Lingua do P

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Para

VOCÊ

.



da tela do computador para a folha de papel: as palavras, aves migratórias, estão voando! Desconfio. Não tenho certeza. Desconfio, apenas: o dom de escrever pode ser genético. Pode ser. Ponto. Parágrafo. Já faz décadas que conheci as feras de sobrenome Fonseca: Homero, repórter e editor, sempre foi o feliz proprietário de um texto limpo, claro e livre de penduricalhos. Heber Fonseca, meu colega de turma no curso de Jornalismo, idem: como o bicho escrevia bem... Eis que Pedrinho Fonseca, descendente direto da estirpe dos Fonseca, herda do pai Homero e do tio Heber o gosto pelo manuseio das palavras. Dou um chute: tudo pode pode ter sido por artes do DNA. Quem sabe? PF cultua virtudes que fazem bem a quem vive de tecer frases: um senso de humor, uma pitada de ironia, uma queda pelo lirismo na hora certa. O texto corre solto. Dispensa o tom pomposo. É assim que deve ser.

O Império da Internet fez, entre tantos outros, um grande favor a este começo de século: bem ou mal, restaurou o hábito de escrever. Nunca se escreveu tanto. Thank you very much, Bill Gates. Deus te pague. Já pagou, aliás – em bilhões de notas de um dólar. Pedrinho Fonseca achou que o blog linguadop.com.br era pouco. Resolveu partir para a conquista do oeste, lançar velas ao mar, levantar vôo rumo ao Reino de Papel da Galáxia de Gutemberg: assim, as palavras do blog voaram, feito aves migratórias, para as folhas de papel. Declaro a quem interessar possa: a viagem se deu sem turbulências. PF quer nos provar o seguinte: pode ser na tela do computador, pode ser na folha de papel em branco, não importa, crianças. O importante é voar com as palavras. Sempre foi assim. E assim há de ser. Então, queiram apertar os cintos. Desliguem os celulares. Em caso de turbulência, podem rezar à vontade. E boa viagem!

GENETON

MORAES

NETO



CAPÍ TULO 1, Primeiro, era o verbo. Daí a existência desse Blog. Onde vai dar? Terei paciência? Levarei adiante? Não me perguntem. Já me questionei e só saberei (vi)vendo. Bem-vindos.

VERSÍ

I.

CULO

lín

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ROUPA lín 10

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Mas as roupas. Lá estão, estendidas, desencardindo, mas lembro - faço questão e gosto - que são as sujas. Nunca mais serão as mesmas. Cada lavagem, cai um pouco da tinta da vida e desbotam certas crenças. Minha vó que me ensinou a ver o bonito no feio me vem a cabeça agora. O que tem de bom nisso? Qual será a lição dessa vez? Como será vestir novamente aquelas roupas, depois de secas? {por que tiraram o acento da palavra secas? sinta o quanto o circunflexo dobra o coração e faz poema: sêcas.} A maior lição de agora, minha vó, vai ser vestir cada peça sem a mínima pretensão de que estejam

SUJA NO

VARAL novas, novamente. São as roupas sujas, minha vó. Desbotadas. Surradas. Mas o conforto não se paga. Nem se encontra no novo. E mais. Deixa o novo para outro neto, minha vó. Quero o novo não. O novo sou eu a cada espelho com a mesma roupa antes suja. Mas como me cai bem. Nunca havia me despido com tanta rapidez e me vestido com tanta honradez. Deixo secar. Quero que seque bem. Que pinguem os pingos. Que destinte a tinta. Que a chuva manche de marcas do tempo de Deus. Minha garagem está vazia. Meu sapotizeiro está cheio. Tomo um sem nem usar ponta-de-pés. O prazer está logo a mão. Me delicio com a chuva que não cessa. Doce como mel. Talvez mais. E nem domingo é.

AL

DA

Pendurei toda a roupa suja no varal da alma, que me fica por entre o quintal dos sapotis (doces como mel, talvez mais) e a garagem das frustrações (amargas como domingos). A demora para secar não será dolorosa. Tempos de chuva são para que nos tornemos mais pacientes mesmo. E se a chuva cai, aprendo. Cada gota é um segundo do relógio de Deus. Esse tempo passa, evapora, no calor dos dias-a-dias e há dias e adias o que tens para fazer com a desculpa de que tempo não há. Ah, há.


O

DRÁU ZIO QUE HÁ

EM

Azeite faz bem ao coração. Vinho faz bem ao coração. Amar faz bem ao coração. A vida que levo me custará a eternidade.

MIM. lín

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lín 12

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GINA Prefácios são fáceis Posfácios são póstumos Apóstolos, monótonos Quero bons tons E então São estarei


(I)

Fazem você acreditar neles. Depois, em si próprio. Em seguida, você acredita neles e em você, juntos, mudando o mundo.

MUN

E ao final, já cheio de crenças, você descobre que o princípio deles é mentir.

{O mundo não muda, meu caro. O mundo é imundo.}

DO.

lín

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PELA lín 14

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Verbo não é coisa que se desdiga, assim, apenas engolindo ditos. Porque verbos acompanham ações e sensações e emoções. E isso não se rumina.

GLO


ON

TEM,

VERSÃO 1 Hoje me deu uma ressaca. Foram as frustrações que bebi ontem. Ou o telefonema que não recebi para me desejar um feliz dia. Namorada, tudo bem - não há. Mas nenhuma amante. Uma ex saudosa. Uma futura mais atirada. Nem um amigo de sacanagem. Aí já foi demais. VERSÃO 2 Li um poema de Clarice Lispector ontem e tive vontade de chorar. Mas o dia estava feliz demais para derramar qualquer lágrima por um sentimento alheio. Dei uma volta na rua para sentir os pés no chão e a cabeça na infinitude

TEM (inquietude) das idéias tentando se arrumar. Dormi um pouco para misturar sonho e realidade.

VERSÃO 3 Ontem não tomei café da manhã. Não era mais hora, quando cheguei em casa. Foi mais um dos raros dias horizontais daa minha vida nos últimos tempos. Por várias vezes,

EM

QUA

TRO vi o Cristo me chamar. Braços abertos. E eu ali, de coração aberto, feliz com algo que nem lembrava mais (ou o dia cheirava a Gérbera?). VERSÃO 4 Se o asfalto estivesse mais quente, seria impossível não sapatear no meio da multidão. Seria condizente com o momento: feliz, de mãos dadas com o mundo, sentindo calafrios ao som de uma orquestra insuspeita. Boa noite. O dia já era.

POS. {Escolha a sua.}

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OS LÍ RIOS lín 16

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Maria confiava nas sete vidas que seu pai lhe prometera na infância. Nada a ver com gatos; ela os odiava, sendo franco. Sete vidas por nada, apenas por sorte; por azar, os mais nublados diriam. Maria caminhava de planta dos pés fincadas. Nada de levitar. Sublime, só seu cheiro; carregava jardins por onde ia e ia sempre por muitos lugares, que era para não perfumar mundos pequenos. Sua primeira das sete vidas ainda não perdera; e já tinha idade de menina-mulher, dezessete. Atravessava sem olhar. Saía em dia de tempestade carregando um guardachuva fechado e um livro aberto; lia na chuva que era para disfarçar as lágrimas

escorridas pelas páginas de poesia. Dava bom dia a desconhecido; tempos como estes e essa menina a sorrir para sujeitos de barba grisalha e pensamentos de meninos despudorados. Cantarolava; lindamente cantarolava. Maria tinha sete vidas. Não perdera nenhuma. Ainda. Quem sabe nunca perderia. Seria sempre viva aos olhos da sua cidade. E aos narizes; fiéis farejadores da sua essência de vida.

DE


NÃO

SE ALI

MENTE DE Confinado, findou finado.

{Encapsular-se nem sempre é uma boa saída. Quase nunca, diria. A liberdade começa em si. Pela decisão de não permanecer num mundo criado para ser gaiola com alpiste fácil e visão para uma janela que abre horizontes mentirosos.} {Voa. Liberdade é ter medo das alturas.}

CÁP

SU

lín

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Fran Seu nome é Francisco, mineiro. Mineiro que garimpa

amizade e se contenta com pequenas pedras e pequenos

Pedros. Porque para ele não é o que fica na peneira, é

o que passa. É o que transpassa a amizade e se torna

amor. Do jeito melhor de ser vivido: com o respeito que

não cabe no peito do mundo. Francisco, meu amigo

e meu irmão. Das Gerais. Você passar por aqui é feito

vento em tarde de calor.

cisco.


Na

ja

cu zzi.

Receita para ser feliz. 1. Encha uma jacuzzi com água morna. 2. Segure suas mágoas pelo pescoço, firmemente, com as duas mãos. 3. Afogue-as. Sorria.

lín

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C

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Grãos de uma

areia Por trás dessa enfinge está a menina que finge, a chuva que não molha, o vizinho que não olha.

que não seca.

Seremos felizes enquanto durar? Pelo tempo que nos restar?

Senta e refaz o teu castelo e deixa a onda, mais uma vez, levar.


+ CTRLZ ás

atr

de CTRL

+

Z

Quase todos os tipos de romance começam da mesma forma: você está praticamente desistindo de si mesmo e aparece alguém para provar que o mundo é bom e o som de celular tocando pode ser agradável. >delete Amores à primeira vista sempre começam meio embaçados. >delete As mulheres são todas iguais. Menos a que amamos. >delete Se você está em dúvida entre duas mulheres, não fique com nenhuma delas. >delete

{Amar é parafrasear si próprio. >enter}

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l铆n 22

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Boa noite.

Antes de dormir, releia a hist贸ria da sua vida para si pr贸prio. Se der sono, acorde preocupado.


Muro:

de

um

lado, ou

do

outro

(nunca em cima). “Vivre sans temps mort, jouir sans entraves.” {- Num muro, na França (viver sem horas mortas, gozar sem entraves).}

lín

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O maior mistério não é descobrir para onde vai cada linha

cada texto escrito

mas sim de onde sai cada dito cada palavra jogada ao

infinito

cena1. Mistério,


Dois ois

.

a

Feijão e arroz

Colombinas e pierrôs

Antes e depois

Dois a dois

lín

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Sam ba lín 26

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Perdido.

Enquanto o dia vai sigo sem rumo, procuro um prumo caminho a passos lentos e o encontro casual na esquina que vem não vem

E na calçada sem jardim, sem flor esqueço a rua onde mora o meu amor Quem dera essa espera, esse caminhar numa esquina da vida me fizesse te encontrar Já andei demais perdi meu mapa e sem saber me perdi de mim e perdi você


O

As casas que morei não tinham cheiro, mas perfume. Conservavam (e conservam, cada uma) um aroma de tempo que não tem mofo. Que não tem dores, nem agruras. São essências de memórias, que já vem editadas, como as boas películas nos parecem aos olhos.

perfume Mas não quero falar de olhos. Volto a respirar fundo.

Um perfume puro tem invadido minhas vias nasais, vitais: uma lembrança de uma casa que deixei adormecer em sonhos que se fantasiaram de pesadelos. O sonho voltou. Com ele, o perfume. E sem saber os porquês (vai entender-se a si próprio) tenho dormido melhor. Em sonos. Em sonhos. Em perfumes que não quero deixar de sentir.

E não vou. Não mais.

me das

lín

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quintal.

No

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Nesse quintal, criança não chora chuva grossa não demora folhas secas caem pelo ar para as horas passarem devagar

Nesse quintal, fruto proibido é tristeza dúvida não demora para virar certeza e o choro cantado pelo vento é de alegria, não de sofrimento Nesse quintal, dor não se planta Não se planta dor nesse quintal


Caso você se torne uma pessoa previsível, saiba que seu fim* está próximo**. *Apenas uma previsão.

PRE

VISÃO,

**Apenas uma visão.

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lín 30

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GI Pensar antes de

agir antes que

seja tarde antes

que nunca antes

de você antes

de mais nada.


Uma valsa sem os pés no chão. Dias compassados em três tempos: acordar, viver um pouco, dormir. Pausas breves para pensar em notas suspensas - enquanto o primeiro violino executa a melodia, o segundo violino cala, esperando pacientemente a sua hora de harmonizar. ...

SINFONIA

Deus, maestro irreverente, conta três e lança olhares sobre a solista. Ela devolve, segura do que precisa Amar é ato ser feito (mas contínuo. não disfarça a E quando vontade de soltar a melodia a primeira nota). finalmente A platéia observa. se encaixa, A platéia sabe a orquestra o que vem a funciona com seguir. Mas só irá perfeição. aplaudir ao final. ...

...

Cortinas cerram. Bravo. {O segundo ato será breve (digo, em breve).} lín

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lín 32

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04

Dois irmãos que se abraçam no horizonte Bebem da mesma fonte respiram os mesmos ares poluídos e condoídos perdem sua atenção na miséria alheia

H

Meninos de cuecas rasgadas deitados em calçadas de pedra e esgoto o mundo está roto e eu passo pela madrugada como quem dorme

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{Clique de um Recife que não queria mais ver. Mas vi.}


Esse menino me diz que sabe sambar sabe sambar que arranca a sola do sapato de tanto brigar com o chão mas a mãe logo adverte “sambar faz mal, malandragem com cuíca acaba virando marginal” E ele desce o morro pede socorro na lotação vê o mundo em sua mão o terreiro do choro no meio da praça de graça quem passa não quer mais passar

Quem passa não quer mais passar. {Sábado, General Glicério, bolinho de bacalhau numa mão, cerveja na outra. Saudade dos irmãos e irmãs.}

NAS

LA

RANJEIRAS.

lín

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OMENINO

O menino tinha uma mala estranha e andava com ela por onde ia. Era sua companheira de viagem, de descanso, de trabalho. Uma mala com alças fortes e seguras. Sem chave, sem segredos, sem dificuldades para se abrir. E o menino carregou sua mala a vida inteira. E todos tinham vontade de saber o que havia dentro. Mas achavam aquilo tudo muito estranho. Até aposta fizeram.

E

SUA MISTERIOSA.

isso ao revés.

MALA

E a cidade inteira se mobilizava naquela busca, naquela aposta. E - Sim. ninguém levou o prêmio. Ali, na mala, o menino - E por que sempre andas com eles, para cima e para Seu Cético, dono de um boteco, carregava sonhos. baixo? apostou que havia ouro dentro. E a mala era leve, porque seus sonhos eram pequenos. - Porque esperava que Dona Filosofia, uma costureira um dia a mala se abrisse, que o conhecia desde pequeno, E a mala poderia até ser frágil, mas seus sonhos aos pés de alguém que, acreditava que houvessem vendo o seu conteúdo, me retalhos da sua vida, fragmentos eram resistentes (e enfrentaram tempestades perguntasse o que seria de todos os caminhos e secas). aquilo. percorridos. E a mala poderia ser aberta por qualquer um, menos - E eu te perguntei... As irmãs gêmeas Certeza e por quem só quisesse Felicidade eram mais simplistas. apostar, adivinhar o que - E aqui eles estão, meus Ali devia habitar sua despensa sonhos. pessoal de amores, recordações de lá havia. momentos importantes. Sua mala de sonhos jamais - E agora, o que vais fazer? havia sido aberta. Uma velha senhora, a Sabedoria, E o menino continuava suas - Perguntar se queres só espiava da janela quando o caminhar comigo, me menino ia e vinha com a mala. E foi viagens, feliz da vida. ajudando a levar a mala. taxativa: são roupas. Agasalhos da alma, que o menino trocava quando Um dia, a mala caiu e abriu, E ali, diante do menino seu coração teimava em passar por si só, aos pés de uma e da menina, da mala e por inversões térmicas, deixando a outra pessoa, que esbarrara no dos sonhos, o silêncio frieza de lado e aquecendo-se - ou menino. se fez. Era uma menina. E ela viu seus sonhos. Todos eles. Ali, na mala aberta, no chão. E finalmente, alguém descobriu. - São seus sonhos, menino?


EU OBJE

EO

TO.

Lonjura era uma terra esquisita, sem fronteiras. Um país que tinha campos vastos, onde se plantava e se colhia calos nos pés, de tanto se andar. Num dos extremos de Lonjura, morava o Objeto. Um ser amável, que habitava uma casa de portas sempre abertas, janelas baixas e parapeitos com margaridas. No outro extremo, perto da Cordilheira da Alma, morava o Eu. Um ser de binóculos, sempre à procura do Objeto. Eu, desconhecendo os caminhos para se chegar ao Objeto, binoculava dia e noite, pelo menos para avistar no horizonte, mesmo que numa imagem míope, aquele Objeto que julgava tão seu.

”A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.” Eduardo Galeano.

E Eu, esquecido do binóculo numa tarde chuvosa, com a Cordilheira da Alma enevoada, surpreende-se com o Objeto ao seu lado. Do seu lado. Eu e o Objeto, juntos, numa tarde chuvosa, num encontro esperado desde que não haviam binóculos, apenas os olhos para se enxergar o que havia no horizonte. Lonjura nunca foi tão perto.

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CAN

ÇÃO

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PARA NINAR GABI.

A neném quer dormir tá querendo cochilar pra sonhar com o irmãozinho que em breve vai chegar

Vai fechando os olhinhos e abrindo a boquinha o soninho tá chegando dorme bem, Gabizinha {Para uma sobrinha linda que eu tenho – e para seus pais que amo.}


FERNANDO

EA

Fernando conheceu uma puta sem querer. Caminhando em direção à sua casa, onde por vezes morava com sua mãe, em dias que acertava os caminhos de volta. Seduzido pelo Gin, encantou-se com a moça. E ouviu juras de um amanhecer do dia inesquecível num motel logo ali. E foi, fazendo juras que era a última vez que conhecia uma puta. Sabia que iria ter ressaca, à tarde.

PU TA.

{As ressacas vespertinas são as piores. Não oferecem a brisa da noite, nem a trilha sonora Walt Disney das manhãs.} Tirar sutiãs nunca fora seu forte. E aquelas mãos frias descobrindo suas costas não colaboravam na concentração. Fernando respirava ofegante. A puta fingia respirar ofegante. E logo, duas raízes fincadas na cama, observadas por luminárias acesas e espelhos atentos. O gozo rapidamente alcançado era mais alívio que prazer. Fernando pagou e dormiu. Era mais um cliente que a puta conhecia. Mais um bêbado. Mais um que ela prometia gozo. Sabendo que a ela caberia não ter prazer. Apenas alívio.

lín

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lín 38

gua do p.

Casa de porta e janela. Tinta em cascas que caem no outono, junto com as folhas e com as lágrimas de saudade. Desde que se foi, o homem da vida de Luzia só aumentou as rachaduras na casa. E ela, como sempre, apoiada com os cotovelos secos na janela velha. Mais um outono, mais uma espera pelo prometido e não cumprido. Luzia chora. A tinta escorre, não a da parede. A dos olhos pintados para disfarçar a dor. Chora Luzia. Baixa a cabeça que passa. O outono é para sofrer, todos na rua o sabem. E não experimentam cumprimentá-la. Não no outono. Que é quando as lágrimas caem, a tinta escorre e Luzia perde as cascas.


SEROSA

Um

risco. Um trisco. Um cisco.

Na tela. Na janela. Nela.

CENT Por trás da retina se

esconde uma sombra. À frente da mácula, uma imagem imaculada.

RAL.

lín

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lĂ­n 40

gua do p.

diz Uma voz me liz fe r vai se do inho encontra porque o cam o orrid ĂŠ para ser perc ser desvendado vido para sempre vi

NHAR POR

SO CAMI

DO NOS

O. M S E M I S E D O DENTR


BRE

FE

LITE RIA.

Ato con tínuo De folha em fo lha passe ando Ando por pá ginas em bran co Fogo bran do Em olhos arden do por ver a vi da pas sar em pá ginas em bran co

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SUA

MAJES TADE, BA. O SAM

- E sapatear?

- Sei. Estudei anos e anos, o balé. No decorrer, tive que aprender a sapatear. - Mal danço samba. - Samba não se dança mal. Silêncio. Toca “Filosofia” na vitrola velha. - ...então, mostra teu samba. - Eu? Melhor não. Tenho medo. - Vergonha? Mas mulheres adoram dançar. - Não. Medo que te apaixones. No salão, a luz incendiava olhos bebuns. Ela era majestosa.


Põe as roupas para quarar a toalha rendada na mesa do jantar Que o dia vai se refazer, vai em alegria

I A I Á .

CAN TA,

Pede pro vizinho baixar o som quando o violão chegar, pede o tom E canta a melodia, Iaiá que a vida vai recomeçar

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gua do p.

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O HO MEM DE AMA RELO NO POR TÃO.

s no portão. O carteiro bate palma da, chinelo Chegou notícia. Bermu no filtro, se qua o arr de dedo, cig de um lá vai você. Na esperança tal pos um , seja que telegrama undós de Santa Maria dos Caf fim de de Judas, uma carta em a ganhar Bic. Apaga o cigarro par óteses. tempo e pensar em hip Conta de O carteiro tem pressa. Bradesco luz para Luzia, carta do de crédito para seu Paulo, cartão a de novo para Mariana, filh Januária. tarde, Boa tarde, diz você. Boa de que ejo des no só diz ele. E fica realmente fosse uma. a notícia. Nada de carta, nenhum ncia agê da ção mo Só uma pro levar de turismo, querendo ro por você num incrível cruzei Fernando de Noronha. Você odeia golfinhos. tarde. Amanhã às quatro da ex. Sed um e Quem sab


.

NTOS

JU

Amarverdadeiram

entedoisquesĂŁoum

parasempre.

lĂ­n

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. lín 46

SOLI_ÁRIO

gua do p.

O solitário morre quando

o

solidário nasce .


PO DE O

Pode pisar na grama Pode fumar no elevador Pode ver tv na cama Pode correr com o andor Pode falar de boca cheia Pode cochilar no sermão Pode até matar baleia Pode pisar descalço no chão Pode estacionar na calçada Pode furar a fila do banco Pode deixar água parada Pode descer do tamanco Pode desafinar no refrão Pode atender o celular Pode falar palavrão Pode fazer xixi no mar Pode comprar no crediário Pode xingar o presidente Pode fingir que é otário Pode deixar de ser crente Não, só não pode dizer não Não, só não pode dizer não

NÃO. Pode o não

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Ele foi para a sua obsessão

de terapia, cheio de calos

PSI.

Contou que bateu com o no ego. No divã, falou

carro no poste. Chorou sem da vida. Esculhambou o motivos. Riu com vários. O presidente da câmara. ouvido de pinico do outro Relembrou pesadelos lado não tinha boca. E sua de infância. Omitiu alma foi ficando oca, sem mentiras, reforçou dor. E levantou levitando, verdades próprias. leve e leviano.


O

pé formigando. Aquela dormência típica. Mudo de posição enquanto meu opositor raciocina vagarosamente. Ninguém tem pressa de perder, penso. Minha cabeça sai dali por instantes. Os olhos buscam a janela de vidros impecavelmente limpos, provavelmente naquela manhã, por uma faxineira gordinha e sorridente, trepada num dos bancos de couro que ofereciam conforto ao lugar. Janela alta, indecifrável - o que haveria do outro lado? Campo? Uma garagem? Provavelmente sujeira. Janelas altas servem para isso. Esconder feiúra. Certamente, com uma janela daquela altura, não poderia haver um jardim com esculturas de Rodin por trás.

À minha frente, um panaca pensativo. Seria cômico, se não fosse trágico. Ele fazia cara de quem lia Dom Quixote e agia como quem gostava mesmo era de palavras cruzadas de jornal de domingo. Esbocei um bocejo. Só para fazer pressão. A luz caiu pela janela, lá vem chuva para molhar meu jardim de ilusões do lado de fora. Impaciência. O pé não mais formigava. O opositor se move. Finalmente. Cavalo na casa E4. Minha vez. Xeque-mate. Vou ver o que há do outro lado da janela. Antes que comece a chover.

lín

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O PO NTO.

BA TEN DO Psicólogo que se preza tem neurose Advogado sempre quer mais uma dose Jornalista de tudo sabe um pouco Guitarrista, ou é rico ou muito louco Arquiteto ainda não se decidiu Delegado sempre finge que não viu Cozinheiro vive para experimentar Pescador, para histórias aumentar Mecânico fica por baixo, piloto fica por cima Cineasta faz imagem, poeta faz rima Jogador anda com loira, sambista com mulata Bicheiro gosta de ouro, deputado de mamata Médico não tem hora pro trabalho Puta trabalha para caralho Gari está sempre no meio do lixo Para subir na vida, ascensorista joga no bicho Empregada vai de vale-transporte Cobrador que nunca foi assaltado tem muita sorte Policial tem pistola enferrujada Enfermeiro tem seringa contaminada Coveiro não tem medo de alma Professora precisa de calma Funcionário público sai no horário Quem sai tarde é publicitário


Justo no dia do seu aniversário, Teresa morreu. Tinha festa preparada e tudo, dividida entre o terraço e suas cadeiras de balanço com recosto de náilon e o quintal, lotado de tamboretes de madeira suja. No quintal, Teresa certamente desfilaria, uma vez mais, suas sandálias rasteiras com miçangas que ela mesmo confeccionara. E chamaria a atenção de todos pela jovialidade - ninguém diria que naquela tarde completaria, se estivesse viva, seus 65 anos. Ano após ano, o quintal pedia mais tamboretes e mais lâmpadas na gambiarra elétrica que seu irmão Noé fazia sobre as cabeças dos convidados. Ao anoitecer, era de praxe esperar o acender das lâmpadas e o grito de Teresa, “a festa começou foi agora, classe média!”. E era como se os meninos da Batucada de Bambas recebessem uma injeção de ânimo: puxavam sambas de desabafo, como chamavam. Enredos de histórias de amor de todos os presentes. E Teresa a arrastar as sandálias de um lado para o outro, dando atenção a todos e a ninguém ao mesmo tempo. O terraço abrigava a turma do colégio. A “velha guarda

- e bote velha nisso”, como diria Teresa uma vez mais, antes de servir o sarapatel em cumbucas plásticas, misturados com a farofa mais deliciosa que já houve. Seus amigos de colégio, a cada ano, comemoravam o reencontro e choravam a perda de mais um dentre eles. Os últimos anos, todos eles, haviam sido assim. Teresa sabia: seu dia era dia santo. Mas naquele ano, as sandálias não foram ao quintal. Não pisaram no terraço. Noé havia acordado cedo, lavou o rosto e comeu uma bolacha com o restinho do requeijão de copo que alguém da casa esquecera do lado de fora da geladeira. Abriu a grade do quintal, espreguiçou-se e foi logo ao trabalho. Montou a gambiarra (sessenta lâmpadas, naquele ano!), espalhou os tamboretes, organizou as mesas e as cobriu com as toalhas pano padronizadas, emprestadas por seu Juraci, dono do bar da frente, que também se responsabilizava por gelar as cervejas desde a tarde anterior. Noé arrumava tudo calmamente quando ouviu a música vindo de dentro da casa. Teresa

acordara. Seu dia era sempre assim. Acordava e colocava Cartola para cantar - um vinil que ela tinha há pelo menos trinta aniversários. Ainda é cedo amor, mal começaste a conhecer a vida. Era a primeira frase que Teresa gostava de ouvir no seu aniversário. O moinho estava girando e Teresa não sabia. Era sua vez. No quintal, Noé largou a última toalha em cima da mesa que ficava embaixo do jambeiro carregado. Apressou o passo para ser o primeiro a dar bom dia e parabéns. Sua irmã era sua mãe, melhor amiga, a mulher da sua vida. ... No quarto, os vizinhos encontraram Teresa estendida no chão, ao lado da caixa de som. Noé, sentado na cama, chorava silenciosamente. Cartola já não cantava mais. O único som era o da agulha arranhando o final do lado A do vinil velho.

SAN TA TE RESA. lín

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lín 52

gua do p.

O CHEI RODOCE

Ah, se aquele cheiro doce ficasse até o outono. Não, morria ainda no final do verão. Abri meus braços olhando do píer para todo o horizonte, minuciosamente.

DE UM

VERÃO. Fotografava tudo, com grande angular, para caber cada detalhe. O açude à minha frente, o espelho dos cascos velhos de pequenos barcos pesqueiros que flutuavam, deslizavam. Respirei fundo. Ah, o cheiro doce. Delícia. No morro à frente, um colar de mangue no pescoço da ribanceira e uma coroa de nuvens discretas, sempre presentes. À direita do morro, o braço rico do açude. As mansões esquisitas, com seus jet-skis estacionados e impecavelmente polidos, com palmeiras mentirosas, plantadas por algum caseiro trânsfuga. Do lado esquerdo, eu. Esticado no píer. De frente para minha despedida. O outono chegara. E eu precisava ceder espaço para ele. O outono e eu não podíamos habitar aquele lugar ao mesmo tempo.

Me despedi dos barcos. Das palmeiras mentirosas. Do colar de mangue. Olhei pela penúltima vez para as nuvens brancas acima da testa do morro. Caminhei para o interior da casa com aquele vazio, de novo, o vazio. Fechei a vidraça. Olhei novamente, agora pela última vez, para aquilo tudo. De onde estava, não mais sentia o cheiro doce. Que minha memória me ajude mais um ano.


I ASSEVERA ÇÃO DE SE VERA, RINO.

MÃE DE SEVE

- Severino, menino maluvido deixa de ser astucioso tira a mão do bolso da calça do teu amigo

- Severino, tu tá me escutando, fingido? vou aí te dar um bofete que é pra tu deixar de ser moleque e parar de roubar teus colega - Severiiiino, fio da égua se eu te pego, te arrasto pelos ovo te fraguei roubando de novo e tu ainda sai com essa cara lavada? - Severiiiiiiiiiiiino, image do cão se tu cresce desse jeito ou vai ser político ou vai ser ladrão Cresceu e virou os dois.

lín

gua do p.

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ZOEL lín 54

gua do p.

NA

O nome não poderia ser melhor. Zona. Local que abriga o meretrício. Ou ainda a outra zona: bagunça, confusão. Vamos nós, domingo 23, escolher se a gente proíbe ou não o comércio das armas. Uma vez mais, a ditadura do voto. Eu sou obrigado a ir. Não é foda mesmo, cabos eleitorais. um negócio desses? Quero votar não. Aliás, Morte ao referendo. me diga você, que sabe Mundo ganha pelo de tudo. Se eu quiser Morte às urnas eletrônicas e Brasil. votar TALVEZ? Tem essa seus apitos insurpotáveis. Qual a cor de opção? Não tem. quem é a favor do Talvez eu precise saber, desarmamento? E de Morte ao sim (com arma conscientemente, branca). quem é contra? quem está mentindo menos. Quem está Pronto, lá vou eu, com Morte ao não (com um tentando me fazer tiro de 12 no tórax). meu porte de arma menos de idiota. eleitoral, no dia 23, Quem está ganhando Que o talvez sobreviva caminhar pela zona, menos sobre uma vez mais, já que vendo as putas fazerem minha decisão. não sabemos para onde caras de políticos (talvez Eu odeio armas. vamos com isso tudo. o contrário) e rodarem Odeio violência. as bolsinhas plásticas Odeio votar em que chamam de portareferendos. {Não venham me título. Tentando me Gosto de votar em falar em exercitar a seduzir com um NÃO ou eleições normais, democracia. Nossa um SIM estampado numa quando o povo democracia tem camisa furta-cor. Mas furto veste uma cor obesidade-mórbida. é proibido. Cabos policiais: e come queijo Está deitada em berço prendam os coalho assado esplêndido, ao som nas ruas, tal qual do mar e à luz do céu final de Copa do profundo.}

EITO

RAL.


.

DE NDEN ED OTRO RT PARA FORA. - Menino, vai fazer o quê essa hora na rua, danado? - Vou ver minha casa por fora, mãe. Me deixa. - Para quê isso, rapaz?! Tá ficando maluco? Vê de dentro. - De dentro eu já vi, mãe. E não me agrada. Deixa eu ir. Volto já. E nunca mais voltou. As paredes descascadas, o portão enferrujado, o cachorro na calçada lambendo suas partes. Foi o que guardou dali. Do que era sua casa. Ou do que diziam ser.

lín

gua do p.

55


lín 56

gua do p.

Par. Ímpar. Francisco ganhou. Enquanto João, emburrado, se dirigia à mancha, os outros corriam para esconderijos cada vez mais difíceis. Eles cresciam e descobriam frestas nos muros por entre os prédios, portões retorcidos nos fundos das garagens, portamalas de carros que jamais fechavam. E com suas descobertas, a brincadeira ficava mais longa, mais divertida, mais recheada de histórias. Como aquela, da tarde em que Francisco ganhou o par ou ímpar para João. Um, dois, três... Francisco saiu em disparada sem se preocupar com nenhum dos outros. Havia descoberto uma porta no subsolo do prédio que dava para um enorme salão, onde os porteiros cochilavam após o almoço e estendiam suas roupas num varal sempre úmido. Olhou para trás várias vezes, para se certificar que ninguém o vira. Aquele seria seu esconderijo secreto para sempre. Cinco, seis... Passou por trás da caminhonete de seu Haroldo, espremendo-se contra a parede de cimento coberta pela fuligem dos escapes. Abriu lentamente a portinhola e estremeceu. Estava tudo escuro, nenhuma lâmpada acesa. Mas foi. Já conhecera o lugar às claras, e tateando

seus peitos, primeiro por fora da blusa, depois por dentro, enquanto ela tirava sua bermuda. Calor, escuridão, o rangido do beliche. Ela levantou a saia, eu não acredito. chegaria ao beliche no Vinte e um, vinte e dois, vinte e fundo do salão, onde três... os porteiros dormiam. Enquanto ela o conduzia Fechou a porta bem vagarosamente para dentro de devagar e começou a sua vagina úmida, o colchão engatinhar pelo salão. úmido, o ar úmido, o hálito Oito, nove, dez... quente junto do seu hálito aflito, Sentiu uma calça medroso, quem seria, quero um molhada à sua frente e interruptor de luz. confirmou: estava no Vinte e cinco... caminho certo. Primeiro Freneticamente, foram se o varal, depois a mesa tornando mais barulhentos, de plástico, depois o suas respirações num uníssono beliche. Continuou, descobrindo o eco do salão, as passou pela mesa. roupas no varal secando e as Achou o primeiro pé suas ficando mais molhadas. do beliche e levantouVinte e sete... se. Acalmou-se. Tateou Gozaram juntos, mas juntos não o colchão e tocou em ficaram. O corpo dela desgrudou algo quente, assustourapidamente do de Francisco, se, o que seria aquilo, aonde você vai, volta aqui, tateou pensou em correr, não, o beliche, tentou ajeitar sua é uma pessoa, quem bermuda, viu uma fresta de luz está aí, ouviu apenas um ao fundo e um corpo adolescente “shhhhhhhhhh”. Calou- sair, em disparada. se. Pernas quentes. Trinta... Ouviu um deita aqui, Vou atrás dela. Eu acho essa sussurrado. Deitou e as menina. pernas se entrelaçaram Trinta e um alerta, às suas. Uma saia. Que lá vou eu. pernas grossas. Só ouvia sua respiração ofegante e a dela, meu Deus, quem é essa? Doze, treze, catorze, quinze... As mãos por dentro das suas calças, seu coração, a língua úmida e quente e áspera e carinhosa pelo seu pescoço, a escuridão. Quem é você, shhhhhhhhh. Pulou para cima de mim, o que ela está fazendo. Francisco jamais tinha sentido uma mulher tão perto. Não resistiu, entrou no jogo e apalpou

ES CON DE-ES CON DE.


A

Um ano sem sol. Era um aniversário sem festa para Lia. Um ano sem as brincadeiras na calçada, sob a vigia constante da avó na cadeira de balanço na calçada. Os amigos se encontrando debaixo de lâmpadas fluorescentes, ficando cada vez mais verdes, mais tristes. Seu sorriso estava fosco e cada dia mais duro de se arrancar. Suas roupas sempre limpas acusavam a chatice das tardes televisivas, em preto-e-branco. A única diversão real, os mosquitos ao redor da lâmpada do terraço molhado, haviam deixado de ser um mistério naquele ano: iam procurar calor; e não levar pequenos choques na estrutura metálica para ficar mais agitados, como ela acreditou durante tanto O cheiro não deixava dúvidas. Lia o conhecia tempo. bem. Acordou, respirou fundo e arregalou os olhos. Era cheiro de sol. Olhou pela fresta da cortina de linho amarrotada, arrancou o mosquiteiro das beiradas da velha cama e deu um salto. Os pés caíram certinhos nas havaianas brancas com tiras azuis. Pegou o elástico cor-de-rosa em cima da penteadeira de madeira escura, prendeu o cabelo de qualquer jeito e saiu em disparada. O vulto acordou a avó na poltrona, que não assistia, outra vez, aquele programa de culinária que dizia ser ótimo. E antes que pudesse reclamar, a avó viu a menina abrir a grade do terraço e se perder de vista. Lia parou na calçada, braços abertos, e deu bom dia ao sol. Que retribuiu com um sorriso saudoso. {Antes da ternura, muito antes, vem o frio, a nuvem, a chuva teimosa. E enquanto gotejam do telhado, resistentes, as lembranças, nos recordamos do que realmente somos. Do que verdadeiramente nos ilumina o caminho.}

TER

NURA. lín

gua do p.

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lín 58

gua do p.

BULA. Não se alimente de dívidas. Não se alimente de dúvidas. Engula de uma vez, como sua mãe o ensinou na hora de tomar Novalgina líquida.


SI Dá choque. Não precisa haver

contato, não precisa haver olhar, não

precisa haver perfume no ar. A simples

desconfiança da presença dela dá choque.

NAP E o encontro, sempre nervoso, estimula todo

o organismo ao redor, rios e ventos e sóis e luas e folhas. E leva a

informação em fibras óticas cegas, porque o amor é cego. E leva

a surdez momentânea ao labirinto, onde o Minotauro espera

os tontos de amor. E desequilibra. E dá choque.

lín

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lín 60

gua do p.

ELA TEM

leza Ela abusa da be Deus lhe deu e qu za re da natu ha mesa in m É a intrusa da a minha vida uz nd co e a id se conv vício Ela acusa meu a burra me empurra, do precipício rpente se de lo cabe A medusa com seu amor o eu u so e Não sente qu do o poder Ela abusa de to do tempo, na do a r pra se nde mo bem ente co Me lambuza er er qu bem Acende o meu Não usa Não usa Ela tem juízo mas não usa eiroga.}

. A S U MAS NÃO frão: Lula Qu

{O dono do re

, O Z JUÍ


Luzes apagadas. Lúcia tateia ao seu lado. Sente a respiração de Júlio, dormindo profundamente. Liberta-se do lençol, pisa suavemente nas pantufas macias. Por instinto, estica o braço e alcança o roupão úmido. Caminha lentamente para não acordar o marido. Havia deixado a porta entreaberta desde cedo. Eram 3h15 de uma madrugada fria e silenciosa. Poucas sirenes naquela noite, poucos gritos, nenhum gemido dos vizinhos do andar de cima. Uma bênção. Caminhou pelo corredor repleto de mapas na parede. Acendeu a luz da escada e sentiu-se mais segura. As filhas estavam dormindo também, no quarto com peixes e estrelas refletidos na parede - abajour comprado por ela assim que

BOA NOI TE,

LÚ CIA. No andar de baixo, as poltronas de couro que tanto lembravam os domingos com seu pai fumando charuto e tomando gim, enquanto ouvia toda a sua coleção de Miles Davis. Lúcia tinha arrepios de lembrar os finais de tarde, as brigas constantes da mãe e do pai, tudo culpa da bebida. Mas tinha conservado, com alegria, as memórias do pai. Criança, entendia a briga. Mas não enxergava a tal mudança de comportamento da qual a mãe se queixava sempre. O pai era ídolo, Miles Davis era ídolo e até que gostava de gim, como ele.

Teve a impressão de escutar passos na escada. Olhou, era impressão. Talvez a ansiedade. A mentira aguça os sentidos. Foi silenciosamente pela cozinha até chegar na geladeira. Seus olhos brilharam. Comeu tudo que pôde. Um pedaço de torta de amoras. Queijo. Um iogurte. Encontrou uma pasta de atum deliciosa e logo misturou ao pão italiano que repousava sobre a mesa. Sorvete de pêssego com creme. Subiu lentamente as escadas. Apagou Duas salsichas. a luz e continuou, sendo guiada pelos mapas na parede. Paris. Recife. Lisboa. O maior de todos: Londres. Empurrou a porta suavemente e entrou devagar. Júlio continuava na mesma posição. Deitou-se. Com um leve sentimento de culpa, foi adormecendo.

lín

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lín 62

gua do p.

Dois homens tão distintos de lugares tão distantes se encontraram no planalto para assuntos delirantes

Do Texas, veio um xerife de Garanhuns, um cangaceiro Eram o manda-chuva americano e o presidente brasileiro O visitante não era bem-vindo desembarcou e foi xingado o anfitrião nem se preocupou com vaia estava acostumado

GA

RANHUNS

FICA NO CORAÇÃO DO TEXAS.

Falaram da gripe do frango debateram sobre a aftosa pareciam dois veterinários mas era só propaganda enganosa O texano, pra agradar, disse que era lindo esse Brasil o agrestino, pra retribuir falou que igual aos estêites, nunca viu O gringo elogiou o Fome Zero e a preocupação com o povo o brasileiro ficou olhando ao redor só esperando de onde vinha o ovo O brasileiro disse ao americano que Bin Laden estava em xeque-mate o americano sorriu amarelo só se preparando pro tomate Só sei que a conversa se estendeu e a amizade dos dois aumentou entre o americano que partiu e o brasileiro que ficou Garanhuns ficou em festa quando viu seu filho com o americano o prefeito fez até discurso na praça disse que amava o povo texano No Texas foi a mesma coisa quando os gringos viram na televisão seu representante descobrindo o Brasil conquistando mais uma nação

E assim se sucedeu o encontro do ano d’um nordestino arretado com um poderoso texano.


ÁRVO RES DE ALU GUEL.

O negócio é alugar árvores quem vier, ganha milhagem pra subir na vida

Nas árvores de aluguel cada macaco no seu galho colhe o fruto com a mão Olha a raiz, nega Que no chão e no coração se fixou Sobe em paz, nega Cada qual tem a árvore de aluguel que plantou lín

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PELOS lín 64

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OLHOS SEUS.

Você que acorda sorrindo que toma conta das flores das dores das cores Você que caminha sem pressa porque a vida não corre o tempo não urge o dia não cai Você que se abraça que não vê desgraça que deita sorrindo para assim acordar novamente Me deixa ver com seus olhos, esse mundo.


Palavras com artrose demorando a levantar da cama Porque cama tem amor, sexo, paixão, sono, sonho, televisão Dá preguiça mesmo da palavra levantar Mas uma hora ela levanta e vira uma palavra maiúscula toda grande toda prosa ou poesia E algumas palavras gritam: - Lá vai a palavra, talvez alegria, depende do dia.

PALA VRAS. PE QUE

NAS

Palavra que grita palavra que chora palavra que namora com palavra palavra que se reproduz e produz novas palavras Pequenas palavras que logo crescem e por vezes viram palavrões

Pequenas palavras que logo florescem e por vezes viram lírios, ou cílios, ou filhos Pequenas palavras que andam unidas pelas cidades em outras palavras como bonde Pequenas palavras que na dúvida não ficam e perguntam quando, quem e onde Pequenas palavras que tateiam o escuro para encontrar palavras iluminadas Pequenas palavras que não se conformam e imploram pela palavra gesto Pequenas palavras que são como crianças tem sempre algo a dizer lín

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lín 66

gua do p.

S N O

TELA

C

U R B A

Em terra firme, olho para o alto procurando as estrelas. Do avião, olho para baixo. As cidades são as estrelas de quem voa.

ÇÃO

AN


A Morreu Lindomar, filho de seu Agenor e dona Benedita. Morte súbita, já que por essa ninguém esperava. Morre Lindomar, aquele das latas de leite sem rótulo na extremidade de uma vara de bambu, exímio tirador de jambo. Passava tardes fazendo a festa das crianças da rua. Enchia primeiro as latas, refletindo o sol da tarde no meio das copas. Depois, enchia baldes. E enchia os olhos, as bocas e os corações das crianças. Lindomar, irmão mais velho de todas aquelas criaturinhas. Sempre adiantado para o trabalho, sempre atrasado para voltar para casa. Sempre encontrava obstáculos no seu caminho de volta: os jambos para as crianças, as peladas onde ele assumia a posição de juiz, a ajuda para colocar a cadeira de balanço de dona Marisa na calçada, o bate-papo com Manoel da venda, uma partida de bola de gude na Rua de Areia. Morre Lindomar. E com ele, são enterrados os sonhos de uma vida mais pura, de novo, na cidade. Provavelmente, os carros amanhã estarão mais barulhentos, as pessoas mais intolerantes e o tempo, chuvoso. Seremos enterrados nós, nas covas de concreto. Isso é hora, Lindomar? Ficava mais um pouco. A gente seria mais feliz.

ta

No

faleciment de

o.

lín

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lín 68

gua do p.

A

a

moça n

janela. No meio da rua o devaneio a moça nua de costas nas frestas da janela do primeiro andar o olhar preso, o olhar

Olhar e ver do meio dessa rua calma janela da tua alma que revela teu cheiro e tua cor

A dor de não tocar me deixa ao menos olhar, então me deixa sorrir E antes de partir te vejo, desejo teu beijo sigo meu caminho em vão


Por quê a doçura? Quero de volta a amargura, a dor fina num ponto inconsolável, interno. Uma ferida sem cicatrizes, que não faça lembrar, anos depois. Pegue essa doçura e saia. Só me volte aqui quando tiver de novo o sorriso frio e as mãos quentes. {E enquanto ela dava as costas, ele dava mais um passo em direção ao profundo abismo de estar sem ela, mentindo aos dois. Mais a si próprio.}

A no A de mentira

lín

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Uma versus lín 70

gua do p.

a

A psicanálise acaba com suas culpas, mas leva junto um pedaço de felicidade, de irreverência, de irresponsabilidade. Prefiro as cervejas seguidas de neosaldinas.


ma versus Antes de mais nada.

Entre

tantos

e

entre

Antes, demais, nada.

poucos .

Antes de mais, nada.

lĂ­n

gua do p.

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lín 72

gua do p.

P

a

Dê-me um quilo de palavras sem cascas sem caroços

Lavadas nas bacias purificadas da alma

Cortadas em rodelas - sem rodeios Por uma lâmina e língua afiadas

la

Dê-me um quilo de palavras sem bastas sem muros

v

ra

Sopradas pelo canto da boca, um canto na boca

Ditas sem rodeios - sem mazelas Por uma língua e lâmina afiadas

na

Dê-me um quilo de palavras

s

balanç

a.


Para os que estão longe, uma lembrança Para os que estão perto, um abraço

Para os solitários, uma caminhada Para os bandos, uma parada Para os jovens, um futuro Para os velhos, um presente Para os que já se foram, todo o passado Para os homens, mulheres Para as mulheres, filhos Para os filhos, homens e mulheres, pais e mães Para os que muito trabalham, uma pausa Para os ociosos, um livro Para os livros, estantes Para as estantes, os ociosos

Para o edredom, noite de chuva Para os dias de sol, uma praia Para os políticos, sanidade Aos insanos, o mundo

Para os ouvidos, música Para o corpo, mãos Para as mãos, outras mãos

Para os que têm sede, água Para os que têm fome, prato Para quem tem fome e sede, dignidade

Para desejos.

todos,

Para os irmãos, o amor Para os amores, o calor Para os amigos, amor e calor

Aos descrentes, jardins Aos que em tudo crêem, cuidado Para a grama, pés de criança

Para Deus, o Homem Para o Homem, Deus Para ontem, nada Para hoje, nada Para amanhã, tudo

Para o despertador, um tapa Para o relógio, um lixeiro Para os celulares, carregadores esquecidos Para os automóveis, buzinas quebradas Para os abandonados, uma palavra Para os que acolhem, nem palavras Para a caneta, idéias

Para as estrelas, olhos Para a lua, olhos Para luas e estrelas e olhos, um amor

Para quem quer bem, um bumerangue Para quem quer mal, um espelho

Aos vinhos, taças Para todos, desejos {Para a minha Lua, meus olhos. E basta.}

lín

gua do p.

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lĂ­n 74

gua do p.

Q

uietude

.

SĂŁo tantas as palavras em dezembro que janeiro fica meio silencioso.


Nostalgia, uma senhora a caminhar . Naq

uele

dia,

saiu

de c

asa a

ndan

do d

e co

stas

para

ver s

e en

cont

rava

o qu

e pe

rder

a no

pass

ado.

lĂ­n

gua do p.

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lín 76

gua do p.

Aben

çoados por Deus. A freira passou pela frente da igreja e fez um sinal. O padre entendeu e apontou para a direção que ela deveria seguir. Ela foi, sem olhar para trás. Entrou no primeiro beco que encontrou. Trêmula, tinha as mãos pingando. Distonia pelo medo do que estava por vir. A ansiedade da libido. Abaixou a cabeça, olhou para o hábito, meio sujo perto das sandálias de couro. Enxugou o suor na testa com as costas da mão, o suor das mãos nas costas do hábito. Pensou em respirar fundo, mas não teve tempo. O padre puxou-a pela cintura, espremendo seus seios. Um beijo de amor, contra a parede. Demoraram muito descobrindo línguas e dentes e saliva e lábios e bochechas e queixo. Só Deus como cúmplice, observando os dois a se amar. Carnaval de Olinda tem dessas coisas. Fantasias reais e paixões divinas.

O


O

Cada corpo com sua cabeça esta com seu mundo onde ruas e veias correm juntas

sangu e que corre pelas

Cada veia com seu sangue cada rua com seu sangue nestas cabeças e nestes mundos sem donos

veias cdi ad da

lín

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77


M

Bom dia,

ur be. lín 78

gua do p.

Despertou com os edifícios mais altos arranhando o céu da sua boca.


Mas

,

ur .

antes

Deixa tudo aí Os pratos Os copos Que eu cuido se acordar

Deixa tudo assim Os partos Os corpos Que eu acordo para cuidar

Aceito suas condições E confissões Vou aprendendo e vivendo Entre os senões

Mas antes de ir Leia na porta o bilhete de boas-vindas ao lado de fora da minha vida Mas antes de ir De partir De fugir

lín

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lín 80

gua do p.

Cho ve b o r s

e

Ela ama o que não tem

mas a vontade, tem De refazer o que fez mal

e

De desfazer o mal que fez

l

Fica até o dia clarear na frente da tv pra se ver, se ele vir

e servir de reza na sua noite só

Só de esperar ele voltar

e

s

Ela dorme guardando o sorriso

para o dia que vem

.

e sabe que ele vem

ele vem para ela acordar

ver

da dei ra


Do que

ver

da dei ra

No estado em que te encontras Não encontro a ti, mas a outra

E do que ruminas na parte do dia em que há sol Nada me lembro quando já não há Esquecer o que foi dito É lembrar-me do que verdadeiramente és

mente

lín

gua do p.

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lín 82

gua do p.

A MENINA

CABEÇA

DA DE

O L

G D

ÃO .

A

em nuv m e ho em sen rg r de ue su e v q e ão s d d n ca ge go Brin as ima a de al ç com a cabe su a n a alei ia de b a sere s o n c e o l u F q a pe ar um da no indo a rr t i o s e d njo saro a Um o pás ar em tu nd nuv o li r, a flu em o a h o n a vo ese odã er d de alg ça v e s e ca d gen cab Brin as ima a sua n com urgem s que


Abriu os olho

se deu de cara co m o. Ficou tenso. Ol hou para cima e o estava desliga abriu os olho do. Fechou s novamente, e para Sua não estava curar. N ada. mais. Virou-se.

Tentou esticar

Ele O HO MEM QUE havia E P

a. Desespero.

o para alcanç

ar

RDEU

perdido

( )I.

AS as.

lín

gua do p.

83


Ali, todos os dias eram domingo. As saias passeavam abertas em gramas verdes, onde podiase pisar. Picolé era almoço e sujar as mãos na areia, permitido. Havia família na varanda e pai cochilando na rede. Não havia hora de chegar, menos ainda de sair. Música era passarinho, cigarra ou um ruído vindo da biblioteca, onde o copo de uísque descansava enquanto a agulha passeava no vinil. Ali, todos os dias eram domingo. A lua morria de preguiça de levantar, deixando a praia até mais tarde para quem quisesse. Não tinha televisor ligado. Tinha livro. Sapato, só para ir à missa. E olhe lá. Ninguém morria, porque domingo não é dia de enterro. Nem de vestir preto. Nem de chorar. Ali, todos os dias eram domingo. A manhã recebia a gente no teatro de bermudas, para ver o lobo mau se dando mal. Pipoca salgada, chocolate meio amargo, coca-cola doendo nos dentes. E ainda tinha parque e circo e cinema e festa com brigadeiro e passeio com o cachorro e namoro no fim de tarde e não tinha shopping - que shopping não é lugar de domingo se perder dentro. As mães beijavam avós, que beijavam netas, que beijavam tias, que beijavam irmãs, se que beijavam. Ali, todos os dias eram domingo. E o melhor de tudo era que a segunda jamais chegava.

DA L I

lín 84

OS

DOMINGOS

gua do p.


Assustado, ca lç ou as. Caminhou lent amente, ten desviar o olha tando r do mais óbvio que houvesse chão muito. Ac . ende Abriu a do. Se ntiu o u a. Respirava com o um bicho en curralado. Olhou-se no es pelho. Não sabia seu

O HO MEM PE

QUE

RDEU

( )II.

AS

nome.

lín

gua do p.

85


lín 86

gua do p.

UM

VAZIO.

Não que sejam muitas paredes. Apenas me faltam quadros.


.

Lavou o rosto

e escovou os. Aturdido, teve um súbito raciocínio sobr e um caminho percorrer. Abriu a a porta girand o a, rapidamente. Desceu os três que davam ac esso ao. Aceler ou as

os.

Desatou a corr

er. Pulou um. pessoas o olha Notou que vam M E M O O Hapenas continuou co QUE . Não encarou ninguém, rrendo e pela frente de um a e viu seu desviando de. depres sa, Passou reflexo. Estava nu. Correu m ais E P

RDEU

em direção a

( )III.

AS

uma.

lín

gua do p.

87


ACO lín 88

gua do p.

DA.

R

Palavras que são comportas. Abrem caminhos. Escavam túneis na montanha à minh a frente. Quebram rochas antes impenetráveis . Inundam o vale fértil e desconhe cido de uma alma silenciosa, sono lenta. Acorda. Acorda. Acorda.

{Que eu sei que embaixo dessa neve

mora um coração} - Tom Jobim

Minhas palavras querem seus ouvi dos. Posso entrar?


É MA DRU GADA EA CI DA DE DOR ME.

A casa demorou a acordar. As paredes, sonolentas, espreguiçavam os pés direitos, encostando no teto. Na cozinha, o frio da madrugada se agasalhava com um café no fogo, feito lentamente, como todas as coisas deveriam ser feitas quando ainda é cedo e o sol não invadiu a sala. {No lavabo, as mãos se apoiavam firmemente, enquanto o rosto mirava-se no espelho.} Um vento frio soprou no corredor, levantando as cortinas no último quarto. Fui ver. Olhei pela janela e vislumbrei, pela primeira vez, a cidade. Fechei a janela em silêncio, para não acordá-la.

lín

gua do p.

89


lín 90

gua do p.

DE JO ELHOS, UMA ORA ÇÃO.

Você que sente na pele. Que chora na chegada e na partida. Usa a memória para pode olhar para o futuro. Você que respira os aromas de suas próprias pétalas. Inspira. Expira. Inspira mais. Você que tem o cofre da vida. Que oferece a luz ao semelhante que chega. Alimenta com um rio de leite e um leito de amor. Você sozinha. Você que nunca está só. Você que manda. Que comanda. Anda nas sombras e ainda assim ilumina. Você que lambe a cria. Você que tira proveito do sorriso. Você que tem olhos que ferem. Você que abraça o que vê e caminha de mãos dadas com o invisível aos outros. Você que sabe.

Você que é dona de todos os dias do mundo e precisa aturar algum estúpido do sexo oposto que inventa de dizer que só há um dia que seja seu.


Espinho

não

machucaa É flor que se cheira e se faz de louca Me dá sua boca com um sorriso só seu E eu só posso dizer que ela é uma flor Uma flor que se cheira

lín

gua do p.

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lín 92

Queria dar o melhor prefácio, você mal quis ler.

gua do p.

Queria um enredo amarrado. Não, nós dois amarrados. Você se esquivou.

Queria poemas sussurrados e carinhos eternizados. Você bocejou.

Queria um final feliz. Você queria um final.

Meu

último

romance.

que por ória o d a hist ess trav ma bela ta azul a a lh da ne eu . Na e ca me o e qu {Ela ntend ecisa d omeçar lefone e c e pr não or só o para ro de t m e c de a el bran m núm do.} e u p e pa Ou de em segr s. i o a ad m hich coc


último

?

Mãe,

o

que

é

amor

- Amor, filho, é quando, depois de uma noite inteira, o sol reaparece lá do outro lado do mar.

lín

gua do p.

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lín 94

gua do p.

?

Mãe,

o

que é mesmo

amor - É quando tem manga madura no pé, filho.


Volto a alugar árvores.

árvores . árvores . árvores árvores . . árvores.. . .árvores. árvores árvores árvores. árvores árvores. árvores . árvores árvores . árvores . .

E volto, portanto, a alugar árvores. Meu negócio preferido na cidade cinza. Pincel e tinta verde nas retinas de quem passa assombrado com o nada, em pânico inerte. Atravesse a rua, imbecil. Sua calçada é do lado oposto ao meu - lá, você cruza a cidade inteira com sua mentira, descalça sobre as brasas que joguei. Deixe-me. A mim e às minhas sementes. Alugo árvores novamente. E nesta calçada que estou, teus pés não tocam. Já vocês, não. Podem desfilar. Podem flutuar entre copas verdes. Podem sonhar com um hoje infinitamente melhor que o ontem. Colham os frutos. As árvores não são minhas. São suas. lín

gua do p.

95


lín 96

gua do p.

Ohomem per que

deu as

Ao entrar na, deu de cara com uma velha conhecida, mas não lembrava de onde lembrava do seu. Pensou em pedir ajuda, mas parou na da loja. Pessoas o olhavam como se fosse um. Teve. Andou na direção da velha conhecida e puxou-a pela. Assustada, sem reação, ela apenas seguiu os passos dele. Foram de encontro à rua novamente, ele guiando, ela pensando em como faria para. Ele querer dizer-lhe o que se passava, mas ainda não as tinha. As.

)

(IV .


Testamento em vida. Minha partida tem seus motivos. A velhice não é

um deles, meus amores. Nem o desencanto. Desperdicei os últimos tempos com amores consolidados, sorrisos de muitos dentes dedicados aos tantos bons momentos. Fiz de cada dia um motivo para consolar quem não teve, como eu, um bom dia açucarado na cama. Ajudei amigos próximos e distantes. Aos próximos, dei minha mão enrugada, para passeios à margem do rio, sempre contra a correnteza, para parecer que andávamos rapidamente. Aos distantes, empunhei palavras em papéis de rascunho - forjando uma emergência, fingindo escrever pelo mundo (na verdade, estava no meu mundo e tinha folhas brancas e novas, que não combinam com esse tipo de carinho nostálgico).

Mas minha maior doação foi aos meus. Minhas filhas crescidas e infantis e seus maridos frios. Creio ter dado contribuição às suas relações. O que não se recebe em casa, se procura no mundo. Levei-as diversas vezes, nos últimos meses, para cinemas e parques e exposições. E abracei-as o quanto pude. Meu neto sofreu com meus afagos também. No seu caso, não eram abraços. Eram apertos. Gesto de carinho incontrolável, mesmo que na porta da escola, onde os coleguinhas passavam olhando - certamente sem saber que aquilo existia. Meu neto ganhou, de mim, poucas palavras. Mas me devolveu frases novas, divisão dos seus conhecimentos recentes e descobertas de um mundo que deveria ser o nosso. Mais simples, puro e feliz.

Confesso que deixo uma dívida para minha mulher. Ela que me ofereceu uma vida inteira, agora precisa se despedir e continuar a vivê-la com meu silêncio. Desculpe, amor. Mas preciso ir.

Vou e não tenho hora para voltar. Nem dia. Nem lugar. Mas de certa forma, estarei por perto. Em algum espelho da casa que vocês se enxerguem. lín

gua do p.

97


lín 98

gua do p.

?

, Mãe de novo me

explica

esse

neg ó cio

amor

- É quando o mar manda as ondas se aquietarem um pouco, filho.


?

E

?

quando nos

afogamos

mar,

nesse

mãe

– Esqueça isso, filho. Se você correr perigo, há sempre alguém de vermelho para buscá-lo no mar.

lín

gua do p.

99


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gua do p.

UM QUASE-

POST.

Quase alegria. Quase melancolia. {De quases, o inferno está cheio.}


BAR CO NO

EU,

E quando ela soprava contra o vento, eu abria as velas do meu coração.

RUMO.

lín

gua do p.

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gua do p.

CORUJÃO.

SESSÃO Um dia você deita e inventa de olhar mais tempo que de costume para o teto. E um projetor, sabe-se lá onde estará sua lâmpada, reproduz sua vida no fundo brancoescuro do quarto. E você descobre que é bom dormir depois de um cineminha.


Vidas em praças, conversas sobre tabuleiros de gamão. E uma emergência o revés, um ponteiro preguiçoso de relógio dizendo que é cedo, para quê medo, não existe o agora. E uma hora venta, na outra se experimenta o lenço na testa. E a festa é ali, com os sobreviventes da tevê, os bons de ouvido esquerdo quando cantava Elizeth antes da Ave Maria, que era para autorizar o sol a dormir. E segue o dia de alegria silenciosa, da praça, da prosa, das verdades que não precisam ser ditas para serem vistas.

L O VE HO A

D

PRAÇA. E lá vai o malabarista de bengala, atravessa com cuidado para não atropelar quem já foi atropelado pelo tempo das buzinas. Silêncio que ele vai passar. E a vida se curva na esquina.

lín

gua do p.

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gua do p.

É tarde preciso não te ver outra vez pra dormir sossegado pra fingir que não sinto sua falta ao meu lado

É tarde e uns que descem do morro cantam desatam a lamentar, em pranto

ÉTARDE.

Que o samba convida a sofrer Me deixa em silêncio que é tarde pra te esquecer

{É tarde.}


UMA

CHUVA, UMA

Conheço essa tua garoa. É choro de saudade da praia. Frio nos pés descobertos, sem carinho gratuito. Essa tua garoa é sentimento evaporado, dor de tristeza que passa muito tempo presa em prédio, sem rua para brincar. Nem uso guarda-chuvas, saiba disso. Deixo que tua garoa venha e me beije. Aceito ser ombro para tuas lágrimas.

DOR.

FI

lín

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PA LA VRAS NÃO SE DÃO BEM.

. Palavras não se dão bem vem que eis E . -se am Provoc maior uma incontestavelmente a orm nsf tra e ras out que as E ao a frase em sua avenida. , ela surgir uma menor, sim re as vias parece desaparecer ent relação, sa Des . rito esc o de tráfeg as, tur ma nascem palavras pre m cisa pre que , am pir res que mal ro out do a do oxigênio da palavr has lado da janela. Há as vel sempre palavras, sábias mas nem vezes por os sam pas as respeitad uer seq sem sem sequer olhá-las, ra out a um ide res as nel saber que é e Qu po. tão importante: o tem o para cura para uns, sofriment mesma outros, apesar de ser a ras são palavra. Verdade, menti tumores palavras. Mas antes são levamos que s ore and ou dores ou so dicionário em algum lugar do nos ntiras são de insignificâncias. Me tas, mesmo palavras de pernas cur que em serifas longas.

. Conflitam. Palavras não se dão bem sumo de a-re Xingam. Guerra, palavr s, como feia is ma da ain , tantas outras palavra er hav e morte. Genocídio - dev o. ord rec não s mais feia, ma

. E mesmo as Palavras não se dão bem paixão, quantas lindas atritam. Amor e com estas e as did per palavras-noites amigas os, outra: insônia. Pais e filh dias da os com rdo aco e inimigas de são sete. só si por que , ana sem

quando viram Palavras não se dão bem m, tudo ao ela rev , em números. Escond din fun do palavras mesmo momento, con r, tal qual ona uci sol a que seriam par ra. ado calcul

. Têm ódio de si Palavras não se dão bem saem de bocas ou m cae próprias quando ustâncias devidas erradas ou certas em circ rrotados ou aba s are lug ou indevidas em inóspitos. . Mas por vezes

Palavras não se dão bem fazem as pazes.


FI COU,

ELE

ELA

Ele havia preparado as palavras. Deixou-as apoiadas na ponta da língua, prontas. E caminhou lentamente, mãos dadas, esperando apenas uma respiração (ou uma pausa) para fazer o amor seguir o caminho do vento noturno. Mas houve o abraço. Daqueles que calam, que pretendem dizer absolutamente tudo de uma só vez. Ele quis ficar ali até amanhecer o outro dia e a outra vida, mas ela precisava ir. E partiu. O coração de quem ficou. lín

O maior medo é perder o que ainda não se tem.

PARTIU.

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gua do p.

VÃ OS.

a trás Peço que nem olhe par fica que e dad Tamanha a sau da dor ain s ma ca, nifi dig que Dor

Desejo nada que a detenh a Nem um so pro frio de vento Mesmo o al ento da volt a breve

mãos E se perdem as nós os m ta sa de Se Criam-se vãos os a sós Onde não ficam


controlemos, não o aproveitemos como deveria ser. Abro um baú que havia prometido não tocar. Repleto de rascunhos de uma história que escrevi para não mais lembrar, para não mais ler e me rever. Lá deixei-os por tantos anos, intactos, pela minha total incapacidade de encarar uma vida que se fez debaixo do meu nariz – e que eu fingia não ter olfato para senti-la e degustá-la. Passei pelo portão enferrujado da casa desbotada, piso frio. Assim que cheguei na calçada, o vi no horizonte, passos lentos, mãos apoiadas nos muros alheios, muletas cedidas pelos vizinhos, um carinho silencioso por parte deles. Olhei fixamente, pois sua cabeça estava baixa e seus olhos não me viam. Desisti de esperá-lo e fui viver minha manhã, meu futebol, minhas bolas de gude, meus pés descalços por aí.

HIL TON CELES TINO. Mais tarde, você era alimentado como uma criança e era quando me sentia mais próximo. Parecíamos ter a mesma idade e isso de certa forma me alegrava. Pelo menos enquanto eu não entendia o que se passava. Fui crescendo e você, definhando. E a cada novo olhar, eu o via menos. E quanto mais eu o queria, menos o tinha. E a isso serve o tempo: para que não o tenhamos, não o

Quando você se foi, não deixou uma lágrima no meu rosto. Eu havia me acostumado com seu caminhar – nem mais havia o muro-muleta, nem as mãos, nem a cabeça baixa. Seus últimos passos não moveram a rua. Na sua ida definitiva, eu já entendera que a vida é uma nuvem solitária no céu branco. Se perdermos muito tempo olhando, logo ela estará no horizonte distante. Me despedi de você e um pouco de mim quis ir junto. E foi. Mas você volta sem avisar. E voltou hoje pela porta da frente dos meus pensamentos. Não em forma de saudade ou nostalgia. Volta feito névoa cheirosa, perfumado o ar de sua presença. Descubro que você não foi, nunca foi. Quem partiu fui eu. Mas você sempre esteve aqui, este tempo todo. Sendo meu muro, enquanto ainda tento caminhar. Fecho o baú. Até uma outra vez, vô.

lín

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pobres, mesmo sendo cheios da grana. Dava declaração para os tios que Desde am graça achav pequeno, perguntava em assunto sério e a queria ça, por heran falavam de uns certos moto se não estivesse dentes-de-leite e uma dos livro velha, o tal de precocidade, Sertões que a primeira que achava ser uma mas chata parte era senhora que gostava o resto não, a Olivetti de ouvir conversas de r apaga de sem tinta meninos pequenos. tinta, a camisa azul Mas dente-de-leite era para era que de botão bola e sapato bom de botar por baixo do jogar era o pé, que do o quadr o paletó e chuteira faz a gente menino chorando perder equilíbro. Podia se Brasil o quando comer queijo na brasa, lascou na Copa da salsichão e pastel de ntava Pergu Espanha. qualquer lugar, mas o valor de tudo para batata frita só no de s meno entender Mustang que vinha com economia e mais queijo parmesão ralado de vida, porque se e quentinha para danar, estava sentado na feita na hora. Cadeira mesa estudando era de plástico sempre era questionado sobre a distante demais do Constituinte, que era chão, por isso preferia um lugar onde todo ficar zanzando e, se mundo queria ajudar os cansasse, tinha aquele

banco de praça fugido de alguma, só pode ser, para estar ali bem encostado na parede da pizzaria. Garupa de moto não era lugar de brincar, menos no sábado. Chicabon escorrendo pelo braço é besteira, pior é piolho. Fogão de duas bocas porque cada um da gente só tem uma, ué. Uma boca para cada. Uma fome de cada vez. Café da manhã na padaria para todas as fomes. E falar a verdade mesmo na hora que dá frio na barriga porque eu fiz um negócio escondido que é besteira mas foi escondido, aí foi feito errado. E recompensa não existe, fazer certo é obrigação. E obrigação não é obrigado, que é obrigatório quando alguém ajuda.


A ME NINA PEN SATI Ei, você, sentada olhando para o infinito Mira no espelho que o reflexo é mais bonito

lín

gua do p.

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A MOR TE

DO HOMEM QUE PERDEU AS.

A falta de palavras havia o deixado ausente. E, ao sair da, não viu o, que se aproximava rapidamente na contramão. Seu futuro foi atropelado em via pública. No velório, as suas e os seus choravam silenciosamente. Flores da cor quebravam a monotonia das roupas pretas e dos escuros. No esquerdo e no lado, velas enormes eram as únicas a viver, se mover, brilhar. A morte é o quarto escuro de uma casa sem piso. Junto ao seu, ajoelhada, sua fazia uma silenciosa. Ele estava imóvel, petrificado, frio. Não era nem de longe o tão querido que as estavam acostumadas a ver, em finais de semana na casa de, vestindo avental enquanto para os convidados, que quase sempre eram a sua. O caixão foi fechado e seus carregaram até o túmulo da família. Não se ouvia um ruído no cemitério. Era a última homenagem ao homem que perdeu as.


DEIXA A CHU VA VIR, MENINA.

Deixa a chuva vir, menina Banhar a tarde que cai Deixa molhar a avenida Por onde você vai E queira Deus Que não haja porta aberta Uma laje, uma coberta Para você se abrigar

lín

gua do p.

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gua do p.

DAS GRA ÇAS, PAIXÃO DE O SÃO ÃS JORGE. Das Graças era mulher de subir em árvore. De correr atrás de sobrinho. Fazia bolo de laranja e distribuía sorrindo, na janela. E esperou sozinha o tempo chegar. Mas ele não veio ao seu encontro. Passou por cima da sua casa, sem tocá-la. E ria de si mais que todos pudessem tê-lo feito. Das Graças fazia do silêncio da noite os ouvidos para sua cantoria. Era o tempo de dois cigarros de fumo e algumas oito ou dez ou doze cantigas de beira de rio, que a lembravam sua avó. Tratou de apagar o segundo cigarro na noite fria. Pegou o agasalho e um café quente e puro na cozinha. Voltou à sala e viu o chão pintado de branco pela lua, que nem pediu licença e foi logo se chegando, querendo ouvi-la também, como uma vizinha mais distante que vem sem aviso - mas é sempre bem-vinda. E Das Graças sorriu para o imenso espelho prateado. Deu um gole no café e prometeu a si própria que assim faria até o último dos seus dias. Cantaria para São Jorge, mesmo nos dias de lua nova. Que era quando ele adormecia.


O O MUNDO DE THIAGO (OU: PENSAMENTOS NO

MONTE

Saiu em silêncio da sala de aula. Atravessou o corredor de cabeça erguida, mas fingiu não ver a multidão de olhos que o acompanhava. E, já de costas para a escola, pôde dedicar seu olhar ao ponto fixo que mais o interessava. O Monte Baixo. Sorriso no canto de boca que diz tudo, pensou. Chegou antes do anoitecer e saiu antes do amanhecer. Mais uma noite em claro, o melhor combate para as trevas que dominaram seus dias. Cumprimentou os pais, trancou-se e adormeceu. {Nos dias em que Thiago deparavase com a solidão, travava a batalha como guerreiro tribal. Pintava o rosto de alegria e, no Monte Baixo, via o mundo acontecer por fora. E deixava o mundo que carregava dentro de si em festa.}

BAIXO).

lín

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MAPA. D e s c e t r ê s r u a s e, em seguida, entra à direita.


Olha por onde pisa, moça que nesse chão tem caco tem caco de vidro espalhado no barraco

OLHA

E se você pisar com força pode se machucar

POR Olha por onde anda, moça que nesse chão tem caco tem caco de vida espalhado no barraco

ONDE E se você pisar com força vai se machucar

ANDAPisa. deva

gar finge que é dia de avenida pisa devagar pro samba não deixar ferida

lín

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TIQUE A.

gua do p.

Convide para sua vida apenas quem possa fazê-lo sorrir. Ninguém a mais. Ninguém a menos.


DE VÉSPE

RA.

Ele virá - e essa, caros, é uma das poucas convicções que afirmo ter hoje. Que venha com nuvens cinzas e carregadas, ou que nos aponte impiedoso um sol que não respeite sombras, é certo que ele chegará. Ainda poderia nos abençoar com brisas calmas ou sopros ferozes de uma ventania das que fazem bailar nossas camisas no varal. Mas que dane-se como ele virá. Meus desejos foram curtos como este dia que os escrevo. Vinte e quatro vontades distribuídas graciosamente de forma igual. Vinte e quatro horas e, em cada uma delas, um pensamento me afligiu por minutos - sendo o sentimento substituído rapidamente por um conforto que jamais imaginei poder desfrutar. Me toca agora o vigésimo quarto sonho para o que virá. E eis que chego onde talvez, silenciosamente no meu canto secreto das vontades, o quisera nas vinte e três horas que antecederam tal momento. Desejo simplesmente que me venha o amanhã. E mais vinte e quatro possibilidades de desejos.

lín

gua do p.

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gua do p.

DE JO ELHOS, COMO EM ORA ÇÃO, NESTA TERÇA-FEI RA. Vestido ainda molhado pela tarefa de lavar as poucas panelas, pano de prato encardido no ombro, Graça acorda na cadeira de balanço no terraço, ofuscada pelo clarão do início da tarde em Ouricuri. Quarenta minutos diários de sono depois do almoço, papa de arroz e uma coxa de galinha para cada boca da família. Três filhos, a essa hora de volta na roça, e o marido doente, vivendo sua sobrevida na cama toda mijada, com a mesma toalha velha sobre o colchão. Mas Graça não se queixava. Não às terças, como esta. Graça estendeu o pano no galho de goiabeira que adentrava a parte coberta do terraço e, com passos curtos e frágeis, dirigiu-se à frente da casa, interrompendo a busca de duas galinhas de capoeira que procuravam restos de alimento pelo chão árido.

A pouco mais de dez metros da casa, Graça ajoelhou-se vagarosamente, cuidando para que o vestido protegesse seus joelhos, que já nem serviam tanto assim. Apoiou a mão esquerda no chão e reclinou o corpo para a frente, parecendo um cão se espreguiçando. Encostou a cabeça lateralmente na terra e fechou os olhos. Levantou um pouco e tornou a descer até encostar-se novamente, desta vez com a orelha direita. Sorriu seu sorriso de sempre, das terças-feiras. Barulho de água. Hoje é dia de encher panelas e garantir a semana. Bateu as mãos na barra do vestido para tirar a poeira e entrou na casa, deixando o pano de prato estendido na goiabeira sem frutos.


A

O

E fez da manhã o eterno parque das brisas e andou leve por pontes e avenidas, observando as crianças e suas pipas, flutuando, ambos. Em seguida fez a sombra, e arrancou a carranca dos olhares dos velhos, que já não temiam o abandono e encontravam-se no banco da praça para discutir o que viria a seguir. Fez as águas beijarem as margens onde antes sentavam os namorados e hoje os novos pares plantam um futuro melhor. Fez o pai da criança chegar ao escritório com nariz de palhaço, jogando malabares de papel no chefe e despertando o sorriso da bailarina ao telefone que há tanto não sorria daquela maneira. Correu ao restaurante e fez o prato farto aceitar a companhia do mendigo que deixara para trás suas vestes acinzentadas. E fez buzinas de silêncio. E fez os prédios com jardins a cada andar. E na tarde chuvosa fez canteiros de jambeiros frondosos que decoravam o piso molhado com uma fina camada magenta por onde caminhavam de mãos dadas os amantes. E fez guarda-chuvas multicoloridos. Fez a noite chegar sonolenta, dando o direito ao sol de se despedir vagarosamente do seu dia. Fez a lua visível aos cegos. Fez o dia mais longo, ao fim.

O FA ZE DOR. lín

gua do p.

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gua do p.

EU NÃO GOSTO DA PALAVRA Vai ali passar uns dias. Como, se os dias não passam quando você não está?

TCHAU. ACHO FEIA.

A


A

HISTÓRIA

CONTINUA.

Passavam o dia arenga

ndo. Mas no fim de tar

de não tinha como.

Sentavam no galho ma

is forte do pé de azeiton

lambuzavam, jogando

era homem de passos

a preta e se

os caroços no cucuruto

de seu Damião. Que

leves, andava pela cas

a sem ser notado.

Mesmo no piso de tac

o que corria da bibliot

eca para o quarto

escuro de Ruy, que jam

ais era visitado pelos bis

com a lenda do ronco Assim contava Laerte,

netos, medrosos

maldito, que assombra

va suas noites.

filho mais velho e avô

, presepeiro que só

ele. Foi quem os ensino

u a trepar nas árvores.

caroços no cucuruto de seu passos leves e servia Ruy companheiro de subir em quem passava.

E ficar atirando

Damião, que era homem

de

desde menino, quando Laerte era seu em árvore para atirar caroços das frutas

lín

gua do p.

123


CAS

gua do p.

Jogou as malas velhas no chão de taco e tirou os sapatos usando o método da alavanca: dedão segura a parte traseira, o calcanhar do outro pé levanta e joga longe o desconfortável tênis. Estava feliz por ter voltado. Tanto tempo distante e aquela casa continuava sendo sua. Tão sua. Sentiu seu próprio cheiro no ar, aquele perfume de madeira. Estendeu a camisa sobre a mala, para não amassar, abriu as grandes janelas da sala e fez daquele momento sua primeira descoberta. Como a cidade mudara. Lembrava de umas palmeiras à direita, que não mais estavam lá. Uma construção horrorosa bem à frente agora tapava sua visão do braço de rio que cortava o bairro. Mesmo o jardim da casa ao lado, que continuara ocupando seu espaço, tinha ares de jardim de infância, com brinquedos novos, talvez para os filhos ou netos. Havia menos flores. Mas não desejou a nostalgia. Resolveu olhar o que há de bom em mudar de paisagem. Dali, de dentro da casa tão sua. E mesmo dentro de si, que continuava a ser um homem com muito mais jardins que prédios.

QU E E R A T Ã O S U A .

DE DENTRO DA

lín124


ESSA

Seu sonho dizia Para ela ser bailarina Que vida de menina da vida Não é fácil assim Sua mãe dizia Pra enfrentar sua sina Que bailarina dança E essa vida cansa E ela se deixou levar Pelo salão Vendo o mundo girar Vendo a menina da vida Virar A menina Bailarina

VIDA CANSA,

MENINA.

lín

gua do p.

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gua do p.

E ASSIM, O MUNDO

CORRE PERIGO. A cova é mórbida A favela é órbita A dor é sábia A paz é óbvia

O pão é ótimo O rosto é pálido O amor é plácido O amor é ácido

E assim, o mundo corre perigo Girando em torno do próprio umb igo

Menina olha pra cédula Incrédula Nunca viu Nunca mais vai ver

Menino vê a cena E acena Nunca viu Nunca mais vai ver

E assim, o mundo corre perigo Girando em torno do próprio umb igo


NA PORTA DE CASA (III).

Estava nervoso. Girou a chave trêmulo, mas conseguiu. Abriu a porta, deixando-a escancarada e disse com os olhos para ela entrar. Dali, não mais sairiam. Não mais.

lín

gua do p.

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gua do p.

DA JA NELA PARA LÁ.

Fosse outra primavera você não estaria tão perto. De hoje para sempre, sim. E aquele perfume da janela para lá invadia o quarto de cá, todas as manhãs, e convidava ao despertar. Preguiçoso, lento, quase uma desistência forçada da noite santa. E o tempo para que o bule apitasse coincidia com o acordar definitivo, o sol oferecendo um bom dia caloroso. Um beijo no café, um gole de você. E seus olhos apertados procuram o ombro para o abraço matinal. E esse cheiro, você pergunta. É primavera da janela para lá, veja.


TESE:

O PEQUENO COMPORTAMENTO HUMANO.

tador. Me Ah, esse maldito desper o Montenegro ald Osw o and toc r rda aco tem como ser não dia o , nte - definitivame elho e me vejo esp ao bom. Passo em frente o. Precisava me and inh def so, ces ainda no pro u apetite saiu me s dia alimentar, mas há dez o ainda mais Fic tar. vol is ma não a de casa par ba, urgente. bar a er Faz um pouco no espelho. so uma pas ina desce, Agora. Enquanto a lâm lmente fina ira, ece cab vez mais pelo livro na o certo. {Deitada, tud dar Vai . bem da Ain terminado. e aquele lençol alvo oferecendo aos estudantes de medicina o relevo completo do seu corpo esculpido, despertando dúvidas nas cabeças dos pupilos. A geografia humana dissecada sem o uso das mãos.} Tiv e que ler aquilo, comecei por obr igação, confesso. Mas a esta altura, estou mu ito mais interessado na anatomia humana que na sociologia do século passado, o verdadeiro alvo do meu estudo. Estes últimos dez dias foram meu calvário, religiosamente falando , nada de metáfora sóc io ou antropo ou biológica . Mas enfim, resumo sempre, nada de prolixi dade, concentra: hoje chegou meu dia. A lâm ina desce pela última vez. Meu reflexo já me parece melhor, exceto pelas olheiras que qua se tocam o queixo. Estou parecendo minha mãe exagerando enquanto fala. Tenho dua s horas para chegar na universidade e defend er minha tese sobre o pequeno comportament o humano. Tranqüilo. Vai dar tudo certo. O despertador grita novamente, ligando naquela rádio tenebrosa. Devo ter apertado na função soneca. Toca Emílio Santiago. Caminho lentamente até a mesa de cabeceira, arranco o aparelho da tomada e o destruo, jogando contra a parede. O pequeno comportamento humano. Vai dar tudo certo. lín

gua do p.

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gua do p.

Entre abrir a primeira Original e cerra r as portas de ferro no Bar Central, uma vida acontece. Olhos focados e palavras afiadas, Jarbinhas desfila sabedorias populares, profecias amarradas, paixões paternas, paus decapitados. Renata sai do casulo, deixando os filhos lindos, mas participa da noite sem medo do bicho-papão. Eis que ainda há Lydia, distribuindo seu perfume de generosidade e um humor invejável. E Cris, que por vezes abandona o silêncio de sempre e presenteia o ambiente com o hálito que só a arte tem. Ao meu lado, dando sentido a absolutamente tudo que é dito e ouvido, a que mais brilha. Lua. E parece que são essas as noites que revelam quem somos, um questionário aberto respondido com a franqueza dos olhos. {Olhos? Homens com muita ou pouca testosterona? Testosterona. Testosterona. Testosterona. Repetidas vezes, um rap repente. Ela conseguiu. E danouse a falar entusiasticamente - menos pelo tema, mais pelo fonema .}

UM BAR NO

DO

NTRO CEUNIVERSO. E a palavra escapa para que ele diga em alto e bom som: vou barbarizar. E isso não se explica. Mas tem sua graça. Gracinha.

Vêm as domésticas-freelancer e invadem o sertão pernambucano, em busca da Pedra que não é do Reino, talvez de Caíque. Digo, Buíque. {E quando a mulher viaja (outra que embarca, não a nossa mainha) o marido judeu corre para o quarto dos fundos onde a empregada toma banho. E bate na da porta, diversas vezes, aumentando a força e gritando o nome E moça, até que, apavorada, ela abre e pergunta: Que foi, dotô? ele: Quer foder comigo? Ela sorri marotamente e pergunta tímida: poxa. Como assim, dotô? E ele: Esse chuveiro aberto há meia hora, Jacó.} Ele, foder comigo? Ela, Maria. Quer Caminhamos ainda, seguindo pela mesa, entre quitutes e gargalhadas. E o passeio termina sobre a pont e, onde a Lua sorri. Vendo a outra, cheia, no horizonte.


SÓ VOCÊ EDSAOB P . R E O

.

A alma pede calma ao corpo Que teima em desbotar Que insiste em fenecer Me atormento nesse dia Sem você

A paz já não me traz contentamento Nem me deixo sorrir Pela imagem na memória Me atormento nesse dia Sem você aqui Só você pode saber Desse querer Que é tão vil Mas é meu, viu? Meu querer em te ter Eu te espero Eu me esmero Pra te ver Mais uma vez Aqui

lín

gua do p.

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No meio da quermesse, fumaceira para todo lado, caramelo de maçã na boca ainda sendo gostado, olhou lá no fundo do olho, bem onde se olha quando a gente anda apaixonado e viu aquele brilho de fogos de artifício, naquele olho ali. E tinha ensaiado trinta e oito palavras para dizer, tudo juntinha, fazendo uma setença inteira, completa, que era para dizer tudo que coubesse numa sentença de amor, mas ali, naquele olho que brilhava feito fogos, esqueceu de todas as palavras, as da sentença de amor. E meio mudo, meio surdo, quase cego e totalmente bambo das pernas, quase arrisca sair correndo e fugir de novo, que no ano que vem tem São João de novo e ela vai para a fazenda de novo, como em todos os últimos três, quatro anos. E ela, com os olhos brilhando ali, no meio daquele fumacê, com aquela barraca de algodão doce por trás, estatalada, como quem diz “o que foi, menino?”.

NA QUERMESSE.

gua do p.

fez um bem danado à sua boca que estava quase muda. - É que eu gosto de tu. E faz é tempo que ele gosta dela e ficava todo sem coragem de chegar junto, na festa de São João que acontecia todo ano, mas que de três ou quatro para cá tinha ficado mais bonita, mais divertida. E a cada ano, ele botava mais perfume, engomava melhor sua camisa xadrez e deixou até de pintar os dentes de preto, que isso é coisa de menino buchudo, que ele não era mais. Agora, pronto. Resumiu bem resumido a sentença de trinta e oito palavras em uma de seis, das quais só uma era palavra de duas sílabas, gosto, porque o resto só tinha uma. Aí voltaram os barulhos das crianças correndo, do sanfoneiro tocando, do milho estalando na fogueira e do buscapé correndo lá perto do mato.

- O que foi, menino?

- Ôxe. E por que danado tu nunca me dissesse isso? Eu também gosto de tu, mas achava que tu nem sabia quem eu era.

Ela disse mesmo, o que estava exatamente na cabeça dele naquela hora. Adivinhou o que ele tinha pensado, naquele mesmo instante que ela poderia estar pensando, e deixou as pernas ainda mais bambas, seu ouvido ainda mais surdo, mas

E assim começaram uma conversa que teve muito mais do que trinta e oito palavras, muito menos que duas pernas bambas. E duas bocas, que de mudas não tinham nada, conversaram a noite toda, até que cansaram e resolveram se beijar.

P


PDAORRM A

IR NO

CHÃO FRIO.

lçada escura Não volte pela ca e gu tre en , em Se pedir dura e pouca é a vid é sa es e Qu o risco de perder e você ainda corre

esconde no fim da Se uma sombra se fuja, corra mas Que a noite é suja, rra mo se e qu não é justo

rua

Quero só em paz Voltar para casa frio ão fácil, não Para dormir no ch o dia não vai ser hã an am e qu r, E descansa Não vai, não ar ao menos de se cheg é uma chance a o ad eim qu e st de po {E cada lâmpada o. ar, destino desejad convite à queda. ure não se molh bo aberta é um ure amigo, proc oc pr o, {Cada boca de lo rig ab e ur uva caem, proc afogar. {E se gotas de ch procure não se

lín

gua do p.

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lín134

gua do p.

LIÇÃO DE CASA PARA QUEM NÃO FALA QUANDO SENTA.

O patife uma hora se espatifa.


,

QUANDO SE SENTE FAZ SENTIDO. Saudade é a distância

tro.

entre um beijo e ou

lín

gua do p.

135


gua do p.

R E D N SCE

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Malandro bom que era, deixou dois cigarros e beijou a testa da sua preta doce. O lençol desarrumado revelava suas coxas nuas. Sorriu e acendeu um. Fechou a porta do barraco suavemente, procurou e não viu uma nuvem sequer no céu azul. Dali até o trabalho seriam duas horas. Primeiro de trem. Depois, provavelmente, numa kombi velha. Atravessou o córrego sobre a tábua azulada e sorriu para a pequena na casa da frente. Recebeu um sorriso de volta, escondido pelas abas da chupeta. {Vai, que o tempo só corre quando a gente pára.} Deu bom dia a todos, trocou de roupa e sentou sorridente no banco de madeira. Sobe?


SALA DOS

ESPELHOS. Gecina passou a mão por baixo do vestido para ajeitar o tecido. Espigou-se novamente e viu o resultado no espelho: multicolorida, batom vermelho e olhos brilhando. Dia feliz, minha nossa senhora. Aproximou-se para ver se não restava remela no canto do olho. Dormira mal, verdade. Tensa, acordando de instante em instante, achando que já fossem cinco horas. Mas nunca era. Até que dormiu profundamente por meia hora. E aí veio o filho acordá-la com um beijo quente e molhado na testa. Agora lá ia ela. Vestido lindo. Batom novo. {O espelho é instrumento feminino. Só elas o vêem como se deve. Não é reflexo, pura e simplesmente. Sabem que é a imagem exata vista pelo outro. E para isso se arrumam.} Olhou as sandálias baixas. Passou o dedo na língua e limpou o bico, empoeirado que estava. Ao abrir a porta do quarto, sentiu o silêncio no interior da casa e estranhou. Filho, filha, outra filha maior com sua neta. Onde estariam? Caminhou já sorridente. Ninguém. Nada. Entrou na cozinha e a cena estava montada, como imaginara. Um bolo escuro, uma vela branca. Todos ao redor. E cantaram juntos em sua homenagem. Gecina sorriu e viu-se no reflexo dos espelhos ao seu redor.

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gua do p.

O pasto É vasto O susto É justo O custo É vasto O gasto É justo

TE GUS A casta A veste A pista A bosta

¿

E basta

?


HER ME T I CA MENTE

A B E R T O .

Pois d es gesso enclausuro u-se. S sobre aiu do ac avesso confin , arran abeça e tac amen os de c só par ou a e to hab made a faze t iq u itual, ira so e ta e p r pirra sempr do lab b os p ôs sap ça. Qu e salta és. Ve irinto atos c is e de ndo o stiu a de olorid sceu o s últim camis os. Ch s onze os qua a ao {Cada a m andar o tro de u lance o ele es graus da esc a cada pela escada vador ada é , andar. a lan Abriu ça da as sua d dia. Po portas de v ança id rt libert dizem eiro sorri, o ro da recep ária.} ção gr rgulho que se itando so do fossem Olhou s b en om dia à v Deixo direita. Olh ocê, seriam timento qu a quem us ou en m era do de ma eu paradeir à esquerda ais você (n ão é seu porteir dame ã o esta . Olho o é s . empre talado u o assim s na calç ao redor. S ?). eg ada, a Mand tropela uiu em fren ou pa rar o t t do po naque râns r um p e. le oodle de me instante. P ito com a p a nina, a pirulit ssou a mão lma das m agrad ãos, o o de m na cab ece o nd en carinh e que es o com ina, sorris ça da menin e o mundo tá ali, o esta s ad d o naque e men rriso p le per ina, m e vestido, r va ouco. curso oupa ã E e Paraís e d le não e men em cu o. sorri. ina rso. Camis Cada um te Espera aa m o dest quand o avesso. E o seu. Aqu ino, ele er o saía sorris a o pelas o d d e e m le portas . e de vid nina, que e Sapatos co lo ro sem ra a re sposta ridos. quebr ar. do bo m dia lín

gua do p.

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D

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DE(S)

Propõe que ponham o pôr do sol num postal. E se prostram, protagonizando o ato póstumo.

PROPÓ

{A propósito: é de propósito.}


DNG

OM I

O

P E R D I D O.

Domingo é para ler jornal na cama, fazer café para dois, dizer bem alto que ama, programar o ócio como se fosse, ele, o melhor negócio. Domingo é para o parque, para desenferrujar o lombo, comer arrumadinho de charque, comer algodão, o doce, lambuzando a mão. Domingo é para ouvir um vinil, dançar com a esposa, gritar um puta que o pariu, reafirmar a certeza, desse amor, que beleza. Domingo é dia de livro bom, uma espiada na tarde azul, escutar e fumar com Tom, se deliciar com comida, na panela, e celebrar a vida. Domingo é dia de desligar a tv na cara de Faustão, assistir um filme, mas não na Fundação, tomar um café, expresso, e andar devagar a pé. Domingo é dia perdido, de deitar na rede, de sentir-se querido, e dormir cedo porque o outro dia, esse sim, é dia de medo.

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gua do p.

Vende-se Deus. De segunda mão, mas conservado. Já trabalhou muito por você, mesmo sem ser seu. Vende-se Deus. Não é por quilo, não é por metro. Vai o pacote completo, como foi criado. Vende-se Deus a quem tem alma, a quem respira, a quem almeja, a quem crê. Vende-se Deus. Entre na fila da fé, peça a bênção e faça um consórcio. A parcela é decrescente. Mas não descrente. Vende-se Deus. Não é homem, nem menino. Nem mulher, nem

CLAS SIFICA DO

.S

bailarina. Já foi menino-Deus, Deusme-acuda, louva-Deus. Hoje só tem nome, que é o seu. Vende-se Deus. Oração vale ação na bolsa do céu. Boas ações são cartões de crédito sem limite. Vende-se Deus. Tratar aqui.


B A L B Ú D I A.

S

Certa vez, atravessou a rua de olhos fechados. Ouviu freadas. Buzinas. Um cachorro acordou com a confusão e já latiu. Seu Antônio gritou um ave-maria sem levantar-se do banquinho do seu fiteiro. Duas adolescentes apenas puseram a mão na boca e evitaram notas mais agudas. Um filho da puta se ouviu do motoqueiro apressado. Várias vozes da janela do ônibus. A madame que conversava com a amiga deu sua contribuição com um sonoro agora lascou. O vendedor de flores do semáforo rezou baixinho e rápido. Uma bicicleta caiu no meio da algazarra. Abriu os olhos para não errar o meio fio. Seguiu pela calçada, radiante. Em silêncio.

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AS E R

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gua do p.

T S

LA

E

S

- Eu já contei para vocês a história do homem que não via estrelas? Pois vou contar.

DE

E a todos os ouvidos e olhos abertos, inventou a fábula do homem sem coração que não via estrelas e por isso era tão infeliz. E que a cura chegou justo no dia em que ele conheceu a mulher mais linda, mais doce, mais brilhante que Deus teria posto de pé nesse mundo. E, naquela noite, sentado num banco de mãos dadas com ela, ele finalmente vira as estrelas.

SABEL.

Era a primeira das suas doces tardes. Caminhou até o pequeno banco de madeira solitário, que morava na sombra do jambeiro, e olhou o que estava por vir. Uma casa inteira para reconstruir. Novas cercas brancas, viase que era necessário. O jardim frontal da casa, agora mato, poderia voltar a ser o que fora. E voltaria. Isabel era cuidadosa com o que não era seu, desde sempre. E aquela casa, ah, aquela casa jamais seria sua. Sempre seria a casa do seu pai. Sentia-se abraçada por ele, ali no banco de madeira, onde ouvira tantas histórias. E histórias com h, como diria seu Bento, porque estória com e não existe. Como a da noite que não teve estrelas. Coisa de uns trinta, quarenta anos atrás. Ele, que costumava caminhar sozinho para fumar o último cachimbo do dia antes de dormir, estava passando justo ali, pertinho do jambeiro, quando notou o céu. Nenhuma estrela. Pensou em fim do mundo, mas lembrou que o mundo não acaba nunca se a gente não quer. Pensou que estava cego, mas ao olhar a brasa do cachimbo afastou a temerosa idéia. Era o que via. Melhor: o que não via. O céu estava sem estrelas. Nenhuma delas. Pensou em acordar todos da casa, mas sentiu que isso poderia amedrontar as crianças. Principalmente a sua filha Isabel, a caçula por quem ele tinha desenvolvido maior afeição dentre todos os filhos. E no café da manhã, contou em voz alta a história da noite anterior, mas do seu jeito.

Um vento morno acalentava os pensamentos e deixava Isabel certa do que estava por vir. Uma casa para ser refeita. Uma vida para ser lembrada. Estrelas para serem vistas.


O

ÚLTIMO

ANTOS.

DE

Pois o que o senhor tem feito por mim eu vou ficar de gratidão eterna, doutor Tomé. Sempre tive apreço por sua família, por dona Judite e pelos meninos. E cada coisa que o senhor me fez, cada coisa, cada mão, me acomete o juízo na hora que vou me deitar e rezo para o Pai abençoar seus passos. Eu me recordo quando tive Bento. Eu parindo e achando que ia morrer e o senhor me acudindo. Isso eu não esqueço, seu Tomé. Minha vida não tem muita coisa para contar, mas eu tenho muita a coisa a dever. E o senhor hoje, outra vez, o senhor de novo foi um santo homem de Deus hoje, seu Tomé. Porque olhe. Eu não nasci com a sorte da riqueza não. E o que eu mais aprendi a prezar, lição de minha mãe - que Deus a tenha, foi rezar todo dia para ter saúde. Que não dá alegria feito gente rica tem, sempre contente com os filhos, com as comidas, com a casa para morar e a água para beber. Mas minha saúde deu alegria para eu chegar aqui até hoje. O senhor nunca deixou a gente e sempre deu a mão e eu sei disso. O senhor deve lembrar mais que eu do dia que Amparo caiu no poço no fundo da fazenda. Eu já tinha dado por perdida quando ela saiu sem cor nos beiços e o senhor socorreu. Maria parou de falar subitamente e Tomé apertou sua mão. Ela ainda o presenteou com um sorriso. O último de tantos.

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lĂ­n146

VE

FA RA RO I R PA E UM MO AD A RD

A LS A VA LS

gua do p.

Diz com quem andas e direi se vais feliz Quis te cantar uma valsa falsa e me fiz E sim veio o desejo do longo beijo o olhar um lampejo de um querer assim que nĂŁo tem fim

.

A S L A A S . V AL A O R F AR I R P M O DE U M DA A R


BR DO

S I M

IDE A O. NG

. Vestiu-se de bolinhas e saiu rodopiando - que faltava vento Ă quela tarde.

lĂ­n

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I FE.

O pífio pífano Assovio que se ouviu Nota que denota O som e a cor O dom e a dor O pífio pífano Se ouviu o assovio Denota a nota A cor e a dor O som e o dom O império de Quitéria Morou E desmoronou A miséria de Quitéria Amoral E atonal Pife de patife que pifa e puf


BEM NO OCO.

Abriu os olhos e deu de cara com o céu azul, torrando o quengo. Piscou duas, três vezes para certificar-se. Estava vivo. Todo moído, mas vivo. Que calor desgraçado. Pensou em cerrar os olhos novamente e acreditar mesmo que havia morrido, que o inferno era melhor, mais ventilado e escuro que aquilo. Mas não conseguiu convencer o corpo, que estava entrevado e doido para se levantar e fazer o sangue correr. Obedeceu. Sentou, bateu na cabeça para tirar um pouco de areia dos ouvidos e olhou a redor. Nada. Aquilo devia ser mesmo o fim de mundo. Nem vento passava por ali. Procurou uma árvore. Um abrigo. Uma poça de água.

MEIO DO Sua memória voltou a funcionar em forma de lembrança visual. Um caminhão, muita gente em cima, um peito. Sua mãe. Leite. Ele ali, pendurado, mamando. Que lugar quente. Devia estar delirando. Ou morto mesmo e aquilo era um purgatório mais eficiente, para os que realmente pecaram nessa vida. Que vida? De onde é que eu vim para acordar todo lascado, sujo de areia, num lugar feito esse? Levantou-se lentamente, não porque quis, mas porque suas pernas só entendiam estímulos assim, naquele momento. Olhou mais uma vez ao redor e viu o que vira antes. Nada. Pensou em chorar, pensou em rir. Resolveu gritar. Eeeeeeeeeeeeeeeei. Alguém respondeu de pronto. Eeeeeeeeeeeeeeeei. Era o eco. Onde tem eco, tem vazio. Estava bem no meio do oco. Começou a caminhar. Não sabia direito para onde. Mas como não sabia sua origem, isso não foi necessariamente um problema. {E assim, o conto chegou ao final. Sem motivo para iniciar, sem motivo para terminar. E o oco eram palavras secando ao calor. Tal qual havia se lido. E fim.}

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CIDADES VISÍVEIS. E por onde passei, vi cicatrizes nas ruas, calçadas e campos de terra batida. O rosto da cidade marcado por bombas imaginárias que deveriam ter cortado o céu verticalmente. E o sangue corria pelo rio, artéria aberta, manchando as margens e os marginais. E cada casa tinha sua própria parede caída. Cada carro parado era uma família inerte.

Meninos nus olhavam as feridas - as suas e as dela. Mulheres levavam camisas com a palavra dor com a tipologia de uma marca de tênis qualquer. E os homens eram todos impotentes. Sua macheza era arma sem bala. E no pórtico de entrada, que ironia, lia-se. Bem-vindos.

N


. TINHAS

Seja passo ou descompasso Ou meta, metテ。fora Assim posto, oposto ao decomposto Afora o que se fora Em linhas Que nテ」o tinhas (tu) Escrito Nem dito Bendito Bendito seja Bem, dito seja Seja passo ou descompasso

Nテグ

lテュn

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ROSAS DO SEU JARDIM DE

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ME M ÓR I AS.

Por enquanto, é isso. Se eu precisar do senhor de novo, lhe telefono. Transmita meu abraço à sua mãe, Gervásio. Minha mãe faleceu ontem, dona Ana. Silêncio. Homem de Deus, e como você está Eu prec iso. E m aqui hoje, trabalhando? inha mã não foi e esta de s Gervásio urpresa. Mas a va velha, doen te, ssim me . Venha cá smo, para Ne ide lhe fa , entre de novo .V zer um Neide. S café bem ou pedir enhora. qu Faça um para Ge café bem ente. rvá quente precisão sio. Sim, senho ra. Don isso tud a Ana, fa o, não. z Você . io ás rv Ge z, Claro que fa as, lhe vi nas redondez cresceu aqui no jardim, i ando seu pa menino, ajud rdade ve É e. ad a id temos a mesm he an aí, vá. Se ac mesmo. Sente rvásio, Ge a. An na do não. Obrigado, guma al o Está faltand mas me diga. a irmã, su s, ho fil us ? Se coisa em casa sim, tá Es m saúde? todo mundo co rigado, Ob a. An na fé, do senhora. O ca is está Po . ho ga, meu fil Neide. Sim, di . sim e, úd sa m todo mundo co Graças a Deus. Que bom. Obrigado, Neide. De nada, seu Gervásio. Então, Gervásio, fique sabendo que o que vocês precisarem, estou aqui. Olhe, dona Ana, muito agradecido. Mas não se preocupe, não. Está tudo na santa paz, inclusive para minha mãe, que partiu dessa para melhor. Agora eu vou indo que tenho um serviço lá em Candeias. Vai, sim, Gervásio. E qualquer coisa me ligue. Ligo, sim, dona Ana. A senhora quer que eu abra a porta? Não, Neide. Deixe que eu vou. Tchau, Neide. De nada, Gervásio. Ana, muito obrigado, viu? Tchau, seu Gervásio. Dona O que precisar, conte comigo.

, Ana rebobinava as escadas do grande casarão Enquanto Gervásio descia ela e o filho do o, ndid ho de mangueira esco sua vida e lembrava do ban beijo. jardineiro. O seu primeiro


Vai na ru a e traz Palavra q ue pavim ente Pensame nto trôpe go Que meio -fio não su ba Que esqu ina não e ntre Vai na ru a e traz Palavra q ue atrave sse Pensame nto Que ponte bêbado não levan te Que viadu to não pa sse Vai e traz Palavra-a ndaime Que edifiq ue Alicerce Nossa co nstrução {Favor é mentira . Vou na quiseres rua e tra , que o m go o que undo é t Dei-te de eu. Lemb presente. ro-me bem } .

A

RUA É TUA.

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NÓDOA QUE NÃO SAI. lín154

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Pode se perder por entre as sombras dos cajueiros enormes, frondosos. O caminho de volta é o cheiro de casa, o perfume dos abraços dos teus. E Deus, ah, Deus. Esse aí dorme desde o sétimo dia. Descansado está, pronto para acordar e te salvar se necessário for. E colhe castanhas. E tortura o tempo. Sorri para as raízes secas. Corre sem medo de cair, que abaixo é só areia. Só pense em voltar quando saciar os desejos de ser menino. Quando ralar o joelho e cair na risada, que queda é divertido. E volta. Mas não precisa trazer nada. Aqui estou para ver a ida e a volta.


ELA JAMAIS VOLTOU A USAR O MES

MO PE RFUME.

Começou a desfazer as malas lentamente. Mas não tinha mais forças para conter o corpo. Caiu de joelhos e desabou no choro. Não acreditava que havia voltado, que desistira.

ele sabe o que fala o que diz o seu velho avô, {E há, meu caro - e escute buscam o passado, to tan que s, Este s vestes. - os que muito guardam sua e o que há por vir.} perdem dois tempos: o hoje Começou a rasgar todas as roupas, com ódio profundo do vazio vestido de passado. Enxugou as lágrimas, abriu a porta do quarto. Ela jamais voltou a usar o mesmo perfume.

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Queria que fosse diferente, mãe. Mas foi do jeito que o destino quis e quando ele quer, tem jeito para a gente não. Nasci Sol. E sei que no teu ventre, foi a água que me protegeu - e a ela devo minha chegada são ao mundo. E tenho maior respeito por aquela que mata a sede de quem eu castigo. Fosse por mal, eu diria. Mas não. Amor, para mim, é calor. Diziam os mais velhos que na cidade onde ele nasceu só fazia escuridão. Um lugar sem sombras, sem suor na testa, sem óculos escuros - esse, só por causa de conjuntivite. Era terra de um antigo engenho, cuja família proprietária morreu na noite de Natal com um incêndio provocado pelo charuto do dono da casa grande. Mas dizem também que era gente ruim. E quando é assim, tem que ser morte trágica. Só quem morre de morte morrida mesmo, de alívio, é quem vive de bem com os seus. Mas era. Só escuridão na cidade, bem do lado de cá do rio, que servia de espelho para menina moça que queria ver as partes com uma vela iluminando o vestido. De longe, parecia candeeiro gigante na beira da água. Teve muito rapaz que achava que era monstro. Deu-se que quando eu abri o olho, mãe, e me lembro direitinho de como foi, clareou-se foi tudo pela frente e foi menino correndo tapando os olhos, velha chorando ajoelhada com o terço na mão, casal se beijando para se despedir porque a hora tinha chegado. Mas era nada. Era eu, mãe. E por isso fui embora da sua casa e deixei seu peito. Porque o destino disse que ia ser desse jeito, e destino é fogo. Do lado de lá do rio era uma terra verde, bonita que só vendo, diziam os velhos da calçada. Uns mentiam que já tinham atravessado e visto tudinho. Menino pequeno era que acreditava e sentava em roda na porta da casa para ouvir. Gente crescida acreditava nisso não. Diziam que desde seus tempos de criança era tudo tal qual se via hoje: o rio e uma escuridão mais clara do outro lado. Mas que era escuridão, isso era. Sendo eu a decidir, decidia por outro. Ia mandar mãe dos outros parir o sol, mãe. Vida de iluminar vida dos outros é esforço medonho, que gente não faz juízo. Porque a gente mesma que se assustou quando eu cheguei, essa mesma gente agora só quer saber de mim, reclama da vida de antes e diz que eu é que fiz tudo diferente. Agora eu tenho que ir, mãe. Que a senhora precisa descansar e dar a vez para o dia que eu levo. E bem na frente de todo mundo, na casa de muro baixo no fim da rua da praça da igreja da cidade da escuridão, nasceu um menino. E nasceu junto com o dia.

ONDE

ANTES

ERA

ESCURIDÃO.


.

ELEFANTE. GALO. BEZERRO. . O D A CÁG PEIXE. . O R A S PÁS Olhou para o horizonte e viu a tromba d’água que estava para cair.

Ouviu Aquele tudo o que os frango a me pag migos tinham a. a diz

er sobr e seu fi

lho e te

Esse negócio de andar léguas atrás Gostava mesmo era da mamata.

Dois dias

lo.

m torcico

. Ficou co

do tudo , observan

ros espessos, Cercado pelos vid . E nada

Conseguiu

a.

de um bom pasto não era com ele.

elo jardim

andando p

ve raiv

imaginou milhares

gir.

de maneiras de fu

nas.

s pe voar. A dura

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. A N A B R U O Ã D I OL

INTRANSPONÍVEIS DA

OS MUROS Não sobrara um arranha-céus na sua cidade imaginária. Sentou na calçada com os pés no asfalto quente da tarde que não ia embora. Enfiou a cabeça entre os joelhos e vomitou outra vez. A ânsia era o fim da náusea dos seus labirintos mentais, construídos e desconstruídos sem muito esforço nas suas poucas caminhadas recentes. Limpou a boca.

Mirou um poste do lado oposto ao seu na rua deserta. Acendera. Apagara. A companhia elétrica precisava cuidar daquilo. A noite estava logo ali na esquina e a penumbra dos espíritos noturnos assombrava seus muros intransponíveis de solidão urbana.

Quedou-se por mais uns instantes e ainda a lâmpada do poste que parecia não ter força. Ah, os tempos de candeeiro. Um sopro e adeus. Um estímulo e a luz. Com as palmas da mão apoiadas na calçada, levantouse vagarosamente e continuou a caminhar.

Tudo o que mais queria era um arranha-céu no horizonte degradê.

AUS

D


M

ILHÃO

DE

ESTRELAS.

Todas juntas, olhando-nos. E nós revirando o pescoço, quase pedindo um torcicolo. Mas continuamos, olho a olho, olho no olho, com todas elas. Não conseguiríamos encarar todas. Concentramo-nos num flanco que nos atacava com suas luzes que viajaram anos e anos para mirar logo em nós, ali. Devolvemos o brilho recebido com o espelho dos olhos. Aqui estamos. Olhem bem nos nossos olhos. Vêem que as vemos? Sentem que as sentimos? Sabem que o sabemos? Sabemos os dois cá de longe: vocês são em um milhão. Mas nós somos mais.

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QUE ELE

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AS BRINCADEIRA

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BRINCOU

Brincava de desadivinhar as coisas. O que é aquilo? Era árvore, mas agora é cabeça de madeira enterrada na calçada, com cabelo verde e tudo, além de um pescoço que, repare bem, é longo que nem a estrada para o sítio. E aquilo aceso no céu? É vagalume gigante, não está vendo? Voa lentamente e cruza o horizonte durante o dia. Quando se despede, a escuridão da noite chega. E algodão doce bem levinho, que voa? Já foi nuvem, mas isso faz tempo. Mergulhou no que era mar e agora é tapete de barco-passeio. Desadivinhou tanto, tanto, tanto, que quando estava bem velhinho, já era moço de novo, menino mesmo. E aí teve que voltar para o lugar de onde tinha saído. Barriga da mãe, foi? Foi nada. Esperto que era, desadivinhou a morte e viveu de novo. Num mundo seu.


C O B O G .Ó

– Até orelha tem parelha, Zé Preto. Deixa de moganga e pára de choro nesse cobogó, senão vaza e encharca o pilotis. Ôxe.

ELO

Zé Preto não acreditava mais nesse negócio de amor. Dizia ele que já tinha tido muito trabalho com mulher e que decepção é faca corta-peito, que agüentava isso não. Deixou a última namorada ontem e foi-se recuperar na casa da mãe, que nem dava ouvido. Ela, sim, era bicha sortuda na arte de viver e amar. Depois de viúva, adotou para mais de trinta meninos que vadiavam no bairro de Santo Amaro, pertinho da sua casa, e dividia o tanto de amor acumulado entre eles. Zé Preto enxugou as lágrimas, pegou o carro de mão e continuou carregando os tijolos. Precisava levantar a lage enquanto era verão. Porque no inverno, os meninos tinham que ficar abrigados. Chuva é ruim para quem constrói, pensou e esqueceu daquilo que ia ser uma decepção - mas nem teve tempo para isso.

A mãe olhou pelo cobogó e viu o filho mais velho de tantos. Virando gente.

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– Macarrão!

Novamente ela. Macarrão, vizinho do lado, quebrava galho de todos os tipos para os moradores da Travessa – Macarrãuuuuuuô! São Pedro. Mas pelo grito de Sônia, o problema na casa 47 era de parto para cima. Parto, furúnculo, choque. Só podia ser um desses três. Macarrão trocou a calça e saiu em disparada, ainda amarrando o cinto de cadarço pelo meio da rua. Cumprimentou seu Evilácio com a Sônia estava acocorada na beira da cama, cabeça e adentrou a onde Leninha fazia cara de quem está sentindo casa da cumadre. uma dor danada mas não dá o braço a torcer para parecer mulher-macho. Macarrão sabia. Conhecia os gritos. Era menino chegando. Olhou em cima da tábua de passar e já estava uma bacia com água quente e dois panos novos, cuidadosamente dobrados. Pediu licença a Leninha e revistou suas partes. Mulher quando vai parir fica quente que nem braseiro. Eita que falta pouco, Leninha. Foi até a cozinha e lavou as mãos com sabão de pedra, até os cotovelos.

A dona do grito era Sônia.

LOGO A L O MORA NDEI, EVILÁ SEU CIO.

Na parede, uma bandeira do Brasil e uma foto Macarrão olhou bem fundo nos olhos de Leninha, do finado Josuel, que Deus enxugou sua testa e sorriu. Vai começar, Leninha. o tenha, metido num terno marrom feio de matar, mas se {Seis anos depois.} achando lindo de morrer. Josuel ali por perto deixava Sônia mais Sentado numa cadeira de balanço na calçada, seu tranqüila. Evilácio olhava o movimento dos meninos na rua. E ficava espantado como aquelas criaturas cresciam rápido. Dia desses, Leninha passeava com os gêmeos de lá para cá, oferecendo o peito farto a um de cada vez quando chegava na porta de casa. Agora, os dois estavam ali, compridos, felizes, cheios de saúde. Seu Evilácio acendeu mais um cigarro, no mesmo instante que um grito saiu da casa 47. Macarrão saiu todo desgrenhado de casa, arrumando as calças e o acenou com a cabeça. Pelo grito, era menino. Ou furúnculo. Ou choque.


O ETERNO E

Você, que é padroeira dos meus dias. Gira o mundo porque da inércia não quer notícia. Pila cada grão dos meus pensamentos para servir quente em tarde de chá gelado rodeado por velhas que fazem benfeitorias comendo o biscoito alheio. Lava o dia. Lava a alma. Lava que desce do vulcão adormecido em mim. Você, que é santa da minha igreja. E o fiel sou eu, que rezo e prezo pelos seus sonhos, que são meus. Dê-me um pouco da sua água, minha fonte. Dê-me as linhas do seu trilho, minha ponte. Dê-me seu verbo, conte. Não é de hoje. Não é de ontem. Não é do tempo. É do que está por dentro. O eterno eu.

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DIS

CRE

PÂN

Um crepe com copa. O meu, com ricota e pêra. Um aqui de camarões e geléia de damasco. Por favor: um com ementhal e passas brancas. E o meu, este aqui com frango e rúcula. Ninguém concordou com os sabores dos crepes.

CIA.

C

S


COMO

SE Como Se contente fosse Se de manso andasse Se pra mim viesse

E em meus braços adormecesse Em paz

Se Fosse em uma praça Andasse em um compasso Viesse em estado de graça

E adormecesse em paz Nos braços meus

Como se fosse Como se andasse Como se viesse Assim Sim Simplesmente Para mim

.ESSOF

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TE ÓFI LO.

Autoproclamara-se Guardião-carrasco das Entidades Bestiais em cerimônia solene realizada na sua sala de estar. Sozinho estava, sozinho fizera a celebração e asseverou o título ungindo a si próprio com sangue do polegar do sujo pé esquerdo. Perfurara a unha com uma agulha de tricô velha. Desvencilhou-se da indumentária negra de alguma seda barata rasgando de uma só vez do turbante aos elásticos dourados que prendiam as vestes no tornozelo. Bradou algumas palavras em Uma torta de chocolate amargo desceu latim tosco, bateu no peito e observou o sangue escorrer da em disparada pelo corrimão em direção ao grupo de anões albinos que faziam sua unha ferida. Dali por uma coreografia havaiana na borda diante, livre de todo o Mal, da piscina de chá verde. o mundo percorreria seu caminho em paz, livre das Acordei. Nossa, que sonhos atrozes Entidades que agora estranhos estou tendo faziam parte da sua lista de ultimamente. perseguição infindável.


PA R TI U. O velho tirou o chapéu lentamente. É o que os velhos fazem quando estão prestes a ensinar. Um movimento lento, que defina a anti-pressa. A sabedoria é lenta, apressadinho, dizia-me com aquele gesto. - Filho, o único drama da existência é o desamor. Homem algum tem contade luz a pagar quando dorme no escurinho com a sua bela morena. Nãoconheço aquela que reclame dos muitos pratos sujos quando o amantechega em casa com um sorriso e um beijo pronto para ser ofertado. Odesamor é cruel, entendame. Realça as sarjetas, enfeia paisagens, quebra dentes. Certa vez depareime com um vendedor de algodão doce que não sorria. Como se fosse permitido, veja só. Era desamor puro, abandono daquela que o fazia feliz. E é deste único drama da existência que falamos, não é mesmo? Quando me perguntas porque me contento com o que tenho, se te parece pouco. Não é isso? Pois se é, eis minha

resposta. Meu contentamento é decisão perpétua, já que tudo tenho. E tudo, para mim, é um item só: ela. Se a tenho, que me importa se te parece pouco ou que para mim é tudo que preciso? Aqui estou, preste atenção, filho, debaixo deste sol que nos torra a pele, esperando há horas, quando sou abordado por tua dúvida. Dúvida engana, lembra Descartes? Não se deixe enganar. Finja que me ouviu, finja que minha resposta serve a ti também, finja que não há a tortura da espera e do calor. Mentira será apenas hoje, que chegarás em casa solitário e aí compreenderás. Amanhã, não. Serás um outro. Que, sem sofrer dessa ausência, falo do desamor, terás um sorriso e um beijo pronto a ser ofertado. O desamor é cruel, filho. Sei que sabes. Agora, preciso partir. Meu ônibus. Partiu.

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SE NÃO ME FA LHA A ME MÓ RIA.

Como é que são aquelas palavras? Aquelas que aquele cara usa? Aquele que escrevia umas letras contundentes e se contundiu numa pelada, vestindo camisa do tricolor fluminense? Contusão que acabou com seu tesão. Pelas palavras, diga-se. Como é que são mesmo as palavras dele? Eu lembrava. Lembrava bem enquanto as achava duras, mas hoje não. Hoje são frouxas, suas palavras. Melodias ao revés. O empobrecimento a favor da maioria branca. Como se diz? Como se diz? No intervalo da minha memória, recordo Mautner, cantando vampiros ou talvez mosquitos da malária, os verdadeiros guardiões. Rio comigo mesmo, rio para não chorar. Essas não são dele. Suas palavras têm sempre o mesmo tom, a mesma ausência, a mesma timidez duvidosa. Me ajudem. Como ele diz? Como ele fala? Quais são elas? Como é que são aquelas palavras?


Ele trabalha aqui comigo na agência. Boa praça, gente simples de humorafiadíssimo. Estava se queixando da vida enquanto eu ouvia tudo preparando um chá, na copa, com o rádio ligado numa fm qualquer. A história foi complicando: dívida no banco, namorada doente, cansaço, briga com o pai, queda de moto. Até que o rádio começa a tocar uma música do Jota Quest. Disse a ele que fosse para casa descansar, que hoje não é dia dele. Definitivamente, não é.

ÃO.

HOJE

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Acordaram abraçados no sofá. A radiola repetia um ruído grave que lembrava que aquela era uma manhã de vento.

ÁSPERA QUE NOS ESPERA AO FIM DE CADA VINIL.

A FAIXA


OS VIZINHOS DE

A

CIMA. Que ninguém nos ouça, mas os vizinhos de cima há meses não transam, acredite, presto atenção nas noites de sexta-feira, quando antes a cama arrastava no nosso teto. Casal sem sexo é tevê sem antena, carro sem pneu, vinho tinto sem taça. Outro dia gritei a eles, do elevador: tenham uma boa noite. Assim, alto, a porta já fechada e eu tentando ser voz de anjo na consciência alheia, vê que merda de idéia. Dia desses, vi o porteiro espiar minha entrada no carro. Brechando o imbrechável. O que há por baixo do pano, seu fulano, é segredo guardado com aquele que me vê nua vestida. Encara meu reflexo no espelho comendo-me ali mesmo. Pode tentar espiar. No máximo, vai ver a etiqueta da Marisa. Você viu no jornal? Estão colocando mais policiais nas ruas. Aquele viaduto, onde a gente foi assaltado, agora tem policiamento ostensivo e blitz permanente. Eles acham que os ladrões não conhecem o resto da cidade. Idiotas. Esqueci de avisar. Meu irmão disse que quer passar aqui no fim de semana para conversar. Parece que está se separando. Ou a mulher está grávida de novo, não lembro. Senti que ele não está legal. Ou está e quer dividir com a gente. Sei não. Põe mais uma taça para mim?

{Deixou-se embebedar no colo do alguém, que ouvia suas súplicas e desaforos aos desumanos corações.}

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O L . F R É nela que pousam as borboletas.


ORC

A.

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Nada o incomodava mais que o absoluto silêncio dos fins de agosto. Observava os que tentavam evitar o vento encanado e quente nas esquinas, como se possível fosse chegar a uma grande avenida sem passar pelos encontros das pequenas ruas. Era o mês em que os postes acendiam mais cedo - e isso o deixava fascinado. Gostava de debruçar-se na janela com grades do terceiro andar do manicômio e brincar de adivinhar em que momento exato as lâmpadas acenderiam, causando estradalhaço entre os mosquitos, que logo se aglomeravam e davam início a um balé interessante - diversas vezes, viu mosquitos machos enormes enrabarem pequenas mosquitas, frágeis e cintilantes. Do último agosto tinha lembranças vagas, mas suficientemente amargas para atormentar seu sono. Aquele silêncio estava prestes a invadir os corredores novamente. Estava logo ali, logo na esquina de ventos quentes. Despertou do breve sonho acordado, aquelas recordações que não precisam de olhos fechados para se projetarem na mente. Resolveu dormir e esperar a vinda do seu novo companheiro de quarto. Que esperava não ser como aquele, do último agosto. Antes de voltar-se e caminhar até a cama, olhou uma vez mais para a cidade. Já está na hora das luzes dos postes acenderem.


NOL E V Í S I V N I ESCURO.

Cada canto que toco é outro. Braços pedem dentes, pernas exigem minhas mãos, nas costas deito meu olhar. E a busca do que não se vê a olho nu, minha leitura diária, faz da pele um milímetro de superfície para um amor profundo. O visível é nada. No invisível escuro, um espelho na frente do outro é o infinito que há entre nós dois.

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TIMO

O ÚL

S

U

S

P I

R

O.

A despedida foi ontem, em João Pessoa. Na derradeira respiração, o fole abriu-se lentamente, inspirando, preparando para soar um acorde menor, triste e dissonante. Uma pena. Melhor que fosse apenas o início de uma nova e harmônica história. Que fique a lembrança, como sopro de nostalgia das boas, daquelas que nos faz acreditar verdadeiramente que a música nunca pára. Pelo menos em nossos corações.

Sivuca, 1930 - 2006.


A N A V A R O M

P E R IF E R

IA . Morava na periferia mas preferia dizer que não Tinha medo de perder o que nem tinha E tinha razão Pois nas casas que ele ia com o violão debaixo do braço cada abraço era uma mentira camaradagem, meu amigo, é artigo em extinção Cada noite, um lamento cada samba, uma ilusão O caminho de volta é o alento Um choro feliz, um perdão

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A ME NINA SEM ASAS. Promessa fez e cumpria Até o dia Que atirou a moeda E durante a queda Caiu em desatino Viu o destino Olhar para ela

– Na parada, deu-me beijos assim, abraços assim. E assim, lá fui eu, sem nada querer, pela vida. Assim disse-me ela, que não parecia crer no que dizia.


SOU

Sou devoto dela mo sou Nossa senhora, co la de to vo Sou de joelhos, preta Me deixa ficar de o pra ser abençoad s pé Cair aos teus azul Eu visto branco e Pra tu, preta gão Não me deixar pa Sou devoto dela mo sou Nossa senhora, co la de to vo Sou de issão em teu Eu organizo a proc las Acendo as ve r Eu carrego o ando Pra tu, preta Me livrar da dor

nome, preta

DEVOTO DELA.

Preta Santa Divina e profana guidor Eu sou seu fiel se Santa Preta Menina e mulher or Eu rezo por teu am

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AS

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era conhecido por ser o mais animado quando a sanfona começava a soprar. Eis que nessa festa, parecendo coisa de destino ou de livro de romance de Ariano Suassuna, Artur foi se engraçar logo da irmã do seu amigo-aniversariante, deixando contrariado o coronel, que na primeira distração de sua filha pegou o galante Artur pela gola da camisa para dar-lhe um carão bem Artur foi menino buliçoso. Cresceu dado que era para ele deixar de ser atrevido levantando as saias das meninas mais e deixar a menina em paz. Só que Artur era, velhas no colégio público de Gravatá além de mal-ouvido, corajoso. E, na frente - que, por sinal, não se incomodavam dos homens da família, olhou o coronel de muito, porque por baixo dos panos, cima a baixo e, antes que esse desse um àquela época, mais pano ainda havia. trago e começasse a esculhambar, disse Só quem se alegrava mesmo eram os a pérola: meninos mais velhos, punheteiros fotográficos, que ao menor sinal de – Se o senhor tá pensando que vai me uma batata da perna ficavam doidos de impedir de ser seu genro, pode tirar seus excitação. Não parou na adolescência cavalos tudinho do relento que vem chuva. com as tais delinqüências típicas, Artur. E comeu galinha, cabra e até uma cadela Deixou o coronel tão desconcertado, tão muito arrumadinha da vizinha, Morgana. tronxo, que a única coisa que conseguiu Uma velha ranzinza e feia, arrancar da boca dele foi um suspiro que segundo ele só podia ser uma coisa de desistência. ou outra. – A senhora já é feia, dona Morgana, não tem o direito de ser chata. Pois Artur foi crescendo e ganhando o mundo. E pelas cidadelas da região que ele conseguiu alcançar na juventude, foi ganhando fama de agitador. Chegou a peitar o coronel de Sairé na sua própria fazenda, num dia em que o filho desse respeitado senhor completava 21 anos, ganhou dois bois para matar e fazer um banquete para se amostrar para os amigos - convidando, inclusive, Artur, que

BRUMAS

Foi ali, naquele instante, que Artur deixou de ser menino e virou homem. Deixou de ser um folclore e virou notícia nos quatro cantos do agreste pernambucano.

Casou com a filha do coronel, dona Mocinha, e comprou uma casa grande onde cresceram suas cinco filhas mulheres, bem na ribanceira da Serra das Ruças, onde a névoa espessa cobria uma cerca de aveloz que era tratada pessoalmente pelo dono da casa. E que, segundo contam os mais velhos, tinha na porta uma placa de madeira talhada onde se lia: Aqui Vive o Rei Artur, Presepeiro Maior de Gravatá.

DE AVE Esculpida e pendurada pelo sogro.

Z.


EU

MESMO

NÃO. Mesmo se o tempo é curto o caminho é torto a vida é um parto

Mesmo quando eu me engano e sinto que está perto Mesmo se estou a esmo se estou com asma Mesmo quando eu cismo Mesmo que você me peça me diga não não eu não esqueço de você Eu mesmo não

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Leva minhas desculpas, meus abraços As lembranças de uma noite entre tantas Que entretanto eu lembro bem

ETERNO . O R T

ERENCON

Leva meus percalços, minhas culpas Tantas dores dos amores que fizemos E que me fizeram ser Velhos amigos que se encontram Num carnaval qualquer Onde simplesmente For conveniente A troca de olhares E juras E promessas E certezas Do que foi Do que é Do que vai ser Um eterno reencontro Que acaba de nascer


A RA

HO BREQUE.

Sinto dizer Mas você não sabe, meu caro Nem vai saber Nem vai Que isso é coisa de berço Não tem figura, nem adereço Que lhe faça sambar

OD

Eu não me alegro em ver Que o tempo perdeu-se de você No intervalo de um acorde qualquer

Acorde Para dar tempo de deixar uma herança A uma pobre criança que ainda vai nascer Acorde Que morreu a esperança E pelo que vejo Não deu adeus a você Eu sinto, sinto dizer

{Dedicado ao amigo e padrinho René - conversa com Moreira na roda dá nisso, velho.} {Isso nem é música, nem poesia. Não sou - nem jamais conseguiria tanta pretensão dentro desse corpinho lindo e enxuto que tenho - poeta, muito menos músico. Sou apenas um rostinho bonito.} {Viva o critério, quando se tem.}

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D

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Lá ia, lá vinha. Um balanço onde colocava as palavras e graciosamente empurrava, para que elas sentissem o vento dos sentimentos no rosto. Ao final, dadas as mãos, caminhavam pelo parque escrevendo histórias que não eram suas.

PENDULAR.


DO

CE

Sua lembrança mais marcante era de uma cena na cozinha da casa da avó, devia ter uns oito anos. Recordava perfeitamente de uma panela velha, sem cabo, que dona Inês segurava pela borda com um pano úmido, enquanto mexia vagarosamente. Entre experimentar na colher de pau e mexer mais um pouco, o assunto era o de sempre. As férias, os amigos de pelada na rua de barro, Monteiro Lobato e suas fantasias que se tornavam reais na cabeça de uma criança. Quando servido, o brigadeiro era invariavelmente dividido apenas entre os dois, avó e neto. Exceto quando a tia glutona chegava mais cedo das suas aulas de piano e prejudicava a partilha do doce, previamente combinada entre ambos. Verdade que era uma delícia, com consistência que só uma avó poderia conseguir alcançar. Mas representava o prefácio do banho noturno, tomado de cueca ao lado da caixa d’água no quintal. E isso não tinha o sabor de uma doce lembrança. A água era tão fria que a única maneira de se agüentar era pular enquanto derramava o líquido na cabeça com um pequeno pote de barro. Ainda com o gosto na boca e uma certa esperança de que aquilo tudo durasse a vida inteira, ia para a sala escutar o que estivesse passando na televisão - já que os olhos, a essa altura, começavam a passar mais tempo fechados que abertos.

Viu o cigarro cair no terreno baldio ao lado do prédio. Soltou a fumaça como se suspirasse e olhou os arranhacéus que tomavam conta do horizonte. Ainda tinha a mesma esperança.

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A mando de dona Julieta, correu ao armarinho na esquina, atravessando a Rua das Creoulas sem olhar para os lados, contando com a sorte do não-atropelo. Do último fôlego tirou o pedido, trocando a mercadoria por duas notas amassadas pela ansiedade no caminho. Voltou mais calmo. Fosse por cansaço ou pela certeza da missão cumprida, certo era que estava mais calmo. Dessa vez, olhou para os dois lados e viu passar lentamente o ônibus completamente abarrotado. O cobrador entregou o troco a pequena senhora que espremia-se para alcançar o assento prontamente oferecido pelo estudante com caderno de capa suja. Sentou-se e ofereceu um sorriso de gratidão. O estudante olhou pela janela e viu que estava próximo.

ES TR

Caminhou pelo labirinto de corpos quentes, uma orgia não consentida. Tantos perfumes, tanta falta de perfumes e a vontade de mudar sua rotina, estudar à noite para conseguir um emprego decente e ajudar o pai, que levava vida dura ainda aos oitenta anos. Pediu descida e despediu-se do motorista com um aceno discreto com a cabeça. O engraxate do ponto de ônibus afastou-se para que o estudante descesse.

Não tinha clientes por aquelas bandas e não entendia porque a mãe insistia em mandá-lo conseguir algum trocado no período da manhã. As noites é que eram boas de negócio. Bêbados tentando seduzir mulheres de maquiagem desbotada polindo seus sapatos de couro velho. Contou as moedas para ver se dava para pegar um ônibus até o centro. Na frente da Renner da Conde da Boa Vista havia movimento de bancários, que comiam algo por perto e aproveitavam para tomar um café e engraxar os sapatos. Não tinha. O estudante, que esperava a saída do ônibus, viu o menino contando moedas, mas não podia ajudá-lo. O jardineiro que se preparava para atravessar a rua arrependeu-se de deixar o troco com o dono do armarinho. O estudante seguiu seu rumo. O jardineiro atravessou a rua lentamente. O engraxate olhou ao redor, procurando mais um cliente.

ÊS

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C HO

VE.

– O senhor precisa ter a receita, me desculpe.

Saiu atordoado da velha farmácia. A chuva, impiedosa, encharcou suas vontades vespertinas. Nada de curar o Mal. Caminhou vagarosamente até a faixa de pedestres e apertou o botão do semáforo. Pedestres têm poder demais. Faça-os andar como em marcha pela mais movimentada avenida da sua cidade e veja o transtorno que causam. A passeata é a arma mortífera que ainda não foi usada contra forças sombrias. Não da maneira certa. Atravessou sem perceber que, do carro parado por sua causa, uma menina solitária no banco de trás e seu pai mudo e fumante ao volante o observavam com a piedade que os passantes provocam nos motorizados - ainda mais em dias de chuva como aquele. A menina ainda pensou em perguntar ao pai se estava vendo aquilo. Um homem nu, completamente encharcado, atravessando à sua frente. Mas perdeu a vontade. O pai procurou algo que pudesse distrair a filha. Não encontrou e deu mais um trago antes de atirar o cigarro pela janela. A chuva o apagaria.


EU ME

RENDO.

Pelo sim, pelo não É justo que isso dure mais que uma canção Porque se te fiz esperar Agora vem minha redenção Pelo sim, pelo não Melhor levar o cavaco e o violão Pra fazer tocar a melodia Que um dia eu fiz em vão Tenha dó de mim Que só sei cantar assim Tenha piedade Desse velho sambista Um pobre artista Que viveu de amor E morreu de ilusão

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Veja a inveja Sinta a patada, o petardo Tire os cabides descabidos Escondidos nos escombros Dos armários das armas E revele e vele A alma má

P

L A M A GA MA

Coma um beijo, como um queijo E aflore as flores Do ventre que vem em vento Desfaça Faça Peça Mas não impeça A fala O falo


PO

DEL A.

L

BRE

Olhou a cidade com desprezo, lá no horizonte. Como quem vê a amante passar perfumada enquanto lava as roupas na beira do canal.

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ME NOS BAR BA, MAIS ALE GRIA.

Aparou a barba e testou as canelas. Não: a batata da perna, que também atende pelo incrível apelido de panturrilha. Ia subir aos céus, onde estava sentado o pai, todo poderoso, com o cajado desbravante de um manco de joelho podre

a maçã , do rosto . la u m ê fincado na tr areia. o Desceram e o d ja a do c Areia que maçã. a d a tinha uma om Desceu c quase mais s, le e grama lá pouco, nos altos do um ranja la o tal alto. do ensolara cuspia e u q Mãe, que rde. fogo na ta não era sua mas quase E depois era, espiava foi ele. os sorrisos ha Panturril alheios barba , a testad como Para . a d ra a p a se cada z. li ser fe um fosse também o seu, tamanha a alegria que possuía no momento e que enervava

O


OUTROS

OS Olhou os filhos sentados e comendo como alguém que vai embora: aquele olhar que não é dor, nem sofrimento, é saudade sentida antes do que se devia. Limpou a boca de sopa quente com as costas da mão e respirou fundo porque o pulmão segura lágrima. Levantou sem pedir licença e foi até a janela, ver a rua. Só quem fazia barulho lá fora era o silêncio. Assim ficou até a vista embaçar num ponto fixo, que é a quantidade de tempo suficiente para esquecer os pensamentos ruins. Sentou de novo e olhou os filhos sentados e comendo. Segurou a mão da mulher, de leve, como quem sente que conseguiu.

E

U S. lín

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OS

AMIGOS

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DE A MENINA RODOL

FO E

VIRGEM No banco de trás, um dos amigos de Rodolfo conta a piada sobre a virgem. Conclui a piada, mas nenhum deles ri. Intrigado, pergunta se eles sabem o que é uma virgem. Não, não sabem. – Virgem é uma menina que tem hífen. A mãe de Rodolfo riu sozinha, ao volante. Muito.

H

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Deu

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hojenUOL. gua do p.

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Na capa do uol, estava estampada a minha decepção: “Rede contra tubarões é testada em Pernambuco”. Chorei lágrimas salgadas. Explico: sou o líder pernambucano da campanha Abrace um Tuba. Queria que o tubarão se tornasse o símbolo-mor do Queria coordenar passeios pela orla nosso estado. Queria ver em catamarãs com piso de vidro tubarõezinhos de pelúcia – talvez até incrementar o traslado sendo vendidos no shopping com ataques ao vivo contra para os turistas. Queria surfistas. ver camisas em varais na Puxa vida. Acabou o charme. Vão feirinha de Boa Viagem instalar redes e os pobrezinhos com os dizeres “Estive vão ter que atacar em Alagoas. em Recife e lembrei Que fim trágico para uma de você” com uma espécie. Que dor sinto em ilustração fofinha meu peito. de tubarão e uma Acho que vou morar na mordida na manga. Austrália. {Adendo 1: essa idéia das redes foi sugerida, em 1998, por Rômulo Bastos, surfista amigo nosso, numa conversa em Serrambi. Aí eu pergunto: os estudiosos são muito lentos e só pensaram nisso agora ou houve falta de vontade de quem mandava no estado até dia desses?} {Adendo 2: instaladas as redes, corremos o risco dos tubarões migrarem de Boa Viagem para, por exemplo, Gaibu? Porque se isso for rolar, passo a ser o maior defensor da idéia. Tubarão adora farofa, até onde sei.} {Adendo 3: aos familiares de pessoas que foram atacadas por tubarão: esse texto é ficcional, pretende ter um pouco humor em relação ao tema, mas de maneira alguma agredir (ainda mais) quem sofreu o horror de um ataque de tubarão.} {Adendo 4: vocês confiam nessa rede?}


em S

.

sentir Sem sentir ela fez uma mĂşsica para eu dormir Sem sentir ela cantou baixinho para eu ouvir

E eu Sem sentir Fui sentindo, sentindo, sentindo Que tudo agora faz Sentido

lĂ­n

gua do p.

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E sta mos s ó s lín198

gua do p.

dou tor. Tu e eu que vimos, doutor. Eclipse total dos sentidos, dormência no

músculo principal, vou morrer. E tu sorrias. De mim. Doutor, só tu e eu

sabemos que quem vai morrer primeiro é o cavalo do cão que pousa na

lâmpada, as formigas voadoras no inverno seco, a palha que cobre a

casa que eu queria morar na frente do mar. Estamos sós, doutor. Sós

nessa vida que não acaba nem tão cedo. Graças a Deus.


sta mos,

.

p e

a . C

Aquilo que me foi dito, em várzeas da Agamenon, perdura: crescer sem perder o cheiro inocente da infância.

{O tronco familiar é firme e tem raízes fortes.}

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Defi

gua do p.

mar

nições

Popular é um cara que tem barco e te convida. Arrogante é um cara que tem barco e convida o escritório inteiro. Fodido é o cara que nem nadar sabe.

ítimas

.

{Politica

me

rreto é nte inco

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róprio.}

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cluin aneia, in


es

Duas da tarde na Vila Madalena, 9 de março de 2007. George W Bush desce do carro cercado por vinte e dois seguranças particulares e metado do exército brasileiro. Queria conhecer uma livraria. O trânsito pára, motoristas xingam, manifestantes empunham cartazes em inglês errado. Ele caminha lentamente, mira a porta de entrada, mas não entra. É atingido por uma bala perdida do PCC.

InGodwetrust. A marinha americana começa a se deslocar rumo ao Brasil. O exército afegão e uma força iraniana de defesa tomam suas posições no Pará, Maranhão, Piauí, Ceará e Rio Grande do Norte. O incompetente exército brasileiro convoca controladores de vôo aposentados para a tarefa de rastrear todo o espaço aéreo brasileiro. O presidente Lula pede desculpas ao povo americano, afirmando que "os brasileiros estão sofrendo com a tragédia acontecida ao presidente americano em nosso território". O Pan é cancelado e Manoel Carlos é chamado às pressas para escrever outra novela, dessa vez com uma personagem paulistana chamada Helena – que é filha de americanos e ama os dólares que recebeu de herança quando o pai morreu de leucemia. O senador Fernando Collor defende o confisco da poupança para garantir uma reserva pós-guerra. ACM vê, do hospital, no You Tube, as cenas dos treinamentos do exército americano e diz que se eles ousarem invadir a Bahia ele coloca o trio do Chiclete na fronteira. No sul, Pedro Simon declara independência do Rio Grande, constitui um país e diz que não tem nada a ver com essa confusão. O CPM 22 lança uma música chamada Troque a Guerra pela Paz e Ivete Sangalo lança o álbum Ivete in America. Claudio Assis faz um filme rodado no interior de Pernambuco. A Globo é vendida para a Warner.

***

Essa história é fictícia. Acho.

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lĂ­n202

Se quiser saber de mim Procura o retrato na caixa de sapato Que eu ainda sou aquele Do sorriso aberto Se quiser saber de mim Toca a fita escondida na gaveta Que eu ainda sou aquele Da voz que nĂŁo cala Sou o mesmo que fugiu Fingiu que estava longe E de perto te viu Me ver no retrato Me ouvir no gravador Chorar pelo meu amor Meu amor Voltei agora

Acor

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E vou ficar Pra dormir aqui E acordar E acordar E acordar

dado.


normalidade A ensurdece, empobrece. cega,

Tudo igual, tão normal. Músicas primas umas das outras, poesiasirmãs, palavras que já foram apresentadas mais de uma vez e fingem não se reconhecer no novo encontro. Ignorância hipócrita de quem se apresenta como intelectual na mesa do restaurante. - Nós, intelectuais, é que precisamos dar um novo rumo. Se você tivesse perdido um pouco, digo pouco mesmo, de tempo a mais exercitando a árdua tarefa de realizar, entenderia a inteligência alheia e subestimaria os seus comparsas. Mas não me espanto mais com o que dizes. Já fui apresentado às suas palavras várias vezes. Mas eu as reconheço.

{No restaurante Leite, meu intervalo de garfada se torna revolta. Cala-te, boca. Não a minha.}

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Quanto mais baixo falo, mais grito. {Em resumo, é isso.}

MENOS É MAIS.


ERA AMOR ALFORRIADO. Palavra muda silenciosa feito ve nto em tempo de estia Que não é minha apenas calou-se por dentro Feito menino qu e brinca de escond er Fugida do nada recolhida numa art éria qualquer Recém-saída do me u pobre rico coraç ão palavra fugitiva Das polícias que tenho aqui no pe ito

Calada e solene minutos de silên cio em respeito Antes que se visse o pavio e bem no seu fim Se ouvisse o grito infinito E não era dor E não era dor E não era dor Era amor alforria do

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gua do p.

LH O O NA PRESSÃO,

TÁ FERVENDO. Algo me diz que o melhor ainda está por vir.


I

A

O

PERD

Mas o que sei, e só eu o sei, digolhes convicto, é que tenho perdido a mão, cada dia, cada linha, cada parágrafo que me passa e não agarro. É sentir-me escorrer pelos dedos as palavras mais tolas que possam haver, tal qual houvera, frondosa e nódoa. Desisti das cartas de amor, dessas desisti, minha última arma com as mulheres que ainda não amei – são poucas – e que por acaso do destino ou ocaso meu tornaram-se distantes como bustos em praça pública, memórias mortas de um tempo que não voltará enquanto não se reinicie o ciclo das vidas. Sim, porque o que me sobra hoje, enquanto falo pela última vez, continua sendo meu pensamento recorrente de que um dia o relógio voltará ao ponteiro original. Eis minha chance de recomeçar – mas desta vez, aviso de pronto a Luzia, Júlia e Virgínia, as três irmãs que me faltam beijar dentre as poucas sobre as quais me referi há pouco, que começarei por elas, talvez ainda na infância, talvez com beijos roubados no corredor da escola, na parada da bicicleta antes de pedalar um pouco mais, na queda proposital do galho da goiabeira. Ah, se na volta dos ponteiros ao recomeço não houver a goiabeira no quintal. Me arrependeria de renascer. Choraria todos os meus dias em saudade da sombra que não verei em vida nova que me será dada. E beijos não darei. Não sem aquela sombra. Pois então, caros, despeçome desta em aguardo a que virá. Aceno com apenas uma delas. Que a outra mão, reconheço, a perdi. E não será ainda nesta vida que a reencontrarei. Até a volta. Sem que o líquido febril dos meus amores escorram-me pelos dedos, como palavras que voam secas, da minha goiabeira do quintal.

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UMA

U

AMOR. DE

Preso na garganta durante tantos obstáculos, aquela era a hora que ele sairia, ali, defronte aos amedrontados ouvidos dos paspalhos: – Fodam-se. Ouviram-me? Fodam-se.

Dois anos antes, Mauro havia corrido para saltar o muro da casa de Alice, com quem aprendera a achar graça e ver ternura em fins de tarde sem absolutamente graça alguma aos olhos descrentes de quem não ama. E fez-se homem pelas escolhas não feitas, pelos sonhos abandonados ao se despedir de Alice sem dizer adeus. {Adeus dói tanto quanto cura. É veneno de cobra, antídoto para que não morramos, apenas soframos.}

E a coincidência no mundo é coisa infinda. Dois anos depois, no agora, ele se viu pulando o muro de volta. Arrependimento não passa, pensou. E mandou que todos caminhassem no sentido certo, o oposto de onde ele viera. – Alice, amor, voltei.


UMA

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DE PAI

XÃO. Nas menores esperanças residia o sorriso de Bento. De memórias do arador que escorregava pelas areias finas dos seus mais escondidos quintais. Olhava sempre para ela, a balançar suas pernas na cerca do terraço. Olhava sempre. Sempre. E um dia deixou de olhar.

O arador caído por horas no seco, um longo caminho traçado no solo, um desenho simétrico de hastes de ferro quase cortantes. Lâmina afiada, essa, do dia em que Bento trocou o olhar pelo tocar. Tirou o chapéu no caminho e a puxou da sacada – com um pouco de violência, um muito de paixão. Antônia teve quatro filhos. Bento morreu depois do segundo neto, vítima de um coração fraco. Ao menos para bombear sangue.

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A H O . N R R C GA mesa de c bar, hora que for - (agora se for?) que seja e screva-me un poema en su lengua nõa me importa que me basta que se abra umxxxx uma porta xxxdesteXX desse coração de réu confesso embriagado d e d or de d or de amo r.


.

eufóricas. Elas estavam exiam, m re , Pulavam isso tudo E . m va ga fre es o se quisessem m co o, saltitand ética cela fugir da herm remexidos, s ai M de ferro. que a rebelião sussurros, até estopim. u se r te pareceu ondos, Pequenos estr afados, mais ab s do estampi fuga. tentativas de e elas tivessem Logo, achei qu ua. Mas não. dado uma trég de alguns sinais Ainda soavam rebelião.

FOGO NAS RE

BELDES.

, cessaram.

Até que, enfim

E tirei o milho Servi com sal. tre os dentes en que me ficou fazendo linguais. Ou malabarismos ? os ic lingüíst

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A TODOS

A

QUEM DIA

UM

Fui ríspido em determinado momento. Arrogante, em outros tantos. Insensível, fraco, prepotente. Você queria um ombro e dei um tapa. Precisava de colo e o máximo que ofereci foi um sonoro não. Cansei de tirar a sua paciência em dias de trabalho. Rejeite i idéias suas sem motivos. Disse que aquilo estava errado, que você estava enganado uma vez mais, o resultado do seu esforço não valia muito. Tirei seu sono com minha pressão absurda. Fugi de conversas quando você mais precisava. Fui ríspido novamente. Grosse iro. Soltei aquela piada de mau gosto com seu problema tão sério. Não tive pena do seu sofrimento, lembra? Chutei a sua alma de cacho rro morto numa esquina sem luz, cheirando a esgoto. Fui pretensioso e cuspi na sua cara apenas por discordar. Fui nada cordial com suas ideologias. Não te apoiei. Não te ouvi. Não te respeitei. E assim você ficou magoado. E assim, preciso dizer. A todos a quem um dia magoei e até hoje alimen tam essa dor: vão às putas que os pariu.

MAGOEI.

O


O

C

OMEDOR. Raspou o último osso esfregando vorazmente nos dentes da frente. Serrou as lascas de carne nobre que sobravam e esfregou as costas da mão na boca, escondendo o sorriso que lhe escapulia.

Desde menino tinha disso, que a mãe Aurora tinha fé que era coisa do satanás. Deu água de benzer, levou o menino para batizar três vezes, entregou o corpo do pobre até a um pai-de-santo em Nazaré do Bruno. Rezou missa de despedida e tudo. Não entendia e foi envelhecendo enquanto ele virava rapaz e continuava daquele mesmo jeito.

Ele comia castigos. Os devorava. Era cidade pequena, aquela, a dele. Ficava entre dois morros altíssimos, que nem nuvem atravessava. E foi nessa falta do que olhar, a não ser para o céu, já que montanha enjoa, que ele começou a olhar ao redor. E viu coisas estranhas. Mulher culpando o marido. Mãe xingando filho. Avô esquecido por neto. E no meio de tanta culpa, tanto desassossego, resolveu devorar aquela coisa feia, o castigo. Comeu todos os castigos entre as montanhas que cercavam seus horizontes. E a mãe, coitada e culpada, achando que tinha criado um monstro, escondeu-se na igreja, rezando e chorando, querendo se castigar. Teve sua penitência engolida pelo filho, que achava uma delícia digerir a dor alheia. E nunca vomitou. E nunca nauseou. Comeu os castigos da pequena humanidade que vivia ali. Que foi feliz. Que passou a olhar mais para o céu. Que nem ele.

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PRO ME TO.

Nunca mais te olharei. Nem mesmo com aqueles olhares que eu sabia que vias e fingia estar fazendo escondido. Não mais tentarei sentir o cheiro da tua nuca. Se queres saber, quando eu te tocar, daqui em diante, será apenas para te tocar. Antes, era para trocar. A troca do amor que eu tinha, pelo que me davas. Se creio? Sim, ainda. Mas agora creio só para mim. A partir do hoje, passo a não ver o amanhã. Vou tratá-lo como um desconhecido, um rosto perdido numa multidão urbana, alguém a quem nunca fui apresentado, com quem nunca poderia ter sonhado.

Prometo te deixar em paz.

Mas não sem antes fazê-lo comigo mesmo.


Entre citar

SUCINTO.

ou recitar,

tar.

prefiro inci

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www.linguadop.com.br

p@linguadop.com.br Uma imagem vale mais que mil palavras? Pobre da semiótica. Recolhida ao revés. Uma palavra vale mais que mil imagens, isso sim. Matheus Barbosa e Daniel Pinheiro, os designers que conseguiram transformar palavras em desenhos. Títulos que são chuva. Textos disfarçados de escorregos para os olhos, ou gangorras, ou parques inteiros. Letras soltas que só conseguem se juntar na órbita dos pensamentos de quem vê (e lê). O projeto gráfico deste livro é deles. Nos títulos, a fonte utilizada é a Quadraat Display, projetada por Fred Smeijers, editada pela FontShop Internacional (Berlim) e suas afiliadas. Nos textos, os caminhos foram traçados pela família Fontin Sans, de Jos Buivenga, distribuída gratuitamente (olha, que bacana) na Holanda, em 2007. A impressão, da Gráfica FacForm, Recife, Pernambuco. Capa em Supremo Duo 300g com laminação fosca e páginas internas em Chamois Bulk 80g. Mil cópias insanamente impressas em setembro de 2007, no Recife. O autor acredita piamente que, destas, levará pelo menos umas seiscentas para o caixão.


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