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Laurentina: A Beira no seu melhor

No Reino do Bacalhau

“O bacalhau é o prato do nobre que será sempre pobre...” Frase demolhada e cortada de “O Sol da Meia-noite” de Manuel da Silva Ramos Texto | Jacinto Galeão de Tormes Fotografia | David Júlio Carvalho

O dia 21 de Abril ficará marcado com uma cruz pendente no calendário das minhas recordações gastronómicas. Fui comer à Laurentina e a Beira Baixa veio de repente ao meu encontro, com o seu arsenal de sabores, a sua magia de prazeres, a sua lista infinita de paladares surpreendentes. Nesse sábado acalorado, com uma Lisboa quase deserta, foi fácil chegar à agradável e pedestre Avenida Conde de Valbom, onde o senhor Pereira – o rei incontestável do bacalhau – tem o seu reino reservado para nós. Numa sala ampla, com um palco cheio da natureza tumultuosa (adivinhemos um rio caudaloso a correr por trás de uma profusão de calhaus) e umas belíssimas aguarelas moçambicanas do pintor Pádua, sentámo-nos prontos para o milagre. E foi mesmo um milagre que nos aconteceu! Eis que surge, apoiado juvenilmente numa bengala, o rapaz irrequieto de São Jorge da Beira com um rosto achinesado de homem experiente que andou por quatro costados e Áfricas. O senhor Pereira é um homem impressionante, um beirão que não renega nada: nem a mercearia-taberna do pai onde aprendeu a desenrascar-se, nem o restaurante de Lourenço Marques onde fez conhecer o peixe gadídeo que matou muita saudade a muito português. E é ele que me vai servir de guia, numa autêntica travessia de sabores digna do estuário de um limpopo, com uma rodela de Tejo. Começámos por umas azeitonas que tinham a particularidade de nos envolver num clima de mistério. Seriam de que olival? Daqueles olivais que vemos entre Vale de Prazeres e o Fundão? Ou de Alcaria? O certo é que raramente comemos umas tão terrenas, incrivelmente saborosas. Vieram depois, como não podia deixar de ser, um pratinho de bolos de bacalhau. Luminosos, bem repletos de bacalhau, estalantes, douradíssimos, reconstituintes, foram uma autêntica surpresa para a boca. Bebemos mais um copo de Alpedrinha (o formidável e frutado vinho da Adega Cooperativa do Fundão que nos acompanhou suavemente durante toda a refeição) e entrámos na famosa couvada. Recebemo-la de braços abertos num tacho de barro vermelho como convém a um pitéu que alia intimidade e poder de consistência. De repente, sumiram-se todas as nossas dúvidas. Íamos direitos outra vez à Beira, às resplendorosas couves que habitam as nossas hortas de estimação, regadas com cuidados maternais em leiras geométricas e constantes (mãe, são estas couves que tu metes na sopa de feijão vermelho e que sabem a um frio nascer do sol no alto das Penhas Douradas?) bendita seja esta couve mil vezes orvalhada! É ela que trará ao bacalhau da Islândia a doçura que ele precisa para activar as nossas papilas. O senhor Pereira explica: “Coma devagar! Saboreie este bacalhau que é único! O bacalhau islandês tem mais óleo, tem lascas que se desenrolam como bifes! Não enrola este bacalhau! Não é palha!” O homem que teve no Alto Maé, em Lourenço Marques, o restaurante “Leão de Ouro”, tem razão. Este bacalhau, além de ser divino, coloca-nos numa grande ilha de prazer egoísta. E com as fabulosas batatas de Aveiro “gostosíssimas porque criadas em terreno arenoso” inundadas por um belo azeite do Fundão e alho ele vibra

no seu esplendor de Reiquejavique. Bisamos levados por um apetite de todos os santos. E será o senhor Vieira uma outra quixotesca personagem deste restaurante utópico, que trabalha há trinta e cinco anos com o dono da Laurentina, que nos trará outra posta do senhor dos mares. O senhor Pereira aproveita este suplemento para nos falar de São Marcos. É devoto. E construiu até ermidas em seu louvor em sítios íngremes. A exaltação continua desta vez com a chegada dos queijos em bruto. São duas metades de lua crescente que nos iluminam. Queijo queimoso do Fundão, acinzentado e delicioso! Queijo caseiro de Castelo Branco, untuoso e varonil! Com um tónico Alpedrinha vamos aos céus! E para terminar (enquanto o senhor Pereira se levanta para ir para um casamento e nos convida para a oportunidade de um novo dia, “seja sempre bem vindo e bem haja como dizem lá para os nossos sítios”) atacamos um arroz doce que nos lembra a infância dourada e uma tigelada que lembra o pôr-do-sol em São Jorge da Beira, a última aldeia do concelho do Fundão. São já quatro horas quando saímos da Laurentina (Laurentinas são as habitantes de Lourenço Marques). Prometemos ao rapaz beirão de São Jorge da Beira que voltaremos no Verão para provarmos umas punhetas de bacalhau, especialidade da casa, que é o nu bacalhau cru. Tínhamo-nos roçado a uma das belezas mais esplendorosas da vida: a comida vinda do mar e posta à nossa disposição pela mão delicada da amizade. Longa vida ao rei do bacalhau! Obrigado senhor Pereira por estes momentos intensos que fugiram como cabritos serranos diante de um automóvel. E como as laurentinas que nunca dizem não ao português suave o Mestre do Gadus Moorhrua há trinta anos que recebe com a afirmativa, para glória dos beirões e arredorescos, famintos e blasés. Viva o rei do bacalhau! [x]

Foi sem dúvida nenhuma à força de bacalhau que o escritor islandês Halldor Laxness (Prémio Nobel da Literatura em 1955) conseguiu escrever cinquenta romances. A recente tradução em português de “Gente Independente” é para amantes de bacalhau e não só.

Restaurante Laurentina Av. Conde Valbom nº71-A 1050-067 Lisboa Tlf. 21 796 02 60 Horário Almoço - das 12.00h às 15.00h Jantar - das 19.00h às 22.30h Preços Médios - 15 - 20 Euros De Novembro a Fevereiro abre aos Domingos para almoços. Encerra aos Domingos o resto do ano.

GASTRONOMIA // 35


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