Hãmãgãy – maternidade indígena durante a quarentena

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M A T E R N I D A D E

I N D Í G E N A

D U R A N T E

A

Q U A R E N T E N A

HÃMÃGÃY

Jé Hãmãgãy



Em homenagem a todos os ancestrais que me presentearam com meu filho


Fevereiro de 2020…

Eles acham que nós não nos comunicamos. Mas agora com outras tecnologias, nós continuamos a ir além das fronteiras que impuseram e fazemos nossas próprias redes. Tentamos sempre estar um passo a frente.


Pois não seria a primeira vez que doenças seriam usadas contra nós como armas biológicas


Antes de qualquer governo decretar lockdown, nós já pensamos no que faríamos. Ficou então decidido: Ninguém entra, ninguém sai do território.


As notícias não eram boas para estudantes indígenas. Muitos perderam seus estágios, auxílios e qualquer forma de permanência e acesso à informação. Meu estágio teria o contrato encerrado no mesmo mês da minha formatura, mas agora eu estava desempregada.


Março de 2020 Não demorou muito para que os sonhos de muitos fossem interrompidos, incluindo os meus. As aulas eram interrompidas por tempo indeterminado em diversas universidades.

E eu grávida, tinha calculado tudo para me formar antes do bebê nascer. Estava completamente perdida.


Voltei pra casa sem dinheiro, de carona. Estava indo de encontro a muita coisa que me aterrorizava, que tinha me feito fugir.

Tantos espíritos ruins e muitos de carne e osso, mas que eu não sabia nem por onde começar a lutar.

Era isso ou ser engolida por essa escuridão antes mesmo do vírus.


Antes da pandemia eu me encontrei com grandes mulheres que respeito. Não confiava nos testes da ciência branca completamente, precisava de uma confirmação real. E ela veio por Darupū'ūna, do povo Tikuna. Ela colocou a mão no meu ventre e disse que sim, eu estava mesmo grávida. Avelin Buniacá foi como uma irmã mais velha, se preocupando com minha saúde e emocional.


Já estava fazendo os preparativos para ter uma gestação saudável, mesmo antes de ter essa certeza. Com menos de um mês de gestação, levei ele para conhecer a energia do mar.

Com dois meses, foi a vez de apresentar o rio e seus caminhos ancestrais.


Eu precisava de toda proteção possível, não pra mim, mas pro meu filho.

A cada mês eu pintei minha barriga, como forma de proteção. Os grafismos tem muitos significados e são a primeira coisa que notam quando nos dirigem o olhar.

Se desejam algo de mal, isso "bate" no grafismo e é repelido.



A violência foi uma constante desde o início da gravidez. Ouvia comentários racistas no meu antigo trabalho, na rua ou no hospital. Fui machucada por profissionais da saúde e até me mandaram passar por métodos que podiam ter custado a vida do meu bebê. Esse tipo de agressão durante uma fase tão delicada mina a autoconfiança de muitas jovens mães indígenas e não são casos isolados.


Às vezes eu pensava como Cleo, do filme Roma. Estar morta seria uma boa opção, seria o fim de muito sofrimento e dor. Mas logo eu também precisava me levantar e tirar a poeira do corpo para me sustentar e ao bebê que estava vindo ao mundo.


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Em Abril de 2020, primeiro caso confirmado entre indígenas, uma jovem da etnia Kokama no Amazonas, que foi infectada por agentes de saúde. Daí em diante os números aumentaram drasticamente. Em 16 de maio, o vírus já havia atingido 42 etnias diferentes, com mais de 500 casos e mais de 100 mortos em todo o país. Eu acompanhava o Boletim Indígena e grupos com parentes para saber dos casos e orientações.

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Fanáticos religiosos invadiam aldeias para pregar e levar o vírus. Garimpeiros, grileiros, madeireiros e traficantes levavam violência e doença para povos isolados. Parentes pegavam Covid indo sacar dinheiro nas cidades.


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Outros eram contaminados através dos médicos que iam atender na comunidade. Perdíamos anciãos, nossas bibliotecas vivas. Perdíamos crianças, nosso futuro. Eu ia lutar para manter meu filho e resistir. Antes de todos, Davi Kopenawa disse que o Céu ia cair.

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Muitos indígenas tiveram acesso ao Bolsa Família cortado, outros não conseguiram o Auxílio Emergencial, e trabalhar mesmo que de forma autônoma era um grande problema. Como se expor na rua e voltar para casa contaminado, e como também ficar em casa passando necessidade e não ter dinheiro nem pra comida?


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A autogestão sempre foi nosso forte, então logo no país todo surgiam campanhas de nossa própria iniciativa, seja para transmitir informação verdadeira sobre nossa situação, ou para arrecadar fundos para a sobrevivência durante a pandemia. Se o governo não iria ser um aliado, nós iríamos insistir nas nossas formas de resistir.

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Já que eu estava sem estágio e aula, só saía de casa para ir ao médico. E isso tudo envolvia uma série de rituais pra proteção, uns antigos, outros completamente novos. Sobre esses últimos, talvez eu nunca vá me acostumar.


Mesmo fazendo tudo pelo certo, era sempre um novo exame durante as consultas. Sempre um exame caro, refazer um teste. Numa semana a gravidez corria perfeitamente bem, na outra me diziam que era de alto risco. Tomei uma fortuna em antibióticos até poder ter acesso gratuito a eles, para no fim acabarem com minha resistência em plena pandemia.


Minha saúde se deteriorava com as medicações e a alimentação ruim por causa do desemprego, eu também tinha que lidar com o terror de ser perseguida por uma pessoa que não aceitava o fim de uma relação.

Perdia peso e definhava enquanto precisava estar bem pelo meu filho.


"Enquanto as famílias brancas conseguem criar seus filhos, nós temos que implorar a Deus para que eles nasçam." Naná Ywá


Mais uma vez eu me encontrava rodeada de notícias de violência contra parturientes indígenas e minhas próprias experiências se misturando. As notícias sobre o quanto o Covid afetava grávidas e bebês indígenas eram como visagens pra mim. Cada uma me assombrava nos momentos em que eu me sentia mais fraca e vulnerável.


Mas o medo não podia me paralisar, então com ajuda de muitos parentes me livrei de tudo e todos que eram tão perigosos quanto o novo vírus. Se era pra passar essa jornada sentindo o distanciamento de não poder estar em comunidade, ao menos eu ia estar sem nenhum fardo nas costas. A violência contra a mulher aumentou durante a pandemia, e eu não quero fazer parte de estatísticas de novo.


A escolha do nome do meu filho aconteceu durante a pandemia. Quando nossos parentes criam afinidade, querem escolher o nome ou apelidos da criança. Minha comadre disse que Fabinho, filho de Maria Diva Maxakali, havia escolhido. No nosso povo repetimos os nomes para dar continuidade à linhagem, o mesmo que o meu e o do meu avô.

Joacir Hãmãgãy: onça com sede


Nas redes sociais eu conseguia fazer muita coisa, mobilizar arrecadações, divulgar nossa luta, me informar, estudar, me comunicar com indígenas do país todo, contar minha história e também conhecer aliados da causa. Alguns dias eram terríveis com ataques racistas, outros eram de muito acolhimento. Recebi muitos presentes no chá de online do meu filho, não faltou Também havia retomado as aulas e com o curso mesmo que a conexão péssima e instável.

bebê nada. segui fosse


Mas assim que eu resolvia um problema, surgia outro. Uma das coisas que mais me aterrorizavam durante a pandemia, era simplesmente me imaginar parindo num hospital. Quando os médicos diziam que minha gravidez era de alto risco, minha única opção era ir para a capital e provavelmente fazer uma cesárea. Só de ir numa unidade de saúde, a mais simples que fosse, desencadeava uma crise de ansiedade. Não suportava mais uma violência obstétrica atrás da outra. Minha mãe passou por coisas numa maca que eu não desejaria para ninguém.


Eu sempre fortalecia a minha gestação me comunicando com lideranças e pessoas mais velhas para seguir orientações sobre a tradição, mesmo que fosse à distância.

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Felizmente, eu não ando só e os yâmîy encaminharam mais uma boa parenta para me guiar nessa caminhada de parir. Mari é do povo Pataxó e me acompanhou para assegurar um parto respeitoso, mesmo que tivesse de ser na capital. Foi no Hospital Sofia Feldman que passei a realizar um novo prénatal e descobriram que eu não tinha nenhuma doença e podia parar de tomar antibióticos. Recuperei a saúde e fiquei sabendo que podia realizar meu parto em casa, seguindo os costumes.


Algumas vezes pedir para um direito básico era um constrangimento enorme. Enquanto perguntavam a outros pacientes sua cor, pra mim o pardo era regra. Na maternidade que passei a me consultar, tive que insistir até que colocassem minha etnia mas não sem ouvir comentários desagradáveis sobre.


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Estar na capital não me isentou de passar por constrangimentos relativos à racialidade. Tentaram me colocar como parda no registro inúmeras vezes, e a violência de nos classificar de forma errada impede o acesso à políticas públicas e mascara o número real de indígenas no país. Haviam parentes morrendo de covid nas cidades e sendo colocados como pardos, então isso deixa nossos casos subnotificados e é proposital, é etnocida.

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Uma forma de tentar esquecer que já faziam meses que eu estava em isolamento total e que parecia não ter fim, foi planejar cada etapa do meu parto. Seria em casa, teria opção de água numa piscina inflável, bola para exercitar, comida e o mais importante, silêncio e sossego. A melhor parte de morarmos em zona rural e com muita mata é a tranquilidade.


Quando estamos perto de parir, sentimos uma necessidade de ir pra água, que é sagrada e curativa. Fui numa cachoeira revigorar as energias e sabia que a hora estava cada vez mais próxima.


Eu brincava em casa dizendo que ele viria trazer chuva, porque estávamos há muito tempo numa seca e sofrendo com queimadas. E assim foi, num dia nublado eu acordei sentindo um desconforto, fiquei o dia inteiro assim até que de noite o trabalho de parto se intensificou.


No dia 21 de agosto de 2020, ele veio de madrugada e trazendo chuva. Ainda me perco tentando descrever tudo o que senti, a minha conexão com meu filho e com nossos ancestrais, o universo, o natural, tudo ali ao mesmo tempo.

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A cada dia era um número maior e uma tragédia nova se aproximando. Até o momento são 161 povos atingidos e 881 óbitos. A Associação Indígena Matis (AIMA) informou a confirmação de 6 casos no povo Matis no Vale do Javari, no Amazonas. O território é próximo de áreas de indígenas isolados, que possuem muito menos resistência a qualquer doença nova e são extremamente vulneráveis. É como se estivéssemos novamente em 1500. Ainda quando olho lá fora, no mundo não-indígena, a quarentena parece nunca ter começado.


Mas vamos resistir de novo, como disse o grande Xicão Xukuru “Massacrados sim, exterminados não!”


Estou sendo mãe pela primeira vez, vivendo um isolamento total, que está muito perto de completar um ano. Tentando me graduar e sobreviver em plena pandemia, cuidando a cada dia para que as raízes permaneçam fortes para que eu não seja derrubada.

Alguns dias são mais fáceis do que os outros. Tenho medo do futuro mas também sei que meu filho vai fazer parte de uma geração de jovens indígenas conscientes e com voz ativa.


"Eu creio que pelo Brasil inteiro, vai levantar ou já levantou índios esclarecidos, como eu, que levantará a sua voz em prol da sua raça" Marçal de Souza Tupã'i


Agradecimentos: Minha família pelo apoio e criação Maybí, minha comadre querida Maria Diva e Fabinho Maxakali pelos ensinamentos Avelin Buniacá pelos cuidados Eni e Adriana Carajá pela amizade Daru Tikuna pelos conselhos E ao meu povo, meu avô e meu filho por serem minhas raízes firmes.


Bibliografia CAMPELO, Lilian. Taxa de suicídios entre indígenas é três vezes superior à média do País Brasil de Fato, 2018. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2018/09/24/taxade-suicidios-entre-indigenas-e-tres-vezes-superiora-media-do-pais/>. Acesso em 13 jun. 2020. KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. 2015. “A queda do céu: palavras de um xamã yanomami.” São Paulo: Companhia das Letras. 729 p. TERRA dos Índios - Direção de Zelito Viana. Embrafilmes, 1979. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch? v=8RjGZ8dXGPQ&feature=youtu.be&ab_channel=> . Acesso em 10 nov. 2020. YWÁ, Naná. ROMA – O silenciamento e a dor de ser indígena em contexto urbano. Disponível em <http://blogs.trendolizer.com/2019/01/romaosilenciamento-e-a-dor-de-ser-indigena-em-contextourbanonana-kaingang.html>. Acesso em 03 jan. 2020.


Fig.1 Estudo reforça indícios de que pobres e indígenas são mais vulneráveis à covid-19. BBC News, 2020. Disponível em:<https://noticias.uol.com.br/saude/ultimasnoticias/bbc/2020/09/23/estudo-reforca-indicios-de-quepobres-e-indigenas-sao-mais-vulneraveis-a-covid19.htm>.Acesso em 10 nov. 2020. Fig.2 SANTOS, Laís. Boletim n. 5 - Povos Indígenas e o Covid-19; 18.05.2020 (12:22). Disponível em: <https://twitter.com/munihin_/status/1262403065019326465>. Acesso em 20 maio 2020. Fig.3 LOURENÇO, Juliana Silva. Boletim n.2 - Povos Indígenas e o Covid-19 16/05/2020 (20:45). Disponível em: <https://twitter.com/Karibuxi/status/1261805327047102466>. Acesso em 20 maio 2020. Fig.4 DANTAS, Carolina. Mortes de indígenas idosos por Covid-19 colocam em risco línguas e festas tradicionais que não podem ser resgatadas. G1, 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/07/1 0/mortes-de-indigenas-idosos-por-covid-19-colocam-emrisco-linguas-e-festas-tradicionais-que-nao-podem-serresgatadas.ghtml>. Acesso em 10 jul. 2020. Fig.5 Exame confirma morte de bebê indígena por coronavírus em Pernambuco. Crescer, 2020. Disponível em: <https://revistacrescer.globo.com/Bebes/Saude/noticia/2020/0 5/exame-confirma-morte-de-bebe-indigena-por-coronavirusem-pernambuco.html>. Acesso em 10 de novembro de 2020.


Fig.6 LOURENÇO, Juliana Silva. Boletim n.10 - Povos Indígenas e o Covid-19 20/05/2020 (21:00). Disponível em: <https://twitter.com/Karibuxi/status/1263258983508385804 >. Acesso em 20 maio 2020. Fig.7 MIRANDA, Gedeon. Indígenas doam mais de 600 kg de alimentos para famílias carentes prejudicadas pela Covid-19 em RO. G1, 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/ro/rondonia/noticia/2020/05/25/indig enas-doam-mais-de-600-kg-de-alimentos-para-familiascarentes-prejudicadas-pela-covid-19.ghtml>. Acesso em 23 jun. 2020. Fig.8 MAXAKALI, Maybí. [Campanha de arrecadação para a comunidade Aldeia Verde]. WhatsApp. 23 mar. 2020. 21:19. Mensagem de WhatsApp. Fig.9 LOURENÇO, Juliana Silva. Povo Kaingang. Disponível em: <https://twitter.com/Karibuxi/status/1259195309089046528 >. Acesso em 10 maio 2020. Fig.10 MAXAKALI, Tita. [Conversa sobre a gestação]. WhatsApp. 20 dez. 2019. 15:52. Mensagem de WhatsApp.


Fig.11 Povo Kokama troca hospitais por rituais com ayahuasca diante da covid-19. Uol, 2020. Disponível em: <https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/noticiasda-floresta/2020/07/30/povo-kokama-troca-hospitaispor-rituais-com-ayahuasca-diante-da-covid-19.htm>. Acesso em 15 nov. 2020. Fig.12 Recorte da minha ficha de atendimento no Hospital Sofia Feldman. Acervo pessoal, 2020. Fig.13 HÃMÃGÃY, Jé. Mãe de Todos, 2019. Disponível em: <https://www.instagram.com/p/CAL1AkonBox/>. Acesso em 5 set. 2020. Fig.14 ADAS, Mariana. [Conversa sobre a gestação]. WhatsApp. 16 abril 2020. 07:31. Mensagem de WhatsApp. Fig.15 HÃMÃGÃY, Jé. “Nosso céu estrelado”, 2019. Disponível em: <https://www.instagram.com/p/CDcF8RXHJ6p/>. Acesso em 5 set. 2020. Todos as demais ilustrações são de minha autoria, produzidas especialmente para o zine "HãmãgãyMaternidade Indígena Durante a Quarentena".


Este zine foi produzido por meio do Programa de Fomento Cultural - Bolsa de Fomento à Criação / Estudante UFMG

Realização:


Sobre a autora Jé Hãmãgãy é estudante de Museologia pela UFMG, mãe de dois cachorros e uma oncinha. Artista plástica autodidata, comunicadora indígena e membro do CMACI. Seu trabalho reflete sua vivência em zona rural e periferia, assim como questões da luta indígena. Ilustrar e escrever sempre foram válvulas de escape para conseguir expressar tudo o que às vezes não conseguia botar na fala. Agora usa uma nova ferramenta, a internet, para poder trocar conhecimento e conseguir apoio para a causa.


Hãmãgãy- Maternidade Indígena Durante a Quarentena" é um relato em forma de zine sobre a experiência de ser mãe de primeira viagem enquanto mulher indígena nesse momento inesperado de pandemia e isolamento social. Viver numa realidade que impede o contato, viagens, trocas diretas de saberes entre etnias, e ainda assim precisar lidar com novas desigualdades, o ensino à distância e pior, o luto, exige que saibamos resistir firmes em nossas raízes mais do que nunca.


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