Revista Postais 02 - 2014

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Fátima Maria de Oliveira

No corpo mal alimentado e sem repouso de Cruz e Sousa, em cuja doença acaba por se instalar, dramatizam-se os sofrimentos gerados pela violência excludente dos mecanismos de poder político e social republicanos. Em carta de dezembro de 1897, Cruz e Sousa apresenta ao amigo Nestor Vítor o apelo pungente de quem sente a proximidade da morte. Meu Nestor. / Não sei se estará chegando realmente o meu fim; -- mas hoje pela manhã tive uma síncope tão longa que supus ser a morte. No entanto, ainda não perdi nem perco de todo a coragem. Há 15 dias tenho tido uma febre doida, devido, certamente, ao desarranjo intestinal em que ando. / Mas o pior meu velho, é que estou numa indigência horrível, sem vintém para remédios, para leite, para nada, para nada! Um horror! / Minha mulher diz que eu sou um fantasma que anda pela casa! / Se puderes vir hoje até cá, não só para me confortares com a tua presença, mas também para me orientares n’algum ponto desta terrível moléstia, será uma alegria para o meu espírito e uma paz para o meu coração. (CRUZ E SOUSA, 2000, p. 834)

O discurso epistolar torna-se uma forma de ação do poeta, neste ponto da vida em que se vê transformado em um “fantasma que anda pela casa”. A carta materializa, diante dos olhos do amigo, o horror em que vive. A carta implora a presença física do destinatário, solicita o testemunho do amigo diante da “indigência horrível”, para a qual a “estesia artística”, a “verve”, a “predestinação” do artista, segundo o ideário simbolista, não servem de conforto, nem trazem orientação sobre o que fazer com a “terrível moléstia” e com as duras privações materiais. O círculo de literatos, muitos deles também jornalistas e homens públicos, como é o caso de Nestor Vítor, com quem Cruz e Sousa convivia de perto e para quem apela, nos momentos de aflição, buscam pessoalmente dar resposta a estas dolorosas evocações, através da boa vontade e da oferta de favores. Abrem-se, por exemplo, subscrições nos jornais para angariar contribuições em favor do enfermo, e Nestor Vítor, vice-diretor do Internato do Ginásio Nacional – nome dado nos primeiros anos da República ao Colégio Pedro II – começou a cuidar também da ida de Cruz e Sousa para um lugar cujas condições climáticas favorecessem seu tratamento e recuperação. A 154


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