavra falada. Todo o processo é itinerário para criar o texto cênico e a própria encenação. XI. Interessa-nos compreender a realidade-extrema, a realidade-limite: a vida do povo da rua, a loucura, o homem diante da morte, a impossibilidade de comunicação, a exploração no trabalho, a aglomeração e uniformização. XIII. Desafio: criar dramaturgias para espaços não convencionais, como o ônibus. XIV. “A linguagem é a morada do ser”. [Heidegger] XV. “Dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens. Precisamente por isto, ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizê-la para os outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra dos demais”. [Paulo Freire]

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XVI. Habitar a obra de poetas brasileiros. XVII. Criar uma dramaturgia da terra, da água, do fogo e do ar. XVIII. Pesquisar a ideia de nostalgia do humano na obra de Martin Buber. XIX. Avançar para o começo. Chegar ao criançamento das palavras. Lá onde elas urinam na perna, como propõe o poeta Manoel de Barros. XX. Criar expedições para pesquisar dramaturgia e cultura popular.

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5. DA PRODUÇÃO NOTA 1 A busca por sustentabilidade no sentido de preservação das condições que proporcionam a existência do fato cultural é o objetivo do grupo quando propõe a produção como movimento de pesquisa. NOTA 2 A problemática da produção é complexa no campo das artes. No Brasil, segundo Romulo Avelar, o uso de ferramentas da administração no cotidiano dos grupos artísticos e entidades culturais ainda encontra algumas resistências. NOTA 3 Como poderá o grupo utilizar de ferramentas da administração sem que elas se sobreponham à pesquisa cênica? NOTA 4 Para viabilizar diversos projetos, a Trupe Sinhá Zózima pesquisa modos de produção que possam contribuir com as suas atividades no campo do teatro. A busca do grupo concerne no encontro com vários parceiros: pessoas físicas e pequenos comércios. NOTA 5 Percebe-se que a sociedade talvez ainda não conheça a sua potência e força para mover economicamente ações culturais, como um espetáculo cênico. Mediante tal constatação, a Trupe pesquisa as possibilidades de um movimento em que também possa o próprio trabalhador [espectador de peças teatrais] fomentar as ações cênicas do grupo. Como? NOTA 6 Quando não contemplado por editais como poderá um grupo de teatro realizar suas ações artísticas? Eis a questão. 38 | TEATRO NO ÔNIBUS: pesquisa cênica da Trupe Sinhá Zózima.


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PROCESSOS DE CRIAÇÃO FAGULHAS N. 4

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Os processos criativos da Trupe Sinhá Zózima partem de cinco eixos de pesquisa [espaço, atuação, público, dramaturgia e produção] e resultam em montagens teatrais como: Cordel do amor sem fim, Valsa n° 6 e O poeta e o cavaleiro e Dentro é lugar longe.

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Da esquerda para a direita. Os atores Evie Milani, Vanessa Cabral, Anderson Maurício, Fernando De Marchi, Tatiane Lustoza e Priscila Reis no espetáculo Cordel do amor sem fim. Foto por Daniel Abicair.

I. CORDEL DO AMOR SEM FIM Com direção de Anderson Maurício e texto de Cláudia Barral, Cordel do amor sem fim narra estórias do universo interiorano. O ir e vir das águas do velho rio São Francisco envolve a vida dos personagens: Teresa, Antônio, Carminha, Madalena e José percorrem as margens do rio, tecendo um trajeto encantatório, como se movimentassem a própria vida no ônibus, onde a peça é encenada. O espetáculo foi apresentado mais de 300 vezes em vários estados brasileiros e também no continente europeu. 42 | TEATRO NO ÔNIBUS: pesquisa cênica da Trupe Sinhá Zózima.


Cordel do amor sem fim [2007] é a primeira montagem da Trupe Sinhá Zózima. Marca e finca o projeto teatral do grupo num campo experimental: a investigação de um teatro do encontro sem fronteiras. A partir da ousada pesquisa em torno do ônibus como espaço cênico e do estudo sobre a cultura popular, a narrativa sertaneja da dramaturga baiana Cláudia Barral, apresentada num ônibus em movimento, compõe um mosaico paradoxal diante da tessitura urbana e suas mazelas cruciais. Influenciados pela força poética da imagem das águas do rio São Francisco, o grupo iniciou uma leitura atenciosa dos textos filosóficos de Gaston Bachelard. Os livros A água e os sonhos, A poética do espaço, A terra e os devaneios da vontade configuraram verdadeiro manancial para o processo de criação cênica. A encenação no ônibus reinventa um lugar outro, em que elementos rústicos tecem o cenário, conjugado à música caipira e aos diversos cheiros dos temperos interioranos. Num significativo comentário, a crítica Marília Beatriz afirma que a linguagem da peça revoluciona a estrutura teatral, porque tudo – desde as músicas até os adereços cênicos – subvertem o paradigma e qualquer construção imaginada no teatro. Para o pesquisador de teatro Valmir Santos, “o espetáculo prima por um elenco que sustenta a sua verdade no olho – como a enamorada Teresa enxerga no amante que promete retornar um dia. O ‘palco’ mais evidente é o corredor do ônibus, daí a proximidade movediça da qual o espetáculo se safa com interpretações e cantigas que garantem a viagem do início ao fim, sem sucumbir aos solavancos, aos olhos surpresos da janela do outro veículo emparelhado ou mesmo na breve interação com os passantes na calçada, numa parada ou outra”. A delicadeza com que os atores sustentam essa linha tênue entre realidade e fantasia é uma das maiores qualidades de Cordel do amor sem fim, destaca a crítica Deolinda Vilhena.

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O ator Anderson Maurício no espetáculo Valsa nº6. Foto por Osmário Marques.

II. VALSA N° 6 Com direção de Anderson Maurício e texto de Nelson Rodrigues, Valsa nº 6 marca a continuidade da pesquisa da Trupe Sinhá Zózima sobre a dramaturgia brasileira e o ônibus como espaço cênico. A peça, escrita em 1951, conta a estória de Sônia, uma adolescente. Nessa versão da peça, em meio a um turbilhão de emoções, imagens e sensações, a Trupe compõe uma nova valsa, conduzida por música eletrônica, luzes e fumaça. Valsa nº 6 [2009] é a segunda montagem da Trupe Sinhá Zózima. Nessa peça, o projeto experimental do grupo, iniciado com Cordel do amor sem fim, ganha ares urbanos, quando propõe a investigação do universo adolescente no século XXI. As imagens sugeridas por Sônia, personagem principal do texto de Nelson Rodrigues, são fragmentadas, duplicadas e desconstruídas com rapidez. O tempo instável une realidade e ficção.

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O ônibus, espaço de apresentação do espetáculo, passa a ocupar um papel definitivo na encenação. É o novo palco, a arena intimista, a casa onde o ir e vir da vida se desenrola numa atmosfera de sonho e devaneio. Para Gaston Bachelard, esta “casa é um corpo de imagens que dão ao homem razões ou ilusões de estabilidade: distinguir todas as imagens seria revelar a alma da casa. A casa é imaginada como um ser vertical, ela se eleva. A verticalidade é assegurada pela polaridade do porão e do sótão”. Os segredos de Sônia, dos jovens, estão espalhados nos meandros taciturnos da casa, no sótão e no porão do próprio ser humano. “A racionalidade do telhado-sótão: o telhado revela imediatamente sua razão de ser, cobre o homem que tem medo da chuva e do sol. No sótão, vê-se, com prazer a forte ossatura dos vigamentos. A irracionalidade do porão: ele é em primeiro lugar o ser obscuro da casa, o ser que participa das potências subterrâneas. Sonhando com ele, concordamos com a irracionalidade das profundezas”. Para Jung, “no sótão, camundongos e ratos podem fazer seu alvoroço. Quando o dono da casa chegar, eles voltarão ao silêncio de seu buraco. No porão seres mais lentos se agitam, menos apressados, mais misteriosos. No sótão, a experiência do dia pode sempre apagar os medos da noite. No porão, há escuridão dia e noite. Mesmo com uma vela na mão, o homem vê as sombras dançarem na muralha negra do porão”. A peça, desde a sua estreia, alcançou sucesso de público e crítica, além de colocar a pesquisa da Trupe num patamar considerável de experimentação cênica. Na Revista Camarim, publicação da Cooperativa Paulista de Teatro, o crítico Edgar Olímpio de Souza destaca que a peça desconstrói a cena com ousadia e atrevimento na linguagem. A peça, no mesmo ano, concorreu ao prêmio da Cooperativa de melhor espetáculo em espaço alternativo. Para o jornalista Miguel Arcanjo Prado, “a direção de Anderson Maurício inova ao utilizar com propriedade tanto o interior quanto a área externa do ônibus, como quando os atores surgem, de repente, nas janelas, surpreendendo os ‘passageiros’. A direção musical de Thiago Freire, assim como o figurino soturno de Priscila Reis e Tatiane Lustoza, ajudam a compor o ambiente de alucinação e mistério da peça”.

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Os atores Anderson Maurício e Priscila Reis no espetáculo O poeta e o cavaleiro. Foto por Adalberto Lima.

III. O POETA E O CAVALEIRO O espetáculo O poeta e o cavaleiro inspira-se nos teatros de feira, dos saltimbancos e na obra literária de Pedro Bandeira. A linguagem do palhaço, figura comum nas rodas populares, conduz uma profícua reflexão sobre cidadania, fazer teatral e liberdade. A narrativa acontece na pacata cidade Findomundo, onde tudo era perfeito e harmonioso. A população tinha a melhor educação, a melhor saúde e o melhor transporte público já visto. O ônibus não era apenas um meio de locomoção, mas de encontro e reflexão, uma espécie de ágora [praça] onde o povo vivia a arte e a democracia. Um dia, um estrondo enorme atingiu o ônibus do Findomundo. A arte e os direitos do povo foram ameaçados. O espetáculo é uma divertida metáfora sobre poesia, abuso de poder e luta por liberdade. 46 | TEATRO NO ÔNIBUS: pesquisa cênica da Trupe Sinhá Zózima.


A arte é uma ferramenta de transformação social imprescindível. Este é um dos princípios fundamentais dos movimentos de pesquisa da Trupe Sinhá Zózima. Nos trabalhos anteriores, já havia preocupação e cuidado ao lidar com as emoções humanas suscitadas em um público adulto, vindo das mais diversas realidades. Na peça O poeta e o cavaleiro, o grupo parte do desafio de aproximar o público jovem do teatro, desmistificando a ideia de que a arte cênica é propriedade somente dos adultos e de uma classe com maior condição financeira. O poeta e o cavaleiro convida o jovem à reflexão, por meio dos temas abordados e da qualidade dramatúrgica, instigando-o a conhecer e a participar das necessárias mudanças na sociedade que o cerca. A construção do discurso cênico é consolidada a partir das relações em que o palhaço requer permanente estado de atenção, alerta, sensibilidade, inocência e verdade. Este recurso estilístico é um catalisador da proposta apresentada pelo próprio texto, ao tratar de aspectos do comportamento humano; de sua fragilidade e dos seus não-saberes. A linguagem é um complemento do recurso dialógico que permite colagens peculiares das cenas que percorrem toda a narrativa pela ótica do palhaço, além de ser um forte elemento crítico. A proximidade com o público, em O poeta e o cavaleiro, configura verdadeiro diálogo, possibilitando um teatro do encontro, em que a relação, o olhar para o rosto do outro, é imprescindível. Desde o primeiro espetáculo, Cordel do amor sem fim, o ônibus é o espaço de experimentação da pesquisa cênica da Trupe Sinhá Zózima. Em O poeta e o cavaleiro, o ônibus permanece, assumindo uma forma ainda mais lúdica: todo inflável, com cores vibrantes, permitindo aos atores experimentar novas possibilidades cênicas, despertar a curiosidade dos adultos e encantar crianças e jovens. Neste espetáculo, o ônibus aparece como o transporte público ideal: não poluente, gratuito e aberto às manifestações artísticas, como por exemplo, as poesias de Simão, o poeta. É um lugar, por excelência, onde a cidadania é exercida e respeitada. A peça O poeta e o cavaleiro atinge um grande número de espectadores por apresentação, já que pode ser encenada em área livre, coberta ou descoberta [parques, praças, quadras e ginásios] sem perder a conexão com o principal elemento de pesquisa da Trupe Sinhá Zózima – o ônibus. No chão imenso, meninos narram o ir e vir da vida, do nascimento à morte, da

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da peleja à conquista. Entre vindas e partidas, no ônibus em movimento onde é encenada a peça, são contadas histórias tantas. Num ato de valentia, são desveladas, com sagacidade poética invejável, memórias de dor e contentamento.

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Da esquerda para a direita. Na frente: o dramaturgo Rudinei Borges e as atrizes Alessandra Della Santa e Maria Alencar. Atrás: o diretor Anderson Maurício e os atores Junior Docini, Tatiane Lustoza e Junior Docini.

IV. DENTRO É LUGAR LONGE A peça Dentro é lugar longe, com dramaturgia de Rudinei Borges e encenação de Anderson Maurício, foi escrita a partir de história oral dos artistas-pesquisadores da Trupe Sinhá Zózima. A tessitura dramatúrgica é perpassada, sobretudo, por memórias da infância dos narradores, em que lembranças de nascimento e morte são contadas compondo a metáfora da vida como estirada, estrada longa. A vida é desvelada como viagem, caminhada das distâncias, num itinerário em que malas vazias e abarrotadas são carregadas como presentificação de conquistas e de pelejas. A encenação em um ônibus em movimento, característica singular do grupo, potencializa a ideia de viagem, partida que ao mesmo tempo é chegada.

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É significativo que os narradores da peça sejam cinco meninos, todos diante do chão imenso. Neste sentido, a palavra na dramaturgia e na encenação é um artesanato poético, conjunção de vozes tantas, em que tempo e espaço são reinventados à mercê do jogo de narração estabelecido pelos meninos. Com isso, é difícil dizer, com alguma certeza, se está no passado ou no presente o fato narrado. Se estamos no espaço evocado pela memória ou se somos passageiros duma andança sem destino certeiro. Entretanto, é possível perceber logo de imediato, que é a lembrança a matéria árdua que compõem “Dentro é lugar longe”. Já no início da peça, a Menina de cabelos negros longos diz, meio à cantoria: “a gente vive para contar”. Ou seja, contar é o modo que o ser humano criou de partilhar suas lembranças. “A gente vive para contar o que fez: não fez: o que viu: não viu: a gente vive para acocorar os pés sobre o chão e andar por azinhagas”, diz a menina. A opção pela história oral levou o grupo a um roteiro de ações que norteou o processo de criação da peça. Os trabalhos iniciaram com uma oficina, coordenada pelo Núcleo de Estudos em História Oral da Universidade de São Paulo (NEHO). Depois foi escolhido um recorte para a composição do texto: narrativas de vida dos artistas que integram a Trupe. Estas narrativas foram registradas em setembro de 2012, numa chácara nos arredores da cidade de São Paulo. Ali, lembranças foram narradas em 24h ininterruptas, duma madrugada à outra, da alvorada à noite. O tempo foi reinventado em ofícios: da alvorada, da manhã, do meio dia, da tarde, do entardecer, da noite, da meia noite e da madrugada. Cada ofício foi vivenciado numa parte da casa da chácara: sótão, quintal, cozinha, rua, sala, quarto, cabana e porão. As narrativas todas foram gravadas, transcritas, textualizadas e transcriadas até que chegassem às mãos do dramaturgo para que, mediante exercícios cênicos, se tornassem dramaturgia. Até que ganhasse corpo a peça e, numa decisão coletiva, fosse batizada de “Dentro é lugar longe”, frase-viva fincada no coração do texto. O caráter coletivo da montagem foi marcado por intenso diálogo entre encenador e dramaturgo. E explicita um novo momento na pesquisa da Trupe Sinhá Zózima: o desejo de compor uma dramaturgia própria, que dialogue com a realização cênica do grupo em ônibus. A encenação da peça acarreta meia década de pesquisa continuada, ação sagaz e peculiar no panorama do teatro de grupo da cidade de São Paulo e do Brasil. “Dentro é lugar longe” é o chamamento para um teatro que manifesta a com-

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pletude da ação cênica no ordinário da existência humana. E é exatamente nesta ação de se debruçar sobre o corpus da vida ordinária que o ser humano lembra o que foi (e é) e se dispõe a narrar. São as coisas simples, movidas pelo tempo presente, que reavivam as lembranças do passado. Neste reavivar, pouco importa se são verdadeiras ou imaginadas as lembranças, porque, neste caso, – como afirma Manoel de Barros – só 10% é mentira, o resto é invenção. “Dentro é lugar longe” é invenção-reinvenção da vida vivida/não vivida.

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PROJETO ARTE EXPRESSA FAGULHAS N. 5

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O projeto Arte Expressa integra a pesquisa teatral-poética da Trupe Sinhá Zózima e tem como principal objetivo promover o encontro de passageiros de ônibus com as mais variadas manifestações artísticas, como: teatro, cinema, música, literatura e artes plásticas. O projeto Arte Expressa resulta da pesquisa cênica realizada pela Trupe Sinhá Zózima, desde 2007, em ônibus na cidade de São Paulo, em vários estados do Brasil e em Portugal. O estudo cênico partiu da procura pela concretude de uma poética do espaço em um meio de transporte coletivo comum em vários lugares, o ônibus, e levou ao encontro das lembranças e memórias de inúmeros passageiros, pessoas que conduzem com a voz e os olhos [o corpo] a tessitura árdua e vasta da cultura do povo e reinventam todos os dias o cotidiano das ruas, das praças, das feiras e dos terminais de ônibus. O projeto, iniciado em 2009, realizou em São Paulo a PRIMEIRA MOSTRA DE TEATRO NO ÔNIBUS. Nesta mostra, a encenação teatral foi lançada para uma realidade outra: doze grupos de teatro foram convidados para encenar peças curtas em ônibus que circulavam no Expresso Tiradentes, num percurso que vai do centro da cidade ao bairro Sacomã e região de Heliópolis, a maior comunidade periférica paulistana. Intervenções cênicas foram apresentadas para mais de 4.500 pessoas durante uma semana. Nesse período, a Trupe realizou uma pesquisa sobre a relação dos passageiros de ônibus com as artes. Foi constatado que 75% das pessoas que usavam aquela linha do transporte municipal nunca tiveram contato com as artes cênicas, ou seja, nunca assistiram a uma peça de teatro. Mas foi significativo que 97% escolheriam para se locomover um ônibus onde houvesse encenações teatrais. Atualmente o projeto Arte Expressa organiza-se a partir de três ações:

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Os atores Alexandre Lindo, Maria Silvia e Marcela Sampaio da Cia. Asfalto de Poesia na I Mostra de Teatro no ônibus. Foto por Danilo Dantas.

ARTE EXPRESSA MOSTRA DE TEATRO NO ÔNIBUS

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Realização de encenações teatrais em terminais de ônibus na cidade de São Paulo e outras cidades brasileiras. Também é um convite para que jovens grupos de teatro dialoguem com a Trupe e realizem apresentações em ônibus.

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Serão, manifesto em memória do operário Santo Dias da Silva. Outubro de 2012. Foto por Danilo Dantas.

ARTE EXPRESSA RESIDÊNCIA ARTÍSTICA

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Alicerçado nas reflexões do educador Paulo Freire sobre utopia, leitura de mundo e práxis transformadora e na acepção de encontro da Filosofia do Diálogo de Martin Buber, o projeto Plantar no ferro frio do ônibus o ninho objetiva a continuação da residência artística da Trupe Sinhá Zózima na região do Terminal Parque Dom Pedro II e Expresso Tiradentes; a ampliação da pesquisa do ônibus como espaço de experimentação e intervenção no cotidiano da cidade de São Paulo; a criação de um núcleo de investigação teatral com passageiros de ônibus. Objetiva também, nestes terminais e região, a tecelagem de experimentos cênicos a partir de narrativas de vida de passageiros de ônibus e de rodas de cultura popular, dança e cantoria. O projeto acontece no biênio 2012-2013. E foi contemplado pela 20º Edição da Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo.

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A Atriz Maria de Alencar em intervenção cênica coordenada por Eliana Monteiro do Teatro da Vertigem. Foto por Christiane Forcinito. A Atriz Maria de Alencar em intervenção cênica coordenada por Eliana Monteiro do Teatro da Vertigem. Foto por Christiane Forcinito.

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ARTE EXPRESSA UM COLETIVO CULTURAL SEM FRONTEIRAS

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Propõe-se que em um ônibus [Coletivo Cultural] aconteçam ações como apresentações de espetáculos teatrais, exibições de filmes, carpintarias e rodas de conversações. Este coletivo circulará por cinco terminais presentes nas cinco regiões da cidade de São Paulo [zonas sul, norte, leste e oeste]. Um terminal por região, com ações realizadas em diferentes linhas de ônibus. Outros três espaços serão abrigos destas atividades: os próprios terminais por onde o ônibus se deslocará, uma praça próxima ao terminal que seja importante na vida da população daquela região e uma garagem de ônibus/sede da empresa onde haja grande fluxo de funcionários. As ações propostas são pensadas a partir da realidade do cidadão paulistano que utiliza o ônibus para se locomover ao trabalho e outras atividades. Ao trazer vida às ruas e outros espaços públicos como as praças, o projeto os ocupa de maneira criativa.

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SEGUNDA PARTE

NOTAS SOBRE TEATRO DO ENCONTRO -

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A atriz Priscila Reis no espetáculo Cordel do amor sem fim. Foto: Acervo da Trupe Sinhá Zózima.

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POR UM TEATRO NO ÔNIBUS FAGULHAS N. 6

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Dentro do ônibus, Trupe Sinhá Zózima e Cia Estável partilham vivências no teatro. Primeiro semestre de 2012. Foto por Christiane Forcinito.

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O projeto de pesquisa da Trupe Sinhá Zózima aponta para uma trajetória artística desafiadora. O grupo, desde a sua fundação, optou por uma práxis que realoca o lugar da ação cênica: do théatron [θέατρον], no sentido de lugar onde se vai para ver, para o ônibus [omnibus], lugar para todos. O teatro é reinventado em outro espaço, o ônibus: espaço inapropriado, lotado e apertado que cinge a paisagem urbana da cidade como uma cicatriz, um câncer, como escreve o poeta João Cabral de Melo Neto no poema Meio de transporte:

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MEIO DE TRANSPORTE

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O câncer é aquele ônibus que ninguém quer mas com que conta; não se corre atrás dele, mas quando ele passa se toma; que ninguém quer mas sabe; e que um dia ao sair-se do sono, lá está, semi-surpresa, quase pontual, no seu ponto. Sem pontos de parada solto nas ruas como um táxi, sem o esperar, querer, sem ter por que, se toma o enfarte: táxi que, de repente, ao lado de quem não se pensava, pára, no meio-fio, toma, quem não o vira ou chamara.

[João Cabral de Melo Neto]

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Na maior parte das cidades, o ônibus é espaço “destinado”, sobretudo, a uma classe financeiramente menos favorecida. No ônibus, e em seus longos trajetos, os passageiros [em geral, trabalhadores] se aglomeram num tempo considerável entre a casa e o trabalho. O espaço diminui, porque o ônibus é pequeno e lotado. O tempo aumenta, porque os trajetos são demorados. É comum os passageiros contarem que passam de duas a três horas ou mais, contabilizadas ida e volta ao trabalho, dentro de um ônibus. Em nossas conversas com passageiros de ônibus na cidade de São Paulo, descobrimos casos de pessoas que ficam seis horas por dia dentro de um ônibus de segunda a sexta-feira. Ou seja, semanalmente são trinta horas vivendo dentro de ônibus. Vidas inteiras se constroem, dia a dia, no interior deste modo de transporte coletivo. Ao realocar a ação cênica para o ônibus, a Trupe Sinhá Zózima assume a aproximação com um público, em sua maioria, pouco familiarizado com as artes cênicas. Na verdade, conhecem a arte de interpretar pelas novelas televisivas e pelos filmes hoolidianos. Nesta aproximação, o grupo assume também as intempéries do estranhamento, a dificuldade de fazer-se entender. Romper o roteiro pré-estabelecido do cotidiano é uma ação para lá de ousada, ainda mais quando o cotidiano é atroz, como comenta Michel de Certeau no livro A invenção do cotidiano. Neste caso, também o cotidiano do artistapesquisador da Trupe Sinhá Zózima, mediante a atrocidade impregnada na crueldade da conjuntura social, sofre uma espécie abrupta de rompimento. O artista-pesquisador² não está mais no teatro [na sala convencional de teatro]. E o passageiro de ônibus também não. Ambos, quando envolvidos pela encenação, reinventam-se num movimento curioso de reapropriação do tempo e do espaço.

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² O termo artista-pesquisador aparece no processo de criação da Trupe Sinhá Zózima relacionado, sobretudo, à prática de trabalho em grupo. Todos os integrantes do coletivo participam ativamente da pesquisa cênica em rodas de leituras, debates e conversações. E também os integrantes exercem outras funções que não se restringem à atuação. É comum o envolvimento com a produção, a cenografia e o figurino. Neste sentido, estamos próximos do conceito de processo colaborativo adotado por inúmeros grupos que tomamos como referência.

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Exatamente nesta ação, acreditamos, reside a maior contribuição da Trupe Sinhá Zózima: a aposta biopolítica da reapropriação, pelos sujeitos sociais, da legitimidade de seu poder de criar e refletir sobre a criação de sua vida.3 E mesmo que o turbilhão esmagador da barbárie capitalista seja vívido e ativo, é possível que a arte seja parte integrante da autocriação da vida.4 Não mais como bem pertencente a um pequeno grupo de privilegiados ou como bem inacessível e incompreensível. Nesta reapropriação5 da vida, a arte insere-se de modo sagaz como espécie de “alma” da vida reinventada. A trajetória artística desafiadora e a pesquisa teatral continuada da Trupe Sinhá Zózima encontram vazões para novos desafios, para outras travessias, mesmo as mais demoradas e difíceis. Após vários anos criando cenicamente em ônibus, o grupo outorgou meses a fio, para a preparação de uma nova empreitada. Agora, além do ônibus, já residimos [artisticamente] nas proximidades de um dos mais movimentados terminais de ônibus da América Latina, o Terminal Parque Dom Pedro II e também o Expresso Tiradentes, em pleno centro da cidade de São Paulo. O que podemos batizar tranquilamente de “o olho do furacão”. Em São Paulo existem, ao todo, 28 terminais municipais.6 Terminais são áreas onde as linhas de ônibus têm seu ponto de chegada ou de partida. Atuar nesta região parte da acepção de residir como atitude de fazer morada, habitar, desenhar o espaço com cores vivas, reconstruir a casa com o rosto dos próprios moradores, porque “a casa vivida não é uma caixa inerte. O espaço habitado transcende o espaço geométrico”7, afirma Gaston Barchelard. Entretanto, é residir artisticamente, o que diz respeito a um encontro do artista com o povo e do povo com o artista [todo artista tem de ir aonde o povo está]8. É criar em conjunto: reunir fazedores de arte e descobrir fazedores de arte. Por isso, residir, é ir ao encontro, é fazer arte, teatro, onde, a princípio, parece impossível, no local onde as pessoas estão, passam, caminham e vivem. É plantar o ninho onde reina o ferro frio. ____________________________ 3 Verificar PINEAU, Gaston. As histórias de vida em formação: gênese de uma corrente de pesquisa-ação-formação existencial. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 32, n. 2, p. 329-343, maio/ago. 2006. 4 Verificar CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. 5 Reapropriar-se diz respeito a aproximar-se novamente do que se havia afastado. Pôr-se novamente em relação, em contato. Atar de novo. Assumir novamente. Porém, não é um exercício de mera repetição. Criar outra vez nunca é criar igual ao que foi. 6 Informações da SPTRANS. 7 Verificar o livro A poética do espaço de Gaston Bachelard. 8 Nos bailes da vida, música de Milton Nascimento e Fernando Brant.

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Para Bachelard, todo espaço verdadeiramente habitado traz a essência da noção de casa. Pois a casa é nosso canto no mundo. A casa, na vida do homem, afasta contingências, multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. Ela é corpo e alma. É o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser “atirado ao mundo”, como professam os metafísicos apressados, o homem é colocado no berço da casa. E sempre, em nossos devaneios, a casa é um grande berço. Uma metafísica concreta não pode deixar de lado esse fato, esse simples fato, na medida em que esse fato é um valor, um grande valor ao qual voltamos em nossos devaneios. O ser é imediatamente um valor. A vida começa; começa fechada, protegida, agasalhada no seio da casa. É graças à casa que um grande número de nossas lembranças estão guardadas e se a casa se complica um pouco, se tem porão e sótão, cantos e corredores, nossas lembranças têm refúgios cada vez mais bem caracterizados.9 Assim, entre indagações e respostas, movemo-nos a partir de várias inquietações que são ao mesmo tempo artísticas e políticas - porque definimo-nos, sobretudo, como artistas-pesquisadores que desenham ações alicerçadas na capacidade poética do ser humano de tecer utopias e práxis [ação e reflexão] transformadoras. É neste sentido que estabelecemos inquietações fundantes, perguntas-motoras que norteiam a pesquisa continuada da Trupe Sinhá Zózima. A saber: ____________________________ 9

Verificar o livro A poética do espaço de Gaston Bachelard.

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[1] No que, de fato, concerne a ideia de teatro do encontro proposta pela Trupe Sinhá Zózima? [2] De que modo a pesquisa teatral do ônibus como espaço de criação cênica concerne numa práxis transformadora? [3] No que, de fato, concerne a residência de um grupo de teatro nas proximidades de um complexo de terminais de ônibus numa das regiões mais abandonadas da cidade de São Paulo? [4] De que modo envolver/integrar passageiros de ônibus no processo de criação e pesquisa continuada da Trupe Sinhá Zózima? [5] Como criar cenicamente a partir de narrativas de vida de passageiros de ônibus? [6] Como criar uma dramaturgia que não seja uma estereotipia das narrativas de vida destes passageiros de ônibus?

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Sabemos que muitos ainda não conhecem a pesquisa cênica do grupo, por isso na construção dessas fagulhas optamos por apresentar as matrizes teóricas e artísticas que nos orientam. E também desvelar aspectos que norteiam os nossos sonhos, como verdadeira utopia que nos alimenta [o poeta é o que sonha o que vai ser real].10 Assim, neste cortejo, nesta romaria, convidamos você à leitura atenta dos nortes de nossa pesquisa. Aqui adentramos uma sede que só pode ser saciada com pequenos goles d’água. É preciso olhar as partes, adentrá-las como se estivéssemos conhecendo uma casa. O nosso poema precisa ser declamado até o último verso. Bebemos a água de poços que muitos já beberam, porém cremos na vida vivida e que podemos desenhar itinerários próprios mesmo revisitando vozes de tempos mais longínquos. Como foi desvelado num poema de Drummond, o nosso tempo é o tempo presente. E é exatamente por estarmos imersos no presente que olhamos para o passado e o futuro com voracidade, sem medo. Com fome e sede. Se nos perguntassem, agora, que utopias movem a Trupe Sinhá Zózima, temos algumas respostas advindas de nossas reflexões: A pesquisa continuada move o trabalho para novos objetivos, porque os propósitos e as convicções ampliam-se ao longo dos anos. A princípio, desenvolvíamos uma pesquisa que resultava em montagens cênicas apresentadas em ônibus especialmente preparado para a apresentação. A seleção de dramaturgia, como na peça Cordel do amor sem fim, apresentada mais de 300 vezes no Brasil e na Europa, aconteceu mediante conversa com passageiros de ônibus de diversas linhas na cidade de São Paulo, do centro à periferia. Partimos de uma pergunta ao passageiro de ônibus: Que peça de teatro você gostaria que fosse encenada? Em geral, os passageiros nunca citavam um texto específico. Os textos dramatúrgicos não são muito conhecidos entre passageiros de ônibus. Mesmo textos populares como O Auto da Compadecida de Ariano Suassuna são lembrados mais como minissérie ou filme exibidos na televisão. Muitos não sabem o que é uma peça de teatro. Neste sentido, as respostas que recebemos estavam mais próximas de temas ou enredos que os passageiros gostariam que fossem montados. [Esta ação nos coloca em maior proximidade com a prática de Bertold Brecht quando reunia a comunidade para que sugerisse ao grupo o que desejavam que fosse encenado. Também nos coloca em proximidade com o método dialógico de Paulo Freire, quando o educador propõe os temas geradores para chegar aos conteúdos programáticos da educação. ____________________________ 10

Coração civil, música de Milton Nascimento e Fernando Brant.

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Os educadores saem pelas casas da comunidade e em conversas com o povo descobrem temas que vão orientar o conteúdo de suas aulas. Por isso, tempos depois, foi inevitável uma aproximação com a pedagogia freireana]. Foi assim, a partir das respostas dos passageiros de ônibus, que chegamos ao texto de Claudia Barral, dramaturga baiana. O texto nos leva a um universo rústico, interiorano, em que o Rio São Francisco surge quase como um personagem na peleja amorosa que se desenrola na história da peça. Interessante que, mesmo num universo urbano de uma grande metrópole, os passageiros tenham, em sua maioria, escolhido um tema voltado para uma realidade interiorana. Neste trabalho, o ônibus recebeu tecidos e lampiões, foi – sem grande modificações na estrutura – preparado para a encenação. A montagem foi encenada por atores profissionais, integrantes do grupo. Foi necessário trilhar caminhos para um trabalho corporal e vocal preciso e específico. A montagem foi encenada em um ônibus em movimento, configurando um grande paradoxo: as mazelas da grande metrópole x a vida rural evocada pela peça. As janelas do ônibus permaneciam abertas, a cidade era vista. A montagem no ônibus atravessava a cidade, a grande cidade. O interior deste ônibus reinventado funcionava com uma espécie de transportador de metáforas. Um ninho. [“O mundo é o ninho do homem”, afirma Gaston Bachelard].11 O ônibus transportava uma força expressiva que também transporta outras forças expressivas. Etimologicamente, o termo metáfora deriva da palavra grega metaphorá.12 Neste sentido, metáfora surge enquanto sinônimo de “transporte”, “mudança”, “transferência”. Metáfora é uma figura de estilo que possibilita a expressão de sentimentos, emoções e ideias de modo imaginativo e inovador por meio de uma associação de semelhança implícita entre dois elementos. De fato, e tendo como base o significado etimológico do termo, o processo levado a cabo para a formação da metáfora implica necessariamente um desvio do sentido literal da palavra para o seu sentido livre; uma transposição do sentido de uma determinada palavra para outra, cujo sentido originariamente não lhe pertencia. Do espectador, no caso o passageiro de ônibus, espera-se, no acompanhamento da interpretação dos atores, uma rejeição prévia do sentido primeiro da encenação, para a apreensão de outro[s] sentido[s] sugerido[s]. Com isso, a encenação movimentava-se com o objetivo de tecer com o passageiro de ônibus itinerários para a composição de metáforas. ____________________________ 11

12

Verificar o livro A poética do espaço de Gaston Bachelard. Meta significa “sobre” e pherein significa “transporte”.

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Acreditávamos que a intervenção poética dava-se no ato da encenação, no encontro dos artistas-pesquisadores com os passageiros de ônibus. Com o tempo, vimos que a intervenção no cotidiano desses passageiros ocorria desde o primeiro momento em que íamos perguntar que peças eles gostariam que fossem encenadas. E que também, no momento posterior, quando estes passageiros conversavam com os artistas-pesquisadores [ainda com os paramentos dos personagens que interpretavam] ocorria, por assim dizer, com alguma espontaneidade, o que Martin Buber nomeia como encontro. Essas conversações pós-apresentação versavam quase sempre sobre o sonho que os passageiros de ônibus tinham de “fazer” arte. Um dia uma mulher disse, com alguma timidez, que a filha, ainda menina, cantava. Todavia, esta fala, despontava como uma fresta [das mais pequeninas] para uma utopia vívida e alimentada dentro daqueles olhos. Ou seja, dizer “a minha filha canta” é dizer, outrossim, que ali, naquele ônibus, onde todos pareciam tão desprovidos de poder econômico, havia um espaço [mesmo que fosse apenas uma fresta] para a capacidade poética do ser humano de cingir utopias e [quem sabe] de lutar por elas. Parece-nos que a metáfora adquiria a força de metamorfose [do grego metamórphosis, mudança]. De algum modo, o nosso ônibus, o nosso teatro, transportava metáforas que potencialmente podiam resultar em metamorfoses. Claro que metamorfose aqui ganha um sentido outro; significa mudança como novo posicionamento diante das utopias. É como se, de algum modo, a nossa práxis despertasse um entusiasmo [do grego en + theos, literalmente “em Deus”, que originalmente significa inspiração, coragem] que norteava para uma transformação. É certo que não tínhamos poder nenhum sobre esta transformação, nem sobre o seu real significado. No entanto, não podíamos deixar de notar neste entusiasmo um reconhecimento dos passageiros de ônibus de que [também eles] tiveram, em algum momento de suas vidas, um desejo ou inquietação que se movimentava para a arte. Na maior parte dos casos, o trabalho e outras obrigações os obrigaram a entender este exercício da arte como coisa passageira, que não lhes pertencia. Talvez este teatro no ônibus proposto pela Trupe Sinhá Zózima, e também por outros movimentos artísticos como o antigo MCP13 [Movimento de Cultura Popular], tenha esta capacidade de, com encenações teatrais, des____________________________

13 O Movimento de Cultura Popular exerceu um papel fundamental na promoção, divulgação e no ensino da arte, sobretudo aproximando-a e tornando-a acessível às massas populares e contribuiu, por meio dela, para o despertar da consciência política e crítica da população.

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pertar os passageiros para outras dimensões da vida que lhes foram negadas ou tiradas em razão da necessidade urgente de sobreviver [ter casa e comida]. Na pesquisa teatral como vivência, deparamo-nos com a necessidade de assumir uma atitude de desafiar-nos em fronteiras outras, com o intuito de radicalizar este projeto fundamentado na ideia de encontro. Pautamos nossa pesquisa numa ação experimental [fora do perímetro] que visa destrinchar o ônibus como espaço cênico, local onde metáforas são transportadas a cada ação, gesto e olhar. Local onde metáforas são tecidas, ato corajoso de recriar a cidade. Quando propomos a radicalização do projeto, buscamos adentrar as matizes do termo radical, que deriva da palavra latina radix, que significa “raiz”. Há, no entanto, vários sentidos para o termo, dependendo da área na qual ele é aplicado. Radical ou raiz é a parte do verbo ou substantivo que exprime a ideia geral da palavra, ou seja, seu significado mesmo sem o prefixo ou sufixo. É a parte invariável do vocábulo. O radical irmana as palavras da mesma família e lhes dá uma base comum de significação. É o termo tradicionalmente usado para designar o que antes se denominava morfema lexical. As outras formas resultam da ligação ao radical de certos elementos que podem ser uma desinência, um afixo, seja este um sufixo ou um prefixo, ou uma vogal temática. Ser radical, neste sentido, significa cavoucar a terra e descobrir as raízes que nos sustentam. Significa buscar alicerces. O projeto teatral da Trupe Sinhá Zózima coaduna a ação poética/política de promover conversações entre passageiros de ônibus. Conversar é versar as raízes da vida, desvelar que todos têm uma história singular e significativa, que somos protagonistas de narrativas por vezes enclausuradas no fluxo interminável dos mecanismos opressores da barbárie capitalista.

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MCP Inserido no turbilhão de crescimento político e cultural, estruturou-se nos anos 1960, em Pernambuco, o Movimento de Cultura Popular [MCP] que abriu espaço para o pensamento renovador em educação e, conforme Cunha e Góes [1985], absorveu alguns intelectuais com experiências em lutas políticas.14 Estes se transformaram em intelectuais orgânicos de uma política voltada para a cultura popular. Esse movimento foi capaz de pôr em pauta questões fundamentais para o curso da história brasileira, tais como: o confronto entre educação elitizada e cultura elitizada de um lado, e educação popular e cultura popular, de outro [Batista Neto, 1987].15 Este movimento teve um amplo alcance na cidade do Recife e depois no estado de Pernambuco e não só conseguiu desempenhar um papel fundamental no âmbito educacional, na promoção e divulgação culturais como também na articulação e participação da população nos programas e atividades desenvolvidos por ele.16 ____________________________ Verificar CUNHA, L. A.; GÓES, M. de. O golpe na educação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. Verificar BATISTA NETO, J. “MCP: o povo como categoria histórica”. In: REZENDE, Antônio Paulo (org.) Recife: que história é essa? Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 1987. 16 Verificar o artigo Refletindo sobre o Movimento de Cultura Popular: espaço para a arte? de Maria Betânia e Silva. 14 15

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Vimos que é preciso ir além da montagem de peças teatrais e apresentá-las a passageiros de ônibus. É preciso ir além da pesquisa do ônibus como espaço cênico. Descobrimos que é necessário entender e conhecer estas pessoas a quem chamamos de passageiros de ônibus. Não somente no sentido antropológico e sociológico – estas acepções também nos interessam. É necessário entender qual a relação do passageiro de ônibus com a nossa pesquisa teatral. Porque não nos interessa somente encenar para eles, interessanos ouvir suas narrativas de vida, quem eles são, quem eles lembram. Quando a regra é esquecer, precisamos lembrar. Quando a regra é falar, precisamos ouvir. Foi com esta intenção que passamos a residir na região do Terminal Parque Dom Pedro II e Expresso Tiradentes. Foi com esta intenção que realizamos a PRIMEIRA MOSTRA DE TEATRO NO ÔNIBUS. Hoje, ensejamos partir para outra etapa de nossa pesquisa. Movimentamonos, porque movimentar é, segundo as reflexões de Rudolf Von Laban [18791958], o ato de entender o pensamento [mente, cultura] e o movimento do corpo [natureza] como corponectivos, ou seja, trazidos juntos. Na verdade, Laban afirma que “... quando se aprende a raciocinar em termos de movimento” já estamos postulando que pensamento é movimento. Neste sentido, movimentar-se é, sobretudo, ação do corpo, que age e pensa, porque os aspectos físicos, químicos, biológicos, emocionais, intelectuais são parte de um só corpo. Assumir o movimento como pesquisa é comprometer-se com a arte/ vida. Movimentamo-nos a caminho de um teatro do encontro.

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DO ENCONTRO COMO PRINCÍPIO FAGULHAS N. 7

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Carpintaria de Teatro, dança e cantoria, realizada na Praça Fernando Costa ao lado do Terminal Parque Dom Pedro II. Foto por Danilo Dantas.

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PARTE I CONVERSAR

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Para tecer os itinerários que levarão às justificativas do projeto de pesquisa teatral da Trupe Sinhá Zózima vamos lançar mão de vários estudos, artigos, poemas e textos literários que norteiam e alimentam as reflexões do grupo. Em alguns casos, apresentaremos retalhos, pedaços inteiros de textos, sempre fazendo referência aos seus respectivos autores, até tecer, por final, um manto, um albornoz, de nossos propósitos e sonhos, dando pistas do que entendemos como teatro do encontro, por que iniciamos uma residência artística na região do Terminal Parque Dom Pedro II e Expresso Tiradentes e por que desejamos criar cenicamente a partir de narrativas de vida de trabalhadores, passageiros de ônibus.

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Não nos envergonharemos em habitar um lugar mais próximo à poesia, sabendo que existem muitas maneiras de dizer-expressar o que almejamos. Estas maneiras não se restringem, acreditamos, a um modo padrão de expressão e, de certo, contemplam a multiplicidade de vozes e cantorias. Que não cantamos de um só modo, isto é certo. Há muitos modos de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira, conta-nos Manoel de Barros. Porém, estaremos atentos ao que afirmam os pesquisadores de áreas diversas do pensamento humano, sobretudo, aqueles com os quais temos dialogado nos últimos anos: Paulo Freire, Martin Buber, Michel de Certeau, Augusto Boal, Eclea Bosi e Gaston Bachelard. Estamos, em especial, atentos aos poetas, aqueles que sonham o que vai ser real. Porque são os versos que coadunam com a fala do povo que mais têm alimentado o útero de nossas utopias: Cora Coralina, Thiago de Mello, Manoel de Barros, Patativa do Assaré, Solano Trindade, Adélia Prado, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Mário Quintana. E também Vladimir Maiakovski, Federico García Lorca, Pablo Neruda e Bertold Brecht. Com os anos, o nosso projeto cênico começou a habitar algo sem nome, afeito aos olhos de passageiros de ônibus, aqueles que nos olham com vontade de devorar o que dizemos e expressamos com o corpo em pé, quase em pé, no ônibus em movimento. Aqui a palavra escrita é fala. E se queremos reinventar o espaço atroz e redesenhá-lo com o teatro é preciso também reinventar a fala. Se há alguma obrigação com a fala e com a escrita esta obrigação é o dever de reinventá-la na língua de Dona Amália, passageira de ônibus que parte do Terminal Parque D. Pedro II e vai até o Jardim Etelvina, nos cafundós da Zona Leste de São Paulo, periferia da periferia: extremos. A língua de Dona Amália é a conversação. É que Dona Amália, mulher de 63 anos, quando tem oportunidade, conta que trabalhou numa fábrica de cigarros e no último dia de trabalho da semana ganhava um maço de cigarros, mas não fumava. Assim aquele cigarro-esmola não servia de nada. Dessem um pão, um quilo de feijão. Aquilo era agrado bobo do patrão para enganar os bestas. Porém, em verdade, não é muita gente que conversa no ônibus de Dona Amália. Com isso, ela não pode contar muitas coisas em sua língua. Porque a maior parte do tempo Dona Amália conversa apenas com o silêncio. Talvez se Drummond reescrevesse aquele poema que

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começa assim: “Este é tempo de partido, tempo de homens partidos”, escreveria: Este é tempo de silêncio, tempo de homens calados, tempo de homens sozinhos. Dona Amália, como quase todo mundo, quer conversar, con-versar e versar. Viver a vida com verso. Conversação. Versar a ação. Versar a vida. Quando vamos ao ônibus com o nosso teatro queremos conversar, versar a vida. Aprendemos que a conversação tem força e, assim, podemos reinventar os dias que parecem [e são] atrozes. Conversar é o primeiro passo para um teatro do encontro.

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PARTE II DA CONDIÇÃO DE SUJEITO17

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É neste sentido, de tempo de homens calados, isolados, que o professor Franklin Leopoldo e Silva afirma que é possível estar junto de outra pessoa sem viver junto com ela, isto é, sem partilhar valores de vida, sem cultivar aspirações comuns, sem esboçar qualquer movimento em direção a uma vida em comum, a uma convivência. Basta olharmos ao redor, explica o estudioso, para verificar que há inúmeros exemplos de como se pode viver em sociedade sem viver em comunidade, e isso vale tanto para grupos sociais menores como a família, quanto para a sociedade em geral. A razão histórica dessa situação é o individualismo como princípio da vida social, característico da sociedade moderna, que se organiza em torno do indivíduo e de seus direitos naturais, entendendo que a individualidade é a condição natural do ser humano. Neste sentido, o grupo social seria a agregação de indivíduos com a finalidade de defender de modo mais eficaz os direitos de que cada um é detentor. Para Leopoldo e Silva, há nisso um contraste com a sociedade antiga e medieval, em que cada um traz em si o lastro comunitário que o liga aos demais, motivo pelo qual os gregos, por exemplo, não concebiam que um humano pudesse viver só. Uma vez que na modernidade desapareceu essa relação intrínseca entre os indivíduos e a cidade, já não podemos dizer que a organização política seja uma comunidade, porque os vínculos que os indivíduos mantêm entre si e com o grupo social são extrínsecos. ____________________________ 17 Aqui partimos da leitura do artigo “Viver junto” do professor Franklin Leopoldo e Silva. Verificar SILVA, Fanklin Leopoldo e. Viver junto. Revista E – SESC SP, v. 17, n. 1, 2010, p. 37 – 39.

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Conforme o estudioso, o indivíduo moderno não é, essencialmente, cidadão, ou seja, ele não vive intimamente a experiência ética e política de ser como o outro, em termos igualitários, de participar de uma totalidade; apenas segue padrões de democracia formal em relação aos quais não há diferença entre a convivência e a conveniência. Isso tem consequências de grande alcance, alerta Leopoldo e Silva. Estando o indivíduo no centro do grupo social, é natural que entenda que o interesse próprio deva predominar. Ele é encorajado pela ideia moderna de que a sociedade progride por via dos empreendimentos individuais, e a busca de satisfação do interesse particular é o que move a todos. Nas sociedades contemporâneas, como as relações devem ser objetivas e sistemicamente reguladas por mecanismos de controle social, tanto o eu quanto o outro se transformam em elementos de uma funcionalidade sistêmica, e os vínculos tendem a ser objetivamente utilitários. Para o professor Leopoldo e Silva, é preciso entender ainda que a sociedade de indivíduos é também uma sociedade de massa. Há indivíduos, mas as diferenças tendem a se anular: os indivíduos são separados, mas homogêneos. Esse aparente paradoxo se explica pelo fato de que a separação é necessária para a manutenção da particularidade individual, mas não há qualquer interesse dos poderes estabelecidos no cultivo de uma individualidade singular, que só viria a se constituir como obstáculo à administração e controle da sociedade como sistema. Por isso viver em sociedade não envolve solidariedade, que dependeria de movimento interno dos sujeitos sociais, mas simplesmente a observância de padrões de comportamento externo que garantam a justaposição de interesses. Não é por acaso que os teóricos da sociedade política moderna se preocuparam tanto com a questão do contrato como instrumento de regulamentação objetiva da experiência coletiva. Dentre essas regulações objetivas está a tolerância. Como já está inscrito na própria palavra, trata-se menos de compreender o outro do que de concordar com certas diferenças, desde que essa pluralidade atenda às conveniências de uma sociabilidade relativamente estável. Não significa aceitar o outro; antes, trata-se de relegá-lo à sua solidão, esperando que ele me deixe viver a minha: cada um com as suas crenças, que nos isolam uns dos outros. Esse tipo de tolerância é abstrato porque o outro é objetivado como diferente e não assimi-

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lado como uma subjetividade singular. A solidão numa sociedade massificada encoraja o indivíduo a buscar alívio e abrigo em grupos sectários, nos quais a homogeneidade representa a segurança que não está presente na experiência autêntica da diversidade. Nesses agrupamentos restritos e de convicções predefinidas, vigora um simulacro de solidariedade que, de fato, não é outra coisa senão a uniformidade de pensamento, portanto, a ausência de liberdade. Leopoldo e Silva prossegue: o outro só é aceitável quando reproduz a minha individualidade e, nesse sentido, viver junto significa a justaposição de unidades em série, como os números. Aquele que é externo à seita, e que afirma outra individualidade em vez de reproduzir a do grupo, não é aceito. Por isso a tolerância é frágil: temos de nos lembrar continuamente de que devemos praticá-la, mas é muito difícil fazê-lo inteiramente. Os direitos humanos padecem de uma contradição permanente: eles estão na origem das grandes proclamações das revoluções modernas. E aparecem como princípios fundamentais. Mas a prática nunca foi consistente com a integridade formal dos princípios e, por isso, experimentamos concretamente o antagonismo entre as consequências e as grandes formulações fundadoras da modernidade política. Princípios não são guardiões adequados da dignidade; esta só pode ser preservada se o valor que encerra tornar-se critério concreto da vida em comum. Por razões análogas, a globalização não aproxima as pessoas. Aliás, seria ingênuo supor que tal motivação estivesse na sua origem. A globalização é uma reengenharia: ela redesenha os contornos externos das sociedades para que todas possam pautar-se pelas mesmas referências de ordem econômica, o que propicia um controle global, mas não uma integração de fato. Aqui também as regras objetivas de administração do sistema prevalecem sobre a realidade das relações entre pessoas ou grupos. A dificuldade de viver junto é histórica. O ser humano não está essencialmente destinado ao isolamento ou à comunidade. Movido pelas condições objetivas da história vivida, ele, subjetivamente, constrói uma coisa ou outra, isto é, se constitui como indivíduo separado ou como pessoa solidária. Não posso abstrair os fatores objetivamente históricos [sociais, econômicos] que me im-

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pelem ao isolamento e até mesmo à hostilidade em relação ao outro, como é próprio de uma sociedade competitiva. Mas também não estou necessária e fatalmente determinado a me conformar aos modelos de vida que me são oferecidos. A liberdade não é dada; ela se faz num exercício difícil. Viver junto é um exercício de liberdade, e isso é tanto mais verdadeiro quanto mais as condições sociais impõem a perspectiva contrária. A esperança é de que o indivíduo contemporâneo possa recuperar a condição de sujeito da qual foi destituído no contexto de degradação ético-política nesta fase da modernidade. Para isso é necessário mudar a si mesmo e mudar as coisas, isto é, tornar-se novamente sujeito da sua história e da História, para que seja possível construir outro modo de vida, conclui o professor Franklin Leopoldo e Silva.

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PARTE III REDESCOBRIR O OUTRO18

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Em uma análise profícua a respeito da problemática do homem, o filósofo austríaco de origem judia, Martin Buber enfrentou a acepção de individualismo e coletivismo, afirmando que o primeiro só entende uma parte do homem e o segundo entende o homem só como uma parte. Para ele nenhum dos dois alcança a totalidade. O individualismo vê o homem em relação consigo mesmo, e o coletivismo nem vê o homem, pois vê apenas a “sociedade”. O primeiro distorce o rosto do homem, o segundo o mascara. Ambos são a expressão e conclusão da união do abandono cósmico e social, do medo do universo e da vida, que tem por resultado uma constituição existencial de solidão tal como nunca existiu antes. Porém, para Buber, somente quando o indivíduo conhece o outro em sua alteridade, como homem, experiência a partir da qual irrompe na direção do outro, conseguirá romper a solidão, em um encontro estrito e transformador. Buber insiste que o fato fundamental da existência humana não é nem o indi____________________________ Verificar BORGES, Rudinei. No principio é a relação: encontro e diálogo no pensamento de Martin Buber. 2005. Trabalho de Conclusão de Curso [Licenciatura Plena em Filosofia].

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víduo, como tal, nem agregado como tal. Cada uma dessas categorias, considerada em si, não passa de uma abstração. O indivíduo é um fato da existência, só na medida em que ele se coloca em uma relação viva com outros indivíduos. O que é peculiarmente característico do mundo humano é, antes de tudo, que nele algo acontece entre um ser e outro. A característica existencial do mundo humano é enraizada no voltar de um ser em direção do outro para comunicar-se dentro de uma esfera comum, mas que ao mesmo tempo transcende a esfera especial de cada um. Essa categoria existencial é a categoria relacional do entre, que é estabelecida a partir da existência do homem. É essa categoria primordial da realidade humana. É a partir de acepções como as propostas por Martin Buber que a Trupe Sinhá Zózima tece as suas próprias indagações: Que tem o teatro com a ideia de encontro? É possível, no bojo da encenação que visa experimentar espaços outros, como o ônibus, tecer ações que configurem, de fato, um olhar para o outro, o diálogo, o encontro? Que é, de fato, encontro? Para exprimir a realidade, que liga o homem ao homem, Buber criou o termo especial zwischenmenschlich [entre os homens ou inter-humano]. No interhumano, um sujeito se defronta efetivamente com o outro, e nesse confronto, que não é simples experiência psicológica, há uma realidade em que os dois sujeitos convivem. A principal característica dessa esfera é a espontaneidade, em que toda aparência, toda “dissimulação” seria fatal. No interhumano, a verdade assume uma dimensão quase corpórea, pois, o homem se comunica com o outro naquilo que eles são. Somente assim a intercomunicação existencial se torna possível, isto é, o diálogo autêntico, em que o outro se afirma como aquilo que realmente é e se confirma em sua natureza de criatura. No pensamento buberiano, a existência do homem emerge da conversa, do diálogo, do encontro dialógico, da esfera do interhumano. Consoante essa análise, o diálogo determina a palavra como a interação entre homens, tratase de uma categoria antropológica, porque instaura o desvelar do entre-dois, do Eu e Tu. No diálogo a palavra não é mais logos, puramente anunciador, pois fundamenta a existência; ela vai além da subjetividade, estabelecendo uma dimensão ontológica – o interhumano. O logos não é simplesmente razão, princípio de ordem, porém em virtude de seu vínculo essencial com a práxis, ele é a palavra responsável pelo desvendar da existência humana como coexistência. O ser humano existe mediante o encontro, a relação.

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O homem como ser-ao-mundo não é um ser-em-si, mas essencialmente uma abertura. Ele é abertura graças à palavra originária. O homem instaura o emergir dinâmico de sua existência pela palavra. Como manifestação do si mesmo, o logos torna-se uma abertura ao outro, dia-logos. E somente quem toma a decisão de proferir a palavra da relação, a palavra-princípio Eu-Tu, poderá fundar o “nós essencial”, do autêntico interhumano. Aproximação, contatos, experiências e reações comuns definem o social, este implica um estar-umao-lado-do-outro, enquanto que proximidade, relação dialógica, responsabilidade, decisão, liberdade, presença no face a face definem o interhumano que é o estar-junto-com-o-outro. Entretanto, Buber observa na humanidade uma profunda crise, causada por uma ruptura que separa os homens uns dos outros. E isto demonstra a atualidade da Filosofia do Encontro quando colocada diante da sociedade individualista e consumista do nosso tempo. Conforme analisa o pesquisador Newton Aquiles Von Zuben, a filosofia buberiana previu uma nova tarefa que se apresentou ao pensamento humano e aspira à implantação de uma nova dimensão do mundo, a dimensão dialógica no homem.19 As grandes transformações e os avanços tecnológicos que caracterizaram este início do século XXI trouxeram em seu bojo muitas vantagens e também grandes ameaças. A sociedade contemporânea naufraga em um grande mar de desprovidos, de milhões de miseráveis. As injustiças sociais, o desemprego, a violência, a fome, as guerras e os desastres ecológicos, por exemplo, apontam para uma situação degradante. O planeta corre o risco de entrar em colapso. Inúmeras pesquisas apontam que a doença do início do século XXI é o stress conjugado a depressão, e isto ocorre como consequência do enfraquecimento das relações humanas e da “obrigação diária” estabelecida pelo mercado de as pessoas provarem que são competentes. Assistimos atualmente a um processo de enrijecimento gradual do individualismo. Os avanços tecnológicos e o crescimento das cidades têm ocasionado o isolamento das pessoas em detrimento do encontro e do diálogo com o outro. Podemos caracterizar o homem deste início de século como um ser isolado, preocupado consigo e longínquo da realidade em seu torno. ____________________________ 19

Verificar ZUBEN, Newton Aquiles von. Martin Buber: cumplicidade e diálogo. Bauru: EDUSC, 2003.

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O homem contemporâneo coloca-se diante das coisas em vez de confrontá-las no fluxo da ação recíproca, preferindo um relacionamento unidirecional entre o Eu (egótico) e um objeto manipulável (lsso). Buber, contudo, posicionou-se de maneira radical ao analisar a atitude Eu-Isso. Para Buber “aquele que vive somente com o Isso não é homem”.20 O sujeito humano atinge o seu ser através do “proferir Tu” (Dusagen) e não do “proferir Isso”; em outras palavras, isto significa que o homem atinge o seu ser pela relação. O homem, na relação Eu-Tu, integra-se completamente com o mundo, em uma totalidade caracterizada pelo envolvimento, pela integração dos opostos, desaparecendo as peculiaridades e contradições individuais. Para Buber, “a palavra-princípio Eu-Tu só pode ser proferida pelo ser na sua totalidade. A união e a fusão em um ser total não pode ser realizada por mim e nem pode ser efetivada sem mim. O Eu se realiza na relação com Tu; é tornando Eu que digo Tu”. Para Zuben, na obra buberiana a volta à segurança, o reencontro com o verdadeiro destino que a humanidade descobriu para si serão assegurados pela vida em diálogo.

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PARTE IV DO PRÍNCIPIO DIALÓGICO

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Um dos eventos mais significativos do início do século XX foi a redescoberta do princípio dialógico, uma migração do lugar do pensamento fundada na afirmação de que não é o sujeito a chance primordial do ser, mas sim a sua vulnerabilidade à alteridade. A obra de Martin Buber (1878-1965) é parte desse empenho, afirma Bartholo Jr.21 Para Buber, a existência humana emerge do encontro dialógico que determina a palavra como interação entre os homens. No Brasil, dois importantes pesquisadores vislumbraram na proposta de Martin Buber um manancial imprescindível para a elaboração de suas reflexões, são eles: O educador Paulo Freire e o autor e diretor de teatro Augusto Boal. Intersecções com o pensamento de Buber estão presentes em obras relevantes como Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, e Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas, de Augusto Boal. ____________________________

20 21

Verificar BUBER, Martin. Eu e Tu. Tradução de Newton Aquiles von Zuben. São Paulo: Cortez e Moraes, 1977. Verificar BARTHOLO JR., Roberto. Você e eu: Martin Buber, presença palavra. Rio de Janeiro: Garamond, 2001.

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A redescoberta do princípio dialógico marca decisivamente a história da Filosofia, uma vez que a maioria das filosofias ocidentais não são centradas na alteridade, no outro, mas na identidade, no eu em si.22 A incisiva afirmação de Buber – apresentada em sua obra Eu e Tu23 [1923] –, de que, sem o Tu, o Eu não é possível diz respeito a uma verdadeira revolução. Isto alude à indubitável disponibilidade do homem para relacionar-se, para encontrar-se. Com efeito, a fala mais propriamente humana é a resposta à locução de um Tu, no encontro face a face com a pessoa do outro. A existência humana é dialogante. Como afirma Buber, “a palavra–princípio Eu-Tu só pode ser proferida pelo ser na sua totalidade. O Eu se realiza na relação com o Tu; é tornando Eu que digo Tu”.24 O homem é essencialmente uma abertura graças à palavra originária25 e instaura o emergir dinâmico de sua existência pela palavra. Por este motivo o Eu [homem] precisa pronunciar-se e dirigir-se ao Tu (outro), a fim de que confirme sua existência, utilizando a palavra-dialógica, a palavra em sua ação totalizadora. Para Buber a palavra é portadora do ser. Não é outra coisa, senão palavra de proximidade, resposta que precede a questão, palavra de responsabilidade pelo outro, palavra entre; não palavra sobre ou palavra imperativa e dominante que explora o outro, tratando-o como mero objeto, para extrair-lhe a alteridade. Palavra, gestante de reciprocidade, pela qual o Eu sai em direção ao Tu. Assim está, em ato, instaurada a reciprocidade no existir dialógico de um Eu com um Tu.

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PARTE V DA AÇÃO DIALÓGICA

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O educador Paulo Freire compreende o diálogo como o alicerce fundamental ____________________________

Verificar BOFF, Leonardo. Virtudes para um outro mundo possível, vol. I: Hospitalidade: direito e dever de todos. Petrópolis: Vozes, 2005. 23 O livro Eu e Tu (1923), publicado originalmente em alemão, é uma ontologia da relação, ultrapassando a simples descrição fenomenológica das atitudes do homem no mundo ou de uma fenomenologia da palavra. A palavra, pela intencionalidade que a anima, é o princípio ontológico do homem como ser dia-logal e dia-pessoal. A base de Eu e Tu, como ressalta Zuben na tradução da obra para o português, não é constituída por conceitos abstraídos de qualquer referência a concretude do existir; é a própria experiência existencial se revelando. O filósofo austríaco-judeu fundamentou uma verdadeira fenomenologia da relação, cujo principio ontológico é a manifestação do ser ao homem que o intui imediatamente pela contemplação. A palavra, como portadora de ser, é o lugar onde o ser se instaura como revelação. 24 Verificar BUBER, Martin. Eu e Tu. Tradução de Newton Aquiles von Zuben. São Paulo: Cortez e Moraes, 1977. 25 A palavra originária, palavra fundante, instaura a relação, porque somente a partir da palavra proferida o homem abre-se ao outro, colocando-se em posição de encontro. 22

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de seus métodos educacionais. Sem o diálogo não há comunicação e sem esta não há verdadeira educação. Em seu importante ensaio Pedagogia do Oprimido [1970]26, o pensador brasileiro apresenta as bases de uma teoria da ação dialógica. Para ele a dialogicidade é a essência da educação como prática da liberdade. Por isso afirma que se ao dizer suas palavras, ao chamar o mundo, os homens o transformam, o diálogo impõe-se como o caminho pelo qual os homens encontram seu significado enquanto homens; o diálogo é, pois, uma necessidade existencial.27

Para Freire “quando tentamos um adentramento no diálogo como fenômeno humano, se nos revela algo que já podemos dizer ser ele mesmo: a palavra”. Não há palavra verdadeira que não seja práxis, ação e reflexão em uma interação radical. Segundo Carlos Alberto Torres, no pensamento freireano, ao se estabelecer um diálogo, busca-se que o homem pronuncie sua palavra, e este pronunciar sua palavra significa começar a transformar o mundo,28 porque existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. Dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens. Precisamente por isto, ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizê-la para os outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra dos demais. “O eu antidialógico, dominador, transforma o tu dominado, conquistado, num mero isto”. O eu dialógico, pelo contrário, sabe que é exatamente o tu que o constitui. Sabe também que, constituído por um tu – um não-eu –, esse tu que o constitui se constitui, por sua vez, como eu, ao ter no seu eu um tu. Não há, portanto, na teoria da ação dialógica, um sujeito que domina pela conquista e um objeto dominado. Em lugar disto, há sujeitos que se encontram para a pronúncia do mundo, para a sua transformação. A conquista implícita no diálogo é a do mundo pelos sujeitos dialógicos, não a de um pelo outro. Tratase da conquista do mundo para a libertação dos homens. ____________________________

Em Pedagogia do Oprimido Freire analisa minuciosamente as condições de alienação do homem, os mecanismos de institucionalização e manipulação do conhecimento, as ações culturais antagônicas, a relação consciência-ideológica e a contradição opressores-oprimidos. Carlos Alberto Torres verifica que a questão da alteridade é esboçada a partir de uma fenomenologia dialógica, muito influenciada, pela dialética da alteridade de Martin Buber. 27 Verificar FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 32. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. 28 Verificar TORRES, Carlos Alberto. Leitura crítica de Paulo Freire. São Paulo: Loyola, 1981. 26

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No pensamento freireano, a dialogicidade da educação não começa quando o educador-educando se encontra com os educando-educadores em uma situação pedagógica, mas antes, quando aquele se pergunta em torno do que vai dialogar com estes. Esta inquietação em torno do conteúdo do diálogo é a inquietação em torno do conteúdo programático da educação. A inquietação em torno do conteúdo programático é o que inaugura o diálogo da educação como prática da liberdade. É o mesmo em que se realiza a investigação do que chamamos de universo temático do povo ou o conjunto de seus temas geradores. Enquanto na prática bancária da educação, antidialógica por essência, por isto, não comunicativa, o educador deposita no educando o conteúdo programático da educação, que ele mesmo elabora ou elaboram para ele, na prática problematizadora, dialógica por excelência, este conteúdo, que jamais é depositado, se organiza e se constitui na visão do mundo dos educandos, em que se encontram seus temas geradores.29

____________________________

29 No método dialógico proposto por Freire, o educador-educando deve propor ao povo por meio de certas contradições básicas, sua situação existencial, concreta, presente, como problema que, por sua vez, o desafia e, assim, lhe exige resposta, não só no nível intelectual, mas no nível da ação.

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Carpintaria de Teatro, dança e cantoria, realizada na Praça Fernando Costa ao lado do Terminal Parque Dom Pedro II. Foto por Danilo Dantas.

Acreditamos que no processo de criação no teatro também é possível partir desta proposta de Paulo Freire. Sobre o que queremos dialogar com os nossos interlocutores, passageiros de ônibus da cidade de São Paulo? As rodas de leitura da filosofia de Buber e da pedagogia de Freire na Trupe Sinhá Zózima foram e são momentos de significativa elucidação, que reorientam a nossa prática e pesquisa teatral. Com isso, não é mais propício somente apresentar peças em ônibus sem entender quem são os sujeitos que conversam gestualmente conosco quando encenamos. É preciso entender este espectador como sujeito e partir para outra práxis, a ação do encontro, que inicia talvez com um espontâneo “Como vai?”. E pode seguir, aos poucos, com partilhas de vivências, narrativas de vida e, quem sabe, pode chegar à reinvenção daquele espaço [o ônibus] que antes parecia não destinado ao encontro.

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TEATRO DO ENCONTRO E UTOPIA FAGULHAS N. 8

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PARTE I DESPERTAR UTOPIAS

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O individualismo exacerbado, marca registrada da sociedade de consumo na qual estamos inseridos, tem afastado as pessoas em suas relações, impedindo um diálogo mais amplo em torno da própria vida, explica o pesquisador Sidnei Ferreira de Vares Vares.30 Não é atoa que alguns pensadores anunciam o fim da história, decretando o esgotamento das utopias e das metanarrativas que marcaram a modernidade. A ideia de que não existem mais classes sociais oculta o sofrimento e ofusca a resistência de milhões de pessoas e grupos espalhados pelo mundo. ____________________________ Partimos, nesta secção, das proposições do pesquisador Sidnei Ferreira de Vares e de sua análise sobre o conceito de utopia na obra de Paulo Freire. Verificar VARES, Sidnei Ferreira. Reprodução e resistência na escola capitalista: ensaios sobre sociologia da educação. Rio de Janeiro: Multifoco, 2010.

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O teatro no Brasil não está isolado desses acontecimentos. A ausência de utopias que nos leve a projetar um futuro mais digno para todos, tem sido discutida por teóricos de todo mundo. Neste sentido, as ideias do educador Paulo Freire parecem indicar alguns caminhos quanto ao resgate da dimensão utópica do homem. O discurso freireano oferece uma generosa dose de criatividade, sonho e luta em prol de um mundo melhor. Com efeito, também a militância teatral passa a ser um veículo estratégico, na medida em que constitui um espaço de diálogo e livre circulação de ideias. O conceito de utopia em Freire fornece alicerce teórico para uma resistência contínua contra a supressão dos sonhos, permitindo a elaboração de um projeto emancipador. Atualmente a expressão “utopia” vem sendo bastante utilizada em discussões acadêmicas, políticas e mesmo em conversas informais. Além de presenciarmos certa banalização da concepção de utopia, assistimos igualmente algumas distorções semânticas que distanciam o termo de seu real significado. Por conta disto, alguns equívocos têm surgido. Originalmente, a palavra utopia deriva do grego, significando “lugar nenhum”. Muito embora possamos entender utopia como aquilo que não tem lugar num determinado momento, mas que pode vir a tê-lo em outro, insistese em relacionar esta expressão a algo irrealizável. Neste sentido, utópicos seriam aqueles que concebem o que não pode ser efetivamente concretizado. Contudo, esta é uma análise negativa, pois tem a utopia como algo sem espaço para sua concretização efetiva. Cabe-nos então perguntar: se a utopia é algo irrealizável, por que o homem caracteriza-se como ser utópico? Por que perdemos tempo projetando utopicamente um algo melhor, se este não se realizará? Qual a relação das artes cênicas com a utopia? Para Vares, parte dos pensadores têm sido reducionistas ao analisar este conceito que, mais do que um vir-a-ser fantasioso, mostra-se como um algo possível. As discussões em torno deste conceito são diversas, o que instiga nosso propósito de verificar qual seu real significado. Num mundo onde se apregoa o fim da história e dos sonhos, reencantar o conceito de utopia é mais do que uma meta: é uma necessidade. Sobretudo, uma necessidade das artes. Atuar artisticamente significa comprometer-se com a não supressão dos sonhos e das utopias. Afinal, vivemos num mundo marcado por profundas desigual-

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dades, onde o número de excluídos e a desesperança têm aumentado significativamente. Buscar uma definição precisa do conceito de utopia não é uma tarefa fácil, como a princípio pode parecer. A utopia parece operar entre dois registros: o sonho e a realidade, mediada pela esperança da concretização. Segundo Teixeira Coelho: [a utopia] não é delirante, nem fantástica. Ela parte, sim, de fatores subjetivos, num primeiro momento, apenas no âmbito do indivíduo. Mas, a seguir, ela se nutre dos fatores objetivos produzidos pela tendência social da época, guia-se pelas possibilidades objetivas e reais do instante, que funcionam como elementos mediadores no processo de passagem para o diferente a existir amanhã.31

Como constata o autor, a utopia oferece uma dimensão subjetiva, uma vez que parte sempre de um indivíduo. Porém, este mesmo indivíduo é produto de uma determinada circunstância histórica, estando situado no tempo e espaço. A utopia possui igualmente uma dimensão objetiva, acompanhando o momento histórico [político, econômico, social e cultural] no qual o indivíduo está inserido. Como bem define Coelho, é guiando-se pelas possibilidades objetivas, e portanto concretas, que a utopia constitui um processo que lança no hoje as sementes de transformações futuras. Dessa forma, está implícita a ideia de mudança, ou seja, a utopia é sempre não-conformação de uma situação instituída, projetando um algo diferente/melhor para o futuro. Contudo, poderíamos dizer que a utopia é semelhante ao sonho? Aparentemente, utopia e sonho podem parecer uma única coisa: porém não são. O sonho é irreal, se restringe à noção de ideia, que pode até ser realizável (dependendo do sonho), mas que não tem obrigatoriedade de se realizar objetivamente. Assim, na maioria das vezes, ao pensarmos sobre sonhos, estamos nos referindo a algo que está fora do real, muito embora seja influenciado por este e possa se concretizar. Quanto à utopia, não podemos tê-la como sinônimo de sonho. Ser utópico é projetar o diferente, ou seja, estar consciente daquilo que determinada coisa ou situação é, e inconformado com este algo ou situação, ____________________________ 31

Verificar COELHO, Teixeira. O que é utopia. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1981. p. 9.

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lançar no agora aquilo que acreditamos que possa vir-a-ser amanhã. Assim, a utopia está atrelada ao esforço de realização, não se reduzindo a noção de sonho, fora da realidade e sem comprometimento com o concretizar. A definição de utopia é encontrada em alguns dicionários, num sentido negativo, conotando um sonho impossível, inalcançável. Ao contrário dessa concepção, alguns autores apresentam uma visão mais ampla sobre o termo, definindo-o como um projeto possível de ser alcançado. Para isso, a imaginação, ou seja, o ato de imaginar, de projetar, faz-se necessário. Como afirma Teixeira Coelho: Mas a imaginação necessária à execução daquilo que deve vir a existir não é a imaginação digamos comum, aquele que se alimenta apenas da vontade subjetiva da pessoa e se volta unicamente para seu restrito campo individual, detendo-se exclusivamente para propor coisas como montanhas de ouro. Tem de ser uma imaginação exigente, capaz de prolongar o real existente na direção do futuro enquanto projeção de um presente a partir daquilo que neste existe e é passível de ser transformado. Mais: de ser melhorado. Essa imaginação exigente tem um nome: é a imaginação utópica. 32

Então, por que a utopia é vista sempre como algo inalcançável? Na verdade, esta parece ser uma ideia intencional, da qual as classes dominantes pretendem distorcer o seu verdadeiro sentido, conscientes de tamanha revolução que pode causar uma utopia posta em prática. A utopia é o primeiro passo para uma prática/ação, para a realização do projeto, que busca o novo inconformado com o que é o presente. Há sempre um excedente utópico a funcionar como mola de um novo ciclo imaginativo, há sempre algo irrealizado que busca realizar-se numa nova projeção. [...] Nesse quadro, fazer agitar a ideia multicolorida da utopia é uma obrigação cotidiana indispensável ao reatamento dos laços com um passado ocasionalmente generoso [porque utópico] de que somos resultado, e necessária como energia, hoje um tanto carente, para a movimentação do projeto que, só ele, pode nos resgatar. 33

____________________________

Verificar COELHO, Teixeira. O que é utopia. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1981. p. 8. Ibidem, p. 12-13.

32 33

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Serão, manifesto em memória do operário Santo Dias da Silva. Outubro de 2012. Foto por Danilo Dantas.

Dessa forma, podemos definir utopia como desejo de mudança, um projeto que parte do inconformismo a uma realidade dada, buscando transformála. Quando optamos por um teatro que encontra vazões para a sua concretização na acepção de utopia, optamos também por um teatro que é agente transformador da realidade. Este teatro – acreditamos – contribui com a transformação da realidade onde está inserido, sobretudo, quando desvela outras versões desta realidade, quando abre uma fresta para a poesia e a imaginação. O chamamento para o reencontro com o caráter poético do humano talvez seja a maior contribuição deste teatro, porque utopia não é sinônimo de fantasia, pelo contrário, é um projeto de mudança real.

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Nas palavras do professor Ênio da Costa Brito: O ponto de partida de qualquer projeto utópico é a realidade ou melhor a insatisfação diante de uma dada realidade. A força da utopia está na sua dimensão simbólica. Claro que a busca de sua realização é necessária. Pode-se descrever a utopia como “a capacidade do ser humano de viver no provisório”.34

Diante da ferocidade do processo globalizante e dos discursos que decretam o fim da história, identificamos a força do ato inovador dos projetos utópicos. Entretanto, o imobilismo promovido pelas políticas do sistema capitalista, que têm ainda um ranço neoliberal, que colocam o mercado como o fio condutor de nossas vidas, degenera a prática/ação e o projeto de um algo melhor. Para Vares, a dimensão utópica do homem é uma forma de resistência frente ao imobilismo produzido pelos discursos contemporâneos conservadores. É neste lugar que assentamos o nosso teatro. É aí que reside o que chamamos de teatro do encontro. Porque o teatro do encontro é, sobretudo, um teatro político. Nas últimas décadas, temos assistido ao avanço do capitalismo pelo mundo. Com a queda do muro de Berlim e a supressão do regime soviético no leste europeu, o capitalismo se tornou o modelo político-econômico predominante, diante de uma esquerda esfacelada. Além disso, presenciamos nos últimos anos o fenômeno da globalização, processo, segundo alguns, irreversível, que prometia a integração econômica em escala mundial, acabando com as fronteiras e limites conhecidos, estabelecendo a ideia de “aldeia global”. Os meios de comunicação têm diminuído as distâncias, outrora percebidas e hoje desconsideradas. A internet pode ser considerada um exemplo de ferramenta global, permitindo acesso aos quatro cantos do mundo. A Guerra do Afeganistão, a derrubada do regime de Saddan Hussein e a Primavera Arábe, assistidos em tempo real por todos, nos dá a dimensão exata do que as novas tecnologias são capazes atualmente. Contudo, os processos acima descritos, longe de resolverem os problemas sociais, têm sido alvo de críticas. A globalização, muito mais do que um processo ____________________________ BRITO, Ênio da C. A Cultura como desafio. Revista Lumen, v. 6, n. 13, 2000, p. 113-124.

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de integração, tem sido descrita por alguns teóricos como um processo perverso que tem levado os países ricos, emergentes e pobres a situações econômicas calamitosas. A implementação das políticas neoliberais, enquanto receituário para viabilizar reformas estruturais necessárias ao desenvolvimento econômico dos países emergentes, tem, na sua maioria, naufragado. Em decorrência disso, explica Vares, o aumento da miséria, fome, desemprego, enfim, de uma série de catástrofes sociais têm efeito imediato em todo o planeta. Os postos de emprego no mundo têm diminuído, enquanto o subemprego e a informalidade no mercado de trabalho aumentam a cada ano. A exclusão dos trabalhadores do processo de produção é uma das características do período pós-fordista. Esse processo [projeto neoliberal] está articulado ao movimento de reestruturação produtiva do capitalismo e da constituição de um novo regime de acumulação capitalista, pós-fordista ou flexível [...] Trata-se, em última instância, de mais um movimento de crise do capitalismo, que foi enfrentado com uma nova estratégia, diferente daquela estabelecida em 1930, que conduziu ao padrão de acumulação fordista. Se naquele momento buscouse a inclusão da massa de trabalhadores na esfera do consumo, acompanhada de uma série de medidas por parte do Estado a fim de possibilitar o êxito dessa estratégia, em 1970 a saída estabeleceu-se em sentido contrário.35

Diante do quadro socioeconômico, descrito acima, as utopias em torno de um mundo mais justo e igualitário têm sido substituídas por soluções imediatas e individualistas. O capitalismo chega ao ápice da crueldade, reforçando ainda mais as desigualdades sociais, que já não eram poucas. Um número reduzido de multinacionais controlam a economia mundial, enfraquecendo os Estados Nacionais através da influência direta que exercem sobre a política de países emergentes, forçando seus governos a seguirem planos econômicos muitas vezes contrários aos seus interesses. Como afirmam MacLaren e Farahmandpur: ____________________________ 35

Verificar MAGNANI, Ivette. Projeto neoliberal e educação. Revista Lumen. v. 7, n.15, 2001, p. 63-70.

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A nova ordem global, governada pelas simbioses do neoliberalismo e da globalização, tem se encontrado como conseqüências sociais e econômicas catastróficas.36

A crença na autorregulação do mercado tem encontrado adeptos e ajudando a construir um legado de miséria pelo mundo. A ideia de que o mercado tem vida própria, mudando com frequência de humor, tira a responsabilidade daqueles que verdadeiramente orquestram esse processo. Os oligopólios comerciais e empresariais que se formaram, ditam as regras de mercado, levando os países mais pobres a condições cada vez piores. As novas tecnologias beneficiam somente as camadas sociais privilegiadas, excluindo os demais. Os valores se esvaem e o “cada um por si e Deus por todos” parece ter definitivamente se tornado o axioma que melhor representa a sociedade capitalista. Se não bastassem os problemas que acabamos de mencionar, no âmbito filosófico, alguns teóricos defendem a ideia de que a história teria se esgotado, ou seja, decretam o fim da história, das metanarrativas e da própria razão, num discurso fatalista que encerra qualquer possibilidade de transformação. Alguns autores conservadores, como Francis Fukuyama [1992], propagam ideologias derrotistas que desarmam discursos de resistências e mudança. Os sonhos de mundo melhor e as utopias sociais perdem espaço para um discurso do fracasso, do “não há mais nada a fazer”. O anúncio do fim da história suprime qualquer projeto utópico. Num mundo onde o ter parece preponderar sobre o ser, a dimensão histórica do homem lhe é praticamente usurpada. Diante dos fatos que se nos apresentam, cabe indagar sobre o papel da utopia num mundo que decreta, através de seus ideólogos conservadores, o fim da história. Talvez, este seja o momento mais propício para um resgate do conceito de utopia. Como bem sugere Goergen: A insistência com que na vida, na arte e na filosofia de hoje, surgem críticas ao estado de coisas traz consigo um traço negativo, de manifesta desconfiança com relação às utopias um dia construídas. Se olharmos melhor, acredito que este discurso do

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36 MACLAREN, Peter; FARAHMANDPUR, Ramin. Pedagogia Revolucionária na Globalização. Traduzido por Márcia de Moraes. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. p. 24.

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fim de tudo traz no seu âmago a necessidade de novos sonhos e novos ideais. 37

Freire atua sobre a vida concreta dos sujeitos, valorizando as experiências e o meio no qual estão inseridos. Seu método de trabalho é um incentivo constante ao despertar de consciência política, muitas vezes oprimida pelas ideologias de classe que impedem uma visão ampla de mundo e de homem. Para tanto, o autor utiliza a linguagem da crítica e luta, combatendo a dominação, não acreditando numa forma universal de dominação e reconhecendo diferentes tipos de opressão. Como afirma Giroux: Tomando a noção de diferença como fio condutor teórico, Freire rejeita a ideia de que existe uma forma universal de opressão. Em vez disso, ele reconhece e situa dentro de diferentes campos sociais formas de sofrimento que referem-se a modos particulares de dominação e, consequentemente, formas diversas de luta e resistência coletiva.38

Já nos seus últimos escritos, Freire parece ir além das explicações ortodoxas de caráter marxista, enxergando a dominação não como simples imposição de uma classe sobre outra, mas como uma combinação de fatores materiais, históricos e ideológicos. A dominação nunca é completa, pois aqueles que a experimentam encontram espaços onde podem se organizar e atuar. Neste aspecto, o teatro pode ser um espaço diferencial, pois permite o diálogo e o despertar da consciência política, em especial quando parte das experiências concretas dos sujeitos, valorizando o meio sociocultural na qual estão inseridos. Assim, o teatro é um ato político, e nunca um ato neutro. Aspecto igualmente relevante no pensamento freireano é a visão emancipatória do autor. Freire desenvolve um tipo de pensamento libertário, que diz sim a vida. Reconhece que a educação é palco de lutas e contradições, mas também enfatiza os espaços onde a organização, consciência e luta podem se fazer valer.39 O teatro é um espaço onde consciência e luta podem se fazer valer. ____________________________

GOERGEN, Pedro. Pós-modernidade, ética e educação. Campinas, São Paulo: Autores Associados, 2001. p. 36. Verificar GIROUX, Henry. Os professores como intelectuais: rumo a uma pedagogia crítica de aprendizagem. Traduzido por Daniel Bueno. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. p. 145. 39 Neste sentido, alguns autores aproximam as ideias de Paulo Freire do pensamento crítico do italiano Antônio Gramsci, principalmente quanto ao caráter político da educação e o papel estratégico da escola na educação política das massas populares. 37

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Infelizmente o conceito de utopia vem perdendo seu significado. Para Vares, com as mudanças econômicas ocasionadas pelo advento da globalização, temos observado a supressão das utopias em detrimento de um discurso conservador e opressor. O homem contemporâneo parece impedido de sonhar e projetar um futuro digno. Não é por acaso que alguns autores falam em fim da história, ficando evidente a intenção de dissolver a dimensão histórica do homem, reduzindo seu poder de luta e transformação. O teatro sofre influências diretas desse processo em andamento. É impossível pensar o teatro como uma ilha isolada, autônoma. Ao contrário, parece que a relação teatro/sociedade ocorre numa via de mão dupla, pois se a sociedade exerce influência sobre o teatro, não é menos verdade que o teatro também exerce alguma influência sobre a sociedade. Mediante a conjuntura que se nos apresenta, acreditamos que as ideias de Paulo Freire possam servir como ponto de partida para um resgate da utopia e consequentemente da possibilidade de resistência e transformação social. Muitos grupos e movimentos teatrais no Brasil foram importantes mobilizadores desta práxis. Porém, esta é uma ação que não finda. A utopia não finda. Acreditar que o mundo pode ser melhor é uma ação contínua. Também nós, com nossas proposições, podemos atualizar esta luta. Para Freire, as forças conservadoras que apregoam o fim das ideologias e o surgimento de uma nova história, onde conceitos como os de classes sociais não se fazem presentes, ocultam as condições sociais concretas. Como afirma o autor: Recentemente forças reacionárias lograram sucesso em proclamar o desaparecimento das ideologias e o surgimento de uma nova história, desprovida de classes sociais e, portanto, sem interesses antagônicos nem luta de classes. Ao mesmo tempo, preconizam que não há necessidade de se continuar falando de sonhos, utopia ou justiça social.40

Esta análise de Freire leva-nos a compreender que a supressão da ideia de classes, assim como o fim das ideologias, desempenham papel fundamental para os propósitos elitistas, fazendo-nos acreditar que não há por que lutar. ____________________________ FREIRE, Paulo. Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: Unesp, 2001. p. 35.

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Porém, Freire não se acomoda diante de tais discursos, ao contrário, propõe uma releitura crítica destes, procurando, por meio de uma visão histórica, saídas concretas que nos leve a mudanças. Aliás, o método dialético adotado por Freire resgata essa dimensão histórica que vem sendo negada ao homem contemporâneo. Em minha visão, “ser” no mundo significa transformar e retransformar o mundo e não adaptar-se a ele. Como seres humanos, não resta dúvida que nossas principais responsabilidades consistem em intervir na realidade e manter nossa esperança.41

Um ator, um dramaturgo, um diretor de teatro, enfim um artista sem esperança é algo inconcebível. Para Freire a esperança é imanente ao homem. Enquanto “ser” inacabado, o homem busca incansavelmente construir-se. Se essa busca fosse desprovida de esperança teríamos uma contradição, pois é ela que impulsiona o homem na sua trajetória. Neste sentido, a esperança deve ser entendida como conceito-chave para a compreensão da teoria freireana. A esperança faz parte da natureza humana. Seria uma contradição se, inacabado e consciente do inacabamento, primeiro, o ser humano não inscrevesse ou não se achasse predisposto a participar de um movimento constante de busca e, segundo, se buscasse sem esperança.42

Não foram poucos os que criticaram Freire, considerando-o um utópico, sonhador, numa conotação negativa de ambas as expressões. Suas ideias eram vistas como românticas, demasiado poéticas. Como aponta Gomes: Apesar de atrair inúmeros seguidores, Freire tem também severos críticos. Stanley (1972), por exemplo, discorda do utopismo inerente à crença no papel mágico que a educação exerce em favor da mudança social. Ademais, acusa a obra de Freire de elitismo disfarçado, uma vez que os educadores desempenham o papel de guias elitistas, conduzindo as pessoas não iluminadas ao seu destino.43

____________________________

FREIRE, Paulo. Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: Unesp, 2001. p. 36 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. 27. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1997. p. 72. 43 GOMES, Cândido. A educação em perspectiva sociológica. São Paulo: EPU, 1985. p. 43. 41

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Freire deixou um legado de trabalhos na qual a utopia está presente e apoia outras ideias como a de esperança, sonhos, enfim, projetos que devem ser plantados hoje para serem colhidos amanhã. Para Vares, Freire sabia da gravidade dos problemas desencadeados pela barbárie capitalista, assim como dos efeitos da globalização, principalmente nos países periféricos. Sabia o quanto as pessoas sentiam-se esmagadas por este penoso processo. Com efeito, o autor busca reencantar a fé dessas pessoas, mas não uma fé no sentido puramente religioso. A fé que Paulo Freire busca reencatar é a fé na própria vida, a fé no processo histórico, fazendo com que os oprimidos despertassem para a possibilidade de transformar seus contextos a partir de suas ações. Diante disso, há de se perguntar: como podemos resistir aos discursos fatalistas defendidos pelo capitalismo neoliberalista que ainda ressoam em nossa sociedade? Freire, acredita que é preciso despertar nas pessoas “sonhos políticos”. O educador aponta para a tentativa de mostrar a realidade em seus diferentes registros e contextos, problematizando-a e assim convidando o outro para despertar a sua própria consciência. Vejam que não estamos construindo a consciência alheia, mas despertando, o que são coisas distintas. A utopia descrita por Freire não se reduz aos conceitos fatalistas, de algo que não se realizará. Na concepção freireana a utopia é o primeiro passo para a possibilidade. Nunca falo da utopia como uma impossibilidade que, às vezes, pode dar certo. Menos ainda, jamais falo da utopia com refúgio dos que não atuam ou [como] inalcançável pronúncia de quem apenas devaneia. Falo da utopia, pelo contrário, como necessidade fundamental do ser humano. Faz parte de sua natureza, histórica e socialmente constituindo-se, que homens e mulheres não prescindam, em condições normais, do sonho e da utopia.44

A definição de Freire, nos dá a dimensão exata da importância da utopia para homens e mulheres. Somos seres programados para aprender e necessitamos do amanhã, que deve ser por nós construído. O conceito de utopia, utilizado por Freire, resgata a historicidade não somente enquanto espaço de possibilidade, mas também como um contradiscurso que convoca a todos a participarem da luta por um presente mais digno e um futuro melhor. ____________________________ FREIRE, Paulo. Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: Unesp, 2001. p. 85.

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Por isso, quando ele [Paulo Freire] falar de utopia, esta irá emergir com força própria, como a presença de um contradiscurso que, assumindo a crítica teleológica, é capaz de voltar a fazer-se as perguntas pelas formas do porvir, elemento que faz todo acontecimento histórico e com perspectivas de futuro. Por isso, vai aparecer claramente que a pergunta pelo porvir é resolvida no terreno específico que piso hoje, tornando visível o “já mas ainda não”, porém mostrando que, antes de mais nada, a utopia sempre se manifestará como um acontecimento humano.45

Para Vares, quando as ideologias conservadoras decretam o fim da história e das utopias, estão na verdade decretando o fim de homens e mulheres, pois estão nos usurpando o amanhã, nossa dimensão histórica e política, nossos projetos, sonhos, utopias e esperanças. Como afirma Freire: É neste sentido que tenho dito em diferentes ocasiões que sou esperançoso não por teimosia, mas por imperativo existencial. É ai também que radica o ímpeto com que luto contra o fatalismo. Não faço ouvidos de mercador ao discurso fatalista de educadores que em face dos obstáculos atuais ligados à globalização da economia reduzem a educação a pura técnica e proclamam a morte dos sonhos e da utopia.46

A esperança é imanente aos homens e mulheres. A desesperança é externa, gerada por circunstâncias externas, e estrangulam nossos sonhos. Como o nosso teatro poderá superar esses discursos fatalistas e ideológicos que nos impedem de sonhar? Para Freire a resposta a essa questão está no reencontro da utopia e da própria esperança, pois são estes elementos que nos impulsionam para a frente, para a mudança. Ora, quem poderia acreditar que revolucionários políticos como Zapatta, Che, Lamarca, Martin Luther King, Santo Dias da Silva, Chico Mendes e Doroth Stang dedicariam suas vidas à luta política se não tivessem realmente esperança e a utopia da transformação? O que Freire realiza é a recuperação de algo que o discurso capitalista neolibe____________________________ MEJIA, Marco Raul. “Paulo Freire na mudança de século: um chamamento para reconstruir a práxis impugnadora”. In: STRECK, Danilo R. (Org.). Paulo Freire: ética, utopia e educação. Petropólis, Rio de Janeiro: Vozes, 1999. p. 53 – 65. 46 FREIRE, Paulo. Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: Unesp, 2001. p. 86. 45

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ral busca a todo instante esfacelar. Não podemos nos deixar levar por esta onda fatalista que destrói a esperança, as utopias e os sonhos, que são as molas propulsoras da luta e do desejo de um mundo melhor. O meu discurso em favor do sonho, da utopia, da liberdade, da democracia é o discurso de quem recusa a acomodação e não deixa morrer em si o gosto, que o fatalismo deteriora.47

Freire defende a ideia de que a realidade histórica pode ser modificada, transformada. Ele não aceita o discurso do imobilismo político, do “não há mais nada a fazer”. Segundo Freire, o determinismo retira do homem o sentido de ser. Atualmente, quando escutamos falar que não há mais utopias e aceitamos tal discurso, estamos rejeitando outras tantas possibilidades, pois a história é um campo indefinido a ser construído e moldado. A realidade, porém não é inexoravelmente esta. Está sendo esta como poderia ser outra e é para que seja outra que precisamos, os progressistas, lutar. Eu me sentiria mais do que triste, desolado e sem achar sentido para minha presença no mundo, se fortes e indestrutíveis razões me convencessem de que a existência humana se dá no domínio da determinação.48

O resgate da utopia, dos sonhos, da esperança é o resgate de nossa própria humanidade. Neste caso, ao retomarmos a história em nossas mãos, estaremos aptos para enfrentar os problemas e empecilhos inerentes à própria vida, e modificar o contexto social, econômico e político na qual estamos inseridos. O teatro, quando assume-se como espaço de diálogo e encontro, pode ser uma grande mola propulsora das utopias, mas não qualquer utopia. A utopia freireana é permeada pela possibilidade de luta, resistência e transformação, ou seja, tem um caráter político e concreto.

____________________________ 47

FREIRE, Paulo. Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: Unesp, 2001. p. 86. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. 27. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1997. p. 75.

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PARTE II TEATRO DO ENCONTRO E PRÁXIS TRANSFORMADORA

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Sabemos que Paulo Freire sempre fundamentou a sua teoria em um viés prático. Para ele, era incoerente pensar e não praticar. Por isso, a ideia de práxis sempre esteve presente em seus trabalhos, pois sabia que discursos desacompanhados de atitudes e ações tornar-se-iam impotentes. Como comentamos anteriormente, as ideologias reacionárias, fatalistas e deterministas, usurpam do homem sua própria humanidade, tirando-lhe assim sua possibilidade histórica de mudança social. Presente, passado e futuro apresentam-se como algo dado, e neste sentido o “não há nada a fazer” ganha uma força axiomática, difícil de ser quebrada. Freire preocupou-se com esta questão. Sabia que esse determinismo ideológico esmaga as pessoas. Aliás, ao longo de seus trabalhos, ele busca reencantar a concepção de sonho, utopia e esperança, uma tríade tipicamente freireana que contribui para quebrar a hegemonia dos discursos fatalistas, por meio de uma práxis transformadora. Ao reencantar o conceito de utopia, o autor apresenta a possibilidade histórica de mudança, por meio da ação política. Sonhar não é apenas um ato político necessário, mas também uma conotação da forma histórico-social de estar sendo de mulheres e homens. Faz parte da natureza humana que, dentro da história, se acha em permanente processo de tornar-se. [...] Não há mudança sem sonho como não há esperança. [...] A compreensão da história como possibilidade e não determinismo... seria ininteligível sem o sonho, assim como a concepção determinista se sente incompatível com ele, e por isso, o nega.49

____________________________ 4z

Verificar FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 91-92.

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A atriz Maria Silvia da Cia. Asfalto de Poesia na I Mostra de Teatro no ônibus. Foto por Danilo Dantas.

Foi pensando numa práxis transformadora, ação que nutrisse utopias e indicasse proposições para uma pesquisa teatral continuada, que a Trupe Sinhá Zózima optou pelo trabalho cênico em ônibus na cidade de São Paulo. E, nesta práxis, com o resultado de várias vivências e criações cênicas, descobriu um significativo protagonista em sua pesquisa cênica: o passageiro e a passageira de ônibus. Em particular, trabalhadores que utilizam o ônibus como transporte para chegar ao trabalho e depois retornar para casa.

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Se não há nada que fazer, se tudo está dado, inclusive o futuro, então qual é o papel do teatro? Para Paulo Freire só o resgate das utopias, sonhos e esperança pode recuperar a dimensão histórica e política que essas ideologias fatalistas insistem em sufocar. Quanto mais me deixe seduzir pela aceitação da morte da história tanto mais admito que a impossibilidade do amanhã diferente implica a eternidade do hoje neoliberal que aí está, e a permanência do hoje mata em mim a possibilidade de sonhar. Desproblematizando o tempo, a chamada morte da história decreta o imobilismo que nega o ser humano.50

Freire utiliza-se de uma linguagem de possibilidade, a única capaz de acarretar transformações. Ele confronta o tempo todo, principalmente nas últimas obras, a importância da esperança frente à imobilidade. Neste sentido, sonhar ou ser utópico não é, para Freire, apenas imaginar um mundo melhor, mas o primeiro passo para um mudança. Entretanto, as elites procuram a todo custo sufocar nossos sonhos, amputando nossa esperança. Como afirma Freire: Daí que, à linguagem da possibilidade, que comporta a utopia do sonho possível, prefiram o discurso neoliberal, pragmático, segundo o qual devemos nos adequar aos fatos como estão se dando, como se não pudessem dar-se de outra forma, como se não devêssemos lutar, precisamente porque mulheres e homens, para que se dessem de outra maneira.51

Qualquer projeto que anuncie transformações necessita reencantar o conceito de utopia, sem o qual não poderá desenvolver-se. Com efeito, a utopia freireana deve ser entendida como projeto político, ou seja, como articulação política que lança no agora as sementes de um futuro melhor. Para o autor, a utopia não é um simples sonhar ou uma ilusão. O projeto utópico anunciado por Freire passa por uma outra compreensão, e deve ser visto como projeção do possível e não do impossível. O processo de globalização e o discurso fatalista que o acompanha, tem suprimido os gritos dos excluídos e ofuscando a dimensão histórica do homem. “O ____________________________ Verificar FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. 27. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1997. p. 130. Verificar FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 90-91.

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que é sempre será”. Ao que parece, este tem sido o estandarte erguido pela sociedade capitalista. Aceitar o fim da história como ideologia corrente é o mesmo que aceitar o fim do próprio homem. Neste sentido, é necessário reencantar o conceito de utopia. O teatro é um meio importante para este reencantamento. O teatro do encontro, enquanto espaço de liberdade e discussão, pode exercer um papel fundamental na elaboração de projetos utópicos. Paulo Freire aponta alguns caminhos teóricos que vão ao encontro desse resgate. Ele se recusa a aceitar o destino52 proposto pelos ideólogos conservadores que anulam a dimensão histórica do ser humano. Sem cair numa visão romanesca e ingênua, Freire credita à utopia um propósito basilar, sobre o qual se poderá construir um edifício de esperança e transformação, rompendo com velhas estruturas políticas, sociais e filosóficas.

____________________________

52 Marilena Chauí, em sua obra “Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas”, faz menção a questão do destino enquanto discurso ideológico. Para a autora, a ideia de destino nega a dimensão histórica do homem e o caráter dialético e mutável da história, impedindo assim mudanças substanciais.

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Acreditamos que a teoria freireana, assentada sobre a tríade sonho/utopia/ esperança, possibilita o resgate histórico-político do homem. E acreditamos, sem exageros, que quando escolhemos o ônibus como lugar onde realizamos profícua pesquisa teatral e quando reconhecemos que as narrativas de vida de passageiros de ônibus são fundamentais para a construção de nosso teatro, participamos deste resgate histórico-político do ser humano. As ideias de Freire obtêm êxito em nosso teatro do encontro quando – como artistas igualmente sonhadores, utópicos e esperançosos – trabalhamos a partir da realidade concreta do povo.

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A atriz Priscila Reis no processo de criação da pela Dentro é lugar longe. Foto por Christiane Forcinito.

Para Freire, a dimensão utópica deve ser reencantada. Não se pode negar ao homem o que lhe é imanente, ou seja, a dimensão histórica que permite projetar o novo e romper com o que é hoje. A dialética é a mola propulsora da história, é aquilo que possibilita o novo. O teatro do encontro aqui proposto, por sua vez, assume compromisso estratégico ao suscitar a dimensão histórica e utópica da comunidade e de todos os envolvidos no processo de criação. Assim, os artistas-pesquisadores, os passageiros de ônibus e a comunidade envolvida modificam sua realidade a partir da compreensão e discussão desta, negando-a como algo dado e imutável e reiterando a possibilidade do vir-a-ser, ou seja, reencantando a utopia como projeto de luta e esperança para um amanhã diferente.

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DENTRO DA PRAÇA O POVO INTEIRO CANTANDO FAGULHAS N. 9

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A atriz Priscila Reis no Serão, manifesto em memória do operário Santo Dias da Silva. Outubro de 2012. Foto por Danilo Dantas.

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PARTE I FAZ ESCURO MAS EU CANTO

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Num assalto de esperança, Thiago de Mello, poeta do Amazonas, conclui a última estrofe do último poema do livro Faz escuro mas eu canto, escrito quando esteve exilado no Chile: E de repente a manhã – manhã é céu derramado, É claridão, claridão – foi transformando a cidade numa praça imensa praça, e dentro da praça o povo o povo inteiro cantando, dentro do povo o menino me levando pela mão.53 ____________________________

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Verificar MELLO, Thiago. Faz escuro mas eu canto. 23 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.

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O poeta brasileiro, neste poema, emprega – numa aparente singeleza – a palavra manhã para prenunciar, mesmo em tempo escuro, mesmo em tempos de Ditadura Militar, uma força motriz que pode levar à liberdade humana em seu sentido amplo e pleno. O poeta associa a palavra manhã a três imagens: O céu derramado: a figura constitui um olhar para a terra quando une a palavra céu ao verbo derramar. Céu derramado é o céu que não está mais nas alturas, não reina mais distante com sua beleza intocável. As vazões deste céu se espalham sobre a terra como propriedade de todos. A claridão: não se restringe ao termo claro. É claridão em sua abrangência total. Claridade que chega à plenitude. Claridão oposta à escuridão. Em verdade, o poeta propõe o seguinte jogo: CLARIDÃO x ESCURIDÃO LIBERDADE x OPRESSÃO A manhã-claridão desvela o mundo, mostra o que é a opressão [aquilo que exclui]. Porém, ao mesmo tempo, aponta para a esperança, para a capacidade que só o povo tem, quando assume-se como sujeito de sua história, capaz de transformar a cidade e o mundo. O menino: o poeta encontra na imagem do menino uma espécie de guia, que o leva pela mão. É a personificação/presentificação de tempos novos, da juventude, da utopia humana que não envelhece. O menino surge de dentro do povo. Esta imagem configura o momento mais alto deste poema, Notícias da manhã. O povo é o útero que gesta a esperança, a liberdade e a transformação. A praça imensa praça é o mundo, residência dos homens, que precisa ser tomada por esta esperança que só pode ser manifestada verdadeiramente em cantoria. Thiago de Mello sugere, neste anúncio, que só o povo, como corpo coletivo, pode vivenciar, de fato, a manhã que se desvela. Elimina, assim, qualquer possibilidade de uma manhã exclusiva, propriedade de uma só pessoa. Como também, contempla em seu poema a manhã edificada pelas mãos de uma comunidade, o povo. Outro importante poeta brasileiro, o pernambucano João Cabral de Melo Neto, celebra em um conhecido poema a manhã tecida por

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mãos inúmeras: 1. Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. 2. E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão.54

Quando opta por concluir o poema com a imagem do povo inteiro cantando na praça [a ágora], o poeta Thiago de Mello aponta para um movimento outro, em que o canto, isto é, a arte e, sobretudo, a arte é a manifestação/certeza de que realmente chegou a manhã. A ágora era a praça principal na constituição da pólis, a cidade grega da Antiguidade Clássica. Normalmente era um espaço livre de edificações, onde as pessoas costumavam ir configuradas pela presença de mercados e feiras livres em seus limites, assim como por edifícios de caráter público. Enquanto elemento de constituição do espaço urbano, a ágora manifesta-se como a expressão máxima da esfera pública na urbanística grega, sendo o espaço público por excelência. É nela que o cidadão grego convivia com o outro para comprar coisas nas feiras, onde ocorrem as discussões políticas e os tribunais populares: é, portanto, o espaço da cidadania. Por este motivo, a ágora [assim como o pnyx, o espaço de realização das eclesias] era considerada um símbolo da democracia direta, e, em especial, da democracia ateniense. ____________________________ 54

MELO NETO, João Cabral. Melhores poemas. 9 ed. São Paulo: Global, 2003.

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Para Thiago de Mello, só quando o povo conseguir, de fato, encontrar na praça imensa praça [ágora] a condição de casa, onde pode dizer a sua palavra, manifestar a sua arte, somente aí poderemos acreditar que a liberdade chegou, que demos um passo além da escuridão/opressão. Entretanto, é interessante notar que o poeta refere-se a um modo específico de arte: aquela que advém da cultura do povo. O título do livro de Mello, Faz escuro mas eu canto, desvela outro importante sentido para a arte do povo: é um modo corajoso de resistir à escuridão/ opressão. Ademais, o poeta alude, com isso, ao sentido transformador da arte. E emprega a ela um significado audacioso de resistência. Ainda hoje, muitos procuram limitar este vislumbrar de esperança desvelado por Mello em seu poema. Rechaçam as possibilidades da arte como resistência, ação libertadora.

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PARTE II CULTURA POPULAR E RESISTÊNCIA

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A resistência ocorre, como defende Antonio Augusto Arantes55, quando nos espaços alternativos, fragmentários e dispersos, como um teatro no ônibus, no fundo do quintal, embora conquistados a duras penas e com muito empenho, pequenos grupos de vizinhos, amigos e parentes, companheiros de trabalho, de igreja ou de partido desenvolvem as suas formas de expressão, a partir das suas maneiras de pensar, de agir, de fazer e, sobretudo, de organizar conjuntos de relações sociais capazes de tornar viáveis, política e materialmente, as suas atividades. Neste sentido, fazer teatro, música, poesia ou qualquer outra modalidade de arte é construir, com cacos e fragmentos, um espelho onde transparece, com suas roupagens identificadoras, particulares e concretas, o que é mais abstrato e geral em um ser humano, ou seja, a sua organização, que é condição e modo de sua participação na produção da sociedade. Este é o sentido mais profundo da cultura popular.56 Para Arantes, cultura popular não é um conceito bem definido pelas Ciências Humanas e pela Antropologia Social. Seus significados são heterogêneos, re____________________________ 55

Verificar ARANTES, Antonio Augusto. O que é cultura popular. 14 ed. São Paulo: Brasiliense. 1981. Verificar o artigo do dramaturgo Rudinei Borges Cultura popular, arte e resistência publicado no site da Trupe Sinhá Zózima.

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metendo a um amplo aspecto de concepção. Pode-se atribuir à cultura popular o conceito de saber, como também a função de resistência. O termo saber refere-se, em geral, ao conhecimento do universo e aos aspectos tecnológicos, como técnicas de trabalho e procedimentos de cura. Os eventos são pensados no passado ou que logo serão superados. Já a resistência à opressão ocorre com os diversos modos de expressão artística, como a literatura oral, a música, o teatro e a poesia. Neste caso, os eventos são pensados no futuro, vislumbrando neles indícios de uma nova ordem social. No dicionário Aurélio, a palavra cultura é registrada como saber, estudo, elegância e esmero. Evoca, portanto, os domínios da filosofia, das ciências e das belas-artes. Nas sociedades estratificadas em classes, esses campos da cultura são atividades especializadas que têm como objetivo a produção de um conhecimento e de um gosto. Tal conhecimento parte das universidades e das academias. É difundido entre as camadas sociais como os mais belos e os mais corretos. Ser culto, neste sentido, é ter bom gosto, razão ou saber, ter conhecimento e estar informado. Na cidade de São Paulo, grande parte da população descende de estrangeiros, migrantes rurais e migrantes nordestinos. Aí vários modos de vida são recriados. A inspiração rural, por exemplo, está presente nos infalíveis tomateiros e pés de chuchu plantados em pequenos quintais. Isso mostra que embora as escolas, as igrejas, os meios de comunicação e os museus ensinem as pessoas a ter um modo de vida refinado, civilizado e eficiente [isto é, culto] elas não conseguem evitar que muitos objetos e práticas qualificadas como populares pontilhem o seu cotidiano. Neste aspecto, o refinado, civilizado e eficiente referese ao culto. O mau gosto, ingênuo, pitoresco e ineficaz refere-se ao popular. A ambivalência, em relação ao que é identificado como popular, não decorre apenas do desconhecimento da beleza, eficácia e adequação insuspeitas do que é culturalmente alheio para aqueles que tomam para si e para os seus semelhantes a tarefa de catequizar o resto da sociedade. As atitudes contraditórias em relação à cultura popular resultam em grande medida de alguns paradoxos. Nas sociedades industriais, o trabalho manual e o trabalho intelectual são pensados e vivenciados como realidades profundamente distintas umas das outras. Há um enorme desnível de prestígio e de poder entre essas profissões decorrentes da concepção generalizada na socie-

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dade de que o trabalho intelectual é superior ao manual. Para a sociedade capitalista o que é popular é necessariamente associado ao fazer desprovido de saber. Grande parte dos autores pensa cultura popular como folclore, ou seja, como conjunto de objetos, práticas e concepções – sobretudo religiosas e estéticas – consideradas tradicionais. Outros concebem as manifestações culturais tradicionais como resíduo da cultura culta de outras épocas e, às vezes, de outros lugares, filtrada ao longo do tempo pelas sucessivas camadas de estratificação social. Afirma-se: o povo é um clássico que sobrevive. Pensar a cultura popular como sinônimo de tradição é impossibilitar a compreensão das sucessivas modificações por quais necessariamente passaram estes objetos, concepções e práticas do povo. É pensar as modificações como empobrecedoras ou deturpadoras. A cultura popular surge, portanto, como uma cultura outra que, por contraste ao saber culto dominante, apresenta-se como totalidade embora sendo, na verdade, constituída através da justaposição de elementos residuais e fragmentários considerados resistentes a um processo natural de deterioração. Ao procurar reproduzir objetos e práticas supostamente cristalizados no tempo e no espaço, acaba-se por reproduzir versões modificadas, no mais das vezes esquemáticas, estereotipadas e, sobretudo, inverossímeis aos olhos dos produtores originais – dos eventos culturais com os quais se pretende constituir o patrimônio de todos. Embora se procure ser fiel à tradição, ao passado, é impossível deixar de agregar novos significados e conotações ao que se tenta reconstruir. Ao se produzir os espetáculos cortam-se as raízes do que, na verdade, é festa, é expressão de vida e liberdade. Vida que recusa identificar-se com as imagens que o espelho culto permite refletir e que grande maioria dos museus cultua. Para Arantes, são equivocadas as concepções de que o povo não tem cultura. São concepções etnocêntricas e autoritárias. Pensam a cultura como passível de cristalização, permanecendo imutável no tempo a despeito das mudanças que ocorrem na sociedade, ou, quando muito, que ela esteja em eterno desaparecimento.

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A cultura, para Arantes, é um processo dinâmico de transformações positivas que ocorrem, mesmo quando intencionalmente se visa congelar o tradicional para impedir a sua deterioração. É possível preservar os objetos, os gestos, as palavras, os movimentos, as características plásticas exteriores, mas não se consegue evitar a mudança de significado que ocorre no momento em que se altera o contexto em que os eventos culturais são produzidos. É preciso pensar a cultura no plural e no presente. Significação de valores é da essência da cultura. Por isso, o ponto de partida usual do trabalho do antropólogo é a observação direta de indivíduos se comportando em face de outros indivíduos e em relação à natureza. A cultura constitui os diversos núcleos de identidade dos vários agrupamentos humanos, ao mesmo tempo em que os diferencia dos outros. O ser humano realiza, no dia a dia, operações mentais de codificação e decodificação de mensagens que requerem o conhecimento desses significados implícitos nas ações e nos objetos, e de suas regras de manuseio. Um exemplo são as roupas com que as pessoas do sexo masculino vestem o corpo. Elas constituem um grande número de afirmações simbólicas, sociologicamente significativas. No trabalho, os gerentes, diretores e chefes usam paletó e gravata. Nas oficinas, linhas de montagem, serviços de limpeza e manutenção os trabalhadores usam macacões. Os trajes possuem significação simbólica e carregam fragmentos de um código com o qual se constroem afirmações metafóricas a respeito das relações sociais vigentes. Todas as ações humanas – seja na esfera do trabalho, das relações conjugais, da produção econômica ou artísticas, do sexo, da religião, das formas de dominação e de solidariedade – são constituídas segundo os códigos e as convenções simbólicas que denominamos cultura, explica Arantes. Em lugar de tomar os símbolos abstratamente, como se eles estivessem vagando no vazio, convém interpretá-los como produtos de homens reais que articulam, em considerações particulares, pontos de vistas a respeito de problemas colocados pela estrutura de sua sociedade. Bronislaw Malinowski [1884-1942] contribuiu com a acepção de que os detalhes da cultura precisam ser vistos sempre em seu contexto e como partes interrelacionadas. Foi demolida a concepção de cultura como colcha de retalhos – própria dos difusionistas e evolucionista.

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Estabeleceu-se, então, a tese de que a cultura é constituída por sistemas de significados que integram a ação social organizada. Recuperou-se a noção de que, mesmo em sociedades relativamente homogêneas, os sistemas culturais comportam incoerências. Permite-se, justamente, a articulação do desacordo nos termos de/e com os elementos próprios a um mesmo e único sistema simbólico. Há a tentativa, segundo Eunice Durham, de criar a ilusão de homogeneidade sobre um corpo social que, na realidade, é diferenciado. A sociedade de classes, inerentemente diferenciada, produz mecanismos homogeneizadores que permitem criar uma ilusão de unidade e que é a condição de sua permanência. Como destrinchar estes mecanismos homogeneizadores? Encontrar as respostas/ações para tal problema é um meio significativo de pensar, de fato, a cultura no plural e no presente.

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PARTE III O TEMPO PRESENTE

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Quando o poeta Thiago de Mello usa a figura do menino, como comentamos acima, está, com enorme candura, apontando para uma questão imprescindível: o poder humano de criar utopias não pode envelhecer. As manifestações artísticas advindas da cultura popular são um modo eficaz de manter aceso e vivo o sonho humano pela liberdade, mesmo em tempos de escuridão. Neste mesmo sentido, no poema Mãos dadas, Carlos Drummond de Andrade afirma que é um poeta do tempo presente: Não serei o poeta de um mundo caduco. [...] Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

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Para Affonso Romano de Sant’Anna57, na poesia de Drummond o tempo presente corresponde a um definido espaço social e histórico. Aquilo que é a essência de uma época e lugar. Desse ponto de vista, encontrar-se no presente é encontrar-se na intersecção de certo tempo e de certo espaço, ou, para usar a terminologia sartriana, “em situação”. Com efeito, explica Sant’Anna, a etimologia da palavra tempo, segundo Usener, vem da ideia de templum, que significou originalmente intersecção ou bissecção. Para Ernest Cassirer, “a palavra básica tempus, templu significa bissecção, intersecção: de acordo com a terminologia posterior dos carpinteiros dois caibros ou vigas ainda constituíam um templum; a partir disso, o significado de espaço assim dividido seguiu seu desenvolvimento natural; de tempus um quarto dos céus [por exemplo o leste] passou a tempo do dia [por exemplo a manhã] e daí para tempo em geral”.58 Ao surpreender-se na conjunção do templum, prossegue Sant’Anna, o poeta começa por olhar interessadamente o que se passa ao seu redor, para entender, ao final o que se passa consigo mesmo. Este é o desenvolvimento da própria consciência do indivíduo. A consciência do intercurso do tempo e espaço dá-lhe súbita sensação de liberdade, que, para se realizar plenamente, implica num comprometer-se com a realidade. Essa liberdade da consciência gera raízes para se desenvolver melhor. Estudada no espaço ou no tempo, explica Bergson59, a liberdade parece sempre mergulhar raízes profundas na necessidade, organizando-se intimamente com ela. O espírito toma da matéria as percepções que constituem seu alimento, desenvolvendo-se sob forma de movimento, ao qual imprimiu sua liberdade. Mas desde que toda consciência de liberdade não se exaure no exercício da liberdade individual, porém procura antes relacionar-se com a liberdade alheia, cria-se entre o sujeito e os que o cercam uma solidariedade existencial, levando-o a mesclar o particular e o universal. Buscando a liberdade descobrimos que ela depende inteiramente da liberdade dos outros, e que a liberdade dos outros depende da nossa, explica Pierre Garaudy.60 ____________________________

SANT’ANNA, Afonso Romano de. Carlos Drummond de Andrade: análise da obra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. CASSIRER, Ernest. The of Symbolic Philosophy Forms, II vol., Yale University Press, New Haven & London, 1967. 59 BERGSON, Henry. Matiére el Mémoire. Paris: PUF, 1949. 60 GARAUDY, Pierre. Perspectives de l’Homme. Paris: PUF, 1960. 57

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O poeta sabe que este é um tempo de “absoluta depuração” e que as mãos, os olhos, o coração têm que seguir produzindo seu trabalho, sua luz e esperança para criar uma nova vida, um novo tempo. E o tempo novo é uma praça imensa onde o povo inteiro pode cantar livremente a sua cantoria.

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TEATRO DO ENCONTRO E NARRATIVAS DE VIDA FAGULHAS N. 10

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Desenho por Guilherme Kramer.

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PARTE I DA MEMÓRIA

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“Nunca se deve subestimar o poder de compartilhamento da experiência humana”, afirma Paul Thompson,61 professor britânico. Tecer um teatro do encontro, em que dramaturgia e encenação partam de narrativas de vida de trabalhadores [passageiros de ônibus], significa compreender a memória como elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fato extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si [nas palavras de Michel Pollak].62 ____________________________

Verificar THOMPSON, Paul. História falada: memória, rede e mudança social. Coordenadores: Karen Worcman e Jesus Vasquez Pereira. São Paulo: SESC SP: Museu da Pessoa: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. 62 Verificar POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, v. 5, n. 10. Rio de Janeiro, 1992. 61

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Para Ecléa Bosi, recordar não é re-viver, mas re-fazer: é reflexão, compreensão do agora a partir de outrora; é sentimento, reaparição do feito e do ido, não sua mera repetição.63 A história de vida é a narrativa construída a partir do que cada pessoa guarda seletivamente em sua memória e corresponde ao modo como organizamos e traduzimos para o outro aquilo que vivemos e conhecemos. A história de vida não conta apenas o passado de uma pessoa, mas revela muito sobre o seu presente e indica como ela vislumbra o seu futuro. Aí reside, em grande parte, o impacto das histórias. Registrar narrativas de vida não é somente um mecanismo para reunir informações ou criar uma dramaturgia para uma montagem teatral. Conforme Hugo Slim,64 são necessárias habilidades humana como paciência, humildade, vontade de aprender com os outros e de respeitar seus pontos de vista e valores. Em 2008, Beatriz Venancio lançou um livro significativo sobre a intersecção entre teatro e narrativas de vida – uma interessante contribuição para o projeto de pesquisa teatral da Trupe Sinhá Zózima. Em Pequenos espetáculos da memória buscando o equilíbrio entre a atitude objetiva do pesquisador e o cuidado ao lidar com as lembranças, generosamente a ela confiadas, Venancio realiza a tarefa de abrir novas possibilidades para o registro de memórias e de teatro com não-atores. Realizando a síntese entre o prazer lúdico da invenção e a experiência estética da multiplicidade de formas, o registro cênico dramatúrgico com a trupe de mulheres idosas é inspirado em experiências de teatro na educação e teatro comunitário. Desconstruindo e reinventando o cotidiano das oficinas, a recriação de temas e situações para os jogos e improvisações realizadas por Beatriz fornecem um rico material de reflexão a partir da descrição densa dos procedimentos e dos depoimentos escritos pelas participantes. Para Ingrid Koudela, o processo de rememoração realizado por Beatriz Venancio com uma trupe de mulheres “para lá de balzaquianas”, revela um caminho ____________________________ Verificar BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3. Ed. São Paulo: Companhia das letras, 1994. Verificar SLIM, Hugo & THOMPSON, Paul (orgs). Listening for a Change; oral testimony and development. London, panos Publications, 1993.

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do jogo ao texto, no qual os arquivos da lembrança foram transformados em formas breves de dramaturgia. Levadas à cena pelas participantes da trupe, a narração teatralizada das lembranças instaura um diálogo com a plateia no qual o passado e o presente são conjugados, rompendo o conceito linear e cronológico de memória. Apontando para a amplitude e complexidade dos estudos de memória e fundamentada em literatura especializada sobre o tema, o trabalho de teatro desenvolvido por Beatriz Venancio com as mulheres demonstra a íntima relação entre o pessoal e o coletivo. No espetáculo teatral, o mais íntimo se torna público. Nessa luta contra o muro do esquecimento, é preciso ser capaz de lembrar. E esquecer para tornar a existência suportável. O conjunto das memórias imaginadas, sonhadas, suportadas e vividas foram materializadas em três textos, encenadas na forma de fragmentos de intimidades transmutados pelo coro formado pelas atuantes, explica Koudela.

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PARTE II DAS ARTES DA EXISTÊNCIA

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A vida não é completamente pré-construída. E ela é muito complexa para ser construída unicamente pelos outros. Na verdade, novas artes formadoras da existência foram inventadas ao longo do século XX. Foucault as denomina de as artes da existência: Por elas, é preciso entender práticas refletidas e voluntárias pelas quais os homens não somente se fixam regras de conduta, mas buscam transformar a si próprios, a se modificar em seu singular e a fazer de sua vida uma obra que traz certos valores estéticos e respondem a certos critérios de estilo.65

Pelo que sabemos, Foucault não fala de histórias de vida, salvo por si próprio, para justificar seu arriscado empreendimento: “O desafio seria o de saber em que medida o trabalho de pensar sua própria história pode livrar a mente do que ela pensa silenciosamente e permite-lhe pensar de outro modo”. ____________________________ 65

Verificar FOUCAULT, M. L’usage des plaisirs: histoire de la sexualité. Paris: Gallimard, 1984.

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Para Gaston Pineau, Foucault nomeia esse trabalho de libertação de “exercício filosófico” e reata, desse modo, com a arte do parto de si, desenvolvida pela bios66 socrática e retomada individualmente até o século XVIII pelos que mais vigorosamente ultrapassaram fronteiras. No século XVIII, foi ultrapassado um limite nessa produção autobiográfica, que faz entrar maciçamente a vida de notáveis na história. Esta entrada maciça medeia o exercício filosófico e o romantiza, mas acompanha a ultrapassagem do limiar de modernidade biológica apontada por Foucault. Porém, enfatiza Pineau: Neste início de milênio, a vida que busca entrar na história não é mais somente a dos notáveis, mas a de todos aqueles que, querendo tomar suas vidas na mão, se lançam nesse exercício, reservado até aqui à elite.67

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PARTE III DA LEITURA DO MUNDO

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Não obstante, a narrativa que a pessoa constitui sobre si mesma, o modo como se compreende e o que ela pensa sobre a realidade social onde está inserida, possui verdadeiro elo com a ideia de Leitura do mundo do educador Paulo Freire. Nesta acepção desenvolvida no campo da educação, encontramos fundamentos de longo alcance que podem ser traduzidos para o teatro. A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com a libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homens como seres ‘vazios’ a quem o mundo ‘encha’ de conteúdos; não pode basear-se numa consciência espacializada, mecanicistamente compartimentada, mas nos homens [e mulheres] como ‘corpos conscientes’ e na consciência como consciência intencionada ao mundo. Não pode ser a do depósito de conteúdos, mas a da problematização dos homens em suas relações com o mundo.

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Vida. Verificar PINEAU, Gaston. As histórias de vida em formação: gênese de uma corrente de pesquisa-ação-formação existencial. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 32, n. 2, p. 329-343, maio/ago. 2006. 66 67

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Para Freire, o alfabetizando antes de entrar no universo da leitura e da escrita já tem uma Leitura de Mundo. E essa leitura precede a leitura da palavra. Alfabetizar para Freire é problematizar a realidade em que os educandos estão inseridos para, a partir daí, transformá-la, desvelando as desigualdades, conscientizando e engajando alfabetizadores e alfabetizandos para a arena da transformação. Neste aspecto, encontramos nas narrativas de vida de trabalhadores [passageiros de ônibus] verdadeiras leituras do mundo e são elas o material precioso para os processos de investigação e criação teatral propostos pela Trupe Sinhá Zózima.

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TERCEIRA PARTE

MEMÓRIAS E ESTIRADAS -

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O TEATRO-VIDA DE LÍDIA ZÓZIMA FAGULHAS N.11

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A atriz e pesquisadora Lídia Zózima. Foto por Luciana Ramin.

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Em uma noite fria de julho de 2011, nos extremos da Zona Leste da cidade de São Paulo, o diretor Anderson Maurício, o dramaturgo Rudinei Borges e a atriz Tatiane Lustoza reuniram-se durante três horas para entrevistar Lídia Zózima, professora de teatro, mestra e amiga que emprestou o seu nome para a Trupe. Neste encontro, foram registrados fragmentos de coragem, saudade e depoimentos de uma mulher, de uma pensadora que doou a maior parte da vida ao teatro, e fez do teatro a sua própria vida.

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I. ÁGUAS DA PROSPERIDADE Nasci em São Caetano do Sul, SP, no dia 4 de Abril de 1957. Foi quando saí pela última vez da barriga de minha mãe. Vivi em períodos de transições espetaculares. Transições homéricas. Em verdade, as transições são complicadas. São como partos. Transitar é renascer sempre. Nasci em um bairro chamado Prosperidade. De Prosperidade nunca teve nada lá. Era o mais pobre de São Caetano. Ficava longe do centro da cidade. Parecia que ficava em outro mundo. O Rio Tamanduateí invadia todo o Prosperidade. Ficava um mau cheiro. Mas lembro-me que a água parecia limpinha. E eu adorava quando as águas chegavam à minha casa, porque era a maneira que eu tinha de brincar com o rio. Eu fazia muitos barquinhos e ficava esperando a chuva, ficava rezando toda noite para que minha casa alagasse. II. SEGREDO DAS COISAS Tive mais um irmão e uma irmã. E tive galinhas. Cada uma das minhas galinhas tinha um nome. Também tive muitos cachorros, muitos gatos, mas minha infância foi muito solitária. Nunca consegui, na verdade, entrar em conexão com o ser humano. Até hoje converso com meus pratos quando vou lavá-los. Converso com todas as coisas de casa. As pessoas dizem: “- Você é louca!”. Não, não sou louca. As plantas e o chão, tudo colabora comigo desde que eu tenha respeito e sensibilidade.

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III. PAI E MÃE Também vivi muitas experiências desagradáveis. Mas sei de vivências dos meus pais que também foram difíceis. Meu pai foi um fugitivo de guerra e se ensoberbava em relação ao número de pessoas que viu morrer. Um dia tivemos uma conversa muito franca e perguntei a ele: Como o senhor pôde presenciar a morte de tanta gente e sentir orgulhar disso? Aí ele me olhou com os olhos bastante eclipsados, porque estava quase cego e me disse: “Filha, não é orgulho nem soberba, às vezes é só o modo que encontramos para pronunciar o que fizemos no mundo. Viver em uma cidade onde todos os amigos e amigas foram mortos ou estuprados não é uma situação muito agradável. Então, você não pode julgar aquilo que não viveu”. E assim terminou a nossa conversa. Não sabia que aquilo ia ficar tão registrado em mim. Mas ficou tão fortemente registrado que sinto hoje no meu olhar a necessidade de entender a minha mãe, o meu pai e a minha vida. O meu pai foi capitão na grande Guerra do Charco, um conflito entre a Bolívia e o Paraguai. O termo “charco” é uma referência à região da Bolívia onde aconteceu a guerra que era muito encharcada. Meu pai era líder militar. Conviveu com os jovens soldados paraguaios, gente com mais ou menos dezoito a vinte anos. Muitos morreram no caminho, inclusive por falta de comida. Diante de tantas mortes, o meu pai se promoveu muito rápido. Ele soube “liderar”. Era um homem rígido. Conto isso porque nunca vou esquecer a conversa que tive com o meu pai, quando ele relatou a experiência da guerra. Quando vou dormir penso nisto. E ao pensar nisto, sinto que estou resgatando todas as vidas que foram perdidas na Guerra do Charco. Se meus ancestrais viveram a guerra, devo agora transcender. A minha mãe era muito simples. Era aquela pessoa que se contentava em olhar o jardim e saber o que ia plantar. Ficava contente em cuidar das galinhas. Já o meu pai era um intelectual que tinha livros e livros. Herdei um pouco das duas correntes. Todavia, nesta confusão nunca quis compreender a minha parte intelectual, apesar de estudar muito.

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IV. A ILUSÃO DOS INTELECTUAIS Acredito que toda pessoa extremamente racional mente para si mesma, é iludida. E isso não é totalmente equivocado. Percebo essa realidade nas grandes faculdades, nos grandes centros de estudiosos. Infelizmente não são estudiosos que ajudam o outro a viver experiências profundas. Há um grande fluxo de repetições. Repete-se muito. Lamento. Nas escolas de teatro falamos de Stanislavski e Brecht, por exemplo, sem deixarmos que eles descansem em paz. Precisamos reconhecer a colaboração deles, porém é necessário ir além. Uma civilização só se constrói com pessoas que podem ir além, que atuem mesmo. Não construímos uma civilização com meras repetições. V. COMUNICAÇÃO ATUAL Hoje ainda há muita turbulência. Vivemos uma época em que as pessoas protagonizam uma comunicação forjada, pré-elaborada e superficial. VI. QUANDO O SILÊNCIO RONDA Não sei se de repente tenho respostas para todas as dúvidas, mas tenho hoje uma certeza: não sei se o vazio e o silêncio são a minha resposta para tudo. Busco a intermediação. Pergunto-me: Onde Deus está presente nesta conversa? Ou seja: O que precisa ser resolvido? O que precisa ser tratado? A sensibilidade? A descoberta? O quê? Parece-me que o silêncio está rodeando tudo, permeando tudo para que as coisas aconteçam. Tenho alguns escritos, onde explico o a ideia de herói. O herói não é uma força bruta. É o jogo de cintura interno que vivenciamos todos os dias. Aí deixamos que aconteçam todas as coisas que precisam acontecer.

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VII IR DO MAR AO SERTÃO Penso que o projeto teatral da Trupe Sinhá Zózima um dia deve ser levado para várias cidades do Brasil, em um ônibus itinerante. As peças poderão ser apresentadas em lugares diversos, recebendo influências das culturas locais, o que resultaria em uma ação extraordinária de pesquisa, verdadeiro compartilhamento de arte e vida. Imagino que o melhor modo de organizar o tempo de vivência nas cidades brasileiras é construir proposições de atividades para a manhã, a tarde e a noite. A manhã será tempo de ensinar com oficinas e apresentações. A tarde será tempo de aprender. A noite a síntese dos dois acontecimentos. Penso que o tempo ideal para permanecer em cada cidade é um mês. Mas é preciso ir do litoral ao sertão. Também podemos trabalhar com a ideia de gestação, ou seja, o projeto aconteceria em noves meses. Pois este é um meio de agir artisticamente e de trabalhar com o povo.

VIII. TEATRO Teatro é vida. Confundo as duas coisas, teatro e vida. Somos um pouco loucos quando colocamos o que queremos no plano social, político e representativo. Porém, creio que o melhor da vida é a poesia, a poesia como ato de viver. E teatro é isto, viver. O teatro é o ato de representar o tempo todo. Com isso, não temos necessariamente respostas prontas, mas no momento que começamos a viver começamos também a responder. Porque o teatro também é o ato de fazer história e de ser história.

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A atriz e pesquisadora Lídia Zózima com os atores Alessandra Della Santa, Junior Docini, Maria Alencar, Priscila Reis e Tatiane Lustoza. E o diretor e ator Anderson Maurício. Foto por Danilo Dantas.

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ATRÁS DO VOILE FAGULHAS N. 12

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A atriz Tatiane Lustoza no espetáculo Cordel do amor sem fim. Foto por Jorge Etecheber.

MEMÓRIAS DE TATIANE LUSTOZA Quando iniciamos a Trupe Sinhá Zózima, não imaginávamos os desafios, dificuldades, ansiedades, encontros e desencontros que cruzariam o nosso caminho. Muitas vezes nos sentíamos como aventureiros desbravando a mata virgem, cheia de armadilhas. Mas apesar de todos os pesares, vivemos momentos únicos e inesquecíveis. Aquela energia de adolescentes recém-formados numa escola de teatro foi vital para a nossa vivência e persistência. Proporcionamos ao nosso público uma viagem ao desconhecido, um pacto onde todos são inventores da própria existência.

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Viver na estrada com o teatro é colecionar um baú de histórias diversas. Ser artista de uma Trupe é estar pronta para o novo, é permitir que o público sinta uma aproximação grande a ponto se tornar parte do espetáculo. Uma mulher do público, certo dia, interviu numa cena de violência de José contra Teresa (personagens da peça Cordel do amor sem fim). Ela simplesmente abraçou Teresa, colocou-a sobre o colo, afagou os cabelos da personagem e ordenou que José não mais se aproximasse. Usou um tom tão devastador, exatamente como um leão que ruge ao proteger seu território e sua cria. Falou com uma força tão grande que assustou o ator. Ele ficou embasbacado com o ato instintivo de proteção daquela mulher. Neste momento, pensei: o mundo não está perdido, ainda existe solidariedade; existem pessoas de pulso que ainda se importam com o outro. O mundo precisa disto: pessoas que se preocupem com o todo, com um desconhecido, que zelem por boas relações e não aceitem a violência de braços cruzados. Como atores da Trupe Sinhá Zózima, também sofremos violência. Uma vez fomos perseguidos por policiais durante uma apresentação. Eles pararam o ônibus e apontaram suas armas prateadas de forma ameaçadora. Imediatamente explicamos que era teatro, e que não havia motivo para preocupação. Os policiais disseram que receberam uma denúncia de violência dentro do ônibus e, por isso, tiveram aquela postura. Logo a situação foi resolvida sem que interferir no desenvolvimento da peça. Situações inusitadas também já ocorreram. Certa vez a Trupe foi convidada para realizar apresentações na cidade de Extrema (Minas Gerais). E, como de rotina, antes do espetáculo sempre fazemos o roteiro que o ônibus vai percorrer durante a peça, assim conhecemos a cidade e cronometramos o espetáculo. Porém, neste dia, não imaginávamos o imprevisto que surgiria durante a apresentação. O espetáculo estava acontecendo normalmente, até que o motorista entrou numa rua que estava tomada de carros, era impossível passar com o ônibus, pois era um casamento e os convidados transformaram a rua num estacionamento. A única alternativa era fazer uma manobra, mas além do breu total, havia um barranco perigosíssimo. O motorista ficou desesperado, não sabia o que fazer. Perguntei se ajudaria se eu descesse do ônibus e o ajudasse a manobrar. Ele disse que era a única alternativa. Rapidamente desci, sem que ninguém do público percebesse. Aqueles minutos foram eternos, porque estava chegando o momento que eu entraria em cena. Não conseguia ouvir nada lá de fora, tentei ser uma manobrista eficiente para ajudar o motorista resolver

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aquela situação o mais breve possível. Assim que ele fez sinal de que tudo estava resolvido, pediu que eu corresse para dentro do ônibus. Fui como um foguete. Quando adentrei o ônibus, entrei em cena imediatamente. Utilizei toda aquela adrenalina e transpus para a minha personagem, Teresa, que viveria um de seus momentos mais dramáticos na trama. Não foi uma tarefa fácil, todavia ali percebi que muitas vezes não temos tempo de pensar e questionar. Muitas vezes é necessário agir. Após o espetáculo o motorista achou tudo aquilo uma grande loucura e disse que admirava o nosso jogo de cintura e amor pelo o nosso trabalho. Também sou muito grata a cada um dos motoristas que cruzaram os nossos caminhos e nos guiaram e nos fizeram contar tantas vezes a mesma história de diversas formas. Conhecendo pessoas como eles eu passei a acreditar em anjos. Quando decidi ser atriz da Trupe Sinhá Zózima, não imaginava que a proximidade com o público seria tão intensa. É algo completamente diferente do palco italiano. Não imaginava o poder que as personagens têm de encantar e seduzir o outro. São tantas histórias e descobertas. Viver o palhaço, ser a palhaça, enxergar os próprios defeitos e chorar ao descobrir que não somos tão perfeitos faz parte do ser do artista. Todo tempo enfrentamos contrariedades: dormir de um jeito e acordar de outro é sentir que morremos todos os dias. É preciso aceitar as diferenças e amar o público que está sempre curioso para saber o que há atrás do voile.

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DENTRO DO ÔNIBUS FAGULHAS N. 13

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A atriz Priscila Reis na peça Dentro é lugar longe. Foto por Danilo Dantas.

MEMÓRIAS DE PRISCILA REIS Fico muito entusiasmada com desafios artísticos, com as possibilidades de levar arte às pessoas, principalmente para aquelas que não têm acesso aos equipamentos culturais. Lembro-me que participar de um sarau, em 2007, em Ubatuba (São Paulo), foi viver um destes momentos em que não se tem nada e se aposta no improvável. O dinheiro do cachê seria dividido com todos, porém acabou virando camarão na moranga e, mesmo assim, foi delicioso o momento de sair da escola e trilhar um novo caminho junto com os colegas do Núcleo 35 de Teatro.

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Seguimos com nosso primeiro processo de criação cênica dentro de um ônibus, novamente em Ubatuba, cidade natal de uma ex-integrante do grupo, Vanessa Cabral. Frio na barriga, observação, cuidado e muita coragem. Lá fomos nós, apresentarmos pequenas cenas de Navalha na Carne, de Plínio Marcos, e cenas de autorias pessoais. Neste primeiro contato, observamos a necessidade do ônibus andar em uma velocidade reduzida, de buscar uma forma de ampliar os movimentos da cintura para cima, e que, de alguma maneira, fosse duplicada a cena, ou os movimentos, como um fio invisível que se expande pelo ônibus, do fim até o começo do corredor. Ali seria o palco – sem proscênio e coxia. Porque onde está o ator está o público e é possível sentir o cheiro, até mesmo o hálito do ator quando este se pronuncia do âmago do ser. Escrevo isto porque fui assistir a uma peça, há menos de um mês, dentro do ônibus e a primeira sensação que tive foi sentir o hálito do ator que cheirava a trabalho intenso do dia. Mas voltando ao ônibus de Ubatuba, foi interessante perceber o quanto as pessoas se divertiam com a briga de casal de Neusa Sueli e Vadão. A curiosidade de uns ou a identificação de outros davam força aos personagens que dançavam percorrendo a muvuca do “busão” lotado, cena típica de qualquer dia em qualquer horário nobre, ou melhor, “pobre” das ruas do Brasil. Nesta realidade, o diretor Anderson Maurício começou a trabalhar o texto de Claudia Barral, Cordel do amor sem fim com um novo olhar. Teve cuidado e muita sensibilidade para trabalhar a aproximação do ator com o público, sem agredi-lo, criando uma intimidade cúmplice como olhares e gestos simples; sussurros e respirações. Após a estreia, ouvimos os apontamentos do público, que inicialmente era composto por amigos, professores e família. Uma observação importante foi da autora do texto que sugeriu a parada do ônibus, como uma analogia ao tempo que parou na vida de Teresa. Outras críticas e impressões vieram e foram bem-vindas. Isto foi relevante para o fortalecimento de nossa pesquisa cênica. E fomos expandindo a investigação. Criando e recriando espaços dentro e fora do ônibus. Já no segundo espetáculo, Valsa nº6 de Nelson Rodrigues, procuramos ir para outro viés: abordar o universo da esquizofrenia e transformação do humano em sua passagem da infância para a fase adulta. Este processo de criação foi

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bem difícil, porque teve o ônibus um significado oposto ao de Cordel do amor sem fim. Ele ficava parado, trabalhamos muito a distância e o não contato com o público. O espetáculo era frio em sua estética e, de certa maneira, nos trouxe dificuldades para entender e absorver o processo de criação, pois estávamos habituados a um processo popular e afável. Neste momento, começava a surgir outra ideia proposta por Anderson Maurício, depois coordenada por Tatiane Lustoza, na busca de novos rumos e de novas prioridades para a trajetória da Trupe: o Projeto Arte Expressa. Esta ação surgiu da necessidade de maior proximidade com o trabalhador, o passageiro que utiliza o ônibus dia a dia, que vive uma história muitas vezes difícil dentro desse coletivo, uma história de amor e ódio; mas também de esperança, de novas descobertas, de poesia na cidade cinza e de respiro na poluição. Neste projeto, participei na mão-de-obra, apresentando cenas voluntariamente com amigos, já que não houve patrocínio e era reduzida a verba do caixa da Trupe. Este trabalho mudou nossa história. Mostrou um novo caminho a ser percorrido. E lá fomos nós, e aqui estamos, ainda que com muitas dificuldades, porém com muitas conquistas alcançadas por meio de muito trabalho, suor e algumas perdas. Neste meio tempo, artistas saíram da Trupe e artistas vieram tecer este caminho conosco. Rudinei Borges, o atual dramaturgo, foi primordial para nos auxiliar a compreender essa nossa trajetória. Os debates de mesa, os dias e noites com o diretor foram momentos decisivos para nossa postura em relação ao grupo, à pesquisa cênica, ao espaço e ao público que nos acompanha. Em suma, a Trupe a cada dia se avalia no cenário do teatro atual como um grupo que se envereda pelas estradas, pelos caminhos tantos, mas com um objetivo: tecer um Teatro do encontro sem fronteiras. Promover o encontro. Reestabelecer nossas comunicações, algo que parece tão simples, mas ao mesmo tempo é tão complexo. Neste tempo, passamos por diversas dificuldades, entre elas, a financeira. O que me levou a fazer teatro empresa. Também comecei a ministrar aulas de teatro na Fundação Casa, onde leciono há um ano. Essas dificuldades reforçaram a necessidade de levar arte para o povo. É muito intenso quando entro numa fábrica com centenas de trabalhadores que nunca foram ao teatro. É intenso, mas nítida a necessidade de ir mais fundo, de cavoucar a terra à procura

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de novos lençóis, de novos mananciais. Parece simples resolver alguns problemas sociais aos olhos da propaganda, mas o problema está na raiz. Se não chegarmos com adubo, regando sempre, algumas plantas irão morrer, como morrem todos os dias. Somos artistas e precisamos criar espaços para discussão. E também precisamos criar espaços onde sejam os seres humanos, de fato, humanos.

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UM ÔNIBUS CHAMADO JACAREÚBA FAGULHAS N. 14

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O diretor e ator Anderson Maurício na peça Cordel do amor sem fim. Foto do acervo da Trupe Sinhá Zózima.

MEMÓRIAS DE ANDERSON MAURÍCIO Por que escolher o ônibus como fatura cênica do teatro da Trupe Sinhá Zózima e não um palco “convencional” ou um espaço inusitado a cada trabalho? Esta é uma questão que sempre apresentam ao nosso grupo que tão cedo decidiu viver de arte, definiu um espaço e um projeto de pesquisa: o teatro do encontro. Na verdade, estas decisões são arriscadas, pois não sabemos como será o dia de amanhã. Elas brotam como uma flor no estrume e não deixam de ser possuidoras de contradições e encantamento. Revelam beleza e crueldade.

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É preciso capinar e suar neste terreno extenso, de matos altos, debaixo de sol e chuva. No frio, é preciso saber se agasalhar bem, porque não podemos parar o trabalho. Nem em tempos secos. Ainda é preciso plantar as sementes do doce mamão papaya, fruto refrescante e diurético; do saboroso e adocicado tomate cereja; do ácido limão taiti, antibiótico natural. Também é necessário plantar as sementes de roseiras de cor branca, amarela e rósea. As rosas vermelhas bordeaux. Os girassóis, porque gostamos de observá-los. Para realçar o sabor dos pratos: temperos, coentro, manjericão, pimenta, louro, alho e cebolinha. E também vamos plantar uma Jacareúba, árvore que se adapta a terrenos onde outras espécies encontram dificuldade. Mesmo em terras pobres, pedregosas, rasas ou sujeitas a inundações ela floresce. Também é conhecida por outros nomes populares como guanandi, guanambi, casca-d’anta, guanandi-do-brejo, cedro-do-pântano, santa-maria e pindaíba. Essa árvore será nosso relógio das estações, pois acompanharemos o seu ciclo a cada ano. A Jacareúba, claro, viverá mais do que todos nós, dando sombra a outras pessoas em tempos de calor intenso, lembrando-nos que um dia foi semeada por alguém, não interessa quem. Porém, o trabalho é árduo. O agricultor terá que cultivar logo, pois precisa sobreviver do seu próprio trabalho. Sua família aguarda ansiosa pela colheita, momento de festejar, agradecer e recomeçar o plantio. A ideia de um teatro do encontro parte, sobretudo, dum diálogo face a face com o trabalhador, aquele que quase nunca vai ao teatro, que passa horas dentro do ônibus. Este teatro é sem fronteiras porque se alastra rapidamente depois do primeiro encontro com o público, que é arrebatado pela reinvenção poética do espaço através da arte. E se propaga mais do que um capítulo de novela na televisão, porque é novo, vivo, é recíproco, é o encontro da arte com o povo. No teatro, dentro do ônibus, acontece um fenômeno, uma relação esperada por séculos. O teatro está lá – com os passageiros de ônibus. É real. O ônibus da Trupe parte pelas ruas da cidade. E pelas janelas é possível vislumbrar o mundo, o universo do lado de fora. Neste ônibus, o interior e o exterior se transformam paulatinamente – com magia, encantamento e estranhamento. O encontro que ocorre no ônibus se alastra, criando ramificações e outros encontros do lado de fora: com o padeiro, a menina do panfleto, o guarda preocupado, o senhor da rua, o casal de namorados, o suposto amigo de Antônio e os rapazes querendo ajudar Madalena. Todos ficam intrigados com o fato inusitado, criativo. O ônibus segue. No caminho seguem outros

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ônibus. E como um ímã os ônibus se encontram, ficam lado a lado, observamse. É inexplicável a fenda que se tem nesse momento: o real e a fantasia, a rotina e o inesperado. Há um universo complexo de questões nos olhares dos motoristas, dos cobradores, dos passageiros e dos artistas. O sinal verde no farol acende, os ônibus aceleram – partem juntos como gêmeos siameses até que na quadra adiante, olho no olho, se despedem em silêncio. O nosso ônibus, onde o teatro é encenado, segue o seu caminho em largas avenidas, em ruas de mão única – até nos estreitos becos. Todos ficam atentos a cada imagem – interna e externa. Exploram o potencial de encontros por onde o ônibus passa: bares, bancos, lojas, creches, casas, prédios e feiras. Por onde chega se apresenta. O nosso ônibus faz amizades, é simpático – tem carisma este ônibus. Depois de um tempo, chega ao seu destino, o terminal, o seu ponto final. As portas se abrem, os artistas se despedem, as pessoas dessem, o motorista desliga o motor. O ônibus deixa de pulsar. Os encontros cessam. Olhando pela janela, logo percebemos que na primeira lanchonete à vista há uma moça apontando para o ônibus, compartilhando com a garçonete algo que acabou de viver. Do outro lado, ouço um homem ligando para a esposa, contando com entusiasmo a experiência que viveu. O motorista vai ao encontro do amigo que encontrou no caminho, o cobrador conversa com os amigos sobre o espetáculo, os passageiros olham e procuram algo no ônibus já desligado. Eles perguntam: quando teremos teatro em nosso ônibus? Uma senhora chama uma das atrizes e diz que sua neta nunca tinha ido ao teatro e que queria nos dizer algo. A menina de sete anos, de olhos castanhos e voz doce, conta um segredo guardado a sete chaves: ela gosta de cantar. Certo dia, uma atriz da Trupe Sinhá Zózima estava se locomovendo num ônibus, de repente uma moça fez uma pergunta: “Você é a atriz que faz teatro no ônibus, não é? Já faz três anos que assisti ao espetáculo de vocês”. O nosso teatro permanece no imaginário das pessoas. Nosso teatro não é somente para os trinta e dois passageiros de ônibus que nos acompanham durante as apresentações, pois não há fronteiras para o encontro com dezenas, centenas e milhares de pessoas, pois está na memória de todos que encontramos dentro e fora do ônibus, como afirmou o sociólogo Betinho: “Quem fica na memória de alguém não morre”. Por isso, não estamos nos palcos convencionais, nem em ruas ou praças es-

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pecíficas, nem trocamos o espaço cênico a cada projeto. Escolhemos o ônibus. É assim que desenhamos o nosso teatro, o nosso encontro, o rompimento verdadeiro das fronteiras: num ônibus. Um ônibus chamado Jacareúba.

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Praça Fernando Costa no centro velho de São Paulo. Foto por Danilo Dantas.

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QUANDO O ÔNIBUS VIRA CASA FAGULHAS N. 15

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O diretor de teatro Anderson Maurício e o dramaturgo Rudinei Borges conversam sobre os movimentos de pesquisa da Trupe Sinhá Zózima em janeiro de 2013. Foto por Luciana Ramin.

Foi no início de 2011 que o encenador Anderson Maurício e eu realizamos esta conversa-entrevista com o objetivo de tecer as primeiras notas da pesquisa teatral da Trupe Sinhá Zózima. Nasceram também, na época, os esboços que deram origem a este livro.

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RUDINEI BORGES – Anderson, nos últimos dez anos surgiram vários grupos de teatro no Brasil. É considerável o número de grupos na cidade de São Paulo. Quando surgiu a Trupe Sinhá Zózima e como começou a parceria entre você e os atores Evie Milani, Fernando de Marchi, Priscila Reis, Tatiane Lustoza e Vanessa Cabral? ANDERSON MAURÍCIO – A Trupe surgiu do desejo de fazer teatro sem fronteiras, pesquisando o ônibus como espaço cênico e utilizando-o como descentralizador da circulação dos nossos espetáculos. Queríamos levar teatro para regiões onde o acesso às artes cênicas era [e até hoje é] mínimo. Encontramos no ônibus a possibilidade de levar teatro para o povo, de realizar um verdadeiro encontro com o público e com a cidade, além de pesquisar outras possibilidades de experiência teatral. Como Luiz Mendonça já buscava em suas experiências, dirigindo o Teatro de Cultura Popular, em Pernambuco. Todos os integrantes da Trupe Sinhá Zózima são formados em artes dramáticas na Fundação das Artes de São Caetano do Sul, SP, lugar onde surgiu a possibilidade de uma parceria que foi além da escola. Iniciamos com uma parceria focada em pesquisas, desafios e criação artística. A nossa pergunta primeira era: o que queremos dizer ao mundo? RUDINEI BORGES – Por que o nome Trupe Sinhá Zózima? ANDERSON MAURÍCIO – Zózima é a nossa inspiração, a nossa mestra, a nossa sinhá. Lídia Zózima é atriz e professora da Escola de Teatro na Fundação das Artes de São Caetano do Sul, também é responsável por despertar em todos da Trupe o desejo de ir além, de romper com as estruturas convencionais, de mergulhar profundamente no ser humano e na arte teatral. Sua trajetória de vida e artística se confunde. Sua resistência e missão nos inspiram. O nome da Trupe é uma homenagem a essa mestra inesquecível. RUDINEI BORGES – As escolas de teatro passaram a ser fundamentais para a formação de atores. Mas as instituições educacionais são, de fato, o melhor lugar para o surgimento de novos grupos de teatro? Há espaços para grupos que não surgem em escolas? ANDERSON MAURÍCIO – Acredito que as instituições educacionais podem proporcionar uma contribuição considerável para o surgimento de novos grupos, pois a prática e a convivência na formação são intensas e o contato com

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os formadores pode ser fundamental para o primeiro passo dos aprendizes na formação de um grupo. Foi assim com a Trupe Sinhá Zózima e acredito que com muitos grupos da cidade de São Paulo. Mas não é uma regra, pois os grupos se formam a partir da experiência como o Teatro Vocacional, em oficinas teatrais e em associações de bairros. A formação de um grupo de teatro tem que partir da necessidade e vontade de dizer alguma coisa para o mundo, de uma inquietação e da vontade de modificar alguma coisa. Tem que partir de algo que não conseguimos fazer sozinhos. Por isso, ficamos ansiosos para encontrar pessoas que queiram também dizer alguma coisa e, como numa mágica, estamos juntos e somos um grupo. Tem que deixar acontecer, e pode acontecer em qualquer lugar, não apenas em escolas de teatro. A arte teatral não é propriedade de quem tem formação acadêmica em artes. RUDINEI BORGES – A companhia Teatro da Vertigem marcou profundamente a pesquisa cênica em lugares não convencionais nos últimos 20 anos. O diretor Antônio Araújo iniciou a Trilogia Bíblica ao estrear a peça Paraíso Perdido [1992], encenada na igreja Santa Ifigênia, em São Paulo. Umas das principais características da Trupe Sinhá Zózima são as apresentações de peças de teatro em ônibus, a pesquisa de uma poética do espaço a partir da obra de Bachelard e da filosofia do encontro de Martin Buber. Por que essa opção pelo ônibus como espaço cênico? ANDERSON MAURÍCIO – O estado de São Paulo é um dos lugares privilegiados com efervescência de grupos de pesquisa teatral, inúmeros trabalhos em cartaz, numerosas práticas teatrais e várias instituições de formação artística. Porém, estamos cada vez mais esquecendo que existe um público à margem. Falo do trabalhador, do homem simples, aquele que nunca foi ao teatro, aquele que passa horas a fio em ônibus, aquele que ainda acredita que o teatro é para quem tem posses. Com o intuito de desestabilizar esse pensamento, nos propusemos a pesquisar o espaço do ônibus, o espaço do transporte coletivo, o espaço do homem comum, pois – como afirma Bachelard – “todo espaço verdadeiramente habitado traz a essência da noção de casa”. E Bachelard continua: “É graças à casa que um grande número de nossas lembranças estão guardadas e se a casa se complica um pouco, se tem porão e sótão, cantos e corredores, nossas lembranças têm refúgios cada vez mais bem caracterizados”. Pesquisamos o ônibus não apenas como uma arquitetura cênica, mas como um espaço significativo dentro da estrutura social. Buscamos uma reflexão profícua sobre o mundo onde vivemos hoje. E cada vez mais percebemos que o ônibus é, por

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excelência, um símbolo do coletivo, do popular. E elimina o sentimento de não adequação ao lugar teatral convencional. Sentimento vivido por muitas pessoas do povo. O ônibus possibilita não só o encontro do público no espaço do ator, mas também o encontro do ator no espaço do público. RUDINEI BORGES – O primeiro trabalho da Trupe foi a peça Cordel do amor sem fim, com texto da autora baiana Cláudia Barral. A peça tem grande intensidade poética. Talvez seja o espetáculo que mais marcou a trajetória do grupo. Há aí um desejo de investigar o universo popular, as histórias do povo? Como foi esse processo? ANDERSON MAURÍCIO – A autora Cláudia Barral expressa em todos os seus trabalhos uma alma baiana. Vivemos um encontro feliz com a peça Cordel do Amor Sem Fim e com a dramaturga – encontro que jamais esqueceremos. O espetáculo investiga o universo sertanejo, interiorano e popular. Nesse primeiro trabalho da Trupe, acredito que possua sim um universo que realmente poderíamos fechar como proposta de pesquisa, além da pesquisa sobre a poética do espaço. Porém, era o nosso primeiro trabalho e não queríamos deixar de pesquisar as possibilidades de montar outros textos brasileiros, como fizemos no espetáculo Valsa nº 6, de Nelson Rodrigues e O Poeta e o Cavaleiro, inspirado na obra literária de Pedro Bandeira. Sempre buscamos na dramaturgia brasileira um diálogo com a sociedade e com nossas inquietações. Hoje a trupe passa por um momento de reflexão sobre os seis anos de existência e os quatro projetos que realizamos nesse período; sobre o nosso posicionamento diante das políticas públicas e as dificuldades de trabalhar com a arte no Brasil; sobre como um grupo jovem sobrevive diante de tantos percalços e desafios; sobre a importância do nosso trabalho para o público, para a cidade de São Paulo, para o teatro brasileiro; sobre a militância política e artística do que nos propomos como movimento de pesquisa da Trupe. É o momento de amadurecimento, de estudos, de decisões e de mergulho profundo em nossa existência. Esse processo de reflexão está sendo como todos os processos de montagem de espetáculos da Trupe Sinhá Zózima, um processo de investigação intensa, o que exige dedicação integral de cada integrante da trupe. RUDINEI BORGES – Quais foram os outros projetos marcantes da Trupe Sinhá Zózima?

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ANDERSON MAURÍCIO – Depois de montarmos os três espetáculos que hoje compõem o nosso repertório, sentimos a necessidade de ampliar a pesquisa. Em outubro de 2009, criamos o projeto ARTE EXPRESSA – MOSTRA DE TEATRO NO ÔNIBUS que possibilitou outra relação com o público. Focamos um público que não estaria no ônibus para nos assistir e sim para se locomover. Convidamos doze grupos para intervir neste espaço, grupos que nunca fizeram teatro dentro do ônibus. Fizemos uma pesquisa e 75% das pessoas presentes nos ônibus nunca tiveram contato com teatro, e 97% escolheriam para se locomover o ônibus que tivesse alguma intervenção artística. Este projeto foi um divisor de águas na história da Trupe, pois ali tomamos consciência da existência de uma população completamente esquecida pelos artistas e disponível a uma vivência teatral, ávida pelo encontro, à espera de mudança e reinvenção do espaço de locomoção anestesiado pela dura rotina cotidiana. Intuímos que no ônibus urbano há possibilidade de reinvenção do teatro, de reinvenção do espaço. RUDINEI BORGES – Sebastião Milaré, crítico e teórico, destacou em alguns artigos a importância do trabalho da Trupe Sinhá Zózima para o teatro de São Paulo. Como acontece a pesquisa em torno do público? E como o público recebe os espetáculos teatrais no ônibus? ANDERSON MAURÍCIO – O espaço de pesquisa escolhido pela Trupe, o ônibus, vem ao longo destes anos proporcionando descobertas e experiências que revelam as camadas inúmeras de nossa investigação neste espaço, nos colocando sempre em estado de descoberta e em constante processo de um encontro com o público. E, por isso, todos os nossos trabalhos são de extrema importância, pois percebemos o quanto a experiência de cada trabalho transforma o pensamento e a trajetória artística da trupe, tornando a investigação viva e pulsante. No espetáculo Cordel do amor sem fim [com mais de 300 apresentações] percebemos uma interação significativa do passageiro/espectador com os atores, com as personagens e a própria narrativa do espetáculo. Havia um desejo de contribuir, de ser parte integrante daquele ato. Com isso, a Trupe se questionava “será que é pelo fato da aproximação dos atores com o público?”. A partir de entrevistas que realizamos após as apresentações do espetáculo, nos deparamos [quase sempre] com a presença de pessoas que nunca tinham ido a uma apresentação teatral e escolheram o nosso ônibus para este primeiro

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contato. O nosso espetáculo acontecia em movimento pelas ruas da cidade. O público, através das janelas, não perdia o contato com o universo externo do ônibus e por essa razão o mundo externo também não deixava de ser afetado com o que acontecia no interior deste ônibus. Ou seja, estávamos atingindo outras pessoas, interferindo em outros ônibus, nas ruas, avenidas, becos e bares onde passávamos. RUDINEI BORGES – Quais são os novos projetos da Trupe? Para onde o grupo caminha? ANDERSON MAURÍCIO – A Trupe, com a necessidade de reaver e analisar o seu percurso, definiu como projeto, em 2011, levantar material de estudo para leituras, encontros, rodas de discussões e práticas do que nomeamos como movimentos de pesquisa: do espaço, do público, da atuação, da produção e da dramaturgia. Estes movimentos de pesquisa têm a intenção de avançar com a pesquisa teórica e prática que estamos desenvolvendo, pois o espaço pode ser reinventado através de elementos cênicos, mas também pode ser o espaço cru do transporte público, que modifica totalmente a nossa prática teatral. O público do transporte coletivo motiva o estudo sobre a cultura popular, da dramaturgia cênica e do real encontro com o universo popular. Mas também com a possibilidade de termos o público como sujeito-participante da encenação. O ator passa pela atitude/ação de experienciar. O verbo experienciar é um conceito unificador que trata do todo de uma pessoa, ele precisa percorrer por esses espaços, por esse público na busca de conhecer-reconhecer, e elaborar a sua expressão artística atravessada pela imersão no mundo em que atuamos. A produção é vista não só como viabilização de um trabalho artístico, mas como convocação do público para a existência dessa pesquisa, pois não é só uma questão de proporcionar o acesso da população ao teatro e sim conceber a população como parceira/criadora, com participação ativa nas ações culturais. A nossa inspiração é o que propunha o MCP – Movimento de Cultura Popular nos anos 1960, na cidade de Recife [PE]. Este Movimento abriu um espaço considerável para o campo da arte nos meios populares, possibilitando o acesso a esse bem social e objetivando a conscientização crítica e política das camadas populares. A trupe caminha para a sua estirada, a longa caminhada que á a própria vida. Caminhamos para um teatro que não nega as suas referências históricas ao longo de sua formação e vivência artística, mas caminha

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para um teatro próprio, que tem como proposta de pesquisa o teatro sem fronteiras, o teatro do encontro.

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TRUPE SINHÁ ZÓZIMA -

artista-pesquisador/diretor/coordenador

ANDERSON MAURÍCIO

artista-pesquisador/dramaturgo/editor

RUDINEI BORGES

artistas-pesquisadores/atores

ALESSANDRA DELLA SANTA JUNIOR DOCINI MARIA ALENCAR PRISCILA REIS TATIANE LUSTOZA

produção

THAÍS POLIMENI assistência de produção MARIA ALENCAR

redatores

ALEX MAURICIO MÁRCIA NICOLAU

documentarista

LUCIANA RAMIN

fotografia

CHRISTIANE FORCINITO DANILO DANTAS

webmaster

DANILO PERES

designer

DEBORAH ERÊ

desenhos

GUILHERME KRAMER

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RUDINEI BORGES

TEATRO NO ÔNIBUS -

coordenação editorial/texto/diagramação/revisão RUDINEI BORGES

projeto gráfico/criação de arte DEBORAH ERÊ

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realização cultural

www.sinhazozima.com.br contato@sinhazozima.com.br 55 (11) 96292-0447

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RUDINEI BORGES

A criação literária, teatral e filosófica de Rudinei Borges notabiliza-se, sobretudo, pela investigação do encontro como categoria existencial. A partir deste parâmetro, a memória surge marcadamente como a matéria mais relevante na tessitura da obra deste autor. Epifanias que eclodem de lembranças, as mais antigas, desvelam composições poéticas advindas de narrativas de vida: autobiográficas ou não. É o que ocorre desde o lançamento de seu primeiro livro Chão de terra batida (2009), que despertou o interesse de críticos como Affonso Romano de Sant’Anna. Rudinei Borges é dramaturgo, poeta e ficcionista. Ator e diretor de teatro. Nasceu em Itaituba, interior do Pará, onde iniciou a sua formação teatral, integrando cursos oferecidos pela Secretaria de Cultura, e participando de movimentos sociais e comunidades de base. Em São Paulo, integrou o Núcleo de Dramaturgia da Escola Livre de Teatro de Santo André (ELT). Formou-se em Filosofia no Centro Universitário Assunção e, atualmente, conclui o curso de mestrado na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) com pesquisa sobre a Filosofia do Encontro em Martin Buber. Em 2010, escreveu e dirigiu a peça Poetas de vidro e, no ano seguinte, foi contemplado pelo Concurso de Texto Inédito de Dramaturgia do Programa de Ação Cultural (ProAC) do Governo do Estado de São Paulo. Em 2012, com o apoio do Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais (VAI) da Prefeitura de São Paulo, escreveu e dirigiu a peça Chão e Silêncio, pesquisa poético-memorialista do Núcleo Macabéa, grupo de teatro com residência artística na favela do Boqueirão, na zona sul. Rudinei Borges atua, desde 2011, como pesquisador e dramaturgo na Trupe Sinhá Zózima, trabalho que resulta na feitura do livro Teatro no ônibus: pesquisa cênica da Trupe Sinhá Zózima, no texto dramatúrgico das peças Dentro é lugar longe e na revista Fagulhas, ações contempladas pelo Programa de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo. SIDNEI FERREIRA DE VARES Doutor em Educação Universidade de São Paulo


É possível que o teatro seja parte integrante da autocriação da vida. Não mais como bem pertencente a um pequeno grupo de privilegiados ou como bem inacessível e incompreensível. Nesta reapropriação da vida, o teatro [que aqui se pretende teatro do encontro] insere-se de modo sagaz como anima da vida reinventada. É neste sentido que o projeto de pesquisa da Trupe Sinhá Zózima opta por uma práxis que realoca o lugar da ação cênica para o ônibus [omnibus], aproximando-se de trabalhadores que usam este meio de transporte. Exatamente nesta ação reside a maior contribuição da Trupe: a aposta biopolítica da reapropriação, pelos sujeitos sociais, da legitimidade de seu poder de criar e refletir sobre a criação de sua vida. [Rudinei Borges]


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