A Duquesa Bailarina - primeiros capítulos

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Moscou, setembro de 1812 Os ventos gélidos começaram a soprar pelas ruelas, desde as margens do rio de Moscou até o mais profundo entrave, mas nada podiam fazer contra as chamas que tomavam a cidade. Lambiam tudo que tocavam, corriam por tudo que consumiam. Com o apagar das luzes, as chamas se acenderam. E eis que no meio daquele inferno, pairava sozinha uma criança, entre as ruelas daquela cidade condenada. Com seus cabelos ruivos coberto de cinzas ao vento chamava por seus pais. As lágrimas escorriam como rios claros em sua face colorida pelo pó. Seus gritos soavam pelas ruas como a mais agonizante morte daquela infância dourada. Desde o momento em que, num último ato de desespero seus pais tentaram escapar daquela loucura, não mais uma face amiga viu, não mais um acalento familiar sentiu.


Naquele mar de gente, que a empurrava e a levava, via-­‐se impotente e desesperada. Após tanto gritar e procurar, não mais tinha voz. Após tanto andar, não tinha mais forças. Com sua boneca agarrada às mãos e as lágrimas, que não mais cabiam em seus olhos verdes, ao ser empurrada não conseguiu evitar a queda. Enquanto todos tentavam fugir daquela barbárie dos soldados franceses e da ocupação de Napoleão, esquecida e desacordada estava a menininha nas calçadas daquele local tão célebre. Sob os olhos dos anjos e aos pés dos santos que decoravam a Catedral de São Basílio, Alexandra rezou para o papai do céu que se aquele fosse seu momento, houvesse piedade, pois não mais a encontrara no meio daquele inferno.


Ópera de Londres, 10 de junho de 1828 Não aguento mais outro evento social... pensava Edward enquanto guiava sua mãe e irmã para que a família se acomodasse no camarote privativo do Duque de Lovington. Fazia um calor extraordinário naquela semana de verão, em que todos se dirigiam à cidade de Londres para aproveitar a temporada social de bailes e espetáculos. Para Edward Goldenstein, quinto Duque de Lovington, tornava-­‐se enfadonho mais uma vez ter que socializar com debutantes mimadas pelos seus pais e aristocratas infantilizados pelas suas mães. Preferiria muito mais passar seus dias como fazia o resto do ano, repleto de suas obrigações parlamentares e de seus interesses comerciais. Desde a infância em que viu o amor de seus pais sendo destruído pelo vício do antigo Duque, o qual canalizou nas bebidas todas as suas preocupações com o patrimônio do ducado, Edward prometeu a si mesmo que nunca se deixaria levar por interesses pessoais em detrimento da evolução de seu legado. — Meu filho, você deveria sair mais e se dedicar a encontrar uma esposa, esse ano estará completando trinta e um anos e precisa de um herdeiro! Senão, para que tanto trabalhar? — questionava minha mãe, Sarah, a respeitada Duquesa de Lovington, enquanto tomávamos nossos lugares.


No fundo, sabia que toda aquela preocupação vinha de um lugar de amor, porque imaginava seu medo que essa obsessão maluca com o ducado tomasse conta de mim, como aconteceu com meu pai e sua queda na bebida. Segundo suas próprias repetidas palavras, os negócios poderiam me levar a um fim tão nefasto e solitário quanto o levara. — Ah, agora você não pode fugir da conversa hein, Ed! Pode tentar tomar café-­‐da-­‐manhã antes de nós para evitar ser pego pela mamãe casamenteira, mas uma hora ela sempre alcança — ria minha irmã, Charlotte, do estado que era reduzido. — Irmãzinha, você também não facilita... — disse enquanto a ajudava a tomar seu lugar ao meu lado. — Mamãe, a senhora sabe que um dia me casarei, tento apenas consagrar o Ducado de Lovington nos livros de história antes disso. Acredite, sei bem das minhas obrigações como o Quinto Duque de Lovington, e não a decepcionarei. — Eu entendo, meu filho, sempre soube que não me decepcionaria. Mas, saiba que para nós nada disso é importante. Lógico que valorizamos todo seu trabalho e dedicação para reerguer o ducado, desde que seu pai faleceu há treze anos. Mas, nunca foi minha intenção que sua vida se resumisse a isso! Você tem que formar sua família, encontrar um amor para sua vida e com ela, criar filhos para perpetuar sua história, a história desse meu filho tão amado. Essa, sim, importa. Ao tomar meu assento entre as duas, buscava a melhor forma de guiar aquela conversa para além de mim, enquanto impacientemente esperava o espetáculo Giselle começar. — Mamãe, a senhora deveria estar é procurando um marido para Char, já com vinte e um anos e nada de aceitar um dos vários pretendentes que aparecem às portas de nossa casa. — Ah, não, Ed, não venha com essa! Isso eu já escuto o dia inteirinho, agora o foco é você, irmãozinho. — Disse Charlotte com feições divertidas no rosto. A arteira da minha irmã sabia o caminho que a conversa ia levando, bem longe dela e do seu estado de solteirice, e estava amando cada segundo. — Pois bem, me comprometo que tentarei focar nos eventos sociais e olharei com maior cuidado para as debutantes da temporada. Mais que isso não posso me comprometer, porque junto às reformas previstas para serem debatidas no Parlamento, não posso esquecer do novo empreendimento junto a Companhia das Índias, sobre o financiamento de novas rotas de navio. — Desabafo para minha mãe e irmã. — Querido, não quero que você se mate pelo ducado, nós já vivemos com toda a riqueza que podemos aproveitar nessa vida, a sua presença em nossas vidas


vale muito mais que isso tudo — responde minha mãe, segurando meu rosto. — Não quero que se sinta pressionado a isso por causa do passado com seu pai... Não a deixo terminar porque essa é uma fase da minha vida que, sequer em conversas, admito revisitar. As decepções vividas no passado com esse pai que, na minha infância era meu exemplo e na vida adulta minha decepção, eram doloridas demais para falar. — Não tem nada a ver, mãe. Fica despreocupada, tenho plena consciência de todas as obrigações do ducado, inclusive a de dar um herdeiro à linha de sucessão. — Ed, não fique triste conosco, só tentamos fazer por você um pouquinho do que faz por nós. Você é o Duque de Ouro da aristocracia britânica, até o próprio Rei o disse naquele banquete ano passado. Já atingiu muito mais do que qualquer um esperava, está na hora de focar em sua vida e seus sentimentos. O menino dourado da aristocracia, era assim conhecido pelos jornais e fofoqueiros de plantão, especialmente após o banquete real na temporada passada, em homenagem aos meus trinta anos. Pela aristocracia era venerado, pelos jornais era adorado. Todos ficavam encantados em acompanhar como em poucos anos passei de um Duque falido para aquele que estava pronto para dominar o mundo. Com olhos cinza e cabelos curtos em tom dourado queimado, que alguns viam como angelical, era óbvio o apelido. Mas, como teimavam em falar, se devia muito mais pela minha fama de perfeitinho, sem sentimentos, que se dedicava inteiramente ao ducado, sem qualquer falha ou escândalo na minha ascensão ao topo daquela casta. — Até você, irmãzinha? Sabe que não gosto desse apelido que Jorge cismou em me dar. — Exatamente por isso continuo a usar, é tão divertido, quase nunca consigo vê-­‐lo perder a paciência! Sempre tão sério... — responde. Ah, sem sentimentos, sempre sério, isso era o que achavam. Quisera eu que fosse isso a verdade... Por vezes me sinto tão afogado nas tristezas do passado e na pasmaria do presente, que mais fácil realmente seria não sentir nada, ao invés de seguir dia após dia colocando essa pose de que tudo é perfeito. A vida vai passando e as conquistas se acumulam, mas isso está cada vez menos compensando o vazio que guardo dentro de mim. Pego-­‐me perdido pelos pensamentos quando sou surpreendido pelo som de todos se levantando.


Olho para o lado e, automaticamente, faço o mesmo, batendo palmas junto com os demais, pois percebo que acabou de ser anunciada a chegada do Rei Jorge IV e da Rainha Caroline, sua esposa, no recinto. Com a entrada dos monarcas em seu camarote real, no centro do anel superior da Ópera Real Britânica, vemos Jorge agradecendo com um aceno de mão à plateia, e com uma singela, mas valiosa inclinada de rosto se virou aos camarotes dos Duques ali presentes, cumprimentando-­‐os. A casa de espetáculos mais celebrada da nação estava lotada, não se conseguia ver sequer um assento vazio no teatro. Todos estavam ali presentes para a estreia do espetáculo da tão famosa prima bailarina do Teatro Bolshoi, que apesar de recém-­‐inaugurado, já era visto como referência da arte em todo o continente. Era a primeira vez que ela se apresentava fora da Rússia, e a presença do Rei por si só já mostrava o quão concorrido era o balé. Preciso confessar que até mesmo eu me encontrava ansioso para ver o espetáculo, e julgar aos meus próprios olhos se tudo o que li sobre ela nos jornais é real, se os elogios e recomendações eram verdade ou tão somente outra hipérbole construída por um burburinho sem fundo ou autenticidade. As luzes diminuem. Enquanto progressivamente subia a penumbra pelo Teatro, levantam-­‐se as cortinas do veludo vermelho no palco. Era possível sentir no ar a energia de todos aqueles espectadores aumentando na medica que as cortinas subiam, centímetro por centímetro. Mais de mil pares de olhos vidrados na expectativa da revelação da mesma cena. Naquela noite, pela primeira vez seria apresentado Giselle nos palcos ingleses. O balé, desde que estreou há alguns meses em Paris, era a sensação do momento, com relatos de pessoas aos prantos quando saiam da sessão. Um foco singelo no palco se acende, iluminando uma única mulher, que com sua pequenina presença, consegue dominar por completo o vasto palco. Com vestes de camponesa e flores nos fios ruivos presos, encontrava-­‐se parada no meio do palco esperando a orquestra iniciar sua mágica. Antes mesmo da primeira nota musical, reconheci que estava capturado por aquela criatura que nunca tinha visto, mas nunca no futuro conseguiria esquecer. Sabia que para sempre aquele momento de revelação ficaria marcado em minha memória.


Caminhei com meus olhos por aquela presença, que dominava o palco enquanto segurava todos em suspenso. Acompanhei cada uma de suas esguias pernas, prosseguindo por sua cintura, inacreditavelmente, fina e pelos fartos seios e pelo delicado pescoço, até chegar a sua face. Apesar da maquiagem de palco, não tinha como negar a beleza daquelas feições. Um rosto em forma de coração, com as maçãs do rosto altas e lábios carnudos, coberto pela pele sublime que, de tão perfeita, parecia o brilhar da primeira neve de inverno. Verdadeiramente, sinto o deslumbre do momento quando testemunho o mais lindo par de olhos que já vi na vida. Mesmo longe, sei em meu coração que uma alma gêmea mora naquele olhar. Inclino meu corpo à frente e apoio meus cotovelos em minhas coxas, enquanto sinto a imensidão verde dos seus olhos, como a mais pura relva intocada, me atingir. Com o impacto da flecha a perfurar o fundo desse coração de gelo, sinto-­‐me estilhaçar, e, mesmo usando toda a minha racionalidade, não conseguiria explicar, apenas aceitar que depois daquele momento nunca mais seria o mesmo.


— Amiga, não acredito!! O Rei de toda a Inglaterra virá nos assistir! — dizia Olga enquanto ajudava a terminar seu coque para a apresentação que começaria em breve. — Olga, por favor, assim você me deixará mais nervosa. Já estou com os nervos à flor da pele! — desabafo aos risos com minha amiga, que também era bailaria auxiliar do Balé Russo, que estava naquela temporada visitando a Ópera de Londres. — Lexie, até parece! Se tem alguém que não se deixa abalar com nervos é você! Nos dez anos que dançamos juntas, conto nos dedos as vezes que te vi errar. — Mas dessa vez a importância é ainda maior... Estamos aqui representando todo o Bolshoi! — Ah, querida, não deixe isso subir à cabeça, lembre-­‐se que aqui estamos porque treinamos a vida inteira para esse momento e não são nervinhos que nos tirarão do caminho — disse Olga, dando-­‐me um abraço e levantando-­‐se para checar o penteado finalizado. – Amei!! Muito obrigada, sabia que podia contar contigo! — Imagina, estava precisando de uma distração mesmo... — Lexie, tenho que conferir com Madame Brigitte meu segundo figurino, então vou te deixar um pouco sozinha, mas não esqueça o que te disse, estamos todos juntos nessa jornada, somos uma família e eu, como testemunha de tudo que viveu, acredito totalmente em ti.


— Obrigada, amiga, você não sabe a força que isso me dá. — Respondo com um abraço, me despedindo de Olga até o momento que nos encontraríamos no palco, antes de iniciar a apresentação para a oração clássica pré-­‐estreia. Família! Quisera eu... sabia que aquele corpo bailarino seria o mais próximo de vínculos eternos que teria, mas por vezes ainda me permitia sonhar. Ao olhar meu reflexo no espelho, vi de relance a menina de quinze anos atrás, com arregalados e marejados olhos esverdeados, com sangue escorrendo pela testa onde havia batido no meio-­‐fio aos pés da Catedral de São Basílio. Senti-­‐me transportada para aquele momento, como se até o presente momento estivesse congelada naquela reflexão do passado. Como se não existisse a grande bailarina russa, mas somente aquela triste e indefesa criança contra as maldades do mundo. Imediatamente, minha mão foi em direção à corrente que, religiosamente carregava no pescoço, o único vínculo que tinha à vida esquecida, que sequer meu nome lembrava. Lexie. O passado é como um cenário por trás da cortina, que nunca se desvenda. Seus atores, músicas e contexto nunca me foram esclarecidas. Daquele show só sabia seu nome, ou melhor, sabia meu nome, fixado na correntinha de ouro em uma placa retangular que sempre carregava em meu peito: Lexie. Tudo que me recordo da noite que mudou minha vida era o calor. A certeza que aquelas chamas iriam me engolir onde estava, aos pés da Catedral de São Basílio, antes que qualquer pessoa pudesse me salvar. Mas anjos olhavam por mim. E não apenas no sentido figurado, porque pelos padres da Catedral fui salva. Eles estavam na entrada do templo ajudando os que lá se exilavam quando presenciaram tudo que acontecera até meu desfalecimento. Graças a eles fui resgatada, tive um local para me recuperar até que recobrasse a consciência e alguém viesse me buscar. Dias passados, finalmente acordei, e com um lento progresso consegui voltar a uma certa normalidade. Daqueles dias de medo e incerteza me lembro de poucas coisas, mas sempre guardarei a memória do gentil médico que me atendeu e explicou como poderia


levar horas para rememorar tudo que tinha vivido até meu acidente, ou talvez nunca recobrasse minhas lembranças. Com minha recuperação acabei entrando em uma rotina. Naqueles primeiros meses, enquanto não fosse resgatada, os padres cuidaram de mim. Eu amava ajudá-­‐los, mas ao fim das tarefas na paróquia, sempre ficava em meu coração a esperança se aquele seria o dia que finalmente retornaria para o seio de pessoas que me amavam. Eu sabia que elas existiam, mas não sabia quem elas eram. Sentia como se as memórias dos abraços, beijos e afagos fossem tão reais quanto carne e osso, mas as feições e nomes daqueles entes tão queridos eram tão vagas quanto a mais breve nuvem numa tarde de verão. Por mais que tentasse lembrar de qualquer detalhe que pudesse me ajudar a solucionar o mistério do que aconteceu naquela noite quente de verão russo, nada vinha a mente senão uma forte dor de cabeça. Quão grande era minha decepção de ver cada dia passar e sequer uma pessoa me procurar... Naqueles dias, confesso que em meu coração sentia a tristeza de não me adequar. Adorava os padres e agradecia tudo que faziam por mim, mas sabia que aquele não era meu lugar. Após os meses iniciais que as coisas na cidade foram voltando ao normal, também me vi colocada naquilo que seria minha nova realidade: o orfanato de Moscou. Apesar da dor no meu coração e da certeza que tanto relutei em admitir, que nunca retornaria ao meu lar, segui o caminho que foi colocado à frente. Tinha uma nova casa. Lá, minha vida que parecia nunca se recuperar das cinzas que a cobriram depois daquele dia de chamas finalmente encontrou um feixe de luz a brilhar. Uma bela senhora francesa chegou para lecionar aulas para as crianças órfãs. O nome dela, que para sempre guardo em meu coração, é Madame Brigitte, e por meio dela redescobri uma característica que sequer conhecia: era uma bailarina nata. Segundo Madame, provavelmente já fazia aulas antes de meu acidente. Independente, depois de meses me sentindo perdida em um mundo que não reconhecia e não era reconhecida, no balé encontrei uma um lugar de adequação.


E então, esperava ansiosamente pelas três vezes semanais que Madame lecionava no orfanato, quando finalmente na dança sentia-­‐me voando e por um momento esquecia que não sabia quem era, de onde vinha ou quem amava. Apenas me importava que Lexie dançava, e voava. Em meio à minha viagem ao passado, sou surpreendida quando vejo aquela amada senhora entrar em meu camarim. — Quebre a perna, mon chérie — disse Madame Brigitte, após lentamente entrar pelas portas e se conduzir até onde estava sentada. Apesar dos anos passados, ainda continuava uma formosa mulher de pouco mais de cinquenta anos. Quando questionada quanto as rugas e dificuldade de andar, ela respondia: tudo que viveu estava refletido em seu corpo, sejam os anos de treinamento na Ópera de Paris, sejam os risos e dores nos longos anos napoleônicos. Então, cada uma daquelas rugas, cada passo daquela difícil caminhada, valiam à pena. Aqueles olhos já muito testemunharam, mas transmitiam pouca amargura. Ao sentir-­‐me abraçada por trás, olhei bem no fundo deles através do espelho, permitindo-­‐me aquele momento de paz nos braços de minha segunda mãe. — Lexie, não se esqueça do troque de passos no segundo ato — minha mentora me alerta. — Pode deixar, maman, já está tudo guardado na cabeça. — Mon chérie, não esperava menos de você. Desde que te vi naquele orfanato em Moscou, sabia que seu futuro iria muito além daquelas paredes acinzentadas — disse, ficando emocionada. — Sua estrela brilhará muito além desse palco que está prestes a pisar. — Madame, gratidão é pouco para tudo que lhe devo. A senhora me guiou até esse momento, e juro que lhe recompensarei, pois sinto que tudo que sonho teremos a partir deste momento. — Respondo com vigor. — Eu sei, chérie, mas saiba que faria tudo novamente. Depois que Monsieur faleceu, durante a ocupação, pensei que não teria mais motivos para viver, e somente em vocês, crianças de meu coração, que reencontrei o amor pela vida e pelo balé — diz Madame Brigitte, tomando nos olhos a feição acrimônia de saudades sempre quando mencionava seu falecido marido. – Não há o que agradecer, pois vocês me mantiveram viva naqueles tempos tão escuros. Enquanto sinto no cabelo o afago maternal do seu carinho, meu coração transborda de empatia por aquela mulher, que tanto batalhou, mas tão injusta sua


vida foi. Mais cedo que esperava, o destino retirou de seus braços o amor da sua vida, e assim terminou precocemente a linda história de Madame e seu Tenente. Sentia naqueles olhos a simpatia pela perda alheia. É curioso, porque dentre tudo que maman me ensinou, nada foi tão verdadeiro quanto aprender que a maior dor é aquela da ausência. É um vazio que nunca é preenchido. No caso de Madame, é viver com a certeza de jamais rever aqueles que ama... Enquanto para mim, resta a esperança que um dia reencontre aqueles que havia perdido. — Juntas vamos continuar, Madame, a senhora nunca mais estará sozinha. Nosso sonho está ao nosso alcance, agora falta pouco. Muitas companheiras de palco quando ao final da noite, após retirada a maquiagem e todo o figurino, em conversa desabafam quanto aos sonhos e anseios, e um era comum: tornar-­‐se uma estrela. Inclusive, algumas delas olhavam em minha direção com avidez, pois entendiam que eu já tinha nas mãos aquilo que tanto desejavam: o status de ser a principal bailarina de um dos maiores corpos de baile do mundo. Mas, o que alguns definem como estrelato, ser a prima bailarina de uma das mais famosas Óperas do mundo, não é meu sonho. Claro, a dança sempre será parte essencial de mim, e a sensação de comandar o palco e de entregar-­‐me à música e aos sentimentos que ela transmite são indescritíveis. É uma inteireza de ser, incomparável. Mas, meu coração galopa em direção a um sonho maior, minha própria Casa de Balé. Desde menina, quando fui recebida pelos padres naquele orfanato, e vi a dança salvar meus dias e guiar-­‐me a um futuro, prometi a mim mesma que faria o mesmo por outras crianças. Que por elas estenderia a arte que tão lindamente havia me tirado da desolação. Esse é meu sonho, e hoje é o primeiro passo para concluí-­‐lo. Finalmente, após anos trabalhando e juntando dinheiro, com a gratificação que receberia ao final da temporada em Londres, conseguiria montar meu tão sonhado projeto.


— Sim, mon chérie, estamos quase lá — responde Madame ao olhar em meus olhos através do espelho, compartilhando comigo aquele projeto tão aguardado. Repentinamente, nosso momento foi interrompido pelo primeiro sinal, indicando que o espetáculo estava prestes a começar. — Madame, tenho que ir, nos encontramos após a apresentação? — pergunto. — Claro, minha amada, estarei aqui para ajudá-­‐la com seu traje — responde Madame Brigitte, rememorando sua função na coordenação dos figurinos da apresentação. — Obrigado, maman! — respondo, carinhosamente. Com um último relance, fechei a porta e fui pelos corredores escuros e caóticos me conduzindo ao ponto de reunião dos bailarinos prontos para iniciarmos a apresentação. Ao chegar, vejo que já reunidos estavam aqueles amigos, que tantas horas passei ao lado, treinando e me dedicando para esse momento. Segurei as mãos de Olga e de meu parceiro de palco, Dimitri, quem faria o papel de Albrecht, para juntar-­‐me à roda de orações e mensagens costumaz que precedia todas as nossas apresentações. — Boa sorte, Lexie! – disse Dimitri com um abraço, saindo do centro do palco e se posicionando na lateral onde entraria após o final da primeira música. — Sim, querida, arrase! —Olga diz, ao segurar minhas mãos com um leve aperto. O segundo sinal foi anunciado e eu me conduzi até o marco de início no chão daquele palco, tão célebre, venerado por tantos incríveis talentos que aqui pisaram. Chegou o momento de finalmente escrever minha história. Muito além de uma jovem bailarina russa. Muito além de uma pobre menina abandonada. Nesse palco, seria a partir de hoje escrita a história de Lexie Vasiliya, e em breves semanas, meu sonho estará consagrado. Nada poderá me parar. Posiciono meus braços sobre minha cabeça, flexiono as pernas e sinto as batidas de meu coração combinarem com os centímetros que sobem as cortinas.


Respiro fundo. Esse é meu momento. Quando as luzes me alcançam, levanto levemente meu rosto, inclinando-­‐o para o lado quando sinto um olhar peculiar. Os segundos param, a respiração acelera. Naqueles curtos segundos, entre a subida das cortinas e o início da música, encontro olhos que reluzem como uma tempestade acinzentada, neles guardando dor que sentia no fundo do coração. Um olhar tão profundo e devastador, que me senti por ele capturada naquele infinito instante. Finalmente, como se uma eternidade tivesse passado naquele piscar de olhos, com o iniciar da música de Giselle, rememoro onde estou e assumo a posição e passos da camponesa francesa. O show tem que continuar.


Os aplausos me pegam de surpresa quando, com o abaixar das cortinas, percebo o fim do primeiro ato, marcado pela morte da personagem principal. Por momentos fico pensativo em meu assento, contemplando aquele estado de transe que estivera com cada passo e gesto da prima bailarina russa. Não entendo o que particularmente me capturou no momento que cruzamos nossos olhares, mas me sentia incapacitado de mover um centímetro sequer para longe daquele espetáculo que era apresentado. Como nunca antes sinto as emoções daquela história de amor cursarem meu corpo, e no meu coração encontrarem lar. Meu coração gelado, com cada passo da linda apresentação que conduzia a prima bailarina, começara a bater uma pulsação por vez. — Vamos cumprimentar Vossas Altezas, meninos? — perguntou minha mãe sem perceber o estado de paralisia que eu estava. Eu aceno com a cabeça enquanto minha irmã responde: — Vamos, mamãe, preciso aproveitar a oportunidade e ver se encontro com Lorde Andrew para conversarmos sobre a aposta que ele está me devendo — diz Charlotte, de forma espirituosa.


Andrew, Conde de Snowden, é meu melhor amigo e parceiro de negócios. É o irmão que nunca tive, desde pequenos juntos até nas maiores enrascadas. Nossos anos de aventura pelos campos de nossas propriedades de inverno são passados, mas graças àqueles dias hoje sei que nele posso confiar em todos os momentos. Charlotte, que muito tentou nos seguir nas peripécias que aprontávamos, sempre adorou pegar no pé do meu amigo. Quando jovem, era quase uma idolatria, mas recentemente a competitividade entre os dois ia aumentando e não era raro escutá-­‐la mencionando uma de suas apostas, que ficaram cada vez mais frequentes. Saímos ao corredor até a Bancada Real, onde outros nobres esperavam para falar com Suas Majestades. Vejo Charlotte tentar procurar por Andrew, mas acredito que meu amigo não tinha vindo naquela noite à Ópera. Quando chega nossa vez, fomos apresentados aos reis, com a devida reverência real, enquanto os monarcas soltam largos sorrisos. — Lady Sarah, que prazer ver Vossa Graça nessa noite tão espetacular, cada vez mais bela! — cumprimenta Rei Jorge, sempre galanteador, apesar dos anos passados. — Jorge, menos, vai deixá-­‐la sem graça, ainda mais na frente dos filhos! — ria a Rainha Caroline. — Não ligue para ele, como vão? — ela pergunta, como sempre muito elegante. — Muito bem, Vossas Altezas, obrigado por perguntar. — Responde minha irmã. — Lady Charlotte, sempre encantadora. Pelo o que escuto nos corredores do Palácio, sei que a senhorita está comandando o cenário social londrino nas palmas das mãos. — Confidencia a Rainha. Enquanto as três se voltam às fofocas da alta sociedade, Rei Jorge vem até mim para um aperto de mãos. — Edward, meu afilhado, como está o novo empreendimento das vias férreas? — pergunta o Rei. — Muito bem, Vossa Majestade. Estamos buscando nos próximos cinco anos expandir para mais seis condados, de modo a conectar o fornecimento de insumos agrícolas e diminuir a escassez na época da estiagem. — Respondo. — Muito bem! É mesmo meu Duque de Ouro! E no Parlamento, como andam meus súditos? Ainda muito amolantes? Rio da perfeita descrição dos meus pares, que só o Rei teria liberdade de falar publicamente.


— As sessões serão em breve retomadas, como Vossa Majestade sabe, e muitas das reformas que batalhamos têm possibilidade de passar nessa legislatura ainda. Precisamos apenas converter mais alguns votos. — Ótimo, sabia que poderia contar com você. — O Rei responde, dando-­‐me leves tapas nas costas. Por motivos óbvios, publicamente Jorge não podia expor tendência política alguma, senão seu recente reinado já estaria ameaçado. Mas, entre os íntimos sempre foi defensor de medidas igualitárias para seus súditos, dos aristocratas até a plebe. — Sempre, Vossa Majestade. Com o sonar indicando o final do intervalo, retornamos aos nossos assentos, onde volto a rememorar aquela bela bailarina e todas as sensações que senti em seu olhar, em cada um dos passos que no palco tomava, até no mais singelo aceno com suas mãos delicadas. Com o reinício da apresentação, o segundo ato da peça nos conduz pelas dificuldades daquele amor proibido entre campesinato e nobreza, que nem mesmo a morte foi capaz de separar. A ruiva bailarina, agora com as feições empalecidas pela maquiagem, que a retratava de forma mórbida, deslizava pelo palco com uma sutileza, que lhe era particular. Cada um de seus movimentos, graciosos e meticulosos, retratavam as emoções e transformações naquela personagem, que tão logo que achou o amor de sua vida, se viu traída pelo destino. Escuto leve soluços ao meu lado e me viro, procurando a origem do barulho, quando encontro minha mãe enxugando as lágrimas que escorriam dos seus olhos. Parecia que naquela história, de amor impossível, ela mesma se reconhecera como a jovem que tanto perdeu e seria impossível voltar atrás, pois a morte a separava do seu amor. A apresentação continua até seu ápice, culminando com o emocionante perdão no final. Após o término, confesso que sequer escuto uma voz se levantar. Em um teatro para centenas de pessoas, nem mesmo um sussurro podia ser ouvido. Parece que não era eu o único capturado por aquela apresentação, que em muito transcendeu a mera dança clássica, mas verdadeiramente, envolvera sentimentos e emoções.


Finalmente depois de alguns instantes, ainda com as cortinas cobertas, escuta-­‐se um par de mãos isoladamente batendo palmas. Todos viraram-­‐se em direção àquele som, como se acordados fôssemos após tão bela performance. Em seu camarote central, Rei Jorge estava de pé batendo palmas para toda a dedicação e entrega que presenciamos no palco. Seguindo seu exemplo, logo a Rainha Caroline levanta-­‐se e em seguida os demais espectadores começam um rugido com palmas e gritos, que somente para quando novamente, agora por uma última vez, aquelas cortinas se levantam. Brava! — escuta-­‐se repetidamente dentre os espectadores, e buquês de flores já são arremessados em direção ao palco. Enfim, as cortinas são alçadas e ali se apresenta para o grand finale todo o corpo de baile, que com passos tão treinados e cronometrados, transmitiram a perfeição humana em forma de espetáculo. Após o momento de aclamação do bailarino principal, que foi até o centro do palco receber a ovação, foi a vez daquela linda mulher, de ruivos cabelos e olhos esverdeados, tomar seu lugar de destaque. Reclinando-­‐se até o chão, onde pega um buquê de rosas vermelhas para segurar junto ao corpo, levanta sua feição e agradece ao público pela adoração, com uma especial reverência aos monarcas ali presentes. Como um espectador escondido, via naquele olhar a emoção verdadeira da mulher, e não da personagem. Seus olhos enchiam-­‐se de lágrimas como se ela mesma sequer acreditasse que tudo aquilo estivesse acontecendo. Mas, como poderia não ter fé em si mesma? Em todos os seus passos, jeitos e gestos foi a mais delicada performance de dança que já havia presenciado na minha vida... Por uma última vez reclina-­‐se e quando se levanta, ao virar-­‐se em direção do fundo do Teatro, nossos olhos novamente se cruzam. Naquele instante não havia mais som, não havia mais nada senão eu e ela, naquele breve momento infinito, que acaba antes que estivesse preparado. Então, a prima bailarina é conduzida aos fundos para o aceno final, junto com seus colegas de balé, quando ao fim as cortinas descem e sinalizam o término daquele espetáculo. Ajudo minha mãe e irmã a se levantarem e pegarem seus leques, nos preparávamos a regressar para casa.


Mas, não conseguia. — Mãe, vi Andrew mais à frente no corredor e preciso conversar com ele sobre uma reunião de negócios que teremos essa semana com os demais acionistas da ferrovia, mais tarde encontro vocês em casa. — Inventei, pois precisava de uma desculpa para ter mais alguns momentos com aquela bailarina. Sentia-­‐me inquieto como nunca antes. Precisava conhecer aquela mulher.

Ainda com aquela vontade em mente, fui até a parte interna da Ópera e com alguns trocados nas mãos certas, consigo encontrar o camarim da bailarina. Nunca antes havia feito algo parecido. Meus casos eram sempre disciplinados e controlados, com mulheres que sabiam muito bem tudo que poderiam esperar de mim. Gostava nas minhas relações de previamente já deixar bem claro que declarações e lágrimas em nada me afetariam, pois bem distante delas estariam meus sentimentos. Pode parecer insensível, mas sabia que muitas delas procuravam em mim uma forma de satisfação, seja patrimonial, seja corporal, e estava aqui, à sua disposição. Mais que isso meu coração de gelo não estava preparado para dar à mulher alguma. Por isso, estava tão inquieto por ter chegado até aquele momento, em frente à porta da prima bailarina. Sequer sabia seu nome... Não entendia o que estava fazendo ali, apenas sentia no meu ser que não poderia estar em qualquer outro lugar. Bato duas vezes à porta até que escuto passos vindo do outro lado. Pela fresta embaixo, vejo uma sombra parar à frente de onde estava. Respiro fundo. As portas se abrem e olhos verdes me consomem.


Sabia pela sua reação com o rápido, mas perceptível, arregalar do olhar, que de alguma forma, seja nessa ou em outra vida, encontro naquele coração o reconhecimento que buscava. E assim sabia a razão de meu coração ter me conduzido até ali: para conhecer aquela mulher. — Posso ajudar o senhor? — pergunta a bailaria com uma voz leve e refrescante, soando nos meus ouvidos como o primeiro cantar da mais bela primavera. Tinha levemente um sotaque russo, que tornava as palavras que saiam de seus lábios ainda mais misteriosas. De longe já conseguia reparar na sutileza de seu corpo e movimentos, mas nada havia me preparado para o impacto que teria ao vê-­‐la frente-­‐a-­‐frente. Realmente, não sei porque estaria surpreso, já que somente uma mulher com um corpo tão delicado como o dela poderia transmitir tanta leveza nos passos de dança. Apesar disso, ainda custava a creditar que um ser tão pequenino pudesse dominar tão bem a extensão do palco. Sequer chegava à altura de meus ombros... — É um prazer conhecê-­‐la. Sou fã de seu trabalho. — Agradeço ao senhor. — Sua Graça, Edward, Duque de Lovington, à sua disposição. — Apresento-­‐ me, estufando o peito com orgulho pela imponência do meu título. — Meu Deus, um Duque fã do meu trabalho, que honra. — Ela diz, mas de alguma forma não sentia a verdade em suas palavras, era como se estivesse caçoando do meu título. — Sim... — começo a responder, incerto de como estava sendo recebido. — Você é muito talentosa. Talvez a bailarina com maior vocação que já vi. — Não sabia que Duques ingleses eram tão apreciadores da arte da dança. — Ela diz, com um leve riso no canto da boca. Toda ansiedade e sensações que senti desde o primeiro momento que a vi estavam tomando conta do bom humor que tentava manter. Via-­‐me irritado porque não estava acostumado em ser respondido dessa forma. — Apenas conhecedor de uma bela e determinada mulher quando vejo uma à minha frente. Imagino que queira um pouco mais na vida, não, querida? — pergunto. — E o que sugere, Duque? — Ela pergunta de maneira curta.


— Sugiro que nos conheçamos melhor, que tal conversarmos aí dentro? — questiono. — Vossa graça deve ter entrado no camarim errado — respondeu a bailarina com um leve desdém ao mencionar meu título. — Aqui não existe esse tipo de conversa — disse ela sem ainda liberar a entrada para que eu passasse. — Sempre tão gélida com seus superiores, querida? — caçoei de seu descaso. — Ao contrário, Vossa Graça. Mas, pela minha experiência no Bolshoi, sei bem qual tipo de “conversa” aristocratas como você querem ao visitar meu camarim. E desde já esclareço, não estou interessada. — Mas posso deixá-­‐la muito interessada, juro que nunca alguém como eu a visitou. Pense em tudo que posso lhe oferecer. — Duque, deixe-­‐me ser bem clara. Não estou à venda. Pode ser o aristocrata mais rico do país, do mundo, mas minha dignidade não tem preço que seja capaz de pagar. — Ah, minha bela... acertou em cheio! Sou o nobre mais rico da Inglaterra, tenho aos meus dedos a capacidade de realizar seus mais obscuros e secretos desejos. Quando coloco um objetivo à minha frente, nada me detém. E sabe qual meu novo destino? — Qual, Vossa Graça? — Você, bailarina. — Respondo, com o brilho no olhar da certeza que aquela mulher iria conquistar.


Ao olhar aquele homem à minha frente, via que realmente poderia ser na Rússia, poderia ser na Inglaterra, os homens eram os mesmos. Sempre com todo seu orgulho e ego encapsulados que os faziam crer que conseguiriam tudo que queriam. Óbvio que não me surpreende um espécime como aquele creditar nisso. Afinal, talvez nunca tivesse visto com meus olhos uma perfeição tão grande em forma de homem. Para olhar em seus olhos tinha que inclinar meu pescoço, causando quase uma vertigem quão próximo do meu rosto estava aquela face. Era bem alto, até para mim, que estava acostumado com a altura dos homens russos, e facilmente passaria dos 1,85 metros. A combinação formada por seus olhos acinzentados, emoldurados por sobrancelhas loiras e retas, com um nariz aquilino que conduzia o olhar de qualquer mulher àquela boca, em qualquer outro homem poderia formar uma imagem de perfeição, uma pessoa sem defeitos. Mas, eu sabia melhor. De alguma forma tinha certeza, no fundo do meu coração, que aqueles lábios carnudos saberiam as mais devassas formas de enlouquecer uma mulher. Tinha certeza que aquele nariz seria capaz de sentir de longe o cheiro de como ficavam excitadas ao seu redor. Tinha certeza que aqueles olhos, ainda mais com aquele brilho, em tanto escondiam os monstros que não queria mostrar.


Era como se um anjo caído tivesse se materializado em frente a mim. Com uma beleza dourada de fios levemente longos e lisos, penteados para trás, além daquela leve barba que rodeava a parte inferior de seu rosto, se conseguisse esculpir nos mais precisos ângulos o meu ideal de beleza masculino, ele seria a obra prima. — Ah, é mesmo, Duque? Então serei mais uma das suas conquistas? — pergunto, não acreditando que aquele homem, tudo que tinha de bonito tinha de arrogante. E pensar que antes do início do espetáculo, por um segundo, acreditei que pelos seus olhos fora capturada... Seria bom demais acreditar que em um nobre pudesse encontrar uma alma que fosse me identificar. — Certamente sabe o quão desejada é? Aposto que não havia um homem sequer que não quisesse ser o alvo do olhar da mais celebrada bailarina dos últimos tempos — fala, tentando aproximar-­‐se por meio de elogios. — Celebrada? Por isso quer me possuir? Vejo a surpresa e inteligência daqueles olhos, com a coloração da mais brava tempestade, seguido pelo estreitamento dos seus lábios, que deixam à mostra o mais brilhante sorriso que já vira. — Minha bailarina, vejo que a subestimei. Pelo visto vai muito além da beleza e delicadeza, mas parece que o mais lindo dos seus atributos é aquele que o público não vê: sua esperteza. Fico surpresa com as palavras do Duque, pois tão rapidamente conseguiu desvendar toda aquela fachada que colocava à mostra para o público, como a perfeita prima bailarina. Célebre... Perfeita... palavras que tanto eram usadas para me descrever. Desde que meu talento fora revelado, com o lançamento do Bolshoi, há cerca de cinco anos atrás, era retratada pelos jornais russos como a mais precisa bailarina, aquela que nunca cometia um erro. Mas, o que todos pareciam esquecer é que ainda aqui dentro mora aquela menina, imperfeita e indesejada, que só busca ser encontrada. — Vossa Graça, está tarde e não posso mais ocupá-­‐lo. — Tento despedir-­‐me, em arrependimento de ter estendido aquela conversa além do que esperava. — Mas, sequer me contou seu nome. – O Duque insistiu.


— Sim, não contei. Agradeço seu interesse pela minha arte, mas não pode haver nada além disso entre nós. Não seremos amigos, e sequer conhecidos. Nosso contato termina por aqui. — Tentei explicar, ainda implicante por causa daquela arrogância toda que havia mostrado mais cedo. — Tem certeza dessa decisão? — Sim, Vossa Graça. Assim como me julgou, passo a lhe analisar. Homens como Vossa Graça vêm aqui como se fossem salvadores, oferecendo riquezas e joias na esperança de entre minhas saias chegarem. Todos vêm imaginando o que seria dormir com a prima bailarina, o status que teriam em finalmente conquistar-­‐me. Para vocês sou apenas mais um prêmio a ser debatido nos halls de seus clubes — confesso, também me deixando afetar pelo turbilhão de emoções que vivia naquela noite. O Duque fica surpreso com o discurso que acabara de escutar, e por um momento sinto um agudo arrependimento na forma que tratei aquele cavalheiro. Mas, não poderia me deixar levar pelos seus belos olhos e ignorar a forma interesseira como me abordara. — Minha bailarina, que pena... Pensei que pudesse haver algo interessante, para nós dois. Mas tudo bem, tenha uma boa noite. — Despede-­‐se, enquanto vejo seu corpo virar-­‐se em direção ao escuro corredor, até o momento que não mais consigo sentir sua presença. Fecho a porta e encosto meu corpo nela, com minha cabeça apoiada na sua superfície. Cerro os olhos. No fundo, sabia que o calor que senti quando tive a batalha de palavras com o Duque não se resumia ao cansaço que sempre sentia após uma apresentação. Sabia que, por mais que odiasse suas palavras, sentia-­‐me atraída por aquele ser. Mas, desde cedo tive que aprender a não me entregar aos sonhos impossíveis, às vontades infelizes. Entre um Duque e uma bailarina existe um precipício intransitável, e estaria mais segura se nunca esquecesse essa verdade. Simplesmente não poderia construir essa ponte. Ao escutar o barulho da porta se fechando, Madame Brigitte vem até meu camarim, perguntando o que tinha acontecido. — Nada — respondo. – Só mais um cavalheiro que vem me visitar após a apresentação achando que, com doces palavras ou menção de um título, posso me fazer vender.


— Ah! Mon chérie, já começou a deixar corações despedaçados pelas ruas de Londres? — riu a Madame. — Não, não, maman. Pode acreditar, um aristocrata daqueles amanhã mesmo já se esqueceu do que aconteceu aqui — respondo sinceramente, pois sabia que um Duque como aquele não teria por muito tempo na sua mente uma mulher como eu. — Acredito que terminei tudo que tinha de arrumar aqui, vamos voltar ao Hotel? — Vamos, sim, querida, também já vinha encontrá-­‐la para perguntar se estava pronta ou preferiria sair para comemorar com os demais bailarinos. — Maman, confesso que estou cansada, prefiro retornar ao Hotel, mesmo. — Mas, chérie, você não pode somente se dedicar ao Lar e ao balé, tem também que viver um pouco. — Contesta Madame. — Desde a primeira vez que a vi naquele orfanato, percebi que era uma criança tímida. Meu amor, isso não pode impedi-­‐la de viver. O mundo é muito maior que esse palco. No fundo, sabia que estava certa. Enquanto esperávamos a carruagem na saída dos fundos do Teatro, que nos levaria até o Hotel Maison, fico pensando. Desde cedo, perdi tanto do mais especial que tinha na minha vida, que até hoje me vejo com medo de me aproximar e novamente me decepcionar. É um verdadeiro pânico de abrir meu coração para que ele seja novamente despedaçado, pois sequer sabia se teria forças para uma segunda vez o reedificar. Conforme íamos atravessando as ruas da cidade, percebia que, apesar do horário, aquela região era sempre movimentada e barulhenta. Me fazia lembrar-­‐me de Moscou, tão caótica quanto, apenas com um clima um pouco mais ameno. Mas, até o cheiro das fumaças e corpos suados permeando as ruas reconhecia. Ao chegarmos no hotel nos despedimos, e subi até o quarto andar, onde estava hospedada enquanto durasse a temporada londrina de Giselle. Finalmente, após banhar-­‐me e colocar minha camisola, apesar de cansada, percebo que tenho dificuldade para cair no sono. Encontro-­‐me curiosa, pois não tinha como negar que, ao repousar a vista, a primeira coisa que me lembrava era aquele olhar acinzentado que me capturou do outro lado da Ópera.


O dia seguinte amanheceu com um belo dia de verão. Apesar da poluição, o sol raiava tão puramente que sequer a costumaz neblina londrina conseguia ofuscar seu brilho. Com a disposição de quem, na noite anterior sentiu seu dever cumprido e todas as horas de treino recompensadas, me encontro após o café-­‐da-­‐manhã cruzando as ruas da cidade até atravessar os cinco quarteirões que separavam o hotel da instituição que conheci já nos primeiros dias que me situei em Londres, o Lar Britânico para Crianças Abandonadas. Ao entrar pelas portas, cumprimento Gertrude, que sempre estava àquele horário tocando o piano para alegrar a manhã das crianças, no átrio principal do casarão. Paro e fico olhando para aqueles pequeninos, com eles me identificando e sentindo finalmente a paz de encontrar-­‐me no meu lugar ideal. Madame Brigitte dizia que era sentimentalismo. Mas, desde que completei dezoito anos e tive de sair do orfanato em Moscou, passei a substituir Madame nas aulas de balé, lecionando três vezes por semana para as crianças que queriam participar. Nos dias de viagem até Londres, sentia no meu coração aquele aperto comum que marcava a falta de algo, como se parte de mim tivesse ficado na Rússia. Apenas quando adentrei pelas portas do Lar foi que consegui me reencontrar. Por isso, pedi ao Coordenador da Instituição, o Senhor Brooks, que me deixasse dar aulas de balé para as crianças. Inicialmente ele ficou reticente, não entendendo o que uma bailarina da Ópera real londrina queria ali com aquelas pobres crianças abandonadas à própria sorte. Explicou que a Instituição não estava numa boa fase e não teria como me pagar pelo serviço, ao que respondi que não teria problema algum. Então, depois que insisti e esclareci qualquer dúvida, que pudesse ter quanto meu trabalho e dedicação, finalmente o Sr. Brooks cedeu e aceitou que eu desse aulas. O que começou como uma aula para as meninas de dez a quinze anos passou a ser também aulas para os pequenos que ali estavam. Confesso que ficava ao final do dia de aulas e apresentações exausta, mas não trocaria por nada. Só de ver o


sorriso de cada um deles ao completar um movimento, que antes imaginavam impossível, fazia meu dia se realizar. Prossigo até o terraço, onde foi organizado um espaço para que lecionasse as aulas, com um espelho antigo e uma barra de madeira descartada da própria Ópera. Naquela manhã, iniciaria com a aula das crianças até dez anos. Secretamente era a que mais amava. — Senhorita Vasiliya! Senhorita Vasiliya! — vejo Grace entrar na sala correndo em minha direção. — Olá, meu amorzinho! Como está minha bailarina favorita nessa manhã? — abaixo-­‐me e pego no meu colo a criança de pouco mais de cinco anos. — Como foi ontem? Conheceu o Rei? — me pergunta. Rio da ingenuidade da criança e respondo: — Não, querida, o Rei e a Rainha somente foram nos assistir dançar, mas não tive o privilégio de conhecê-­‐los. Aparentemente satisfeita com a resposta, a criança inicia a me contar tudo que ocorrera desde a sexta-­‐feira passada, último dia que havíamos nos vistos. Quando as outras crianças entram no recinto e começam a também participar da conversa, vejo que a classe aparenta estar toda ali presente e começo com a lição. — Crianças, hoje tenho uma surpresa para vocês. Como sabem, ontem à noite foi a estreia da apresentação que participo, e resolvi que nos próximos meses estarei ensinando para vocês cada um dos passos, para que vocês também sejam as grandes estrelas desse próprio show — falo, animadamente. — Para isso, vou começar a explicar a história de Giselle, alguém sabe quem é? — Uma rainha! — Uma pirata! — Uma mamãe! Rio com a imaginação solta e as respostas dadas. — Não, crianças. Vocês sabiam que em um reino bem distante existe uma menina camponesa chamada Giselle? Ela era a mais formosa e carinhosa menina do vilarejo, com muitos amigos e muito amada por sua família. Quem aqui quer ser amigo dela?


Vejo várias mãozinhas levantadas, empolgadas com a perspectiva de elas também fazerem parte daquele conto de fadas. — Ótimo! Então, hoje começaremos a treinar a dança de Giselle e suas amigas camponesas, vamos lá? Com isso, dou início ao primeiro ato da apresentação e começo a ensinar os passos para meus alunos. Os risos, tropeços, abraços e recomeços me acompanham por longos momentos, e brevemente naqueles olhos acinzentados não mais me encontro fixada.


Centro de Londres, 13 de junho de 1828 — Então, senhores acionistas presentes à reunião, proponho que, para a expansão das novas linhas comerciais com a América, e planejamento futuro de trocas comerciais com os portos asiáticos, um aumento de capital com perspectiva de crescimento gradual nos próximos cinco a dez anos. Todos de acordo? — fala Andrew aos demais sócios da Companhia de navios que estavam sentados à mesa de reunião da minha empresa. Aquela expansão já estava sendo organizada há alguns meses, e finalmente os demais acionistas dariam a concordância para que colocássemos em prática nossos planos. Mas, no final, a decisão restaria mesmo a mim, pois com minha participação, seria minha vontade que prevaleceria. — Edward? — escuto meu amigo chamar. Novamente, naquele curto espaço de tempo, me pego rememorando a noite há dois dias atrás. Não teria como ser mais atípico: primeiro, me pegava preso à um momento que não conseguia superar. Segundo que não tinha saído daquela noite da forma como havia previsto. E, terceiro, aquele estava sendo um foco de distração que não deveria aceitar. — Claro, meu amigo, o que você disser. — Respondo, ciente daquela mudança no contrato social que já vínhamos há meses planejando.


A partir da concordância dos demais sócios, que já estavam preparados para o que proporíamos, termina a reunião. Com sua conclusão, encaminho-­‐me à porta de saída do meu prédio de escritórios junto com os demais sócios. Ao transitar por aqueles corredores espartanos, sempre movimentados e barulhentos, via-­‐me orgulhoso de todo o trabalho e dedicação para que aquele resultado fosse possível. Quando sequer tinha completado meus dezoito anos, meu pai se tornou vítima de seus vícios. Então, desde novo quando assumi a posição de Duque de Lovington, sabia do tamanho da minha ambição em reverter o estado das contas do ducado, que sequer aguentariam até o final do ano. Ao me lembrar daqueles primeiros anos, enquanto todos os meus amigos estavam aproveitando o início da juventude, com suas típicas libertinagens, com seus tours pelo Continente; estava eu a construir, direta ou indiretamente, cada um daqueles tijolos para sedimentar minha posição, e a da minha família. Como se não bastasse a dificuldade que fora conquistar cada um daqueles investidores iniciais, que não acreditavam na tenacidade de um jovem aristocrata, aparentemente tão mimado quanto qualquer outro, ainda tive que batalhar contra minha própria classe e o desrespeito contra aqueles que praticavam a mercancia. Por vezes, achava que teria sido mais fácil me conformar com aquele molde esperado de aristocrata raso e sem ambição. Aquele que vivia para as noites regadas à champanhe e charutos. Mas essa vida sequer um segundo chegou a me tentar, pois desde cedo fui testemunha de como esses vícios acabaram com a vida do pai que tanto amei. Então, ao alcançar uma notoriedade com meus negócios, após a primeira viagem de sucesso da minha linha comercial, fui alvo das fofocas e capas de jornais sociais londrinos. “O Duque de ouro ou Duque das galinhas de ouro?” Essa foi a manchete que vi na manhã seguinte daquela primeira vitória. O que os outros viam como chacota, usei como fundação para nela concretizar o meu sonho. Me consagraria naquele país, e pessoa alguma usaria novamente o nome de minha família para motivo nenhum, senão admiração. Foram anos duros e longos, mas, ao cruzar os corredores e ver quantas vidas consegui mudar com meu empenho e determinação, não sentia nada senão orgulho, e vontade de crescer ainda mais.


Alguns entendiam minha ambição como arrogância, mas sabia melhor. Não me envergonharia do orgulho que tinha por ter olhado a derrota nos olhos, quando presenciei os vícios do meu pai, e conseguido ascender acima dela. Após me despedir dos outros sócios, fui com Andrew almoçar no Clube de Cavalheiros que frequentávamos havia alguns anos, há algumas ruas de distância da empresa. Rapidamente as ruas de Mayfair passavam pelas janelas da carruagem branca com adornos dourados e assento em veludo bordô, que usava naquele dia, com o brasão do ducado de Lovington estampado em seu exterior. — Meu amigo, acredito que essa será nossa maior conquista até agora. América... — admirava Andrew. — Também acho isso. Mas não podemos perder de vista nosso projeto para a Ásia, já que a China e o Japão também têm muitas especiarias que atraem o mercado. O Conde de Snowden riu e parecia consigo mesmo conspirar: — Não é possível, Edward, parece que nunca está satisfeito. Descanse, homem! — Mas eu amo o que faço, Andrew, sinto a energia pulsar por minhas veias com cada nova conquista, com cada novo xelim em minha conta. Quando lhe coloquei para dentro dos negócios, há cinco anos, achei que compartilhava da minha ambição. Andrew sempre foi muito mais focado em seus cavalos do que nos negócios. Para ele, sua participação era muito mais algo que compartilhávamos como amigos do que realmente uma área de interesse. E não seria para menos, diferentemente de mim, quando ascendeu ao título, com seus vinte e cinco anos, tinha sua vida toda vivido com um pai amoroso o qual compensou o amor da mãe, que perdera quando criança. Preferiu, então, seguir o caminho que seus antepassados cursaram, de criar os mais ágeis puro-­‐sangue. — E compartilho, mas você está beirando quase obsessão com essa ambição em ganhar dinheiro, meu amigo. — Alertou – daqui a pouco só terá dias livres se o internarmos em Bedlam. — Tentou amenizar o clima. — Nem brinque com isso, estava analisando os relatórios dos manicômios que entregaram ao Parlamento e tudo me parece em um estado horrível... Andrew ri, e com as mãos na cabeça responde:


— Edward, desisto! Nem mesmo quando faço uma piada consigo tirar sua cabeça das obrigações do Duque de ouro... Quando percebo, começo a gargalhar com meu amigo, e continuamos os assuntos da Casa dos Lordes até que a carruagem para em frente ao clube. Ao adentrar por suas portas, com a decoração suntuosa em carvalho com folhas de ouro nas paredes, estofados em couro, tapetes persas e jarros de porcelana chinesas, poderiam considerar um pouco excessivo o ambiente. Mas, naquele local encontrávamos os lordes ingleses da alta sociedade, para verem e serem vistos. Lá se travavam as mais altas discussões dos destinos do país, entre um gole e outro de uísque. Para mim era um mal necessário. Apesar de não gostar da bajulação que sempre espreitava os corredores, entendia que sem ela não teria grande parte dos empreendimentos que apoio. Sentamo-­‐nos à mesa e, enquanto aguardávamos a salada de entrada, Andrew me questionou: — Percebi que estava um pouco distraído na reunião. Aconteceu alguma coisa com Charlotte? — Com Charlotte? Não, continua como sempre a rosa da sociedade, colocando os vestidos e as joias todos na minha conta — rio, desabafando — mas não me incomodo, gosto de vê-­‐la feliz. Inclusive, estava outro dia falando que você a está devendo alguma coisa porque perdeu uma tal aposta. — Agora, gargalhei. — Ah, nem me fale! Ela jurou que o cavalo que tinha acabado de comprar ganharia a corrida ano passado, e eu sabia que isso era impossível, porque ainda era muito novo. E não é que a danadinha estava certa?! Impossível! — disse ele, atordoado. — É, meu amigo, essas mulheres têm todas um sexto sentido daqueles... — respondi, rindo. — Ah, então achei o problema: mulheres... Quem é a viúva da vez? Ao me lembrar da minha tendência a apenas me envolver com damas da sociedade viúvas, experientes e descompromissadas, fiquei novamente pensativo, tentando entender o porquê tinha sido tão capturado pela memória daqueles fios ruivos e olhos esverdeados. — Vamos logo, garanhão, diga, quem é a sortuda da vez? — persistia Andrew.


— Sortuda alguma, acredita? Mal me apresentei quando já fui rechaçado... — respondi, abismado como se tivesse na frente da própria bailarina, e não de meu melhor amigo. — Opa, como disse? O Duque de Lovington? O filho de ouro da Inglaterra? Rejeitado?! Quem é essa mulher? Preciso conhecê-­‐la! — dizia Andrew, se divertindo com minha situação. — Essa é a pior parte! Sequer sei seu nome. — Calma, vamos por partes, onde conheceu essa misteriosa dama? Aproveitando que a comida havia chegado naquele momento e organizo meus pensamentos caóticos, só centrados naquela bailarina, e tento explicar para meu amigo tudo que ocorrera naquela noite de Ópera. — Há alguns dias atrás acompanhei minha mãe e irmã à Ópera, pois era a estreia do corpo de baile russo do Teatro Bolshoi. Sabe como Charlotte adora esse tipo de evento... Bem, digamos que a prima bailarina capturou minha atenção, e quando fui tentar falar com ela, sequer considerou a proposta que tentei fazer. — Ela sabia quem você era e mesmo assim não aceitou a proposta que queria fazer? — Exatamente... E o pior é que não consigo tirá-­‐la da cabeça. Às vezes penso que não fui cuidadoso quando a abordei, outras vezes fico enfurecido pelo desrespeito com que ela me tratou. — Agora, entendi! Não se fala em outra coisa, parece que, realmente essa russa conquistou muitos corações — explicou Andrew. — O que disse? Como assim, conquistou muitos corações? — fui pego de surpresa pelo sentimento de proteção que tomou conta da minha mente, nunca antes havia me importado com quem meus casos andavam ou flertavam, mas foi só pensar em outros cavalheiros desejando aquela mulher, que senti a raiva aflorar. — Sim, aqui não se falava em outra coisa na manhã seguinte da estreia. Não viu? — rememorava Andrew. — Não, hoje é a primeira vez nessa semana que venho ao clube. Tive que vistoriar a obra da nova estação de trem. Mas continue o que falava, disse que todos comentavam sobre ela? — perguntei. — Sim. Aparentemente, em Moscou ela é vista como uma celebridade, conhecida como a fênix russa que sobreviveu às chamas de 1812. Não se sabe ao


certo se ela aceitará um patrocínio essa temporada, mas as apostas já começaram para adivinhar quem a conseguirá como amante — explicava Andrew. Peguei-­‐me curioso com todo aquele relato. Apesar de novo à época das guerras napoleônicas, sabia pela história contada por nossos pais e tios como havia sido brutal a ocupação francesa de Napoleão em Moscou. Dizia-­‐se que a cidade ardeu por vários dias até que os focos de incêndio foram apagados. Mas, quando a vi, a única marcação naquela face era uma sutil pinta no canto do olho. Não percebi uma cicatriz sequer, uma pele tão macia e sedosa não poderia ter sido vítima de um incêndio. Então, sua história seguia outro caminho, mas qual seria? — Algo me diz que esse encontro não será o último que tiveram. — Andrew diz, interrompendo meus pensamentos. — Não sei, meu amigo, com o início da temporada do Parlamento e a expansão da companhia de navegação, creio que não terei tempo para patrocinar uma amante. — Respondi ao tentar me desvencilhar das imagens daqueles fios ruivos em meus travesseiros. — É isso que estou falando! Viva um pouco!! Já vai desistir? Sequer parece o homem que conseguiu reerguer um ducado das cinzas. — Andrew, sinto que começamos com o pé esquerdo. Talvez tenha sido um pouco mais direto que o normal — respondo sem graça. — Meu amigo, aqui em Londres as mulheres sempre caíram aos seus pés e, verdadeiramente, nunca teve que correr atrás. Mas, ela é de outro país, não está acostumada aos nossos costumes. Conquiste-­‐a, interprete como se fosse a mais interessante nova rota de especiarias que quer dominar ponto a ponto, e logo ela não mais resistirá. Após escutar essas palavras, ainda me questionava internamente se realmente valeria a pena eu correr atrás daquela senhorita que sequer aceitara me dizer seu nome. Parecia tão arredia... Mas a outra face da moeda era o desafio, a adrenalina em não saber se conseguiria ou não aquele prêmio ao final do encalço, se conseguiria fazer com que ela esquecesse as próprias preconcepções. Percebi que vivia para essa sensação, igual a tantas outras conquistas que já obtive na vida. Mas essa em especial mexia no meu ser de forma tão intensa, que não sentia há tempos.


Por algum motivo, a gratificação dos negócios sempre me manteve, mas a adrenalina foi se tornando mais regular ao longo dos anos, conforme o sucesso que obtive se transformasse no novo normal. De outro modo, aquela mulher acionara em mim uma chama que ardia para tê-­‐la. Sabia que o sabor de seus lábios nos meus seria o mais doce sabor de vitória que teria na vida, selando a conquista que tanto desejo. Uma força ergueu-­‐se dentro de mim e sabia que essa não se aquietaria até que tivesse aquela bailarina junto ao meu corpo. — Está certo, meu amigo, vou à batalha. De mim aquela russa não escapa. — concluí satisfeito.


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