A23 #2

Page 38

,,Vidas por contar Texto | Margarida Gil dos Reis Fotografia | Fernando Henriques Duarte - “Rosel”

Não sabemos se já morreram ou se ainda estão entre nós. Vemo-los nos seus momentos mais felizes, através do olhar de um estúdio de fotografia da Beira, o Estúdio Rosel, no Fundão. Não os conhecemos mas podemos sonhar com eles. Esse é o poder da fotografia: o permitir-nos imaginar e contar uma história.

Em todas as casas existem restos de memórias, o rasto do tempo guardado em gavetas, entre livros, pendurado nas paredes. Rostos, casas e paisagens desaparecidas, retratos de pessoas que nem se chegou a conhecer. O encontro com um álbum de fotografias é talvez uma das descobertas mais fascinantes. Recheado de fotografias, mais ou menos amarelecidas, o álbum desperta o nosso instinto voyeurista. No momento em que se abre há algo que nos impede de o fechar. Saudade, melancolia ou simples curiosidade, observamos mas temos também a sensação de estarmos a ser observados. Subitamente, compartilhamos uma intimidade e quase parece que esses rostos nos olham e nos querem fazer uma pergunta. Não importa quem foram os retratados, mas sim o facto de terem existido. No seu anonimato, observam-nos com tamanha curiosidade que nos apercebemos como em cada uma dessas fotografias o tempo parece ter parado. Acredita-se que o início do declive do retrato pictórico tenha coincidido com o aparecimento da fotografia. Progressivamente, o fotógrafo substituiu o pintor que fazia retratos. Aquele que até então era um privilégio de alguns – retratar-se – passou a estar acessível a todos, de forma mais fiel e bastante mais económica. Rapidamente se tentaram rebater as qualidades da fotografia, salientando as incomparáveis qualidades do retrato pictórico. Como poderia uma máquina interpretar a alma do retratado? O papel interpretativo do fotógrafo era injustamente negado, enquanto se exacerbava uma percepção psicológica que, na verdade, estava ausente dos retratos pictóricos. Excepções à parte para a intensidade dos auto-retratos de Rembrandt, David, Goya ou Rafael, a fotografia passou a ser o meio privilegiado de representação. Note-se que, na maioria dos casos, a função do retrato era sublinhar um determinando papel social. O ‘indivíduo’ dá lugar a uma função, onde o tempo é regido por estereótipos. A crítica tem associado o declínio do retrato pictórico com 36 // FOTOGRAFIA

algumas obras de Théodor Géricault, quadros vazios de moralismo, apenas retratos onde os sujeitos pintados não tinham uma função social. Para Géricault a sociedade era naturalmente negativa, logo, a sua obra era anti-social. Courbet, Degas, Cézanne ou Van Gogh ainda pintaram retratos de amigos, onde a amizade era o elo de ligação entre o artista e o retratado; Toulouse-Lautrec, pelo contrário, estabeleceu uma reciprocidade social entre quem observa e quem é observado, ao pintar uma série de retratos de prostitutas que parecem nos analisar. Poderíamos continuar a discorrer por inúmeras possíveis razões para o protagonismo que a fotografia assumiu. Aquilo que nos continuará a intrigar num álbum fotográfico é porque somos olhados, ao invés de olharmos apenas? Pensariam essas pessoas, quando posavam, no efeito que teriam sobre o seu voyeur? Perguntamo-nos onde estará hoje este rapaz, quem será filho de quem, em que pensava aquela mulher, conseguiremos identificar este homem pelo seu olhar em criança? A fotografia é o testemunho da eleição humana de um determinando momento. Por algum motivo entendeu-se que valia a pena registar aquele instante. Este será talvez um processo de tornarmos consciente a nossa observação. Mas qual é o sentido de uma fotografia? Na sua relação com o tempo, a fotografia torna-nos conscientes da importância da ausência e da presença ao fixar um momento de um contínuo temporal. Se um director de cinema pode manipular o tempo, o fotógrafo não o pode fazer, apenas fixá-lo. É isto que distingue a fotografia: esse instante. Por breves segundos, o observador sente uma inexplicável sensação de poder porque pode manipular o destino de cada uma daquelas vidas, escrevê-las, dar-lhes continuidade. Páginas soltas de uma história que, se nos for desconhecida, nos permite que a continuemos. Nesse momento, fazemos parte dessa história, de outra vida que, através da imaginação, passa a ser nossa também.

[x]


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.