Não vai ter prosa

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Este livro foi produzido em contexto didรกtico e nรฃo tem fins lucrativos.


Alunos do 1º ano do Ensino Médio E. E. Profª. Maria do Carmo Ricci von Zuben Orientação: Prof. Daniel Serrano

Não vai ter prosa Antologia poética da Copa do Mundo

2014



Sobre a seleção Alemanha Argélia Argentina Austrália Bélgica Bósnia Brasil Camarões Chile Colômbia Coreia do Sul Costa do Marfim Costa Rica Croácia Equador Espanha EUA França Gana Grécia Holanda Honduras Inglaterra Irã Itália Japão México Nigéria Portugal Rússia Suíça Uruguai

7 10 12 16 20 22 24 28 36 42 46 48 50 52 54 56 58 60 62 64 66 68 70 72 74 76 78 80 82 84 86 88 90



Sobre a seleção Esta antologia é fruto do trabalho desenvolvido na disciplina de Língua Portuguesa por alunos do 1º ano do Ensino Médio da E. E. Profª. Maria do Carmo Ricci von Zuben, em Vinhedo. Como exercício de introdução à linguagem poética, e tomando a Copa do Mundo como referencial geográfico, propus aos alunos que selecionassem poemas de todos os países participantes do torneio. A ideia era que o esforço conjunto – cada grupo ficou responsável por uma nação – proporcionasse um passeio livre e descompromissado pela poesia dos cinco continentes. Para evitar que os jovens antologistas se limitassem a recolher irrefletidamente os textos poéticos, orientei que os fizessem acompanhar de uma pequena nota biográfica do autor selecionado, além de uma breve justificativa da escolha. A intenção era que isso os motivasse a efetivamente ler os poemas – e, com isso, se conscientizassem do ritmo particular de fruição da poesia. Está nas páginas a seguir o resultado dessa empreitada: ao todo, são trinta e quatro poemas – um para cada país participante, mais outros três para o Brasil. Uma seleção de peso, cujo principal mérito estará talvez em combinar unanimidades como Shakespeare e Baudelaire com nomes menos conhecidos e, por isso mesmo, surpreendentes. Boa leitura!

Daniel Serrano

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Há no futebol momentos que são exclusivamente poéticos: trata-se dos momentos de gol. Cada gol é sempre uma invenção, uma subversão do código: cada gol é fatalidade, fulguração, espanto, irreversibilidade. Precisamente como a palavra poética. Pier Paolo Pasolini [Trad. Maurício Santana Dias]


Bertolt Brecht

[Alemanha]

Nascido em fevereiro de 1898 em Augsburgo, na Baviera, Eugen Berthold Friedrich Brecht escreveu suas obras em alemão. Foi dramaturgo, poeta, encenador e contista. Marxista, fez de boa parte de suas obras uma crítica ao sistema capitalista. Morreu em agosto de 1956, na Berlim Oriental.

Por quê?

Selecionamos esse poema por ser uma crítica à desigualdade social. Mesmo diante de incontáveis acontecimentos trágicos, nem o mundo nem o homem mudam. Se houvesse mais pessoas que, como o homem do poema, oferecessem abrigo para os outros, notaríamos alguma diferença, por menor que fosse. Afinal, são as ações do homem que, aos poucos, melhoram o mundo.

Jennifer Márcia do Nascimento, Leidiane Dorneles Ribeiro e Sousa, Lúcia Helena Silva de Oliveira e Thayná Cristina Ferreira dos Santos (1ºA) 10


O abrigo noturno Soube que em Nova Iorque Na esquina da Rua 26 com a Broadway Todas as noites do inverno há um homem Que arranja abrigo noturno para os que ali não têm teto Fazendo pedidos aos passantes. O mundo não vai mudar com isso As relações entre os homens não vão melhorar A era da exploração não vai durar menos Mas alguns homens têm um abrigo noturno Por uma noite o vento é mantido longe deles A neve que cairia sobre eles cai na calçada. Não ponha de lado o livro, você que me lê. Alguns homens têm um abrigo noturno Por uma noite o vento é mantido longe deles A neve que cairia sobre eles cai na calçada Mas o mundo não vai mudar com isso As relações entre os homens não vão melhorar A era da exploração não vai durar menos.

Tradução: Paulo César de Souza

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Mohammed Dib

[Argélia]

Nascido na localidade de Tlemcen em 1920, Mohammed Dib começou a escrever poesia aos quinze anos. Além de poeta, atuou como professor universitário e foi autor de numerosos romances. Morreu na França, em 2003.

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Contraluz as aves surgem, acende-se uma chama eis a mulher. sem nomes nem laços, nem véu errando de olhos fechados a mulher sob a frescura do mar. mas bruscamente voltam as aves e alonga-se esta chama mais do que entreapercebida no fundo do quarto. e é o mar o mar de braços adormecidos transportando o sol, nem oriente nem norte, nem obstáculo nem barra, o mar. nada, a não ser o mar tenebroso e doce caído das estrelas, testemunha das mutilações do céu, solidão, pressentimentos, sussurros. nada a não ser o mar. os olhos extintos sem vaga, nem vento, nem vela. bruscamente de novo as aves, e eis a mulher nem estrela nem sonho, nem géiser, nem roda, a mulher. 13


as aves voltam e nada mais que o mar.

Tradução: Adalberto Alves

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Jorge Luis Borges

[Argentina]

Maior nome da literatura argentina, Jorge Luis Borges nasceu na capital Buenos Aires em 1899. Viveu boa parte da juventude na Europa. De volta a seu país natal, foi diretor da Biblioteca Nacional. Notável contista, ensaísta e poeta, é hoje um dos escritores latino-americanos com maior fama internacional. Morreu em 1986 na cidade de Genebra, Suíça.

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Poema dos dons Ninguém rebaixe a lágrima ou rejeite esta declaração da maestria de Deus, que com magnífica ironia deu-me a um só tempo os livros e a noite. Da cidade de livros tornou donos estes olhos sem luz, que só concedem em ler entre as bibliotecas dos sonhos insensatos parágrafos que cedem as alvas a seu afã. Em vão o dia prodiga-lhes seus livros infinitos, árduos como os árduos manuscritos que pereceram em Alexandria. De fome e de sede (narra uma história grega) morre um rei entre fontes e jardins; eu fatigo sem rumo os confins dessa alta e funda biblioteca cega. Enciclopédias, atlas, o Oriente e o Ocidente, centúrias, dinastias, símbolos, cosmos e cosmogonias brindam as paredes, mas inutilmente. Em minha sombra, o oco breu com desvelo investigo, o báculo indeciso, eu, que me figurava o paraíso tendo uma biblioteca por modelo.

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Algo, que por certo não se vislumbra no termo acaso, rege estas coisas; outro já recebeu em outras nebulosas tardes os muitos livros e a penumbra. Ao errar pelas lentas galerias sinto às vezes com vago horror sagrado que sou o outro, o morto, habituado aos mesmos passos e aos mesmos dias. Qual de nós dois escreve este poema de uma só sombra e de um plural? O nome que assina é essencial, se é indiviso e uno este anátema? Groussac ou Borges, olho este querido mundo que se deforma e que se apaga numa empalidecida cinza vaga que se parece ao sonho e ao olvido.

Tradução: Josely Vianna Baptista

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Banjo Paterson

[Austrália]

Nascido em 1864, o poeta e escritor Andrew Barton “Banjo” Paterson centrou sua obra na temática campestre. É autor de numerosas baladas sobre a vida rural australiana, entre elas Waltzing Matilda, que mais tarde viria a ser considerada quase um segundo hino do país. Morreu em 1941, aos 76 anos.

Por quê?

Escolhemos esse poeta pela vontade de saber mais a respeito desta sua famosa composição. Além disso, chamou-nos a atenção o fato de também o autor, ele próprio, ter tido experiências com a vida rural, o que certamente influenciou a concepção do poema.

Andreza Gabrielle Moreira Gomes, Gabrieli de Souza Costa e Jéssica Oliveira Rodrigues (1º C) 20


Valsa com Matilda1 [trecho] Nas margens de um remanso, à beira de uma árvore, Montou acampamento um peregrino, E foi cantarolando enquanto o chá fervia: “Vem com Matilda nessa valsa, amigo!” Valsa com Matilda, valsa com Matilda! Vem com Matilda nessa valsa, amigo! E foi cantarolando enquanto o chá fervia: “Vem com Matilda nessa valsa, amigo!” (...)

Tradução: Daniel Serrano

O nome feminino é aqui uma referência à bagagem que um peregrino leva consigo em suas andanças. O viajante trata sua “trouxa” como companheira de viagem, atribuindo-lhe o adjetivo waltzing, “valsante”. A expressão, no entanto, pouco tem a ver com a dança. Trata-se, na verdade, de termo derivado da expressão alemã auf die Walz gehen, que significa “pôr-se a caminho”. “Valsar com Matilda”, assim, funciona como metáfora para a viagem. Esta tradução opta por preservar o estranhamento da expressão, compartilhado mesmo por um leitor moderno de língua inglesa. (N.T.) 1

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Paul van Ostaijen

[Bélgica]

Nascido em 1896 na Antuérpia, Paul van Ostaijen é considerado um dos maiores poetas belgas do século XX. Escrita em holandês, sua poesia foi influenciada pelo surrealismo e dadaísmo e ficou marcada por um estilo muito próprio. Vítima de tuberculose, morreu precocemente em 1928, aos 32 anos.

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Poema E cada nova cidade flor que murcha outono amarelece a flor serão todas as cidades assim serão todas assim assim são todas Em todo lugar em todo lugar e em nenhum todo lugar é nenhum em todo lugar os mesmos bombons tristes em copos bebida fica pérola não há sede uma canção está em todo lugar de amor e adultério serão todas as cidades assim serão todas assim assim são todas

Tradução: Philippe Humblé e Walter Costa

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Marko Vešović

[Bósnia]

Nascido em 1945 na vila de Pape, em Montenegro, Marko Vešović mudou-se ainda em 1963 para Sarajevo, cidade onde concluiu sua formação e hoje leciona. Respeitado como um dos maiores escritores de seu país, é tradutor de autores como Charles Baudelaire e Emily Dickinson.

Por quê?

Escolhemos esse poema por ser um bom exemplo de como Vešović se expressa literariamente. O texto, rico em comparações e metáforas, oferece um retrato muito particular das pessoas e dos lugares. Essa pequena amostra é, sem dúvida, testemunho do reconhecimento de que o poeta desfruta em seu país.

Matheus Pereira, Renan da Silva Gomes, Samuel Alves de Lima e Victor Oliveira Lima (1º D) 24


Aurora Estou de sentinela. No alvorecer. Perto há uma casa. Na verdade, uma cabana amarelada. A seu lado – um choupo sobre um poço. O choupo, tenho a impressão, é tão alto quanto o poço é fundo. Sobre a casa uma fumaça branca se desdobra Como as fraldas de um bebê. Na casa há uma criança chorando. Há muito. Faz anos já. Impressão: viria abaixo a choça se a criança se calasse. Muita coisa pode vir à mente quando se Está de sentinela. De repente, sai da casa uma garota loira, Deve ter seus dez anos – doze, no máximo. Falta-lhe uma perna. É uma deslumbrante inválida. Um anjo [de muletas. Tem o rosto corado, como se tomado à aurora. E lágrimas brotaram nos meus olhos. Ao ver a cor de sua face. Ao ver aquela aurora de muletas! Ideias de todo tipo podem nos passar pela cabeça Quando estamos de sentinela. E o choro da criança não parece terminar jamais. Como se tivesse um motor elétrico próprio. Um choro que, tenho a impressão, não cessará enquanto este mundo existir. Enquanto houver uma alma viva sob estes céus. Um choro que há de ressoar por todas as eternidades. Porque o tempo, quando [somos sentinelas, se move com o vagar de uma geleira. Quando somos sentinelas, a alma às vezes 25


entreouve galopantes mensageiros com a notícia de que por [muito tempo, debaixo destes céus, não existe nada. Nem mesmo nós. [De sentinela. Só o que há é fumaça. Não a fumaça sobre Ítaca. Mas aquela da máxima escrita em etrusco – A primeira que o conhecimento pôde decifrar: O homem não passa de fumaça.

Tradução: Daniel Serrano (a partir da versão em inglês de Omer Hadžiselimović)

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Vinicius de Moraes

[Brasil]

Nascido no Rio de Janeiro em 1913, Vinicius de Moraes foi poeta, diplomata e compositor. Seu primeiro livro de poemas foi O caminho para a distância, publicado em 1933. Com o passar do tempo, trocou o tom religioso e grave dos primeiros poemas pelas temáticas do amor e do cotidiano. Nome importante da MPB, participou de shows até pouco antes de sua morte, em 1980.

Por quê?

Escolhemos esse poema por ser um bom retrato do que é o comportamento de uma criança. Afinal, apesar de estarem sempre a bagunçar, são elas que acabam alegrando uma casa.

Camila Vieira de Souza, Danielle Geonmonond Sepero, Elisandra Miranda Bastos, Gabriela Alves de Souza, Jéssica Maria Pereira e Júlia Amanda Quintino (1º C) 28


Poema enjoadinho Filhos... Filhos? Melhor não tê-los! Mas se não os temos Como sabê-los? Se não os temos Que de consulta Quanto silêncio Como os queremos! Banho de mar Diz que é um porrete... Cônjuge voa Transpõe o espaço Engole água Fica salgada Se iodifica Depois, que boa Que morenaço Que a esposa fica! Resultado: filho. E então começa A aporrinhação: Cocô está branco Cocô está preto Bebe amoníaco Comeu botão. Filhos? Filhos Melhor não tê-los Noites de insônia Cãs prematuras Prantos convulsos 29


Meu Deus, salvai-o! Filhos são o demo Melhor não tê-los... Mas se não os temos Como sabê-los? Como saber Que macieza Nos seus cabelos Que cheiro morno Na sua carne Que gosto doce Na sua boca! Chupam gilete Bebem xampu Ateiam fogo No quarteirão Porém, que coisa Que coisa louca Que coisa linda Que os filhos são!

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Cecília Meireles

[Brasil]

Conhecida como autora do Romanceiro da Inconfidência, inspirado no importante episódio da história do Brasil, Cecília Meireles nasceu no Rio de Janeiro em 1901. Além de poeta, foi também professora e jornalista. Morta há meio século, em 1964, seu nome permanece como uma das vozes mais importantes da poesia brasileira.

Por quê?

Escolhemos Cecília Meireles por termos gostado de sua história de vida, interessante como os seus poemas. O texto selecionado nos chamou a atenção pela simplicidade.

Kellen Thalyta Martins Soares, Larissa Beatriz Giomo, Milena Bastos de Souza, Wedja Mariano da Silva e Gabriele da Silva Alfredo (1º B) 32


Ou isto ou aquilo Ou se tem chuva e não se tem sol ou se tem sol e não se tem chuva! Ou se calça a luva e não se põe o anel, ou se põe o anel e não se calça a luva! Quem sobe nos ares não fica no chão, quem fica no chão não sobe nos ares. É uma grande pena que não se possa estar ao mesmo tempo nos dois lugares! Ou guardo o dinheiro e não compro o doce, ou compro o doce e gasto o dinheiro. Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo... e vivo escolhendo o dia inteiro! Não sei se brinco, não sei se estudo, se saio correndo ou fico tranquilo. Mas não consegui entender ainda qual é melhor: se é isto ou aquilo.

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Carlos Drummond de Andrade

[Brasil]

Nascido em Itabira do Mato Dentro em 1902, Carlos Drummond de Andrade é considerado um dois maiores poetas brasileiros da história. Trabalhou a vida toda como servidor público. Além de poeta, foi também tradutor e colaborador assíduo de jornais e revistas. Morreu em 1987, no Rio de Janeiro.

Por quê?

Escolhemos esse poema por representar uma realidade próxima daquilo que acontece na vida das pessoas. No texto, todos os que se amavam acabaram não se casando e seguiram rumos diferentes.

Alandra de Souza Praxedes e Fernanda Eduarda Pereira Rocha (1º B) 34


Quadrilha João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém. João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para a tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história.

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Engelbert Mveng

[Camarões]

Nascido em 1930 na localidade de Enam-Ngal, perto da capital camaronesa, Engelbert Mveng foi um importante intelectual católico. Educou-se na Europa e escreveu obras nas áreas da antropologia e da teologia. Em 1995, foi encontrado morto em sua própria residência, em circunstâncias até hoje não esclarecidas.

Por quê?

Escolhemos esse poeta pela maneira doce de descrever certa realidade regional. No poema selecionado, por exemplo, destacamos os efeitos criados pela comparação e personificação. A velha panela de sua mãe aparece vermelha como o “sangue dos filhos da tribo”, além de redonda como “um fruto maduro em suas mãos estendidas”.

Anderson Luiz Maria, Ariel Ícaro Rodrigues Neve Cintra, Hugo Ramasini de Oliveira, Lóis Helen Landin, Mayla Carolina Dias Oliveira e Thais Letícia da Silva (1º A) 36


A oferenda “Minha mãe tinha uma panela de argila rara, De argila vermelha como o sangue da raça.”

I Minha mãe tinha uma panela De argila fina, De argila tenra, De argila virgem, Minha mãe tinha uma panela de argila vermelha Feita pelos Dedos finos do oleiro da tribo. II Minha mãe tinha uma panela de argila Vermelha como o puro sangue dos filhos da tribo, Uma panela de flancos redondos como os flancos do mundo; E lamberam seu lábio1 compacto As chamas de língua afiada, – Não a chama súbita das musangas2 sugadas pelo sol Nem os estalidos perfumados dos bambus, – – Mas a lenta incandescência das brasas de acaju, Mas o canto vermelho do fogo No incenso eritreu das colunas de okoumê3. III Minha mãe tinha uma panela Lábio (Lèvre), nesse contexto, pode significar “bordas” ou “aberturas”. É, contudo, uma imagem com várias repercussões ao longo do poema. (N.T.) 2 Gênero de árvore das florestas tropicais da África do oeste e central. (N.T.) 3 Madeira de uma árvore do Gabão. (N.T.) 1

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De lábio compacto e claro, De flancos redondos, Redondos como um fruto maduro em suas mãos estendidas, Um fruto pesado, E pleno, E escarlate, Sob a folhagem das mãos da tribo... ... Uma panela: ... Em seu lábio o crepúsculo cantava a crepitação dos fogos reacesos A lua de volta, E na fronte brilhante dos meninos reunidos A dança precoce das estrelas. IV E a fome povoava de lendas Os lábios finos, Os lábios ternos, Os lábios virgens, Os lábios compactos, Os lábios secos pelo tórrido peso dos meios-dias etiópicos E de sonhos, E de esperas, E de esperanças... povoava o dia que morre O coração reunido de minha aldeia. V Minha mãe tinha uma panela De argila rara, De argila vermelha como o sangue da raça, Uma panela de lábio compacto e claro, De flancos redondos como os flancos do mundo, Como um fruto maduro Sobre o qual sangrava o esplendor do dia agonizante da tribo, Da tribo reunida desde o alvorecer do mundo. 38


VI Deus apareceu... Sobre a toalha de linho fino, Sobre o mármore luzente como o espelho dos mercadores, Atrás das colunas de topázio, Dos lambris de ouro Das franjas pesadas dos rubis de Couschân4... Sem lugar, Um humilde lugar vazio para a panela de minha mãe... Deus veio e se deteve. As estradas de Emaús haviam coberto de poeira marrom seus [pés de bronze E seus passos cantavam os nomes de meu país, Os nomes de Esingang, de Mekom, de Abiedë5, E o humilde nome de Enam-Ngal, Como uma detonação vesperal no lábio melodioso dos tantãs. VII Deus veio. Ele se deteve. Pois a fome povoava seu lábio ressequido pelos nomes de [meu país... Mas sobre a toalha de linho fino, Sobre o mármore luzente como o espelho dos mercadores, Atrás do bosque das colunas Constelado por gemas de Couschân, Nenhum lugar humilde para a panela de minha mãe. Referência ao rei Couschân-Rischataïm, da Mesopotâmia, que estendeu seu poderio até o oeste do rio Eufrates (atual Iraque). As riquezas (pedras) ganharam o seu nome, conforme indicado em Jó 28-19: “Não se iguala ao topázio de Cush,/ nem se compra com o ouro mais puro.” (N.T.) 5 Referências a várias localidades próximas de Enam-Ngal, cidade natal do autor onde se encontra uma importante missão católica. (N.T.) 4

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VIII Então sobre as duas mãos de meu Deus, Entre o céu e a terra, Sobre o firmamento de suas mãos abertas sem limites, E cobrindo com sua sombra As trilhas que sobem de Jericó a Sião, E os povos cercando as bordas de seus Jordãos, E as multidões amontoadas nas margens, à noite, E as tribos esfomeadas, alimentadas com Cinco pães incontáveis [de suas mãos, Então sobre as duas mãos de meu Deus, Pesadas com nossas enfermidades, Vermelhas com todos os corações sangrando sobre ele nossas [misérias, Mãos estendidas, Mãos abertas, Mãos vazias como a toalha solitária estirada ao sol, Minha mãe pôs a panela de argila, O vaso de terra vermelha e de lodo, No horizonte de seus Olhos, Na altura de Seu Coração, Diante desse Coração de flamboyant... IX E sobe o incêndio, E envolve o incêndio a panela de argila, E corre a chama sobre seu lábio claro e denso, E sobre seus flancos redondos como os flancos do mundo, Em sua carne, Em suas veias, Em seu seio oco, No abismo de seu seio à espera de Sua plenitude A chama sobe como sobe a aurora. 40


X Tudo se calou. ... Fruto maduro sobre a mesa de suas mãos, Globo vermelho no firmamento de suas mãos estendidas, No horizonte de seu Coração, No horizonte de sua Boca... Tudo não é mais que silêncio... ... E canta a panela, As panelas de minha mãe, SOBRE O LÁBIO DE DEUS.

Tradução: Pablo Simpson

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Pablo Neruda

[Chile]

Neftalí Ricardo Reyes Basoalto – mais conhecido pelo pseudônimo de Pablo Neruda – nasceu em Parral, no Chile, em julho de 1904. Além de cônsul do Chile na Espanha e no México, foi também senador. A casa em que viveu em Santiago é hoje um museu aberto à visitação. Ganhou o Nobel de Literatura em 1971 e faleceu dois anos mais tarde, aos 69 anos, em Santiago.

Por quê?

Escolhemos esse poema por ser romântico, bonito e apresentar uma linguagem interessante. Além disso, é delicado: afinal, fala do simples riso de uma mulher – e atualmente quase ninguém mais dá valor às coisas pequenas. A parte de que mais gostamos é o final, porque achamos interessante a forma exagerada como o poeta expressa a importância do riso da amada.

Ana Clara de Oliveira Araújo, Karolina Natasha Pereira Domingos, Sabrina Morais de Oliveira e Sarah de Jesus Martins (1º D) 42


Teu riso Tira-me o pão, se queres. Tira-me o ar, porém, não me tires teu riso. Não me tires a rosa, a lança que debulhas, nem a água que de súbito estala em tua alegria, a repentina onda de prata que te nasce. A luta é dura e volto com os olhos cansados às vezes por ter visto a terra que não muda, mas ao entrar teu riso sobe ao céu me buscando, e abre para mim todas as comportas da vida. Amor meu, mesmo na hora mais escura debulha teu riso, e se tão logo vês que meu sangue mancha as pedras da avenida, ri, porque teu riso será nas minhas mãos como uma espada úmida. Junto do mar, no outono, 43


teu riso vai levantar sua cascata de espuma, e na primavera, amor, quero teu riso como a flor que eu esperava, a flor azul, a rosa da minha pátria que soa. Quero que rias da noite, rias do dia e da lua, e rias das avenidas retorcidas desta ilha, podes rir deste rude rapaz que muito te quer, mas quando eu abro os olhos para ir logo fechando, quando meus passos vão, quando meus passos voltam, nega-me o pão, e o ar, a luz, a primavera, mas o teu riso nunca porque assim morreria.

Tradução: José Eduardo Degrazia

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Jorge Rojas

[Colômbia]

Nascido na cidade de Santa Rosa de Viterbo em 1911, Jorge Rojas foi escritor e advogado. Considerado um dos mais importantes nomes da poesia colombiana no século XX, começou a publicar no final da década de 30. Seu último livro, Huellas, saiu em 1993, dois anos antes de sua morte, aos 84 anos.

Por quê?

Escolhemos esse poema por retratar coisas simples. Sua principal mensagem é que não precisamos ter medo de nos expressar e que devemos dar tempo ao tempo. Afinal, se tudo “um dia há-de ser”, não é preciso ter medo da vida.

Elen Zanon, Lara Amstalden Castellani, Pedro Vitor Cenaque, Ramon Augusto Presti e Vitória Lyandra Soares de Oliveira (1º B) 46


A voz do sangue Canta até sentires que te doem as pálpebras. Pensa até que o teu sonho se encha de andorinhas. Sonha até que a noite se refugie nos sinos. Quere-me até que os olhos se te encham de lágrimas. Chora até que as lágrimas façam fugir os pássaros. Chama-me até que cresçam espinhos em meus ouvidos. Espera-me até que os peixes hajam bebido todos os rios e cantem. Porque um dia há-de ser.

Tradução: Osvaldo Orico

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Ko Un

[Coreia do Sul]

Nascido em 1933, Ko Un tornou-se monge budista depois de presenciar os horrores da guerra. Viveu períodos de isolamento e foi preso por questões políticas. Suas primeiras obras são da década de 60. Com mais de uma centena de livros publicados, é frequentemente lembrado como favorito para o Nobel de Literatura.

Por quê?

Escolhemos esse poeta, um dos mais conhecidos da Coreia do Sul, por sua trajetória de vida complicada, que inclui guerras, prisões e tentativas de suicídio. O poema selecionado nos chamou a atenção por retratar como são os sentimentos de um poeta e o que se passa em sua mente. A solidão, por exemplo, é um dos traços de sua personalidade que aparece retratado no poema.

Caio Rodrigues Camargo, Danilo Abílio da Silva, Paulo Cruz da Silva Júnior e Vitória Giovana Farias da Silveira (1º A) 48


O poeta O poeta teve de chorar muitos dias e noites antes de se tornar poeta. Com trinta anos apenas, o poeta já tinha chorado muito pelos outros. Ser poeta quer dizer: estender as mãos. Ser poeta quer dizer: consolação. O poeta está sempre ao lado dos aflitos, dos pobres, dos sofredores. Neste mundo de desigualdade, ele é irmão de todos os solitários. O poeta nunca se encontra sozinho, ele alberga em si toda a sabedoria do povo. Por fim, emudecido, o poeta morre para que renasça como poema. Ele é, para sempre, uma estrela fiel no firmamento.

Tradução: Luís Costa (adaptação a partir da versão alemã de WoonJung Chei e Siegfried Schaarschmidt)

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Bernard Binlin Dadié

[Costa do Marfim]

Nascido no balneário de Assinie em 1916, Bernard Binlin Dadié militou pela independência da Costa do Marfim e, mais tarde, ocupou por quase dez anos o posto de Ministro da Cultura do país. Além de poeta, é também romancista e dramaturgo.

Por quê?

Não são muitos os poetas marfinenses traduzidos para o português, o que diminui as possibilidades de escolha. Mesmo assim, optamos por Dadié pela maneira como consegue expressar sentimentos dos mais profundos.

Carlos Eduardo Gomes da Silva, Caroline de Freitas Amaral Pacheco, Edson Henrique Santos Dias, Giovane Rodrigues Camargo, Lahana Stéfani Vieira e Raiane Aparecida Fernandes (1º C) 50


Aos poetas Pescadores de auroras quebradores de correntes dentro da noite, Que fazem colheita de estrelas velhos paladinos a correr mundo, Minha terra geme todo tipo de murmúrios Meu céu ronca com todos os gritos sufocados. Tenho dor nas quinas Da minha gaiola No meu silêncio de ferro de tempestade. Pescadores de auroras Que fazem colheita de estrelas Façam-no Dia ao meu redor O dia ao redor dos meus.

Tradução: Leo Gonçalves

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Jorge Arturo

[Costa Rica]

Jorge Arturo Venegas Castaing nasceu na cidade de Alajuela, em 1961. Sua obra foi marcada, de acordo com palavras do colega escritor Rodrigo Soto, pela vontade de “dar estatuto poético às coisas mais simples e cotidianas”. Morreu prematuramente em 2010, vítima de um câncer.

Por quê?

Escolhemos esse poema por termos achado interessante a maneira como as palavras são dispostas na página. Elas aparecem no meio do verso, às vezes até no final. Foi esse o recurso que mais nos chamou a atenção.

Edilaine Cristina da Costa e Ingrid Suellen Pereira Teotônio (1º A) 52


Meu coração é uma casa amotinada... meu coração é uma casa amotinada de pardais um gato de escombros deambula nos corredores alguém senta-se à mesa espera que os pardais baixem a guarda que algo mais feroz ocupe a casa

Tradução: Antonio Miranda

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Vesna Parun

[Croácia]

Nascida na cidade de Zlarin em 1922, Vesna Parun formou-se em Línguas Românicas pela Universidade de Zagreb. Atuou como tradutora e estreou na poesia com o livro Zore i vihori, em 1947. Morreu em Stubičke Toplice, em 2010.

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Oliveiras velhas como velhas mulheres Oliveiras velhas como velhas mulheres Sempre sempre expostas à seca e ao vento Desde a era bíblica as velhas oliveiras Já vêm embalando a paz mítica no ventre Oliveiras filhas do mar atarracadas Todo o sofrimento humano nelas está Deitaram raízes no penhasco grávidas Oliveiras berço do sol e leito do ar Oliveiras minhas irmãs no oceano Passam os seus dias vazios descontentes Feito nossos avós túmidas de ruína Escuras e negras com seus mementos tristes Oliveiras vocês são empedrada gente Nossas amarguras nossos duros pesares Dos seus seios jorra um dourado azeite E a vida transborda como nos velhos livros

Tradução: Aleksandr Jovanovic

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Fernando Cazón Vera

[Equador]

Nascido em Quito em 1935, Fernando Cazón Vera atua como jornalista e professor universitário em Guayaquil. Começou a publicar poesia nos anos 50. Entre seus mais de vinte títulos estão obras como El extraño e El libro de las paradojas.

Por quê?

Escolhemos esse poeta porque nos agradou a forma como descreve suas ideias e pensamentos. No poema selecionado, por exemplo, é possível notar a visão do autor sobre a vida e suas emoções. Por onde passa, ele afirma encontrar apenas alegria – e jamais deixar transparecer suas tristezas. Diz, ainda, que vive “com a alegria de todos”.

Daniela Moreira Bastos, Geovana Binuto Barboza, Jhonatan Willian Bucci, Leonardo Gonçalves Araújo e João Manoel Pereira da Silva (1º D) 56


Eu não vim para vencer Eu não vim para vencer, vim perguntar apenas onde se encontra a vitória. Venho viver com a alegria de todos e a compartilhar a tristeza de ninguém. Venho dividir o pão com um mendigo para saber que benção me dá. Venho pisar a rua para ser parte de um costume. Venho rir com a primeira piada, soluçar com a primeira pena, e entusiasmar-me com qualquer notícia. Venho chorar, cantar, dançar na primeira festa, disfarçar a rota dos cadáveres, dividir-me entre todos, viver, a conhecê-los. Eu não vim para vencer, vim perguntar apenas onde se encontra a vitória.

Tradução: Antonio Miranda

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Calderón de la Barca

[Espanha]

Nome importante do teatro barroco, Pedro Calderón de la Barca viveu no século XVII, entre os anos de 1600 e 1681. Estudou no Colégio Imperial dos Jesuítas, mas não seguiu carreira eclesiástica e preferiu se dedicar à literatura. Entre suas obras mais importantes está a peça teatral A vida é um sonho.

Claudemir Batista Junior, Douglas Aparecido Bettarello, Matheus Ribeiro de Souza, Renan Godoy e Vinicius Camilo Nogueira (1º B) 58


A noite Esses lúcidos rasgos, essas velas que cobram com amagos superiores alimentos do sol em resplendores, aquilo vivem que se sofre delas. Flores noturnas são: embora belas, efêmeras, padecem seus ardores; pois, se um dia é o século das flores, uma noite é a idade das estrelas. Dessa, pois, primavera fugitiva já nosso mal, já nosso bem decorre; registro é nosso, ou morra o sol ou viva. Que duração, na senda que percorre o homem, ou que mudança não deriva de astro que a cada noite nasce e morre?

Tradução: Fernando Mendes Vianna e Anderson Braga Horta

59


Emily Dickinson

[EUA]

Conhecida por sua personalidade solitária, a poeta Emily Elizabeth Dickinson nasceu em 1930 na cidade de Amsherst, Massachusetts. A maior parte de sua obra – ao todo quase dois mil poemas – foi publicada apenas depois de sua morte, em 1886, graças aos esforços de sua irmã Lavínia.

Por quê?

Achamos esse poema interessante porque nele está presente a ideia de imortalidade. Além disso, a maneira como a poeta usa as palavras mostra que o texto foi escrito com alma e empenho.

Amanda de Souza Macedo, Daiane Rodrigues dos Santos, Franciele Viana Nunes Pires e Líbini Maéli Bastos Silva (1º A) 60


Os instantes superiores da alma Os instantes Superiores da Alma Acontecem-lhe – na solidão – Quando o amigo – e a ocasião Terrena Se retiram para muito longe – Ou quando – Ela Própria – subiu A um plano tão alto Para Reconhecer menos Do que a sua Omnipotência – Essa Abolição Mortal É rara – mas tão bela Como Aparição – sujeita A um Ar Absoluto – Revelação da Eternidade Aos seus favoritos – bem poucos – A Gigantesca substância Da Imortalidade

Tradução: Nuno Júdice

61


Charles Baudelaire

[França]

Considerado um dos principais nomes do simbolismo, Charles Baudelaire nasceu em 1821 em Paris. Além de poeta, foi também teórico e crítico de arte. Entre suas principais obras estão As flores do mal e Pequenos poemas em prosa. Morreu na capital francesa, em 1867.

Por quê?

Escolhemos esse poema pela interessante comparação entre o albatroz e a figura do poeta. A ave, linda e meiga quando está voando, fica feia e desajeitada quando está no solo. Da mesma maneira, os poetas, quando estão escrevendo, são maravilhosos – eles “voam”. Já quando “pousam” na vida cotidiana ficam como a ave em solo: deslocados.

Ana Caroline Lima, Jéssica Castro dos Reis Santana, Júlia de Carvalho Passos, Matheus Aparecido de Oliveira, Suellen Fernanda de Moura e Tifanny Alves Santos (1º D) 62


O albatroz Às vezes, por prazer, os homens de equipagem Pegam um albatroz, enorme ave marinha, Que segue, companheiro indolente de viagem, O navio que sobre os abismos caminha. Mal o põem no convés por sobre as pranchas rasas, Esse senhor do azul, sem jeito e envergonhado, Deixa doridamente as grandes e alvas asas Como remos cair e arrastar-se a seu lado. Que sem graça é o viajor alado sem seu nimbo! Ave tão bela, como está cômica e feia! Um o irrita chegando ao seu bico um cachimbo, Outro põe-se a imitar o enfermo que coxeia! O poeta é semelhante ao príncipe da altura Que busca a tempestade e ri da flecha no ar; Exilado no chão, em meio à corja impura, As asas de gigante impedem-no de andar.

Tradução: Guilherme de Almeida

63


Kofi Awoonor

[Gana]

Nascido na vila de Weta em 1935, George Kofi Awoonor Williams foi poeta, crítico e professor universitário, além de diplomata. Nos anos 80, esteve no Brasil como embaixador de seu país. Como escritor, aventurou-se pelo romance, ensaísmo e teatro. Morreu em 2013 no Quênia, vítima de um ataque terrorista num centro comercial de Nairóbi.

Por quê?

Escolhemos esse poeta por ter sido um grande nome da literatura africana. Seus poemas são ainda hoje conhecidos e estudados no país e continente em que viveu.

Felipe Vitor Aguiar da Silva, Letícia Almeida de Souza, Mayara Aparecida dos Santos e Weslley Belo Holanda (1º B) 64


Jornada para o além Pelos umbrais ecoam os lamentos com baixelas fumegantes a serviço dos convivas. Kutsiami1, barqueiro de boa vontade, quando eu chegar às margens do teu rio, por favor, consente a travessia. Não trago presa à roupa a paga por teus préstimos.

Tradução: Daniel Serrano

Na mitologia do povo Ewe, Kutsiami é o barqueiro responsável pela travessia do rio que separa os vivos dos mortos. Como exige pagamento pelo serviço, aquele que não o remunera fica condenado a vagar pelas margens para sempre, sem descanso. (N.T.) 1

65


Constantinos Caváfis

[Grécia]

Considerado um dos mais importantes poetas da língua grega moderna, Constantinos Caváfis nasceu na cidade de Alexandria em 1863. Ainda jovem, passou sete anos na Inglaterra, período que foi decisivo para sua formação como poeta. Sua obra foi reunida em livro apenas após sua morte, em 1933, em decorrência de um câncer.

66


O espelho da entrada À entrada da mansão havia um grande espelho muito antigo, comprado pelo menos há mais de oitenta anos. Um rapaz belíssimo, empregado de alfaiate (e nos domingos atleta diletante) estava ali com um pacote. Deu-o a alguém da casa, que o levou para dentro com o recibo. O empregado do alfaiate ficou sozinho, à espera. Acercou-se do espelho e mirou-se para ajeitar a gravata. Após cinco minutos, trouxeram-lhe o recibo e ele se foi. Mas o antigo espelho, que vira e revira nos seus longos anos de existência coisas e rostos aos milhares; mas o antigo espelho agora se alegrava e exultava de haver mostrado sobre si por um instante a beleza culminante.

Tradução: José Paulo Paes

67


Gerrit Komrij

[Holanda]

Nascido em Winterswijk em 1944, Gerrit Komrij mudou-se em 1984 para a aldeia de Alvites, em Portugal. Além de poeta, foi também dramaturgo, romancista, crítico literário e tradutor. Morreu em 2012, aos 68 anos.

Por quê?

Escolhemos esse poema pela estranheza que nos causaram algumas palavras. Isso talvez se deva ao fato de que Komrij preferia as formas clássicas, característica que lhe dá um certo ar mais “culto”.

André Antunes Ribeiro, Fernando da Silva Santos, José Alberto Saidell e Willian Ferreira de Jesus (1º C) 68


Ela dança sobre pregos Versos magoam, a folha angustia. Dão guinadas no corpo, infernais. É o teu mal: leste poemas a mais. Melhor perderes-te em música obscena, Melhor deitares-te a ouvir cantilena Do fogo consumindo uma pirotecnia, Melhor rebolares-te em sei lá quê Do que a dor e o decoro de quem vê Ir-se a vida na Paixão da Poesia.

Tradução: Fernando Venâncio

69


Juan Ramón Molina

[Honduras]

Nascido na cidade de Comayagüela em 1875, Juan Ramón Molina é considerado, ao lado do nicaraguense Rubén Darío, um dos principais nomes do modernismo centro-americano. Entre suas composições mais conhecidas está Saudação aos poetas brasileiros, escrita por ocasião de uma viagem ao país. Morreu com apenas 33 anos, em 1908.

Por quê?

A tímida presença da poesia hondurenha no Brasil nos deixou com pouca margem de escolha. Apesar disso, chamou-nos a atenção, em particular, o poema Pesca de sereias, que escolhemos para esta antologia.

Denilson Vanile dos Santos e Willian Correia de Jesus (1º B) 70


Pesca de sereias Pesca-me uma sereia, pescador sem fortuna que cismando na praia fitas longínqua a ilha. Propícia é a hora, a velha lua no céu se enfuna e desce e, espelho mágico, em meio às ondas brilha. Hão de chegar-se à beira da plácida laguna, mostrando à flor das águas o seio sem mantilha, e cantarão em coro, bem próximas à duna, o seu canto que os pobres marujos maravilha. Entra no mar então e pega-me a mais bela, envolvendo-a na rede. Não lhe ouças a querela, que é como o canto falso das mulheres. O sol virá vê-la amanhã – entre meus braços louca – morrer – sob o martírio divino desta boca – mexendo-me entre as pernas a cauda tornassol.

Tradução: Anderson Braga Horta

71


William Shakespeare

[Inglaterra]

Considerado o maior escritor de língua inglesa de todos os tempos e o mais influente dramaturgo do mundo, William Shakespeare nasceu na cidade de Stratford-upon-Avon em 1564. Entre suas obras mais conhecidas estão as peças Romeu e Julieta e Hamlet, além de numerosos sonetos. Morreu em 1616.

Por quê?

Escolhemos esse poeta por sua fama e talento, lembrados e admirados ainda hoje, depois de tantos anos. O poema selecionado ofereceu alguma dificuldade de leitura, mas o achamos interessante por causa da aproximação entre o amor e as estações do ano.

Isabela Elisa Tomaz, Josilene da Silva Paz e Lavínia Vitória de Alcântara Marques (1º C) 72


Soneto XVIII Devo igualar-te a um dia de verão? Mais afável e belo é o teu semblante: O vento esfolha Maio inda em botão, Dura o termo estival um breve instante. Muitas vezes a luz do céu calcina, Mas o áureo tom também perde a clareza: De seu belo a beleza enfim declina, Ao léu ou pelas leis da Natureza, Só teu verão eterno não se acaba Nem a posse de tua formosura; De impor-te a sombra a Morte não se gaba Pois que esta estrofe eterna ao Tempo dura. Enquanto houver viventes nesta lida, Há-de viver meu verso e te dar vida.

Tradução: Ivo Barroso

73


Abu Nuwas

[Irã]

Filho de um soldado sírio e uma tecelã persa, Abu Nawas nasceu por volta de 750 d.C. na cidade de Ahvaz, atual Irã. Estudou em Basra e Cufa, importantes centros culturais da região, mudandose mais tarde para Bagdá. Considerado um dos maiores poetas de sua época, Abu Nawas compartilha com a tradição greco-latina a temática hedonista, isto é, a valorização dos prazeres da vida.

Por quê?

Escolhemos Abu Nuwas por se tratar de um dos maiores poetas da tradição persa e árabe. Além disso, chamou-nos a atenção o fato de ser considerado um dos primeiros homossexuais islâmicos a se destacar na poesia.

Elisa Silva Rosa, Flávio Daniel Franco de Paula, Janis Alves, Luã Nikolas Mota da Silva e Welison Sena Silva (1º C) 74


[Com vinho, dizendo que é vinho, enche-me a taça] Com vinho, dizendo que é vinho, enche-me a taça, Pois beber furtivamente não há quem me faça. Pobre e maldito é o tempo em que sóbrio fico, Mas quando trôpego pelo vinho torno-me rico. Não escondas por temor o nome do bem-amado; O prazer verdadeiro nunca deve ser ocultado.

Tradução: Paulo Azevedo Chaves

75


Giuseppe Ungaretti

[Itália]

Filho de pais italianos, Giuseppe Ungaretti nasceu na cidade de Alexandria, no Egito, em 1888. De volta à Itália, foi combatente na Primeira Guerra Mundial. Esteve no Brasil entre as décadas de 30 e 40, quando atuou como professor na Universidade de São Paulo. Morreu em Milão, em 1970.

76


Tapete Cada cor expande-se e deita nas outras cores Para estar mais só se a olhares

Tradução: Sérgio Wax

77


Akiko Yosano

[Japão]

Nascida na cidade de Osaka em 1878, a poeta Akiko Yosano publicou ao longo da vida mais de vinte coletâneas de tanka, forma poética breve da tradição japonesa. Polêmica, foi defensora dos ideais feministas e se opôs ao militarismo japonês da época. Morreu em 1942, vítima de um derrame cerebral.

78


Tanka III “Kyoto é um lugar de dolorosas recordações...” escrevi até aí quando olhei para baixo e notei a brancura do rio Kamo

Tradução: Diogo Kaupatez

79


Xavier Villaurrutia

[México]

Nascido na Cidade do México em 1903, Xavier Villaurrutia descobriu o gosto pela literatura enquanto ainda era estudante. Uma bolsa permitiu que desse continuidade aos estudos nos EUA, onde se especializou em teatro. De volta ao México, foi colaborador de diversos periódicos. Entre suas principais obras estão Reflejos e Nocturnos. Morreu em 1950, aos 47 anos.

Por quê?

O poema que escolhemos é uma espécie de atestado de tudo o que pode ser dito numa língua. Trata-se de um poema que em alguns momentos beira o indecifrável, já que explora os limites do sentido das palavras, e que a cada leitura se abre a novas interpretações. Os versos de Villaurrutia são intensos e sua linguagem vai além daquela que usamos no dia a dia. Um exemplo disso está nos versos finais da segunda estrofe (“e minha voz que se afogue nesse mar de medo/ cada vez mais débil e inflamada”), marcados pelo desespero. Amanda Feliciano Florentino, Ariel Nunes Silva, Bianca Helena Pallaro, Hélen Cristina Frassi, Jeniffer Messias Fernandes, Joyce Ribeiro Camilo e Natasha Almeida de Moura (1º B) 80


Noturno morto Primeiro o ar tépido e lento que me rodeia Como a atadura ao braço enfermo de um enfermo e que me invada logo como o silêncio frio o corpo desvalido e morto de algum morto. Depois um ruído surdo, azul e numeroso, preso no caracol de minha orelha dormida e minha voz que se afogue nesse mar de medo cada vez mais débil e inflamada. Quem medirá o espaço, quem dirá o momento em que se funda o gelo de meu corpo e consuma o coração imóvel como a chama fria? A terra como silêncio silencioso e impalpável, a soledade opaca e a sombra cinzenta cairão sobre meus olhos e enfrentarão minha fronte.

Tradução: Antonio Miranda

81


Christopher Okigbo

[Nigéria]

Nascido na vila de Ojoto em 1932, Christopher Okigbo escreveu em língua inglesa, opção que encontrou resistência junto a críticos de viés mais nacionalista. Participou da guerra pela independência da região de Biafra, morrendo em combate no ano de 1967, aos 35 anos.

Por quê?

Escolhemos esse poema pelo sofisticado emprego das palavras, de que temos exemplo na segunda estrofe (“O amor ergueu-se com a lua/ Alimentou-se de nossos caules solitários”). O amor, no poema, é vivenciado como uma experiência de separação.

Gabriel de França Ferreira, Matheus Henrique Vitório Silva e Thiago Toppan da Silva (1º B) 82


Amor à distância A lua Ergueu-se entre nós, Entre dois pinhos Que se inclinam um ao outro; O amor ergueu-se com a lua, Alimentou-se de nossos caules solitários; E agora nós somos sombras Que se prendem uma à outra, Mas beijam apenas ar.

Tradução: Ricardo Domeneck

83


Fernando Paixão

[Portugal]

Apesar de residir em São Paulo desde a infância, Fernando Paixão nasceu na aldeia portuguesa de Beselga, em 1955. Formou-se em jornalismo e deu continuidade aos estudos na área da literatura. Trabalhou por muitos anos na área editorial. Atualmente, é professor do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Por quê?

Escolhemos esse poema porque o achamos diferente. Nele, é como se os diferentes elementos se unissem num abraço.

Alexandre da Silva Boch, Amanda Soares de Souza, Ciele Aparecida de Souza, David Lucas Alves dos Santos Oliveira e Gean Carlo Bonancea (1º D) 84


[Fosse o rio] Fosse o rio abraรงaria o mar. Fosse mar abraรงaria o ar. Fosse ar abraรงaria o fogo. Seria entรฃo todo.

85


Joseph Brodsky

[Rússia]

Nascido em 1940 em Leningrado, atual São Petersburgo, Iosif Aleksandrovich Brodsky foi expulso da União Soviética em 1972 e mudou-se para os EUA, onde viria a falecer mais tarde, em 1996. Considerado um dos mais importantes poetas russos do pósguerra, foi agraciado em 1987 com o Nobel de Literatura.

Por quê?

Escolhemos esse poema porque, ao ler a primeira estrofe, notamos uma figura de linguagem discutida em sala: a comparação. Além disso, o poema faz com que nós, leitores, criemos uma imagem nítida daquilo que o poeta relata. Além de expressar seus sentimentos pelo acontecido, o eu poético demonstra preocupação com a maneira de usar a linguagem, valendo-se de um registro mais elevado.

Beatriz Pereira da Silva, Henrique Franco Marciano, Igor Gabriel Balieiro, Janaína Lima, Lucas de Aquino e Pedro Henrique Rodrigues (1º D) 86


M.B. Querida, hoje saí de casa já muito ao fim da tarde para respirar o ar fresco que vinha do oceano. O sol fundia-se como um leque vermelho no teatro e uma nuvem erguia a cauda enorme como um piano. Há um quarto de século adoravas tâmaras e carne no braseiro, tentavas o canto, fazias desenhos num bloco-notas, divertias-te comigo, mas depois encontraste um engenheiro e, a julgar pelas cartas, tomaste-te aflitivamente idiota. Ultimamente têm-te visto em igrejas da capital e da província, em missas de defuntos pelos nossos comuns amigos; agora não param (as missas). E alegra-me que no mundo existam ainda distâncias mais inconcebíveis que a que nos separa. Não me interpretes mal: a tua voz, o teu corpo, o teu nome já não mexem com nada cá dentro. Não que alguém os destruísse, só que um homem, para esquecer uma vida, precisa pelo menos de viver outra ainda. E eu há muito que gastei tudo isso. Tu tiveste sorte: onde estarias para sempre – salvo talvez numa fotografia – de sorriso trocista, sem uma ruga, jovem, alegre? Pois o tempo, ao dar de caras com a memória, reconhece a invalidez dos seus direitos. Fumo no escuro e respiro as algas podres.

Tradução: Carlos Leite

87


Blaise Cendrars

[Suíça]

Mais conhecido pelo pseudônimo de Blaise Cendrars, Frédéric Louis Sauser nasceu em La Chaux-de-Fonds em 1887. Visitou o Brasil em sete oportunidades, travando contato com nomes importantes do modernismo, como Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. Essas viagens inspiraram uma série de poemas sobre o Brasil. Morreu em Paris em 1961.

88


São Paulo Enfim eis usinas um subúrbio um gentil bondinho Fios elétricos Um rua populosa com gente que vai fazer as suas compras da tarde Um gasômetro Enfim se chega na estação São Paulo Penso estar na estação de Nice Ou desembarcar em Charring-Cross em Londres Encontro todos meus amigos Bom dia Sou eu.

Tradução: Patrícia Galvão (Pagu)

89


Mario Benedetti

[Uruguai]

Nascido em Paso de los Toros em 1920, Mario Benedetti colaborou ao longo da vida com diversos periódicos literários. Seu primeiro livro de poesia, La víspera indeleble, foi publicado em 1945. Além de poeta, foi também contista e ensaísta. Morreu em 2009, na capital uruguaia.

Por quê?

Escolhemos esse poema por expressar os sentimentos de uma pessoa à espera de sua amada. O eu poético fala de alguém que ele aguarda ansiosamente: uma pessoa que foi e é muito especial para ele e com quem viveu momentos mágicos e especiais. Isso tudo no passado. Acontece que, no momento do poema, essa pessoa parece estar voltando. É alguém que ele ama muito e de cuja companhia espera desfrutar no futuro.

João Vitor da Silva, Leonardo Cianella Martins e Maksuel Robert Diniz (1º B) 90


Ainda Não o creio ainda Estás chegando a meu lado E a noite é um punhado De estrelas e de alegria Sinto o gosto escuto e vejo Teu rosto teu passo longo Tuas mãos e todavia Ainda não o creio Teu regresso tem tanto Que ver contigo e comigo Que a cabala o digo E pelas dúvidas o canto Ninguém nunca te substitui E as coisas mais triviais Se voltam fundamentais Por que estás chegando a casa Todavia ainda Duvido desta boa sorte Porque o céu de ter-te Me parece fantasia Porém vindes e é seguro E vindes com tua olhada E por isso tua chegada Faz mágico o futuro

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E embora não sempre tenha entendido Minhas culpas e meus fracassos Em compensação sei que em teus braços O mundo tem sentido E se beijo a ousadia E o mistério de teus lábios Não haverá dúvidas nem ressaibos Te quererei mais Ainda.

Tradução: Maria Teresa Almeida Pina

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