Caderno do Peregrino

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CADERNO DO PEREGRINO Fernando Lemos

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CADERNOS DE POESIA

EDIÇÕES CORDEIRO-LOBO


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FICHA TÉCNICA Caderno do Peregrino Autor: Fernando Lemos Lisboa – 2016 Design editorial – Lino Palmeiro Edições Cordeiro-Lobo

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AUTO-RETRATO CRÍTICO

Sim, admito que os genes do acaso Que me criaram não foram de segunda Escolha, mas devia ter a voz mais funda, Dentes invulneráveis como aço E mais grossos os músculos dos braços; Na cabeça quadrada não abunda O cabelo, porém, fantasia muita Só para me atormentar no mais dos casos ; Reconheço o desempenho quase atlético De vísceras e glândulas com surplus De ânsia, bílis, suor e sémen poético, Só não posso perdoar que nas subtis Triagens tão selectivas da genética Não me tenham calhado olhos azuis.

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Índice DIANTE DA FONTE DOS QUATRO RIOS ........................................................................... 5 FONTE DE TREVI ..................................................................................................................... 6 MIRADOURO DO SOCORRO NO FUNCHAL ..................................................................... 9 CARTAGENA DAS ÍNDIAS DE MANHÃ ............................................................................ 10 MARÉ BAIXA NA NORMANDIA ......................................................................................... 12 CHATEAU DE CHENONCEAU ............................................................................................ 12 CASTELO DE LANGEAIS .................................................................................................. 13 LASCAUX ................................................................................................................................. 15 ABADIA DE WHITBY............................................................................................................. 16 A CATEDRAL DE BEVERLEY ............................................................................................. 19 CATEDRAL DE SÃO BASÍLIO EM MOSCOVO................................................................ 21 KLEINMOND ........................................................................................................................... 23 NAS CURVAS DO ESTEREL ................................................................................................. 26 PONTE SOBRE O ESTUÁRIO DE FORTH ......................................................................... 27 CANOPO DE VILLA ADRIANA ........................................................................................... 30 AZUL HAVANA ....................................................................................................................... 31 ILHA DE KIRRIN .................................................................................................................... 32 VISÕES E TENTAÇÕES NO DESERTO DA LÍBIA ........................................................... 34 LES PARFUMS DES ÎLES BORROMÉES ........................................................................... 35 TEATRO DE EPIDAURO ....................................................................................................... 36 OS CANAIS DE AMESTERDÃO .......................................................................................... 37 O GRANDE BUDA DE KAMAKURA ................................................................................... 38 PONTE COBERTA JAPONESA EM HOI-AN ..................................................................... 39 PALÁCIO DO BELVEDERE EM VIENA............................................................................. 41 CATEDRAL DE AMALFI....................................................................................................... 43 HERMES DE PRAXÍSTELES ................................................................................................ 44 CRYSTAL CATHEDRAL ....................................................................................................... 45 PALÁCIO BORROMEO E JARDINS ................................................................................... 48 MOSTEIRO DE SANTA CATARINA NO SINAI ................................................................ 52 SWELLENDAM ....................................................................................................................... 54 EL DORADO ............................................................................................................................. 58 DAR AL HAJAR ....................................................................................................................... 60 DAMA DE ELCHE ................................................................................................................... 62 PALÁCIO DA ONU .................................................................................................................. 64 NO FORTE VERMELHO DE AGRA .................................................................................... 65 SARCÓFAGO DOS ESPOSOS ............................................................................................... 68

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4 LA SAINTE CHAPELLE ........................................................................................................ 70 O DAVID.................................................................................................................................... 73 O TEMPLO DE KARNAK EM LUXOR ............................................................................... 75 DIANTE DO BUSTO DE NEFERTITI .................................................................................. 77 CATEDRAL DE ORVIETO .................................................................................................... 78 IGREJA DA MEMÓRIA DO KAISER GUILHERME ........................................................ 80 AS TRÊS MADRASSAS DA PRAÇA REGISTAN ............................................................... 82 CEMITÉRIO MILITAR DE REDIPUGLIA ......................................................................... 84 ROTHENBURG OB DER TAUBER ...................................................................................... 86 CATEDRAL DE ESTRASBURGO ......................................................................................... 88 DIÁLOGO COM A ESTÁTUA JACENTE DO MAUSOLÉU DE FRANÇOYS I ............ 90 BAGAN ...................................................................................................................................... 94 SHIBAN ..................................................................................................................................... 96 TRAJANO NA ILHA DE PHILAE ......................................................................................... 97 O CAMPANÁRIO DA CATEDRAL DE PISA ...................................................................... 99 LAMENTO DE SANTA SOFIA ............................................................................................ 101 CATEDRAL DE LINCOLN .................................................................................................. 102 DIANTE DAS MURALHAS DO KREMLIN....................................................................... 104 SAN FRANCISCO DE ACATEPEC.................................................................................. 106 NICCOLÒ NASONI REVISITA O SOLAR DE MATEUS ......................................... 108 TAJ MAHAL .......................................................................................................................... 111 CASA DEL LABRADOR ....................................................................................................... 112 O TEMPLO DO CÉU ............................................................................................................. 115 A GRANDE MURALHA DA CHINA ................................................................................. 116 JARDINS DE XOCHIMILCO ............................................................................................ 117 GRUYÈRES............................................................................................................................. 119 TAPEÇARIA DE BAYEUX ................................................................................................... 120 A PONTE DE ALCÂNTARA ................................................................................................ 122 PAESTUM ............................................................................................................................... 125 ÁVILA MURALHADA ......................................................................................................... 128 GRAND-PLACE ..................................................................................................................... 130 TORRE DE BELÉM............................................................................................................... 133 LAGO DE BLED................................................................................................................... 134

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DIANTE DA FONTE DOS QUATRO RIOS Na Piazza Navona

Amanheceu Sem sol, sem pressa. Um mar cinzento Inundara todo o céu. E na praça, ali tão perto, A oito passos Da margem onde me sento, Ali, onde as águas com mais fragor Se abatem em perpétuo movimento, Foi onde avistei primeiro Tua cabeça Envolta em cristas de espuma Iridescente, Depois teu corpo Travado pelo cio adulto Que sai do mármore. Então me atiro Aos quatro rios Para ti como jangada A te agarrar Como corda como alga Como a mão inescapável Do meu destino Certo de vir A afundar-me a quatro mãos Quando o amplexo Que se avizinha Explodir Num alvoroço de espelhos E mil reflexos De líquidos violoncelos. Lisboa, 2 de Outubro de 1979

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FONTE DE TREVI

É no desplante De quanto porém Dum palácio purulento De orvalhos ferrugentos líquens seculares de asfixiantes linhagens Goteja Que, por alquimia de harpas e arquitecturas, óxidos de túrgidas tensões e muita canalização de chumbo, Entre clamores de múltiplos alfabetos, Rebentas porta-voz porta-estandarte de toda uma ruptura de dogmas cânones éditos e provas supersticiosas febres e ferretes

Que se afogam na girândola de varandas dardos e escarpas No gorgolejo no colapso das tuas cataratas e oráculos baptismos núpcias rastos do dilúvio que ainda sulcam os nossos pulsos em sussurro,

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Eixo e umbigo de estrelas coroadas de nuvens e anémonas, Bandeja de circum-navegações cinzelada e odisseias Donde emerge o teu carro triunfal com a força dum motim dos abismos líquidos que dissuadem e levigam a vigência das grilhetas das leis da gravidade, quando marés de pérolas concedem honrarias aos ares refractados em suspiros tão íntimos inaudíveis na borrasca teatral absurdamente oceânica que esmaga entre sopros assobios búzios e fanfarras as incastas abstinências as inconfessas rebeldias tão solitárias as utopias já condenadas ao desastre os algarismos finitos dos homens em confronto com as maratonas entre os astros, Enquanto nós caminhamos subjugados por praias ambíguas sob o olhar de Ílio ou Cartago amuralhadas, e confusos, ofuscados, extasiados, ainda ousamos num excesso de desafio ou réstia de presciência em ti perigosamente espelhar-nos na esperança que tudo contradiz que Tu hermética taça te transformes em onda em cripta dos sonhos pedestal,

teus cavalos estremecendo de densos suores subvertidos entre relinchos jorrassem vibrantes sopros de aço sem pausa e seráficos fúlgidos astros para enxertar nos nossos músculos exaustos

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Tu, parábola aquática duma primeva aurora que só aos olhos de Neptuno e da sua corte marinha se desvenda se desnuda com o coração trémulo radiante de cúspides.

Lisboa, 14 de Março de 1986

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MIRADOURO DO SOCORRO NO FUNCHAL

Amurada de barco sem proa enfrentando as pujantes águas envolventes salgadas e profundas que vão tecendo espumas que se esboroam ao correr e ao revés dos seixos, donde quem hoje se debruça pouco recorda quando não ignora da vertigem da travessia do abismo do enjoo escorregadiço do convés rumo a outros cais outros degredos

sobre ti

onde as casas aprenderam discretas a respirar nem por guelras nem frestas mas pelos poros ásperos do basalto que suam sucos terrestres substantivos fertilizantes dissolutos onde o mel encerrado nos lábios nas jarras dorme sonhando cair em chuva liberto numa poligamia de perfumes floridos e vulcânicos onde trazido por alguém até ao parapeito uma sombrinha evasiva alheia se desfia com saudades de quando cada mês dispunha de trinta tipos diferentes de dias, Só as flores do jacarandá a caligrafar ainda versos no ar dos tormentos do amor e dos perigos das viagens, restos dos véus da Sissi amarrotadas sedas rotas a florir na buganvília

se demoram

esvoaçam explosiva frágil roxa Lisboa, 25 de Junho de 1988

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CARTAGENA DAS ÍNDIAS DE MANHÃ

À primeira luz oblíqua que a manhã à beira-mar traz acordam enxutos mas excitados já de toda a glória das suas formas os coqueiros aspirando da azulada brisa marinha as pepitas de sal de plâncton de dínamo, e em falanges que as emaranhadas raízes lhes destinaram por herança avançam pela praia em parada, por cuja passada impressa calculo e deduzo a amplitude por trigonometria da sua autoridade genital que se assinala apenas sedosa de curvas à espreita de uma urgência de inchaços consolidado cacho onde se forjam suspiros sopros sonhos e pombas de êxtase obliteradas. Oh! Visão de coqueiros de ambulantes esporos levedando com disparos em flexuosos troncos sombreados de gargalhadas castanhas de nódulos absolutos adultas rótulas em guindastes sem sintaxe que se despregam em zig zagues de bíceps nas coxas florescentes de faíscas de apitos de apetites nas estridentes elipses cornucópias de nádegas em bruto à medida do meu destino na protuberância crónica das corolas na transição para glandes púrpura lenta apesar de tudo

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até aos desfiladeiros graves esféricos debruçados frutos morenamente hirsutos à mercê das balouçantes luas de solidões nupciais de nuvens couraçadas de grumos que a leitosa intimidade secreta tempera encapsula em estrofes de cúmulos a engrossar a nossa própria semente migratória noutros corpos que sempre se hão-de cumprir na nudez humana mais nítida mais crua.

Cartagena das Índias, 28 de Dezembro de 1988

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MARÉ BAIXA NA NORMANDIA

Terra de extrema mungidura De vacas e touros brancos, De labirintos marinhos e verdes, Nevoenta irmã bastarda De Creta, Quem te munge assim o mar Entornando a nata No areal da baixa-mar Sem que de cuja espuma Nenhuma Vénus Nasça!?

Trouville, Setembro de 1989

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CHATEAU DE CHENONCEAU

Onde o arco-íris se despe Para fazer a sesta Deixando seus pés à brisa Que os lambe e enluva, Espreguiçando o corpo em arco Dum lado ao outro, Descansando a testa em brasa Sobre uma almofada de chuva.

Brantôme, 9 de Setembro de 1991


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CASTELO DE LANGEAIS (Meditação sobre o casamento de Ana de Bretanha e Carlos VIII de França)

O que terá visto Ana, Rica herdeira de Bretanha, No torvo e raquítico Carlos Mesmo sendo rei de França E demais já comprometido Desde a mais tenra infância Com a gentil Margarida de Áustria, Para ter condescendido Tão submissa a desposá-lo, Quando havia já três anos, Se bem que por procuração, Em Nantes se havia casado Com o ainda jovem viúvo Maximiliano de Habsburgo!?... Talvez tenha influído Muito o conselho cauto Dos seus tutores que viam Na França uma protecção Mais próxima e segura Cujo rei mais expedito Pagava melhor sobretudo; Mais ainda a seu favor Terá contado o facto Do Habsburgo estar falido E nunca ter conseguido Vir a Nantes tomar posse Da noiva e seu ducado, A qual por muito que fosse Ingénua, de adolescente Já seu coração havia Ouvido de amor ardente As promessas por cumprir

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Eu, porém, prefiro crer Que um outro imperativo Tão irresistível quanto Subtil a Langeais a trouxe E um incontido desejo A subjugasse a agir Como quem obedecesse A um poder atractivo Percebido só por cheiros, Por obscuros estremeções Nas veias, poros e glândulas, Por tonturas – sinais Do amável cher cousin, Luís, Duque de Orléans, Cuja virilidade súbita, Pesada, luzidia como Um sumptuosa dália Crescendo em aparato De macho galanteador Emitia, mais que o brilho Impudico accionado Por um olhar de cobiça, A radiante certeza De que seriam o seu hálito, Os seus pêlos, o seu esperma A esmagar o ventre de Ana A qual cativa desde ora Ficará daquele que há-de Ser seu segundo marido Cuja falta foi, enquanto Homem, ter chegado, como Acontece tantas vezes, Aqui, ao local previsto Antes do próprio destino.

Lisboa/ Turim, Outubro de 1991

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LASCAUX no equinócio da Primavera

Assim vou enchendo As tuas entranhas Com alucinantes Pinturas rupestres Para as quais escavo Este subterrâneo Túnel por que acedo Ao hortus conclusus, Ao altar sagrado Dum hipnótico útero Onde propiciatório Reclamo o meu esponsório: Com dedos onanísticos E dinâmicos titilo Tuas paredes omnívoras, Com mãos nutritícias Desenho-te garupas Opulentas insolentes, Coxas alertas na acção, Lombos confluentes, Tácteis, luxuriantes Em sabores, em curvas, Em cores transbordantes De autofecundação, Quando eu não sou mais Que a seta, o arpão, O feixe sensorial De rectas que tu anulas Absorvendo-as como tuas; É o teu recinto por ser sacro

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Que a trespassá-lo me tenta Ou a minha projecção erecta Que te seduz, descerra e fende!? Sendo eu o mago e o devoto Que te nutre e pontifica És tu o combustível Alquímico deste fogo Que me anima e me esgota, Pois és tu que ao truncares O ícone turbulento Da minha virilidade Mais o vais magnificar Por afluxos, por fricção Numa redundante e florida Ânsia, sem mitigação Para que eu de novo em ti Renasça e tu perfeito Me contenhas propagando-me Nesta mais que impregnação Total de corpo inteiro.

Lisboa, 21 de Março de 1992

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ABADIA DE WHITBY

Desequilíbrio perfeito desflorido pedra a pedra descarnada mandíbula ferrada na falésia outrora farol à fé erguido para guia das solidões da carne e incautos mareantes, Quantos gritos de alarme contra razias e borrascas que do norte se abatiam antes do fim do Verão não estridularam seus sinos vigilantes!?

Diante do poder enervante do mar tremia de frio contemplando a obra desagregadora acumulada ano após ano donde até Deus mentalmente se evadira ali onde um resto de calor de alcova um parapeito nodoso uma penumbra de agasalho deviam permanecer talvez enterrados como pepitas de sonho;


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Mais que o ronco enervante do mar era o estertor do dragão de eriçadas escamas ferido de morte por aquele São Jorge o que me arranhava em ecos medonhos e lancetas a garganta,

Um céu de borrifos violeta e riscos de bruma desconexa infiltram-se nos bilros góticos de que se enfeitam as janelas num rodopio de vento estroboscópico,

Um chuvisco espumejante desprega-se dos arcos que exibem as suas cicatrizes hematomas e ventosas como um polvo enorme pendurado fora de água O chão da nave central está encharcado de relva fresca muito cremosa muito à inglesa nuvens baixas femininas roçam os lombos perigosamente pelas ogivas soltando flauteios de sirene enganadores armando ciladas na vazante; Velejam um arco-íris envolto em ligaduras todas brancas e fragmentos de navios com proas vermelhas e estremeções orgânicos ao sabor do vento leste carregado e saliva doce como amoras românticas,

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O transepto engrinalda-se com fitas de memória como esse anel dos teus cabelos que nunca me deste mas eu guardo como se se tratasse duma moeda recuperada dos fundos da infância entre ocos ouriços do mar despojos de cofres há muito naufragados;

A pedra dos claustros que escapou ao leilão acabou sendo saqueada pelo povo então miserável destas arribas ou pelos magistrados do rei requisitada para as obras do porto interior sendo de crer que ainda hoje se reconheçam e entre si comuniquem por ladainhas sibilantes numa língua reprimida a coberto do lamento natural que às ondas arranca o vento por estas ruas inanimadas estes degraus fossilizados gorgolejantes de muco-chuva visco-mar degraus da beira-mar que se descobrem rosados e como um ânus franzidos pela rebentação que há gemendo em mim de desejo de arrependimento de que não me tenha entregue completamente a quem com voz ferida me amava.

Lisboa, Agosto de 1995

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A CATEDRAL DE BEVERLEY

A sexta-feira é dia de mercado em Beverley: ao longo da Main Street desfilam as donas de casa, vigorosas burguesas com ar de quem assentou praça como sargentos, muito middle-class, middle aged, encasacadas apesar de ser Maio, ensacadas, embrulhadas tão reluzentes que parecem saídas do mesmo sítio que as mercadorias à venda na feira. É impressionante a variedade de produtos do jardim inglês: aipos, beterrabas, pepinos e muitas coxas jovens e flexuosas como salgueiros às primeiras horas da manhã e uma multitude de batatas, das louras às roxas enigmáticas, todas impecavelmente assépticas, parafinadas híbridas ofélias... Abastecemo-nos de frascos de Three Fruit Marmelade with Ginger fabricado pela Country Fayre – Chester, de mel com licor Drambuie da Hudson’s International Ltd Thornbank – Escócia, de Lemon Curd – outrora chamado Lisbon Honey e cuja receita os ingleses de nós copiaram e, havendo-a melhorado, racionalizado, produzido em série industrial, embalado sob vácuo com garantia de qualidade da Crabtree & Evelyn, passa hoje por uma delicatesse du Terroir Anglais – de Butter Fudge e Rhum flavour & Raisin Fudge, que apesar do selo de home made continham abundante óleo de palma e de gosto ácido e lecitina salgada... As casas de chá estavam todas cheias – até para fazer chichi. Contentámo-nos com um babá embebido em Madeirawine & um Muffin em forma de abat-jour recheado daquelas bagas azedas de cor azul de tinturaria dos anos cinquenta, tudo aviado num cartucho de papel de baixa miligramagem por uma roliça quarentona saricoté com uma penugem pelo queixo e pescoço abaixo, quase albina e fosfórica, o que me fez estremecer só de pensar na hipótese de ter de vê-la nua.

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A catedral fica numa espécie de arrabalde que não é mais que um vasto prado, como convém. Eu levava cuecas da Hom abotoadas à frente duma malha justa e cujo contacto me tornava jovial ao andar sob as abóbadas do tamanho de três quarteirões. Não havia ninguém à vista: nem santos, nem clérigos, nem fiéis, nem meninos do coro, daqueles muito louros, muito imberbes, opalescentes, mas cujas orelhas sempre afogueadas são a prova visível das assíduas masturbações, nem auxiliares laicas, daquelas diligentes post-menopausa, um pouco rançosas junto ao cu que levam espartilhado com o fito inútil de melhorarem a consciência. Eis-nos chegados ao coro, mais uma vez enclausurado a meia nave, vedado por colunelos, grelhas & biombos escultóricos, com um cadeiral naquela formação frontal de jogo de xadrez com vagos intentos de geometrias cósmicas – nem precisas de rodar as ancas que já experimento a sensação física da brancura tépida das curvas que sei caberem no côncavo das minhas mãos – são reflexos da arquitectura na cruzaria, são ecos de cantatas de Haendel com fogos de artifício; uma boa dose de vida cultural ajuda a manter o sexo interessantemente activo, mais que umas redondas nádegas húmidas, agora que já nem tenho uma boa teoria de emagrecimento… Ah!, recuar ao encontro do meu primeiro jovem corpo, vê-lo passar e não poder agarrá-lo nem mandá-lo embora! Talvez isso seja a chave da poesia intuitiva pela qual finalmente vou grafitando as acelerações, as pausas, os deslumbramentos, os medos, o vazio último inelutável... Ecos, passos, reflexos, vitrais, pulsões, lampejos E tu continua a beijar-me Com essa tua boca cheia de beijos.

Lisboa, 25 de Agosto de 1995

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CATEDRAL DE SÃO BASÍLIO EM MOSCOVO Aqui me tens de pernas doridas um joelho rígido de reumático e de frio Aqui me tens sem reservas indefeso tão longe dos meus lidos os pés sempre buscando os lugares de nome certo que nunca irão aparecer na companhia da tortura que é saber que já houve um grande amor que nunca mais voltei a ver, aqui me tens sonhando com corpos que são de outros objecto de carícias enquanto finjo não me importar de ser cada vez mais invisível aos olhos do seu desejo à medida que envelheço diante de ti que não sabes o meu nome nem entendes a minha língua feita de canções de amor e brisas húmidas de beijos tépidos salinos que não são daqui como nunca cuidaste saber da sorte daqueles que vieram mas já não estão aqui e dos que aqui estão e nada sabem do que os espera e dos que hão-de chegar depois de nós purgando antigas faltas e inconfessáveis renovados desesperos

Aqui estamos diante do teu desalinho perdulário a itinerância do desejo nunca suficientemente castigada o vazio das infidelidades a que não se consegue habituar-se diante da tua massa mais de aparato que de virtuosa contrição, uma chuva de estrelas sonhadora de arquitecturas,

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um testemunho dos desastres dos mundos siderais que nos coube por fatalidade espiando-me com o trabalho incessante da tua luz vinda desses vermelhos labareda chiando com ganas infernais castanhos empedernidos exalando poeiras cósmicas azuis breves salutíferos e fosfóricos verdes plissados e malignos e amarelos com chispas de searas altas de mostarda de papagaios eriçados de emboscadas nocturnas em florestas impenetráveis, um clarão táctil escareado escamoso desenroscando-se franzindo-se rodopiando numa mecânica dentada de retesadas molas em espiral, metade estrela caída metade hidra de cabeças retorcidas enormes horrendas fixas numa dança ritual de acasalamento tão complicado como aberrante dum erotismo quente bizantino;

Sinto o teu hálito animal carregado de sangue violento e luto e o despropósito do meu desejo predatório ingovernável nervudo de me repartir por essas bocas demasiado pálidas por essas coxas duma firmeza obscena e redonda por essas pelúrias que me comovem até ao pânico densamente louras que conservam um aroma acidulado picante vegetal morno, Arrasta-me a tua vertigem palpável sensual polissémica, sustento do meu labor hidráulico obra de secreções internas transumantes sem freio sem desígnio que há que prolongar com todas as forças que nos assistem sejam elas nossas ou dos nossos demónios.

Moscovo/Lisboa, Abril de 1997

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KLEINMOND (na Província do Cabo, na África do Sul)

Nunca poderemos saber o bastante daquela manhã sem acreditar que todas as estrelas do céu se haviam precipitado mar adentro para a iluminar, sem nos inciarmos nos sais, nos prismas pelos quais a luz se torna palpável e com o nosso tacto se partilha. Incompreensível era o mar como um enclave dum astro dando voz à fonética deslumbrante da alvorada: uma batalha de eleitos... Não assistíamos sozinhos ao ritual da manhã no frágil proscénio da renovação dos dias que se esgotam – os nossos pés descalços faziam as vezes da oração – Nem eram só nossos olhos que atingiam os enigmas, as tabelas astrológicas onde os apaixonados inscrevem os votos, os suspiros. Contemplávamo-los como os outros os estariam vendo na sua vertigem: – Nós coleccionadores de palavras antigas não ouvíamos as suas vozes (áridas mimetizavam-se na areia vagabunda)

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– Nós coleccionadores de gestos irreprimíveis julgávamos avistá-los no rigor dos seus impulsos e modelávamos o gosto arrancado das suas sedes impolutas – Ele de tronco nu habituado às incursões do vento marinho oblíquo, acerado, escorrendo-lhe pelo peito com persistente flagrância do assalto da fertilidade que vibra na semente acumulada, de que não estarão isentos os nossos nocturnos sonhos;

Ela inequivocamente música para ser decifrada por um dedilhar de membros: ancas, harpas, acácias, sereias, trompas. Música que não se escuta, mas que trespassa a mente dele até antes insuspeitada de ser habitada por suores que alastram pela oitava completa do seu corpo, depositária de grutas, criptas de frescura nesta manhã tão próxima da nudez do lume ao cabo de uma noite que o mês e a latitude encurtam. Seriam duas crianças perdidas que a noite assustara?, dois amantes foragidos que a noite de ontem acolhera e a manhã já não pode renegar?, duas encarnações de jovens deuses vindos dum paraíso do outro lado do sol trazidos num turbilhão de rosas-de-ventos?, a consubstanciação dos beijos que nos déramos já não repetíveis, do sopro vermelho para sempre presente na lembrança da juventude que dá forma e se nutre e sobrevive rapinando o fundo dos meus sentimentos mais selvagens postos a nu?, vértices do nosso desespero, restos de paixões anteriores embainhadas dissonantes amortecidas, enumerando marés, coleccionando manhãs gritando: Talvez a mão da noite nos tenha libertado para deitarmos semente reflorindo das sobras.

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Que idade poderiam ter? pela brandura dos beijos , pela coação que se solta do desejo, pelas mãos dele já de homem onde se aninham as dimensões da tirania masculina entre perfumes ainda doces de flores infecundadas e das suas resinas, pelo modo gracioso como ela o guia sobre as dunas, pelos lunários, pelas catacumbas ora postas a descoberto e as que ainda virão a sê-lo, terão horas de vida.

A manhã é tão breve – cinge-se a um colar de pérolas – contudo basta para uma vida inteira. A maré sobe com o estrondo do amor que flui em sobressalto.

Lisboa, 22 de Novembro de 1997

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NAS CURVAS DO ESTEREL Sinuosas insinuantes curvas do Esterel onde as virtudes mais frágeis da minha alma uma vez adoeceram e ali as deixei uma tarde a morrer abandonadas; Volto para reconhecer as mesmas curvas, as mesmas ânsias, os penhascos, os pinheiros, os mesmos, febris, exaltados, postos de guarda pendulares à serra sábia e surda. Aqui voltarei a morrer da mesma doença, do mesmo dia, Quem de nós constrói casas que para sempre durem? Quem de nós mantém promessas que para sempre fiquem? Haverá flor que conheça mais que uma primavera? Então porque estas flores de dor aqui deixadas a morrer há tanto tempo pela minha alma não me deixam de doer?

Nice, 3 de Dezembro de 2000

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PONTE SOBRE O ESTUÁRIO DE FORTH perto de Edimburgo, construída em cantilever em 1890

Três pernadas de coral suspensas na febre que tivessem trepado – quase artéria aberta para fora de água frondosa na infinidão na busca insensata nómada do desejo – de desaparecidos deuses ou cometas suspensas na palidez na busca absurda do desastre litúrgica das estrelas que é aspirar um pó penitentes ou já em coma da superfície celíaca celestizadas... pólen peregrino perfumes da inconstância no andor da primavera procissão da química das glândulas levedando numa vertigem quase dança prolapso de penetrantes pendores de proporções puríssimas e viris trepando geométricos seus ramos incoercíveis a desafiar os amoniacais ares polares sem seiva nem flores prolepse duma jardinagem de gigantes adquirindo direitos que logo as houvessem erodido de couraça ceptro e trono óxidos mesozóicos pixels anacrónicos afiando aflorando fossilizando a grade estelífera de ramagens saídas de água no tempo em que as novas terras regredindo desfocando-se se haviam de formar volatizando-se velhas estirpes se haviam de extinguir dos nós dos pés na intemperança dos elementos e climas dos génios aquáticos contrastantes insurgentes transfigurando-se que lhes serviam de amas em ensaios de formas divinatórias de condestável e tutores e sinais rúnicos e matemáticos quando a terra ainda não estava madura nem guardava memória

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Teia-favo teia-cabo teia-alfa teia-eixo sexuada de inúmeras modalidades de multiplicação aflorando fíbulas fábulas de litanias fórmulas de engenharias do mais cantabile cantilever Aqui a simetria radiante das dálias insinuantes se exercitam girândolas em tumulto aqui o entrecruzar-se sem vergonha duns braços varonis movidos pelo apelo animal do desejo com pernas femininas que inebriam benévolas húmidas redondas enfrentando-se corpo a corpo aqui onde a voz quase nos vem a faltar, vigas desembainhadas da bruma antiga às vozes de arquitectos paleontólogos à força de estupros e incestos entre ferros e solda submetidos à consciência dos números e dos cálculos geométricos e rebites de portentosas perversões moldados a fogo com mágicas palavras e poções mil descargas de milhares de genros em pleno vigor com nucas dignas de frutos e sonhos, e ardentes os impetuosos lombos, extracções de sal sobre sal vermelho sobre o mar torreões de jaulas e junturas num incoercível sangrar; Rosnaram as fauces do fóssil primevo ao renunciarem à propensão de infinito à isenção do tempo vergadas ao talento humano encerradas ora numa túnica de ferro babélica e purpúrea suspensas na febre suspensas nas harpas encriptadas sobre as agitadas águas...

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Ergues-te geiser de polígonos de polímeros polarizados tímpanos em voo de vampirismo desgravitante entre o incerto céu e o vazio renitentes secantes que amparas os tão frágeis pactos dos homens a insaciável sede de esperança a passagem por que se movem os astros mudos premeditadas franjas de aromas pausas pétalas urzes abrigando arcas de brumas pés semânticos pespontos passos por que se movem as daqui efémeras primaveras tardias e bruscas errantes vagas vultos rodados janelas lenços ecos entre nascimento e morte hoje ainda agora ontem ............. fazendo ponte

(vindos da foz chegam maresias verdes e veleiros trazidos à mão por jovens timoneiros ao mar afeitos e imberbes)

Lisboa, 9 de Abril de 2004.

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CANOPO DE VILLA ADRIANA

Estás-me olhando sempre de qualquer página que eu contemple Na pálpebra do vento Nas pétalas do ar Nas vides já coaguladas na semente No caos azul do teu suor No vazio das noites adiadas sem luar

E roçagas-me gotejando numa imitação de brandas chuvas Esvoaças nas brisas sobre as dunas Nas espumas Das culpas soterradas No cotão Que se empilha nas algemas do meu quotidiano Nos lábios gretados Por palavras de desespero e rezas, Esvoaças na direcção do leite e das estrelas Da tua nova arquitectura,

Ó perene serpente tutelar Que vigilante te ocultas, Pavão real de guarda aos jardins Por onde os sonhos se crivam, Ó límpido instante que faz da alma um ataúde sem limites. Lisboa, 20 de Novembro de 2004

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AZUL HAVANA

Azul havana azul laranja azul amargo Dois sóis assomam às janelas-ruínas tresloucados Abraçando-se opúncias carnívoras eriçadas adolescentes; Ouve-se cartago em pranto e dido soluçando incendiada Pelos robinsons naufragados aos milhares mais a ocidente, Restam ancas rúmbicas rômbicas que infrangem Safras de suores heliotrópicos morcegos unicórnios Nos mamilos de alcibíades que propagam sílexes, sardes, antares. Azul havana azul varanda ao fim da tarde Às vezes só as árvores regozijam no furor do furacão Excedidas de loucura e música na lição da tempestade Na total transparência da folha em branco vazia De destino de memória onde está inscrita a imensidão do nada que é a poesia. Azul havana

azul tremor de seio redondo nocturno azul sangue caiado de terror Ilha prematura lambendo-se das placentas dos colombos dos martís Num caudal de ídolos sado-moloch-baal-quistos Surdos mudos na vertigem canibal de tantas e tantas hóstias, Ilha mariscona punheteira dalila transbordada De conjuras e funduras caraíbicas Na fragância das vulvas resumida E nas suas doces sombras abreviada, Teu mar é já só um espelho e um tubarão o teu lençol Numa sucessão impura de estrelas apodrecidas Na incessante pura imperfeição dos dias Quando tu, ilha, tragas os vultos caídos na folhagem Num êxtase de morte num orgasmo inacabável. Varadero (Cuba), 10 de Fevereiro de 2006

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ILHA DE KIRRIN (Júlio de guarda à Noite) inspirado numa cena de “Os Cinco Voltam à Ilha” de Enid Blyton – with sincere thanks to Enid Blyton

Neste escuro penhasco Onde as raízes se fundem como palavras na língua, Não vejo o mar, Mas ouço-o ao longe a respirar Por nocturnas rimas ondas ninfas; Os outros dormem No fundo da gruta; Quase os ouço que sonham Nocturnas ilhas ondas nimbos. Só eu inquieto velo desperto à leitura destes ventos que fazem balastro no meu peito, à leitura dos pêlos que me despontam sumidos descendo-me pelas pernas a torturar-me de receio que os outros os vejam no seu fulgor de dentes vespas ninfas, à leitura dos cardos de areia que me queimam e povoam as mãos de dunas de ilhas de sombras sem nome.

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É uma ferida sem testemunhas De algo que me mordeu uma ninfa, uma flecha boreal, uma auréola nas virilhas em forma de céu! É outro corpo que dentro do meu sangue Vive a guerrear comigo sussurrando-me Promessas numa língua táctil de prismas de ondas de ninfas, Que desconheço e temo transpirando em voz alta, Ainda que pelas suas chamas anseie Endividado, num crescendo transparente até ao osso!?...

Já não me reconheço intacto No eu mesmo que aqui está de guarda às ondas à noite E desconheço ainda o projecto Da semente que sigilada se desafoga A me preencher o fôlego de futuras insónias orvalhos alvoradas

ao pólen denso

ninfas em alvoroço.

Lisboa, 17 de Maio de 2007

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VISÕES E TENTAÇÕES NO DESERTO DA LÍBIA Dois espirros de Krishna, Uma pestana de Buda, O prepúcio do Profeta E o testículo esquerdo de Cristo Iam numa correria pelo deserto Num jeep de caixa aberta Vestidos só de cuecas Cantando canções sincréticas Com largos gestos explícitos. Mais adiante na tenda de Ghedafi Esperam-nos para o chá Mefistófeles e Pilatos Com as duas santas putas da Judeia; Isaías lavava os pratos, Moisés coçava os pés, Pelas cabras roçava o seu cio Salomé. Só Jonas rezava no ventre da baleia Acabadinha de encalhar num wadi de areia. Por sinal até Lançou o último esguicho Enquanto eu escrevia isto.

No deserto da Líbia, 19 de Fevereiro de 2008

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LES PARFUMS DES ÎLES BORROMÉES Para a Franca

Antes de se ver já o lago cheira A feno cortado à força de braços, A magnólias florindo à deriva da tarde, À virgindade perdida num pomar de planetas, Ao primeiro voo da borboleta, A sonhos pisados rosa e açafrão Que se acumulam nas veias do tempo, Àqueles vivos levados pela vida Que vivem bem vivos num coração.

Ponte Falmenta, 21 de Julho de 2010

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TEATRO DE EPIDAURO

Surge qual unha de divindade telúrica, fóssil de concha gigante, um consagrado recinto como as mãos do crente postas em oferenda com enxertos de arco-íris onde os homens se divertem a fazer de deuses e os deuses caem no chão mortos de riso.

Lisboa, 4 de Janeiro de 2013

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OS CANAIS DE AMESTERDÃO

Os canais de Amesterdão Não foram escavados para drenar Águas de pálpebras fechadas Nem para enxugar pauis Nem para servirem de espinha dorsal A rotas de navegação. Foram escavados à força de olhos azuis. Narram os arquivos civis Que foram escavados Entre a madrugada e a raiz Como voltas ondulantes dum colar Para que as negras barcaças Pudessem descarregar O açúcar, o gengibre, o aljôfar Mesmo à porta do empório Dos rubicundos armadores Sob as ordens de zelantes corretores Com seus olhos de contar às escuras Que por esse esforço se tornavam mais azuis. Mas dizem-me os velhos edifícios De têmporas agudas Que os canais foram escavados Entre os algarismos das marés e a raiz Só para que os barcos entrassem De roldão dentro dos quartos Numa engrenagem de mastros e gáveas, Roldanas, toldas num desacato, Rompendo a fazer ranger os soalhos, A emperrar as janelas ávidas De índias, de sal e de corais, A fazer gingar leitos e dosséis Para consolo de quem já não viaja mais Mas guarda de cor todas as ondas nos seus olhos azuis

Lisboa, 6 de Janeiro de 2013

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O GRANDE BUDA DE KAMAKURA

A chuva de Kamakura Com seus dedos esguios aduba O campo de meditação do Buda, Varre as folhas em redor, Apodrece a fruta, Favorecendo as minhocas; Os monges por recato não tossem nem se coçam. Quem dorme com budas Amanhece com pulgas. A chuva de Kamakura Unge as pálpebras do Buda E lava-lhe o rosto Com flanelas de magnólia. Teias de aranha reluzem Entre sebes de bagas carnudas; Os monges sacodem a chuva Com leques de azáleas. Quem dorme com budas Amanhece molhado. A chuva de Kamakura Tamborila ao de leve nos ombros, Nas mãos abertas do Buda. Os estames dos hibiscus Deixam cair seu pólen Em cálices de vento. Os monges descalçam-se E vão entre enxames de olhos Avançando jardim adentro. Quem dorme com budas Amanhece com as mãos sedentas

Lisboa, 8 de Janeiro de 2013

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PONTE COBERTA JAPONESA EM HOI-AN

Sobre um tal magro regato que flui entre baixas e arenosas mansas margens, onde bastaria uma fiada de calhaus para vadeá-lo ou umas poucas tábuas lançadas para cruzá-lo num carro puxado por búfalos, quiseram umas gentes do Japão, decerto mercadores aqui retidos à espera da monção, deixar obra que se visse de recolhimento e levedação (cerejeiras carregadas de salientes nuvens) Tinha de parecer ser uma ponte para que o povo do lugar não levantasse suspeitas de aí haver bruxedos, desses que envenenam as águas e fazem as mulheres perder o leite. Nada na sua aparência devia ser excepcional, nem uso de sândalo ou mármore ou jade ou porcelana que fosse da mais barata com relevos coloridos não se desse o caso…

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Devia ser mais pequena que um armário do barroco veneziano debruado de vénias e curvas, não maior que um altar portátil daqueles com que os missionários andam pelos Andes. Bastaram uns oito apoios de pedra a suster o desenho fresco dum túnel encurvado, aberto só do lado do meio-dia, (um pódio, um pálio, um laivo carregado de nuvens) sob um telhado arrebitado para picar e espavorir os espíritos mais contrários. Bastou acrescentar os ornamentos depois: o dragão, a cobra, a fénix, o macaco… Tinha de parecer uma ponte, pouco mais que uma sombra com medo de cair à água, cor de ostra com reflexos de rosa e goiaba ténues onde incensos ardessem carregados de nuvens depois de apagadas todas as luzes. Desde que o último japonês partiu há centenas de anos só ficou o que sempre pareceu ser: uma ponte - por cima, os homens passam, correm, uns rezam, outros dormem, há quem esmole, há quem venda, saltam as crianças e riem; alguém a um canto salmodia, um velho acocorado adivinha o tempo com lances de conchas e ossos ou pelo gosto da brisa que lhe chega do mar; por baixo, peixes verdes ardem como fósforos intermitentes assim que a noite cai e as rãs copulam frenéticas de repente antes que se afoguem em luar.

Lisboa, 9 de Janeiro de 2013

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PALÁCIO DO BELVEDERE EM VIENA

Ah o Império, o Império Que torna nosso (E submisso) Tudo o que existe para além-fronteiras! O Príncipe sempre fez alarde Do seu título savoiardo E só dizia palavrões em francês – educado que fora na corte do Grande Luís – Como só rezava em latim, As outras línguas guardava-as Para outros diálogos: do coração e dos quadris.

A glória, extirpou-a ele de turcos e húngaros, de croatas altos, dois metros, de piemonteses cabeludos, de batávios taurinos e labregos aquiescentes ou rebelados, de peito nu, cruzando espadas, uma vez caídas as rendas, as meias, afrouxadas as fivelas, as correias, só fome de homens por perto, a linfa desde o fundo dos sonhos gritando aide-de-camp! À moi, lieu-tenant!

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Com toda a Viena a seus pés, Ainda jovem, Já príncipe e agraciado, Carregado de honras e mercês, Mandou construir um palácio duplo, Bifrontal, Um para o Inverno, outro estival, Destinado só a partidas de cartas, A jogos de esgrima logo pela manhã de janelas abertas e bailes en masque, Tão extravagante Que nem mesmo em Istambul existisse algo semelhante Nem Granada tivesse visto, nem as Arábias.

Numa ascensão hiperbólica De terraços e vidraças

Quase nem respira Castelo de cartas napolitanas Esmerilado, Reluz e retine, Lembra um serviço de altos copos Do mais duro cristal da Boémia Com bordos trabalhados a ouro e cobre Onde azul e verde se contendem Como a luz de planetas remotos, Tinindo e reluzindo Sobre uma vasta bandeja Brasonada, curvilínea, De alabastro solar, decerto transalpino. Ah o Império, o Império Era uma orvalhada De fanfarras e vértices.

Caxias, 10 de Janeiro de 2013

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CATEDRAL DE AMALFI

O conceito de princípio deriva do Partenon, do Capitólio de Roma: com o mais sagrado dos templos no topo da colina, cabeça da Pólis, da Plebe, das Promessas doridas de incenso. Mas aqui não tínhamos colina. Houve que cortar na escarpa, entre oliveiras e limoais, um pódio ao mesmo tempo ombro e útero da basílica, não tão alto que a subida desmotivasse, tão-só quanto bastasse para impor sujeição a penitentes e majestade cenográfica. Mas aqui também não havia arquitectos nem escolas de risco e esquadro – éramos uma chusma mais dada a assaltos no alto mar que em terra a estudos e cálculos. Houve então que ir buscar aos árabes e sacar dos bizantinos; aos normandos e sículos foi preciso pagar porque são mais finos.

De nosso só impusemos que a fachada espelhasse as ondas que nos calçam os pés e abraçam a cintura com a sua virgulação e cristas revelada nas arcadas sucessivas prenhes de ogivas e colunelos de espuma, bicolor como a alvorada na praia dum tabuleiro de xadrez: – os peões são os barcos, os cavalos as velas, as torres os escolhos, os bispos para rezar na nossa vez; dispensamos o rei, ou não fôssemos uma república, e rainhas que se derrubem temos até de mais nos jardins de buxo, entre repuxos e canteiros, nos haréns que se escondem na cabeça de cada marinheiro

Lisboa, 14 de Janeiro de 2013

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HERMES DE PRAXÍSTELES

Não só os olhos, mas todo eu da tua presença me enche, ponderosa e varonil e… eu acreditarei. Como o sol que enche o céu todo de radiosas núpcias no pino do meio-dia e… eu acreditarei. As minhas costas semeia de vergões ardentes da tua barba por nascer e eu de gáudio gemerei. Nas minhas coxas desmancha os anéis do teu cabelo densos de luas e de marés e eu estremecerei. Do fragor das tuas nádegas, da audácia dos teus joelhos, dos teus açudes de musgo me enche a boca. Excede com teus beijos as medidas do meu peito em marcha lenta e eu estremecerei. Molda as minhas mãos aos ecos convexos dos teus testículos e ombros em oferenda e eu acreditarei. O meu nome desenterra da tua boca cheia em sílabas de lei e eu acreditarei nos deuses. Criados pelos homens para seu eterno consolo e anseio já que os verdadeiros e mais efémeros escaparam há muito por uma porta entreaberta e mal guardada.

Lisboa, 16 de Janeiro de 2013

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CRYSTAL CATHEDRAL Los Angeles

Depois da Contra-Reforma os interiores das igrejas católicas entrevaram-se de nimbos carregados de coriscos e castigos, entravaram-se nas faixas dos dogmas mumificados em miopia de mirra e cânfora, encenaram um travejamento de revolutas franjas sombrios êxtases de esfoladuras amputações instrumentos de tortura e de ofício: galhetas, cálices, cilícios, trepanações das medulas que esguicham sobre os veludos sensuais salvífico sangue gosma esmegma nos sudários roxos, na varonia das sandálias em mancebia com a sola dos pés, nas sotainas que nunca se escovam por completo de peidos e pentelhos.

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Enquanto as igrejas das seitas protestantes se foram desnudando de altares e toalhas de hissopes e santos padroeiros com palmas e grilhetas, das cáries dos dentes e fungos nas unhas e sebo velho no cu, se foram ensaboando: cheiram menos a belzebu e mais a aurora boreal e loção de barba de mentol com sobressaltos de clorofila, se foram alijando com transparências húmidas de dúvidas de aluguer, com palafitas de vidro e fumarolas de gelo seco, despersuadindo-se do tu es Petrus et super hanc petram… não mais hóstias aplicadas no sarro das línguas; declaram-se mais propícias à renovada busca do graal que seja de ozono cósmico ou de barro metafísico dos últimos dias, mais propínquas aos assets transversais à transubstanciação dos blogs das rosas e dos lírios

até que chegamos a ti e o templo voga dentro e fora do meu peito cambaleando na alcoolização da luz, descimbrando as abóbadas empíreas descintando contrafortes, platibandas e arcanjos num descenso luminoso de feixes baptismais a riscar o arrepio intraduzível - prepúcio de luz no olho do tigre; caminhamos proclinados e nus dentro do prisma óptico e somos nós o raio fulmíneo refractado e o néctar sublime dos deslumbrados; com a ponta dos dedos tocamos as cornijas e as trompetes que o sol filtra, os acrotérios que cinzela e se esfacelam contra os nossos joelhos para se reflectirem voando em todas as direcções do céu.

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(Só os pecados que as sustêm São os mesmos Concordantes sem remissão: Exploração do medo E prática de crendice, Conluio e manipulação, Denúncia e opróbrio, Bastardia e simonia Caça ao dízimo, Caça ao livre pensamento - talvez um pouco melhor as cantorias - talvez um pouco menos de pedofilia.)

* Em 7 de Julho de 2011, a igreja protestante, afundada em dívidas, foi vendida à igreja católica (diocese de Orange, L.A.) por 57 milhões de dólares, causando grande embaraço no Vaticano por causa da sua arquitectura contrária às disposições litúrgicas do Catolicismo.

Lisboa, 22 de Janeiro de 2013

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PALÁCIO BORROMEO E JARDINS Poema infantil Para a Frederica

Era uma vez um Conde, Vitaliano de nome, Que tinha um gato mágico De olhos grandes cor de lago Que discorria com o dono Das ciências e das artes, Se bem que a poesia fosse O seu tema predilecto, Línguas falava bem sete E até comia com garfo. Tinha-lhe o conde grande afecto Escutando seus pareceres Levando-o para toda a parte. Mas veio o dia aziago – uma autêntica loucura – Em que armaram zaragata Por insanável disputa : Mui douto afirmava o gato Ser a poesia suprema A todas as demais artes Ficando no outro extremo A vulgar geometria. A razão do que dizia Era despeito e ciúme Por dos versos que compunha Fazer pouco caso o Conde Que pendia para os números. Beleza imaterial Era a de todos os versos Que um leve vento derruba Ou velho pó os consome, Enquanto só fazendo uso De geométricos cálculos, Rebatia Vitaliano, Ele faria um poema Em que caberia o vasto Mundo, mais que a Odisseia Seria uma epopeia Concreta e habitável.

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Ali foi feita a aposta Dum valor que ninguém soube E ao bichano ainda coube Poder escolher o local. Não havia em todo o lago Ilhéu mais triste e sem graça Que este que o gato indicou, Tão plano e desabrigado Era um campo de ervas bravas, Muitos juncos e cascalho. Não perdeu razão nem ânimo O conde Vitaliano E atirou-se ao trabalho: Ali onde era um seixal Se escavaram alicerces Para um palácio erguer, Digna morada de Euterpe, São as portas e paredes Decassílabos heróicos, Que às janelas se declamam; Ali que era um lamaçal, Está cescendo uma pirâmide Toda truncada em socalcos Entre madrugadas de éclogas E lajes de branco mármore, Que se encherá de húmus grego – Et in Arcadia ego – E por todo o lado nascem, E crescem fossados, grutas, Escadarias, balaústres De entre um matagal de pás, Picaretas e roldanas, Tábuas, capitéis e fustes…

Quanto mais a obra avançava, Mais o gato definhava Numa rociada de febres Ao ver o seu caro Conde Deambular, falar. rir Com botânicos de lupa, Pedreiros analfabetos, Improváveis jardineiros Com relatos de aventuras Impressos no tronco nu, Mestres-de-obras sem perruca A quem o conde escuta, Ordena, olha e sorri.

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Calcularam-se solstícios E teores de potássio Que pudessem influir Na floração das estrofes Na raiz e eco das rimas. Transplantaram-se primeiro Generosos castanheiros Dos montes daqui vizinhos, Faias, olaias e zimbros. A seguir grandes magnólias As perenes e as caducas, Jasmim de Ceilão e arruda; Mandaram-se vir da Escócia Urze, da Alsácia as tílias, Medronheiros da Sardenha, Limoeiros da Sicília E mil rosas de Isfaã; Um pino do Palatino, Oferta dum cardeal, E dos padres jesuítas As bromélias do Brasil E malvas de Socotrá; Três palmeiras das Antilhas Mais as de leque e anãs, Da Síria os pés de romã Por pouco não os matou A geada da manhã; Nos tanques boiam os lótus Mais os papiros azuis Colhidos na foz do Nilo E, dos vasos, em cascata Tombam cachos de glicínias, Petúnias, chuva de prata… Enfim chegou o fatal Dia por todos esperado Da visita inaugural. Não poupou em nada o conde Ao convidar seus parentes Próximos e mais distantes, Toda a nobreza do Piemonte E o clero da região, O governador espanhol Escoltado desde Milão, Mais o núncio apostólico Que ainda é primo do pontífice, Todos com trato de príncipe. Houve baile com lanternas Chinesas pela noite dentro, Nas águas luzem as barcas, No céu fogo-de-artifício.

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Só do gato nem indício. Mandou o conde chamá-lo Para cobrar sua aposta Para gozar o seu gosto. Procurou-se pelos telhados, Pelas caves, pelas grutas, Nos barcos, em terra firme, Por detrás dos cortinados, Sanefas e baldaquinos, Nos cestos da roupa suja, Na cozinha junto ao lume Sem do gato achar sinal. Dera conta dele o ciume, Um ar lhe dera sumiço Para nunca mais ser visto. Desde então, do conde, diz-se Que deu em ler poesia Baixinho e de olhar vago E que é a cor de que o gato Tinha os seus olhos mágicos Que tinge de mais azul Nalgumas tardes de Julho As águas mansas do lago.

Lisboa, 25 de Janeiro de 2013

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MOSTEIRO DE SANTA CATARINA NO SINAI Para a Maria Luísa

Cheguei exausto: a língua grossa, os lábios inchados, as pálpebras coladas… Deram-me água salobra, lavaram-me os olhos; deram-me uma cela que é um bojo de tonel - tem uma enxerga e uma manta de burel. Vou ter frio. Comemos azeitonas em salmoira e um guisado de favas apanhadas aqui no horto. - aqui já é Primavera; Não havia pão, a farinha escasseia e guardam-na para as hóstias… À noite um esgalho de tâmaras de casca ressequida… açúcar cortante em lascas e ângulos… O céu desanuviado e puro é uma lâmina apta a lancetar gânglios, aparar prepúcios sem verter gota de sangue.

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Lá fora alguma coisa se aproxima mansa a roçar a porta com dentes de lobo ou cancro afeitos a roer ossos e tutano…

Afinal conheço-o. Estremeço. Não sei se hoje faço anos… Talvez tenha sido um relâmpago?...

Lisboa, 25 de Janeiro de 2013

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SWELLENDAM (cidade colonial da África do Sul)

A Companhia ordena Os homens obedecem E até Deus, se não concorda, Finge que nada acontece.

Depois duma Holanda plana como o mar Depois dum mar chão como a Holanda Depois de ver o horizonte cair a pique em vómito, muco, pranto, Como calar no meu peito o prazer de percorrer colinas a valer com vales cavados, escarpas e regatos!?... Como sossegar no meu peito o arrepio de me embrenhar em bosques a valer onde homens feitos e avisados podem perder-se para sempre!?...

Partíramos do Cabo havia mais de uma semana com uma vintena de carros puxados por bois e muares rumando sempre a nordeste numa comprida ondulação de cabeças, cornos, chicotes garupas… Trazíamos alfaias domésticas: pratos, facas caldeiras, tesouras e agulhas, alfaias agrícolas, ferramentas: pregos, cordas machados, seis mosquetes e uma dúzia de barricas de pólvora.

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Em sacos da Companhia viajavam seladas as sementes (que mereciam mais cuidados que as gentes) e os mais que racionados mantimentos. Levantando grande pó e alarido, nos acompanhavam o gado algumas ovelhas e animais de capoeira que se guardavam para reprodução. Tudo era pertença da Companhia e teria de ser pago ou reembolsado com juros ou devolvido a dobrar. Nosso era só o ânimo, o suor, a sede de chegar, as dores de barriga, as noites mal dormidas sob um céu de estrelas frias e desconhecidas.

Os haveres pessoais eram tão íntimos que iam escondidos: Minha irmã trazia um espelhinho onde se mirava furtiva Ajeitando a touca e os cabelos que a poeira mais aloirava; Meu pai, sabia eu, que trazia como coisa clandestina Umas poucas garrafas de genebra usando a desculpa Que podiam servir para anestesia… Minha mãe uma camisa de dormir grossa de linho Com rendas belgas que dizia ser a do meu nascimento, Quando deveria querer dizer da minha concepção Se tal pensamento não lhe parecesse já pecaminoso E indigno dos seus sãos princípios. Eu tinha os bolsos cheios de terra e o peito de inquietude E as pernas a encherem-se-me de pêlos castanhos Tanto quanto cabia nos meus quinze anos.

Cada família possuía uma Bíblia Onde se aprendia a ler E a temer A vingança do Senhor Que ainda era pior Que a da Companhia Para com os faltosos Nas rendas, no peso, nos prazos. Eu gostava da história da escrava Ágar E fantasticava que eu era um rio Nocturno e macio Noivo prometido da torneada Lua. Ágar era a lua.

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Acompanhava-nos um guia e batedor Avaro de palavras, magro de corpo No qual se diria que todas as raças do mundo Haviam feito enxerto; O seu olhar era turvo E o seu holandês mais ainda Quando me falava dos grandes pântanos Que havia mais para diante Onde nadavam hipopótamos e pastavam elefantes.

Caía a tarde nas nossas costas e ergueu-se um vozear de graças sem sentido. Chegou-se! Ao princípio pensei que, se o guia que até aqui Nos trouxe Nos não traíra, Só podia ter sido a Companhia ou o diabo quem escolhera O local De tão ermo, agreste e inóspito; Ou então a mão de Deus, para nos pôr à prova.

Aqui levantámos casa, curral, cerrados, Aqui cavámos poços, regos e sepulturas E o que era terra brava em agro se converteu frutífero, e o que era torrão estéril em pasto avantajado de viço

Os nativos khoikhoi eram de pequena estatura, Friorentos e apreensivos Na sua indolência hirta de humilde sabedoria. Não conhecem a imposição da monogamia Nem a palavra de Deus – Nem me parece que isso lhes importe Redenção, expiação, castigo… Têm-nos servido com discreto nojo como sonâmbulos gatos na esperança que nos vamos embora por obra duma peste ou dalgum feitiço.

Mas para Companhia tudo é pouco E que mais se cobre logo ordena. Deus já não nos ouve Ora que se senta com eles à mesa. Os homens se rebelam, O colono desamparado se amotina.

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Foi quando acabei de colocar O soalho de tábuas compridas de encerar – com cera de alfazema – Que ela me faltou Depois de três semanas de insónia maligna. A casa continua a ser caiada, A cama está sempre feita de lavado, A cozinha arrumada. Tudo falta. Por mais que a casa esteja Abastada e prospere e do mais sobeje, Tudo falta Desde que ela de mim se foi.

Agora chegam novas de alarme, De que os ingleses já desembarcaram No Cabo E vêm para nos submeter e aniquilar De vez. Só peço, assim queira Deus, Que os soldados nos seus desmandos Não pisem os bolbos Que a minha mãe trouxe da Holanda Consigo numa bolsa Como moedas fossem, E dão túlipas amarelas de haste curta E pétalas abertas Que, quando com o vento dançam, Parecem borboletas Em voos rasteiros De deslumbre em deslumbre Desposando-se… E com as novas baionetas Não destruam o pomar de macieiras Plantado por nós dois: Com as mãos nuas escavava Eu a cova funda – ainda agora nas noites em que não durmo me cheiram a maçãs os calos –

E ela com os pés descalços Acomodava a árvore Calcando a terra boa em seu redor. – Ah meu Deus, meu Deus porque não quiseste, Por mal dos meus pecados, Que fossem também os seus pés A acomodar o meu sono Quando aos torrões for lançado? Lisboa, 30 de Janeiro de 2013

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EL DORADO Jangada Muísca (Museu do Ouro, Bogotá)

Um gorjal de dupla elipse todo de ouro Um peitoral de lâminas e guizos de ouro Umas caneleiras altas de ouro Umas joelheiras e coxotes de ouro quase roçam o sexo pequeno e castigado, Um toucado de plumas ornado de flores Os lábios revirados os dentes de ouro As narinas rinchando siringas insufladas As orelhas perfuradas tocando os ombros pelo carrego de brincos argolas de ónix e ouro amuletos de osso de espinhas, a pedra biliar dum jaguar…

Estás de pé, solto de amarras, no centro da jangada feita de canas douradas, ladeado por sacerdotes com archotes rituais e remadores estáticos. Dizem-te que és a estátua viva da divindade atraindo as bênçãos sobre ti, oferente, sobre ti, oferenda, Enquanto os sacerdotes entoam um cântico de pássaros com fígados de topázio tão pesados que caem nas águas, entoam um cântico de peixes voadores de guelras de orquídea que no ar se libram antes de cair desfolhando-se nas águas do lago.

São os teus olhos o que vês rolar nas tábuas da balsa, aos teus pés, com timbres de raiz e madrugada, São as tuas mãos decepadas as copas que despejam esmeraldas nas águas, As tuas unhas fundem-se em cadinhos e logo são escamas asas de abelhas esvoaçando entre poeirada de ouro e suores de virilhas, É o teu umbigo que se destrança

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59 e se distende à tua frente traçando um trilho do céu à terra. Os remadores com um grito imobilizam a barca no fulcro do fundo das águas do lago onde o plenilúnio faz seu nadir e ninho. Agora esfolam-te de todo o ouro caneleiras, narigueira, toucado sacro como se te arrancassem um longo escalpo em troféu. As faixas votivas que levam escritas com tinta de sangue os hieróglifos das preces, que te cingem a testa, os antebraços, o sexo, desatam-se de todo. Ficas nu. Não tarda te vestirá o lago com seu manto imensamente azul.

Lisboa, 2 de Fevereiro de 2013

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DAR AL HAJAR

Fosse um cogumelo de pedra enorme que tivesse brotado dum penedo depois duma chuvada mirífica… Fosse uma nave que duma estrela remota aqui houvesse aterrado acidentada por ter perdido a rota, por epidemia a bordo ou falta de combustível, Não seria mais portentoso que o portento mesmo de tão radical realidade que é este impacto de perpectivas dentro dum sistema de roldanas e alcatruzes que em silêncio se afinam e faíscam ali onde o deserto finge desfazer-se em partículas e microvogais de quartzo de gesso de ametista. E tu poeta, apanha as rimas que no vento do deserto viajam foragidas e friáveis, recolhe-as, agasalha-as do arrepio em pulverinho, sustém-nas, redime-as, rimas recíprocas, cruzadas em grinaldas de folhas e linfas vitais. deserto // desejo janela // joelho tâmaras // delíquios acácias // espáduas //

Do autor, dono e construtor, porém, sabemos quase tudo i.e. pouco mais que nada: nome, local de nascimento, filiação, a data da sua circuncisão,

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61 os cargos que ocupou, as mulheres que desflorou, conhecemos a sua assinatura caligrafada e em cursivo e até o nome de quem o assassinou.

Mas é a Casa do Rochedo o seu retrato mais íntimo e expressivo do homem que levava pedaços de lua debaixo da sua jelaba: pés cientes e firmes num corpo trovejante e espadaúdo, na cumeeira caracóis miúdos como ameias de conchas e nácar calcinado; joelhos varridos por mamilos, coxas a pique que emergem reverberando dos teocráticos panos, perto do umbigo, um oásis perverso de pêssegos e tâmaras; acácias acorrem às janelas com cortinados de correntes de ar e vidros coloridos de Damasco; o vento zune nas axilas, nos pêlos da nuca, nos alaúdes caídos nos tapetes que encenam falsas paisagens de prados e selvas, de sangue e línguas lambe-que-lambe lombo-que-cede cedo ou tarde à tua virilidade maciça de arestas coesas e abcissas suspensas, suspenso sopro do desejo de ser pedra e céu. Com celestial pontualidade, numa lenta e mansa devoção todos os dias a sua sombra verga-se para Meca – que Deus proteja e enalteça! – a tempo da oração da tarde.

Lisboa, 9 de Fevereiro de 2013

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DAMA DE ELCHE

Apesar dos bandoleros, toreros, pajeros, Cid Matamoros, Duns quantos Don Juan, Pizarros valientes, calientes y nobles Apesar do sol a rodos, dos touros, A Espanha é toda do sexo feminino A Espanha é mulher Sem tirar nem pôr. Os seus montes arredondam-se aromatizando-se de luas – ancas Os seus arroios ora rasos ora erguendo-se em enchentes – ventre Os suas searas e papoilas rodopiam num bamboleio de guizos – tornozelos Os seus perfumes de amêndoas, alperces e alecrim baloiçam na curva onde o pescoço pega a orelha és tu, dama de nariz exacto como a bonança, de olhos de longo fito lânguido de boca encrespada inaugurando a fala, diz-me como te chamas, tu dama de elaboradíssimos e ricos atavios, teia de fêmea que homem busca: viúva nova, virgem velha, sacerdotisa bruxa, vidente ou puta, diz-me o que te chama o teu homem quando te toma pela raiz com seu olho que vê às escuras, dama da raça original incontaminada de mouros e cristãos, de romanos e vândalos, – só algum cretense de túnica curta de mais para os seus atributos poderá talvez te ter iniciado no gosto dos cabelos encaracolados em canudos, no trilho das sombras e das uvas – diz-me como te chamas, dama de guarda à estirpe e à madrugada que range e fermenta, que levas tu no teu bojo cinzas caras, votos castos, arcanas oferendas? tu que nada carregas e tudo transferes quando tiras a grade ao fruto que tragaste em semente,

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dama limpa de estigmas, não Martirios, não Angustias nem Lolas não Remedios, não Mercedes nem Soles, ó devassidão dum nome mais que dum seio, diz-me como te chamas, revela-me esse nome enraizado na terra, devolve-me o sopro que ele encerra, descobre-me o teu seio de barro que me embebede me envenene me encaminhe no enigma do nome que me abrigue na eternidade que se amamenta do teu peito

Lisboa, 17 de Fevereiro de 2013

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PALÁCIO DA ONU em Nova Iorque

O Palácio da Paz é todo de cimento e vidro transparente com estremeções de pássaro; o Palácio da Paz não tem pregos nem farpas banidos como armas do seu corpo de lírio; Palácio que apresenta mãos ao céu levantadas, palmas unidas, quase em prece transparente aos orvalhos empíreos; ao Palácio da Paz não deram varandas, cornijas nem beirais e as pombas fazem ninho nos ombros dum rapaz suspenso a lavar vidros dos crisantos e fuligens, com asas de granizo. Mas Palácio dentro, mesmo se transparente por vontade dos homens, no cerne da semente lá rebenta o totem a suplantar a árvore, em que prosperam sempre do ódio e guerra as larvas.

Lisboa, 23 de Fevereiro de 2013

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NO FORTE VERMELHO DE AGRA

Às escâncaras, como no circunstante canteiro as túlipas, copulavam sentados no chão sobre tapetes de seda crua e almofadões do tamanho de dunas, à vista das garças voadoras e das afogueadas nuvens paradas de espanto; Como os peixes nos tanques de eriçadas barbatanas, copulavam no chão sentados ali no pátio interior, numa falcata de sombra acampados, no pavilhão em forma de barca com tolda de cobre e velas de fumo, sob a abóbada de pedra-pérola onde o ar quente como leite e denso, circula e ascende desde as costelas até à nuca até à cúpula onde luzem estrelas embutidas de aljôfar e pedrarias de Ceilão e Samatra com granizos de suores;

Com a elegância e exacta mesura com que desceriam do palanquim no intervalo duma caçada para uma merenda numa clareira atapetada de sombra no meio do capim, copulavam sentados no chão do jardim sob um dossel de asas de apsaras e vertigens de gáveas com desempenhos de leque, ali num vedado de tules brancos esvoaçantes com brado pregueados de poente; Num canto, pouco recuado, escravas tangedoras da Pérsia, de Orissa, da Circássia,

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tocavam pandeiros, flautas, tambores e campainhas, mais para abafar incastos ruídos com vocativos favos de crepúsculo nas dilatadas pupilas que para prever ou retardar ápices de vulvas ou glandes com consistência de laringes; Nenhum homem nem eunuco tinha acesso ao recinto – atrás das pesadas portas vigilavam os guardas, pacientavam ministros e validos – só algum rapaz pré-púbere a quem cabia assitir o seu senhor no labirinto dos botões e faixas ou interpretar um gesto de quem todos os silêncios têm sentido; Ao alcance dum gesto, travessas com mangas descascadas e talhadas de melancia sem pevides, ao alcance dos dedos, as almotolias de óleos emolientes de cravinho e cardamomo, as ampolas de óleos odorosos extraídos de doces rosas e de árduas rimas, ao alcance da língua, das estrelas todas em cascata a cocção de fermentos e enzimas.

Ele ostenta na rampa da sua perfeita intenção a nítida clivagem da sua circuncisão, qual lamparina de rubis sem mais abrigo que o silogismo da sua compacta fertilidade que se acentua tónica e fosfórica no seu turbante inchado de dobras e voltas sem costuras senão o gotejar de pedras e diamantes gota a gota conta a conta com valências de fronde carregada de frutos ofuscantes, clorídricos; ao pescoço, um enxame de pólens de pérolas, chicotes zurzindo o peito em franjas esfaceladas sensitivas;

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Ostenta barba e trá-la aparada em diafragma meridiana debruçada e petulante de virilidade, os cabelos repuxados são reféns do seu turbante numa simbiose de arame com grades de sede, os pêlos do peito e púbis mandou-os desbastar em caligrafias de chuva quedando-se uma bruma rasteira e escura de quando a monção está para acabar.

Ela é o braseiro entre a borrasca e o ninho de sangue ou quase que irradia por salivados vaus como coisa húmida, úbere, argênteas empenas no quebrar-se do pecíolo de folha quando se agarra à própria sombra com gritos ovais, essências do seu alambique cónico; Papoilas coaguladas tingiram-lhe mãos e pés com os seus beijos precipitados e arranhões de tigres; No cabelo leva fiadas de rosadas pérolas, no nariz pérolas miudinhas em argolas e nas orelhas tilintando; outras enfiadas no fio infinito do desejo titilam o nenúfar de anil arreigado no fundo do ventre nos fundos incoercíveis ventosas, ventríloquos, recifes, pérolas grandes como amoras; Dentro das suas coxas já as pérolas dele, brancas, soltas se derramam encostando-se à aurora.

Lisboa, 26 de Fevereiro de 2013

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SARCÓFAGO DOS ESPOSOS (Museu Etrusco de Villa Giulia, em Roma)

Deles, os romanos diziam que eram maus soldados, Como marinheiros uma nulidade, Falsos como os Fenícios, – Enguias insubmissas; Gabavam-lhes os méritos como médicos, áugures E adivinhos. Nunca partiram à descoberta do mundo nem das ilhas, Não quiseram conquistar a Península, Nem raptavam por hábito mulheres ou trigo Dos vizinhos. Julgavam viver na cerca dum primordial paraíso: A terra tremia pouco, os dragões extintos, O mar pescoso, os rios modestos mas sensatos, Os montes frondosos e os vales generosos e macios Como o ventre das suas mulheres que só requeriam Um dobrar da espinha E umas sementes bem servidas de suor. Alimentavam-se de azeitonas, feijões e favas E duma broa cozida com azeite e ervas ácidas. Ah sim, e bebiam vinho Destemperado com mel ou macerado com bagas De amora e de zimbro. Talvez não quisessem ser mais que hortelões Hospedando as estações na eira e no curral No meio dos bichos: – a mosca pica o gado, o cavalo rapa a relva, o galo engole a larva, o verme é omnívoro, nas traseiras do quintal o sol ri, as crianças gritam – Capazes de fecundar as flores com os próprios dedos Caso abelhas e besouros não se aguentassem no ar De tanto pólen carregado nas patas, nas asas… Usavam uma escrita tão inextricável Que os tornou habilitados a ler o futuro nos fígados Das águias e nos círculos dos voos dos pombos Ou nos olhos cegos dos meninos. Não acreditavam na vida eterna no seio dos deuses, Cuja companhia evitavam e temiam, Mas sim no seio da família que manteria a sua memória Viva com preces, lumes e oferendas em sua honra, Em troca da protecção que do além paternal lhes adviria, Numa ininterrupta cadeia: linha, nó, anilha De filho para filho, para filho, para filho… Num convivial banquete de perene chegada E despedida.

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Estão ambos reclinados num kline almofadado, Os bustos soerguidos Amparando-se um ao outro: ele de tronco nu, Músculos e mamilos bem definidos, Os cabelos compridos Caindo para trás em canudos, A barba erecta, pontiaguda e curta, os pés descalços Numa bonomia jucunda, pausada e viril; Ela traz um gorro bordado sobre um penteado De madeixas brunidas, entrançadas, Veste uma longa túnica com friso na bainha Deixando a descoberto o luxo Dos sapatinhos de pontas recurvas em bico. O pulso dele repousa no ombro dela Ou é o ombro dela que se apoia no contraforte Do braço levantado do marido? Esse braço masculino quase não-amplexo Refreia a carícia ou confiante concita-a Por trilhos quase-fíbulas a nós desconhecidos? Que seguravam suas mãos no gesto suspensas Benevolentes, para nós quase não-estendidas? Âmpolas de perfumes encantatórios? Taças de vinho para libação propiciatória Dando início ao banquete, para eles talvez o último? Ou somente o aceno em que os dedos fagueiros Também sorriem Abrindo-se num convite para que os acompanhemos Sem receio neste festim, Para nós o primeiro?

Lisboa, 3 de Março de 2013

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LA SAINTE CHAPELLE em Paris P or ém não nos é dado saber porque a folha se rebele em acuminado aço, espinhaço à caça de sangue cingindo crostas colchas púrpuras, cunha quase osmose vulnerária quase sangrenta unção porque fosse eleita no no martírio feri-lo e prenhe de sal a coroá-lo. Único dado de facto, a transacção do seu simulacro por 135.000 libras pagas ao imperador de Constantinopla por esses espinhos, pérolas de arestas, âmbar, lágrimas, mudas testemunhas do seu último hálito índigo ICHTYS; ICHTYS, trazidas para a Paris de São Luís. Do que alegadamente roçou e lambeu os cabelos do ungido o não poder haver legítimo dono, do que não tem soberano, impôs que só existisse guardião venerante ou lavrador de nuvens em fuga de infinito. Que logo se pensasse num escrínio rectangular, um cofre transparente era senão óbvio que à espinhosa grinalda desse custódia, mas necessário foi por três vezes centuplicar a escala para acomodar seu esplendor de aurora boreal, coroa com vocação de arado celestial. Lavrou-se um santuário sem fachada nem transepto nem portal, sem chave nem fecho, um molde de empenas sem paredes, quase se erguera o dedo e o olho da providência que se sustenta de ar, fé e vidro para sempre em equilíbrio insone. Contudo o altíssimo fraseado dos pilares malevolamente cinzentos, de tão exiles parecem alegorias da peste e o seu olhar turvo segue-nos com retumbância de meteorito que espera dissimular-se em fronde escura. Paredes, sim, múltiplas só de luz refractada irrefreável em refrega recalcitrante a refrondescer em âmbitos de amplos andores. Luz que se acasala aos teus olhos com a luxúria hipnótica da cascata que vai d e s a g u a r : na bacia lava-pés na púcara meio cheia de quinta-feira-santa; do vinho da última ceia; na travessa com a cabeça no poço de Samaria do baptista fumegante; contaminado de coliformes na barca das onze mil virgens fecais em simbiose com trezentos marinheiros hemotórax de hititas descalços a bordo hicsos, israelitas; umas vezes descendo o Reno no kit de crucificação outras vezes sobe-o; de tamanho único nos três cornifornicadores cruz de montar do melhor cedro guindados a heróis do amor 3 cravos de ferro sem artrite, - David de longos caracóis as 3 negações de Pedro, cobiça Betsabé na cama, as 3 lágrimas de João Lancelote armado só de si mais as três Marias esperando a rainha escondido à beira dum chilique; no jardim das damas, na fuga para o Egipto Tristão de joelhos tomando o menino durante 7 semanas das mãos de Isolda o filtro só mijou água de malvas de ervas da Irlanda; colorindo de roxo as fraldas

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71 na estrada de Damasco atrás de uma moita de murta divisa-se peremptória a cabeça de São Paulo inclinado a converter um efebo de cabelo curto; damas de longas tranças e mangas e bainhas de arminho bordam aliciamentos e causeries d’esprit diante de avarandados pajens em que nova barba se debruça e os pés latejam apertados em escarpins verdes de camurça; nos palácios submersos com seus torreões de nácar orlados de ameias douradas cantam a compasso de algas sereias cantadeiras e mancebos empunham seus instrumentos com tremores de pénétration pacifique boca-a-boca como peixes eléctricos donde escapam bolhas de alambique; dois domingos de ramos passeiam pelo bazar de Jerusalém com suas palmas em hosana suas palmilhas rotas e calos, chagas de estrebaria de psicodrama e hálitos mornos de cebola; um estilita sem olhos nem dentes profetiza abismos ardentes labirintos, cadeiras de rodas que se dobram e desdobram, fornos crematórios vistos do interior trovoadas de amianto e albedo…

e deixando um rasto de novas tamareiras nos oásis e rãs enamoradas da lua nos canaviais confinantes; Um São Jorge fogoso montando sem sela nem estribos no encalço da virgem, que vai deixar de sê-lo, no meio dos gritos de incitamento e baforadas de jubiloso fumo do dragão que afinal tem coração complacente de alcaiote; um rei pouco dado a mulheres de corpo frágil como vidro legisla por silogismos contra os hereges sentado diante dos cortesãos na celha do banho buscando alívio para as dores da gota representadas pelas constelações do aquário e do cisne; das hóstias menstruadas escorre o sangue para dois painéis mais abaixo onde a mulher adúltera que escapou à lapidação se contorce numa crise de glicémia desprendendo-se de equimoses como as árvores das folhas; a mesma turba de judeus e zelotas continua clamar na praça por barrabás, engels, marx maos de 68 mutatis mutantis…

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72 Frisos mutilantes quase lâminas, de flores de lis, descamisadas glandes corações em chamas, bolotas, besantes, espigas de ouro, copas, aspas intersectam faixas de gorjeios de grifos, crinas de unicórnios, hastilhas e garras de salamandra interceptam versículos e parábolas, acrónimos inscritos em cartilhas cartazes, pergamenas, cártulas, dísticos, garatujas góticas gregas latinas movendo-se na aceleração da luz através de losangos de vidro com a fluidez serpentina da areia na matemática do tempo, do acaso, da sorte, às costas do sol numa língua coreografada já fóssil entre vidraças tésseras e grampos como nós à espera da epifania do instante.

Lisboa, 17 de Março de 2013

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O DAVID de Michelangelo

Tua nudez é o teu heroísmo completa de todos os gestos que hão-de vir enformados ainda nos teus músculos, completa de todos teus desejos aduzidos e suspensos aflorando nas pregas dos teus lábios, pálpebras prepúcio;

É a tua nudez que incide e faísca no sobrolho oblíquo de ira da tua testa franzida entretecida ainda dum verdor adolescente numa embriaguez de faunos e flautas carregada de sussurros do louro inflexível da manhã;

A tua nudez veste-se do som da verdade hirta de sombra e luz lavrada, trovão sibilino de carícias com algo de terrível de tangível: confissão do destino no fio do arado.

De quem é esse corpo que engrandeces e reguardas, marmórea armadura de parada? (de quem) a alacridade da crineira juvenil, a insubmissão arreitada dos mamilos, a exterioridade terrena e sensitiva asserida nos testículos, a visibilidade relampejante das veias emblema do ímpeto do pulsar da paisagem do teu agir nos túrgidos cachos pendentes do ventre viril?

A tua nudez lança arcos sobre praças a prumo pódios sobre pódios através de feixes e cones de claridade colmatando abismos e palatos, impregnada pelo desejo de ser penetrada como a língua pela palavra como a casa pelo seu dono e o pescoço mais alvo pela voz mais alta;

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Irrevogáveis são os teus gritos de luz que atroam nos nossos olhares, Irrefreáveis são os ecos dos teus olhos que nos dedilham um cantar, Insondáveis as profundezas do céu que uma só das tuas mãos é capaz de conter feita fogosa trémula pedra. A tua nudez é o alvo e o início que aquartela a tua sina inadulterada de encandear os homens libertando estrelas numa torsão do pescoço um fremir do lábio a tensão dum dedo em cuja inviável respiração respiro concedendo-me a graça de esperar que me resgates da matemática do tempo do sulco da nuvem lívida do eclipse.

Lisboa, 9 de Junho de 2013

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O TEMPLO DE KARNAK EM LUXOR

Estes pés latejantes deslumbrados do caminho que ainda agora à beira-Nilo, – contador do tempo – senhor de prodígios e bálsamos – deixo lamber e afagar na intimidade dos postigos pelas sua águas limaçosas cor de malaquite, um dia serão, perdidos o dom do tacto e a lei do sangue a rebate, cingidos, nus e rígidos, em rolos de gaze de perfumes indizíveis à sombra caída do trovão. Mas pra onde irá a minh’alma? Da minh’alma que lhe farão?

Estes braços de que me orgulho que ainda ontem no mergulho ritual no Lago Sagrado pareciam comandar hordas de ondas reclusas entre mil colunas castigadas, fendendo presságios das esferas, as mãos em concha inscrevendo às braçadas gotejantes hieróglifos de sonho, um dia não serão mais que inúteis remos, varais cruzados, enfaixados, encaixotada bagagem no séquito da viagem da deusa coroada de sol e com a lua entre as pernas. Mas pra onde irá a minh’alma? Quem a defenderá, senão tu, das penas eternas?

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Estas vísceras que moldam a fogo, geram e destilam força, desejo, inveja, amor, em breve viscosas e frias, serão depostas em vasos selados de alabastro, longe do cheiro da vida, à guarda da deusa de asas de escamas e andar de estrela. Mas pra onde irá A minh’alma? Que farão com ela?

Sim, guardarão estas unhas, cabelos, dentes, ossos, esta pele tão frágil e ténue com que te acendo o peito, com que este estilete empunho, e as próprias estrelas roço, depois de encerada a preceito, amidada e estirada, numa cripta da deusa hermafrodita com três seios e seis testículos, encerrada em câmara escura entre cânticos e benzeduras à espera da chamada do céu. Mas minh’alma Pra onde irá… À tua procura Como agora eu?

Caxias, 2 de Setembro de 2013

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DIANTE DO BUSTO DE NEFERTITI

Nunca os meus dedos roçarão suas orelhas – nem que fossem transparentes, Nunca os meus lábios tomarão o gosto dos seus – nem que o sol os mascarasse, Nunca será o meu bafo a amparar a vertigem do seu pescoço – equilíbrio dos astros. Acontece que sinto a sua respiração ainda nas costas da minha mão em ferida. Nunca me serão dados a ver os seus dentes, a flor da sua língua, os seus cabelos em contenda com a noite pela posse da escuridão. Acontece que o perfume deles ainda reverdece como frases completas no meu céu da boca. Nunca me dirigirá olhar nem fala, sou menos que o luar caído no chão para adornar suas sandálias. Mas pode acontecer – assim eu imploro a Ísis, deusa maior, que rege o espírito das mulheres e submete a carne dos homens – que um dia, acesa de raiva e de furor, lance mão do seu chicote de hipopótamo e, diante das escravas assustadas e dos guardas que já me despem e a seus pés me arrojam, com seu braço dispensador de raios, de vida e de dor, me açoite com mão fulminosa e pesada de desprezo pela suspeita que só no ar retine que eu possa, indigno, por ela – sublime entre as sublimes – viver a morrer a suspirar de amor.

Caxias, 4 de Janeiro de 2014

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CATEDRAL DE ORVIETO

No mais enregelado fundo da tua cripta é – ali onde se toca a pedra vulcânica e negra e se raspa nas sementes arrecadadas pelos etruscos – é onde encafuas do teu pecado original a roupa suja, porque de nódoas se trata e de grumos de relâmpago do incoerente, retorcido, tórrido relato agitado de esquinas, retinto de sexta-feira de rins arroxeados de flagelos e jejuns, dum esmaniado peregrino corroído por córregos de sebo e tresmalhados becos a derribar a garganta. “Emulando o desmaio duma alvorada de maio o corpo de cristo amanhecera menstruado por subtil alquimia na bainha do saio dum frade do norte do Danúbio e o pouco dilúvio, o pouco lustre ázimo entesoara-lhe os pêlos das virilhas, as narinas a ranger diante do cheiro ácido a peixe e a gerânios agrilhoados nos postigos, os ouvidos esvaídos pelos descomedidos relinchos na nuca madura das nuvens” E logo com vozes de alevante e as sanções de rito, com breves e bulas em cursivo latino cheias de maiúsculas com janelões de vidro, se gritou por toda a cristandade e mais além: Milagre, Milagre da transubstanciação do altíssimo não em esperma borbulhante das origens, não em vagem seminífera de espanto, mas neste vampírico limaçoso ineliminável mênstruo, destilado de megálio e basilisco. Surrexit surrexit! in te Domine, speravi. Do frade de fé friável e muco vocativo de sangue não rezam mais as crónicas nem da hóstia resta fóssil – o mais certo é ter sido recluso in partibus para não espalhar mais patranhas de rastilho de cabeceira.

Do papa foi sua a hora, seu o regozijo do sangue sublimado entre coágulos, hinos e corolas de papoilas ao erguer um santuário de indulgentia plena quando já escasseavam tíbias e as aparas do santo lenho eram assíduas como urtigas e dormideiras.

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79 Quem menos gostou do milagre foram os burgueses de Orvieto e os camponeses dos arredores que só pelo cheiro reconheciam o sangue das raposas do das raparigas nas suas válvulas, o sangue do azevinho, dos maracotões e marascas, e não desejavam mais milagres que a chuva de março e o cio daas vacas. – pois por cada pé-direito da nave foi uma mão esmagada, cada gárgula deu de fruto hérnias e tísicas, cada arcobotante nova derrama no trigo, cada colunelo nova taxa na alfândega, cada pináculo um bradar-a-deus de atropelos.

Contudo hoje chego a ti no rasto dos meus dias, numa incursão na faixa de ultrapassagem, meu ombro não toca tua sombra, meu olhar não descortina teu caminho. Flabelo petrificado na forja das nuvens, à chama das fogueiras dos cometas donde se extrai toda a dor do mármore com rosáceas de varizes e grinaldas de crepúsculos. Funde-se o gótico de cabeça para baixo com os cumes onde os anjos álgidos confabulam com as nuvens; Fundem-se o cinzel e o incenso nas vértebras nos lábios, nos dentes, nos testículos ao vento das estátuas; Funde-se a verbena de mosaicos e suspiros com o tear onde a lua geme em avalanches de amáveis pepitas de ouro e pirilampos incandescentes diante de Madonnas já não bizantinas com nariz de virago condutor de cáfilas, mas antes amolecidas ninfas com ancas de alaúde e panejamentos liliais.

Sob as tuas cúspides e arcarias se entrecruzam bordados de orvalhos e vagidos espelhando o meu serpentear espesso de vida, sob esse teu dossel exaltante de ogivas adubado de nichos e torpor alfombrado de meios-dias se estreita a minha vereda de arestas empoeirada e de dúvidas, se estreita o ambíguo céu e arroios com margens à deriva, estreito e mudo como um túmulo.

Caxias, 10 de Janeiro de 201

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IGREJA DA MEMÓRIA DO KAISER GUILHERME (Gedächtnis Kirche) Berlim

Se ainda hoje viro os olhos para o céu Só vejo – As verdes transparências fosfóricas do deslumbre e estrelas sem nome maléficas despenhando-se em fogo a me morder os ombros; um bando de anjos com as vestes em chamas e os cabelos com fugas de gás amarelo continuam a adejar suas asas marejadas de rosas e puas de nácar como desgovernadas birremes morcegos pterodáctilos; nuvens enviuvadas vindas a pé de Coventry e Volgogrado desfiando-se em gotas de cera de novo a me queimar os mamilos o queixo a córnea.

Quando ainda hoje baixo os olhos para o chão É só para procurar – o pó coado dos escombros do meu corpo: da cabeça fendida as moléculas rejeitadas, o mofo duma empena da abside e das nádegas, o nervo solto da raiz dum dente cariado, o verdete da unha dum ponteiro do relógio; sei que me amputaram as pernas mas ainda sinto o frio nos pés descalços a calcorrearem do transepto os mosaicos e as lajes desconexas.

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Se então olho em meu redor, que vejo? Uma prótese de madrugadas prismáticas, oito e sextavadas que me ampara, já perra meridiana na sua mecânica de vértices e solda, enxerto instável de quermesse; o crepitar estéril das solas dos passantes a levedar nas praças nas vidraças nos néons, o tactear da multidão incumbente ávida de assombrações futuras – dos tantos que passam só alguns me vêem alma adentro, dos que me vêem, poucos ou nenhuns me reconhecem e desses, todos prosseguem expeditos na sua metamorfose, ninguém se lembra.

Caxias, 13 de Janeiro de 2014

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AS TRÊS MADRASSAS DA PRAÇA REGISTAN em Samarcanda

Improvável trio de três talvez esfinges, todas esquadrias rectas e esquinas másculas, filhadas na fornalha do deserto, herdeiras de largos rebanhos e do sal, vestidas de mantos estampados e colares do pôr-do-sol em Marte; sem maridos nem prole vão incubando, apoiadas nos cotovelos, de frontes levantadas ao sol, num suado aparente letargo, pêssegos e presságios que homens ávidos de equivalente azul mordem confiantes de assim seduzirem e fecundarem com dente subtil tão indomável trio. Intrigante trio de três talvez mancebos em sossego castos medindo-se circuncisados, mas tenazes e acesos mirando-se nos reflexos submersos, nos equívocos e contrapontos do corpo, saídos de cuidadas abluções; não estão de guarda, mas de partida para longe que seus atavios com mantos e couros e seus alfanges em bainhas de aljôfar indiciam tanto como o halo na lua indica separação, pranto e cacimba; se porventura se beijarem ainda agora não se tocam mas nas suas testas fervilham enxames de campos eléctricos cujas tempestades se adensam se arquitectam prontas a ferir íngremes, indómitas a prumo.

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Impudente trio de talvez três actores duma cena de adultério imobilizados como mónita e exemplo; quase iguais na serena aparência enganam como respiram: na curva do falso abraço repimpa-se o modorrento marido, como trunfo sobre os naipes desabridos finge que dorme enquanto, frente a frente, o jovem amante, passando-se por prima da esposa, com o tinir de jóias, véus, pregas e folhos a lhe encobrir a aspereza dos pêlos, da voz e do desejo mais áspero ainda, eleva por ademanes de azulejos e faíscas seus palpitantes cumes do abismo diante da enamorada que lhe abre o peito esmaiando, mas transgride remetendo-se magnânima à lapidação para uma segunda vida.

(por pouco os arquitectos soviéticos e os comissários do povo não estragaram tudo com o acrescento de mármores e lajedos, canteiros de ressequidas rosas, tanques em cascata com repuxos… ali onde só deveriam enrolar-se turbantes e desenrolarem-se tapetes, onde a sede devesse guardar os mapas das fontes para não perder-se e à noite a areia da grande estepe viesse polir o vidrado dos minaretes, das paredes gastas e das cúpulas como que de afuseladas luas)

Caxias, 18 de Janeiro de 2014

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CEMITÉRIO MILITAR DE REDIPUGLIA (Gorizia)

Attilio. Luca. Marco. Pino. Antonio. Hermann. Salvatore. Amilcare. Giambattista. Gioacchino. Albrecht. Gaetano. Branko. Antenore. Angelo. Alvise. Alessandro. Anchise. Nove dias vinte e um anos e três meses (nada mais que sete mil setecentos e setenta e dois dias) eis quanto em média viveu cada um dos 100 187 que aqui jazem. Alinhados em fantasmagórica falange, avançando pelos cársicos clivos adentro, confundidos nos seus pequenos ossos, confundidos no grande grito de espanto, confundidos no derradeiro contubernal abraço, (nada mais que 277 vezes teve azo a lua cheia de burlona burilar de beijos as suas cabeças) Nada mais que 778 653 364 madrugadas e meios-dias e noites nunca saciadas, tantos quantos os prostrados cársicos clivos pardacentos engoliram a atulhar os seus esófagos, a restribar os seus côncavos antros como rapúncios radiculando por fendas e rancores de carcomidas acónitas entranhas. Ó amaríssimos campos onde só vingam e crescem plantas de intriga, cobiça e saque, como haveis podido acomodar no vosso já corroído ventre tanto suor, tanto sémen por casar, tanto olho fitando o susto, tanta mão sustendo as vísceras, tanto joelho desfeito em orvalho, sem haver daí tirado adubo até reverdecerdes em vértices verdíssimos de prados onde trevos reinam entre sussultos e terramotos de amoras, papoilas e alfazema!!!

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Interrogo em vão o mármore e o pórfiro (em vão Franz!, em vão Franco!, em vão Férenc!) ninguém me diz onde jaz então o desperdício de todos os anos-escuridão que deles ficaram por viver. Em que remoto e maligno astro se aloja? em que não astrologada carta dos céus se encontra? em que cometa mutilado arrastando dores azuis por pergulados périplos se entesoura a defraudada vida? – quiçá miríades de lamparinas a servir na combustão do ignoto núcleo de que pouco resquício, um pulverinho fusco como que anuncia tímidas auroras de sémen boreal estourando-me no mais fundo da nuca.

Caxias, 25 de Janeiro de 2014

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ROTHENBURG OB DER TAUBER

Sim, reconstruíram-te como há duzentos, há quinhentos anos numa estática candura mondada de suores e sonhos, mas não como te mostravas ainda ontem conjurada com larvas e trevas – como se Manfred e Werner nunca tivessem vivido aqui. Usaram contigo teutónica minúcia, desencantaram esquissos plantas e alçados da poeira dos velhos arquivos, socorreram-se de relatos de cercos e batalhas, de gravuras em livros de viagens, de anónimos desenhos descoloridos para erguerem uma elegia descontaminada de pranto e agonia – como se Heinz e Ilse nunca se tivessem beijado na cave do carvão paredes meias com a mercearia que ficava por trás da cadeia para não se verem nunca mais; um filho deles que não conheceu o pai ajudou a transportar areia num seu carrinho de mão onde à noite se recolhiam pássaros e piões e o selim sem préstimo duma velha bicicleta, talvez do pai. Escolheram as madeiras para os travejamentos com cuidados às nervuras aos nódulos e filamentos como o toque da hóstia na língua se derretendo, ora serrando, ora aplainando ora envernizando com ardorosos braços num descaramento dos músculos escalenos e cervicais de bulício másculo. Recuperaram as grades, as ferragens os ferrolhos, as lajes polidas do octógono do fontenário mas deixaram secar a cerejeira anã da frau Goldmeier prenda de casamento do seu marido Ebenazer, depois que uma manhã os enviaram para morrer longe daqui.

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Repavimentaram as calçadas com bandeirolas recrutadas nos enganos e mudanças de residência, alindaram as casas, empinaram as janelas e pinocos mais as altivas empenas enfunadas, reforçaram os arcos, os adarves e as ameias, transfiguraram os estuques em grinaldas de flor de canela, decalcaram pórticos, poses, medalhões da renascença transalpina, dóceis pescoços testas de louros cingidas. Mas onde ficavam as casas em que nasceram e cresceram e arderam em febre Werner e Manfred e se descobriram homens por alturas das sementeiras de abril pouco antes de os terem enviado para morrer longe daqui – como se nunca tivessem existido!?

Caxias, 26 de Janeiro de 2014

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CATEDRAL DE ESTRASBURGO

Com qual dos meus sentidos ou reminiscência inânime porquanto incisiva e nítida, por efeito de febre ou fragmentado indício de fugidio sonho vi-te ao lado da minha cama ajoelhada impendente e hirta?

Tão íntimo era o teu debruçar-te sobre mim que sentia o frio antigo da tua pedra a roçar-me o pescoço o rebordo da orelha (decerto foi isso o que me acordou), tão desproporcional o teu tamnaho à beira da cama que sentia o teu volume se expandindo pelo quarto como um gás de ogivas e elipses mal me deixando respirar (decerto foi isso que me acordou por instinto). Ali estava a tua cor rosada de vinho e canela de Ceilão, ali estava a húmida porosidade que nimba a tua fachada alojando-se-me nas palmas das mãos, ali estava o teu cheiro a tapete persa que mostra leoas a caçar gazelas entre rosas cobertas de pó e labaredas, ali estava o enflorar-se das tuas veias e flechas e o golpeado das tuas cimalhas e frestas, ali a miragem de palmas prismas e milagres sobrepovoadas de apóstolos e profetas, homens de fé precária e mulheres pecadoras sobre o prodígio das dálias…

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E diante da minha língua que vacilava a tua torrencial torre em trepes de luz e basalto, caudal ascensional de coruchéus, escadório atónito de lume e seda desenrolando-se aliciando-me convocando-me pronto a pegar em mim e me levar até ao céu, antes que o pouco eco da manhã diáfana de bilros e orvalhos me acordasse por completo com o meu amor a meu lado na mesma cama roncando de mansinho. Foi então que lhe tomei as costas lhe agarrei a mão válvulas abertas em ninho, solstício a acontecer áspero e fundo pelo seu corpo fora pedra toque da minha virilidade extensa no limiar da aurora.

Caxias, 2 de Fevereiro de 2014

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DIÁLOGO COM A ESTÁTUA JACENTE DO MAUSOLÉU DE FRANÇOYS I na Basílica de Saint-Denis, em Paris

o poeta – Que é feito da vossa camisa da mais fina seda de damasco com seus encaixes de arco-íris, com ombros planos e rasgados e mangas de pregas tufadas que quem vos via via as asas vivas de São Miguel arcanjo de espada à cinta passeando em conversa com os gerânios? Françoys – Deixei-a à viúva minha, Leonor, que viúva já vinha, se bem que mal desabrochada, quando a recebi, que dos Áustrias era a mais espanhola no enxofre que ardia negro nos seus olhos e a mais gélida de mãos e ancas. Só a tomava para puni-la pelo seu desprezo coroado de sílex farpado de urtiga; nunca teve mão que tocasse-me nem seio que me consentisse; deixava-a eu borrascoso, fria a ela, em ferida. Que a minha camisa lhe possa acalentar o altivo peito como não logrei eu em vida. o poeta – Onde perdestes vossas luvas que tendes frias as mãos nuas aqui onde sol não mais entra nesta viagem de penumbra? Françoys – Não deis por perdidas, mas dadas àquela gentil lavradeira dum matagal junto a Pavia que me acoitou, lobo bravio, manco, roto e foragido, e o sangue me esquentou e o brio, fosse ele pela sopa, pela boca do forno, ou pelo seu pescoço que cheirava a mulher depois de satisfeita: framboesas bravas e fermentados figos.

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91 As mamas roçavam a mesa a ganhar tempo para voarem para a grandíssima rosa aberta no meu peito ou ‘trás das orelhas, rolas tão brancas de deslumbre. Só as mãos, roxas de fadiga. Assim se quedaram num só dia naquele desolado vale minhas luvas e meu orgulho, este por desfavor dos céus, aquelas para que suas mãos guardassem de mim o perfume. Tivera eu para dar mais luvas e bem conquistara a Itália!, terra de ápices e vulcões, meninos-mendigos-cantores, arquitectos que são sibilas, refinadíssimos pintores, refinados paneleirões! Ai, mas as mulheres, senhores, nos seus rostos luzem pomares mais que mel e as estrelas doces, no ventre as veredas puras onde se vê claro às escuras; seu falar digno de sereias terrestres, ininteligível aos ouvidos, mas tão explícito a cada poro meu de pele. Ai tivera eu luvas mil!

o poeta – Dizei-me ora, Sire, que é do gorro orlado a pêlo de raposa, emplumado de íbis egípcia e fulgores de capitólio que como um viril diadema sempre ufano exibíeis tanto em privado como em público à laia de mote e emblema? Françoys – Perguntais-me vós pelo gorro, mas é dela que vos respondo que não houve outra mais mulher, mais culta dalila, mais dama, mais cerebral que um chanceler, mais sensual que uma odalisca do melhor harém otomano.

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92 Tinha pernas altas, redondas onde bem no cimo das coxas levava uma lua humana na qual se guardava escondido o que eu fora aos dezanove anos; espessas as pestanas azuis, vértices móveis de prodígios, mas nada a comparar com as mãos duma cor que não era pérola nem ouro de cuja poeira, fermento de ressurreição, ainda há esperança nos meus dedos, mãos capazes de primaveras ofegantes de feno vir moldar no meio dos meus cabelos, assim como feixes de flechas me germinavam no pescoço onde antes estivera o seu toque; mãos que ao me verem sem modéstia e com veloz lance certeiro me arrancavam gorro e penacho fazendo deles, para os mamilos escova, pente para as virilhas e para os meus suspiros, capacho, coxim para o embate do orgasmo ou toalha não poucas vezes… Suponho que como tesouro os guarda perto do ventre zelando as manchas indecentes. o poeta – Que sumiço destes então às vossas botas de campanha do mais macio cabedal reservado aos nobres de Espanha, que vos vejo de pés descalços neste tão espinhoso caminho? Françoys – Aos pés ficaram, mas da cama, caídas, enquanto eu escapava do quarto matrimonial alheio para evitar escândalo e desonra a amável dama; seminu com a roupa na mão quase tropeçando meus passos com meu desejo em febrão pelos ásperos degraus abaixo, quase rebolando pelo chão, eis que num brusco pátio me acho, no brusco inverno da Sabóia. Com esta fuga menos heróica que galante se expõe meu mote: “nutrisco, extinguo” com nobre e pronto gesto qualquer tramóia.

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93 Da dama, só posso convir que todos e tudo excedeu quando, com feminil desplante disse, jurou e convenceu o pluriencornado cônjuge tratarem-se as embaraçantes botas do rei ali deixadas dum presente da gratidão real para com o castelão inda que os seus pés fossem menos do que cinco sextos dos meus. Depois como já diz o conto que um rei vá nu só as crianças lobrigam, distinguem e apontam.

Nu, tal fui dado à minha mãe, nu, tal me apresento no além: enorme nariz, pés enormes, enormes minhas provas de homem. Estou certo, na excelsis gloria, de encontrar umas santas e anjos (mesmo sem definido sexo) que saberão dar uso e gozo nas húmidas esferas celestes a este bem treinado corpo agora que da pecadora alma está enfim livre e solto.

Caxias, 12 de Fevereiro de 2014

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BAGAN A dos Dez Mil Pagodes

Cúmulos de proteínas respiratórias e tijolos com lirismos de curva aguentam terraços mapa-mundo e biombos de lótus em forma de piões invertidos contra um céu de latiginosas névoas e de aguaceiros suspensos onde se acoitam mulheres-pássaros de opulentas garupas e demónios com dentes de javali e garras heráldicas de seda rubra. Rapazes de cabeças rapadas aguardam que a barba lhes cresça e a fé entoando, enquanto estas não chegam, fumosos cânticos de endorfinas pubescentes e oxímoros de ditongos ferozes, cavos e umas poucas vogais de peitoris macilentos. Os búfalos chafurdam na lama indiferentes à multidão de hieráticos budas decapitados, decepados, em escombros uns de enormes orelhas caindo-lhes nos ombros como branco musgo, outros com vestes cor de açafrão ou de rosa desbotada e crepúsculo. Dos montes chega o cheiro pungente dos tigres em cio e de searas incendiadas comprazidas no onanismo das suas cinzas… Ó dor das paragens que não conhecem as urgências da primavera! sempre as flores se polinizando, sempre o equinócio sem que se conceda uma manhã precoce, sempre os homens a verter seu sémen sem orgasmos térmicos nem com maior alegria que o arar um último campo antes que a noite caia em redor.

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Ó dor duma idade de ouro como endócrino vivo fóssil! incubando ainda na oralidade, de quando os peregrinos sábios se sentavam entre os demais e narravam de cálculos visionários e parábolas místicas de pombas que nidificavam nas águas, de cobras mudadas em canas, e davam nomes mágicos às estrelas nascidas das pupilas das crianças… E quando atingiam o nirvana soltavam-se-lhes das pálpebras as pestanas que se escapuliam esvoaçando feitas libélulas… Porém, aqui agora não há camas – dorme-se numa esteira – nem vacinas nem nirvanas, não há mesas nem cadeiras – come-se duma malga de alumínio amolgada mais pelos sobressaltos matutinos, pelos doutrinamentos marxistas, pelo contrabando das meninas que pela fadiga do metal.

Ah!, dor de que à idade de ouro de geomancia tamponada em solução de pobreza incolor se tenham seguido eras de germinação dos gumes, de enxovias, da aceleração das moléculas invertebradas do terror

Caxias, 14 de Fevereiro de 2014

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SHIBAN Iémen

Aqui, já nas crinas do deserto galopante Onde o solo duro e o basalto se esboroam na demanda De se tornarem húmus arável, pó de mirra e sílica azul, Se levanta um denso bosque encantado, num rompante, Todo feito de barro enxuto, e cio de nuvens com cirros de arame Seus torrejantes troncos, esquinados como gumes, Carregados de janelas abertas como frutos.

Tácito vento dos tempos da bíblia se estira ao longo dos becos Sobre o chão de terra suja rente aos muros fazendo a sesta Para nas noites oblíquas de lua se enrodilhar no meio das pernas Dos rapazes, eriçando-lhes as vestes, e despentear as raparigas Casadoiras debruçadas nos terraços com as estrelas à conversa.

Caxias, 18 de Maio de 2014

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TRAJANO NA ILHA DE PHILAE

Queria mandar levantar uma enorme tenda hipóstila Aberta aos quatro ventos, aos deuses antigos e novos, Toda de pedra branca sem desenhos nem escritas se não As que o sol e as estrelas lá quisessem inscrever e apor Para testemunho da imobilidade do tempo e da vaidade dos homens. Diz-me agora o grão-sacerdote que esta ilha é infausta Já que as entranhas dum pássaro sacro da Babilónia Lhe revelaram que em menos de quatrocentos lustros todo o ilhéu Flutuaria rio acima, contra a corrente, em desnorte. Tivesse eu Comigo um áugure da escola etrusca ou feiticeira cabeluda Da Bética ornada de conchas que soubessem desfazer o sortilégio Ou inverter o oráculo! – agora que o templo se ergue Magnífico acima dos outros conforme minha vontade imperial e desejo Formando um feixe de gigantes caules de lótus arrancados ao Nilo Para florir abertos noite e dia como lábios de mulher Na festa do equinócio da Primavera na Trácia. Agora é tarde! Aspiro as sombras oprimentes fragrantes de limos e toco inquieto O meu amuleto de dezanove sílabas fálicas, sinto as correias De couro roer-me os mamilos até sangrarem, as narinas Se esfolam esbraseadas pela canícula do deserto e cuspo Contínuas imprecações à mistura com areia de sílex. Contudo Paira no ar uma doçura vegetal de alfarrobas e juncos altos Que me traz de volta as várzeas de Híspalis onde aprendi A gritar aos cães e a andar a cavalo.

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Esta noite Queria voltar a assustar uma mulher menos com as minhas Cicatrizes do que com a indecência da minha virilidade E cobri-la de suor macho de alto a baixo, mas aqui Só há sacerdotes roliços de carnes flácidas untadas De óleo de palma e uns poucos noviços de perizoma Que mal lhes tapa os genitais iguais a tâmaras na cor e no tamanho, que me enchem de asco. – Só um grego Iniciado em Elêusis uma vez me mostrou o caminho dos astros… Ah, pudesse esta ilha, como diz o oráculo, vogar neste instante Nilo acima para lá da grande catarata, pela mão de vinte remadores núbios, comigo ao timão caçando o íbis azul, Nuvens e patos selvagens, para sul, sempre mais Para sul, Até onde o poder dos deuses não chegasse

Ponte Falmenta, 27 de Março de 2015

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O CAMPANÁRIO DA CATEDRAL DE PISA aliás, Torre Inclinada de Pisa

Bem no meio da glória do jardim Primaveril de musgo de cheiro e pedras esparsas um pêndulo parede de rosas brancas venadas de equinócios e páscoas. Trombeta desfloradora de marfim Numa girândola de arcarias sobrepostas corpos cavernosos embebendo-se de sangue ampola ânfora antífona pêndulo Inflando-se por vorticosos êmbolos Revestidos de parsifal páris apóstolos em pentecostes pêndulos isócronos poliglotas hóstias Para a chamada de crentes e descrentes A beber do cálice do ofício in principio… verbum implantados em húmus úteros quase pênsil íman. Enastrado alpendre pêndulo milefólio De raiz em torvelinho ciclamor desenhado A compasso cada recta revoluta em geratriz de raio cada esquina em curva de órbitas Das cartas astrais de mitra e babilónia. Remoinhado mármore sem contrafortes nem gárgulas nem cúspides Para leitura e ceifa de epifanias e azimutes mísula pêndulo mentula novem continuas foetationes Émulo do atributo viril apurado dalgum pajem De cabelos loiros no momento de mudar a voz Encontrado no séquito do imperador Frederico Ou a queimadura ade sal gema emblema Do mercenário esporradiço da alta toscana Filho dum ferreiro neto de assaltante de estradas.

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No topo do torreão – quase a fugir – um troço de rubi tribunício campanular desabrochado baga vagem marejada de granizo desencamisada de zéfiros e zimbórios luzidia de cuspo e mirto mísula mentula fíbula. Da estatura do meio-dia do mês de maio Fivela escarlate para fecho do cinto de astarte para o regaço de maria virgem Assinatura do nome uno e trino incisa No peito das pombas no ventre das raparigas Nas coifas das rosas nas virilhas de antínoo Transfigurando pendões pêndulos estandartes in hoc signo Veias minuciosas em aguaceiros azuis repentinos Pródigos na ilha de Dioscórides no cesto da gávea já inclinada pelo jorro de leite de amalteia a cabra Em desafio da gravidade, irríguo das pelejas do amor Eis o permanente ressobrar dos homens para castigo dos deuses e zombaria da morte.

Caxias, 2 de Abril de 2015

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LAMENTO DE SANTA SOFIA (Istambul)

Ouço o crocitar de corvos E o farfalhar de asas de morcegos Que empestam o ar No sótão da minha torre sineira. Pois. Está bem, eu sei que não tenho Nem sinos nem campanário, Mas se tivesse, de certeza, que os ouviria Como sinto os brados os salmos os saques - a sumarenta encarnação do logos, os cascos dos cavalos dos cruzados levando de rojo a iconóstase de prata, as mangas de púrpura a esconder a faca o rolar das cabeças decepadas por ordem de patriarcas, o hálito acebolado dos janízaros, as rachaduras das cúpulas viradas a norte gotejando como figos fendidos ao de leve entre o índice e o polegar… o fedor dos sovacos dos peregrinos laicos com factor de protecção 32, o gesso esfarelando-se em pulvisco dos emplastros, dos empancamentos Gerados por antagónicas crenças e cobiças Em desvairadas línguas apuradas para os ouvidos dos deuses Em versículos, salmos, saques, massacres em cujos ecos se empinam meus pilares e colunas na cruzaria das cúpulas Iludindo os homens para que não ouçam o crocitar dos corvos o farfalhar de morcegos agoirentos e noctívagos, Com infidas verdades Entre si mesmas inimigas.

Caxias, 6 de Abril de 2015

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CATEDRAL DE LINCOLN (Cathedral Church of the Blessed Virgin Mary)

Era come averla vista nuda per sempre E non averla vista mai Alessandro Baricco, in “La Sposa Giovane”

Piedoso biombo, quase cicóplico, Deslocalizado Para esta charneca de chuvosas costas Por mestres pedreiros mandados vir Da Normandia E brutos trolhas indígenas mais vezeiros Às pedras de arremesso contra as razias Dos desgrenhados viquingues Armados de cortantes achas E de sedentos olhos mais afiados ainda, Do que à armação dum biombo – Quase inverosímil Na sua extensa cabeceira, Na profundeza ancha das sapatas – Para servir de resguardo A virgíneas intimidades, Para abafar os ruídos órfãos de nome, Um roçagar de panos e avelórios, Como zumbidos dissimétricos Fermentando esplendores femininos De suores e pêssegos.

Biombo dilatado dia após dia Até ao inacreditável, Tramo a tramo, bispo a bispo, Numa correnteza de laçadas de bilros E bíforas Afivelando-se num rosário de três Voltas à cinta, Rematado com penachos de avestruz E unicórnio, Atrás do qual tomara eu ser dos seus cabelos A escova A lhe morder o pescoço, Quisera eu ser o linho suado que lhe amarra As coxas!

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Biombo de espanto, áspero de luz e pedra Com grinaldas de rendas, Perfumado de gárgulas citrinas E cachos de glicínias Pendentes em poéticas arquitecturas Para delicados preparos de inconfessas Liturgias: – Ganchos dourados em forma de vespas Ferroando a repuxada cabeleira; – Plissadas trusses descendo do umbigo Às coxas esculpidas só para consentir – Herodíades – a dizer que sim; – Mantos que se fendem por encanto À simples voz do anjo, A plenos pistões numa nuvem Que disseram ser de pombas quando já se via Ser de húmidos solavancos No abençoado ventre de Maria.

Biombo forrado de taumatúrgicos Beijos lúbricos, De mãos postas no suave declive Da carne reverberando sob as vestes, De extensos corredores de lua, Atrás do qual alguns fiéis, Dos mais férvidos e castigados, sustentam Terem sido abençoados pela visão – por alturas do solstício quando os poentes Se prolongam num lirismo de refulgentes Sombras e fósforo no âmbar do azul céu – Da virgem que caminha Descalça sobre o lajedo da grande nave E de repente, num fulgor, se vira de frente, Tombados o manto, os cabelos, a camisa, Revelando toda a sua nudez de música: Os números de ouro dos seios, O olho envergonhado do umbigo cego, O crescente do púbis pentelhado De pérolas Num instante interminável como deve ser O do juízo universal, – Era como tê-la diante de si nua para sempre No terror de não a ter visto nunca, Deslumbrado, súcubo A ponto de perder a vista, a fala, o sono, O sentido do próprio nome.

Caxias, 6 de Abril de 2015

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DIANTE DAS MURALHAS DO KREMLIN (Moscovo)

Quando todo o silêncio das tardes Parece ter-se condenado A um mais amplo, mais insensato, Mais mudo, maior silêncio É que as ressonâncias das memórias Irredutíveis brotam… Tudo o que mandaram cancelar Para lá das sombras esconsas, Para o fundo das masmorras de gelo Sob torreões de tijolos com incandescências De sangue brutal, de cruel verde, De azul plúmbeo, de flores de ferrugem, É que as perguntas acordam e surgem Num roldão de marés em estreitas veredas Num mercado negro da pele que respira Por meio de passagens secretas, Incubando sob as mesmas muralhas A revogação das roldanas, das cadeias, das galés, O arrombar das ameias por auroras inexoráveis Que se recusam a parar ou a ceder diante Dos teus açulados altos muros. Purificados ecos reúnem-se a outros E aos de si mesmos em cachos de gloríolas Cavalgando subidas promessas A silenciar dúbios arautos, impostores De messias, rasputins, lenins, crimes Devolvidos em herméticas rimas, Tântricas paredes por distantes espectros – Hastes luzidias e rubras, Bandos de trémulas nucas Rumando ao norte para lá das dunas – Ainda não cobradas.

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Multidões livres dos limites da carne Com expiações de cristal feitas à medida Arrastam-se desaquarteladas Como resíduos de arco-íris Para reemergir entre cortinas de neblina E clarões de tigres ajoelhados Sob estâncias e arcos de triunfo De tinta-da-china – Bandos de trémulas nucas Privadas de corpo, despojadas De toda a cerviz e trave e prisma Insinuando-se como o muco Da virilidade em penetração De picas, lanças e denúncias – Rumando para norte para lá dos relentos, Para as regiões dos anjos transparentes Ignoradas da rosa-dos-ventos, Onde mais maleáveis lacerantíssimas línguas Forjam novas férulas de rectidão Para reescrever das novas canções o duro Silêncio.

Caxias, 10 de Abril de 2015

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SAN FRANCISCO DE ACATEPEC (Puebla – México)

Gomil e bacia de loiça caprichados De desenhos de aves exóticas e flores Com todas as cores que há no paraíso, De tão fino lavor como se requintada Porcelana china fora, Tão apreciados que, quando de passagem Por aqui, a virgem não os dispensa Para lavar a cona E o divino menino na sua inocência Não deixa de lhes pregar umas abençoadas Mijas – o que explica o sarro que floresce no lado esquerdo da porta.

O favor expresso por tais habitantes do céu Só pôde atiçar o fervor emocional do povoléu Atraindo ao lugar os casórios dos índios Com o seu séquito de mariachis, Mantilhas de Manila, sapatos de verniz, No meio de incessante foguetório.

As noivas de peito estendido ao ar E de mãos trémulas de míngua Fazem oferta das tranças E da virgindade que estaria, o mais tardar Dentro de horas, já perdida. Outras, com toda a compunção, lançam A própria aliança Para o fundo da bacia Onde com igual compunção e maior zelo Lavariam antes os pés do padrinho Afagando-lhe ao de leve os tornozelos – um sorriso em dente de ouro, diamante no dedo mindinho…

CADERNO DO PEREGRINO | Fernando Lemos


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Aos noivos, de tanto mirar o cu cingido Da cunhada adquirida, Se lhes vão entortando os olhos Que fazem piscar afogueados e nervosos, Desculpando-se com os reflexos dos círios Ampliados pelos milhentos vidrilhos e espelhinhos. Quando à altura do pescoço, no altar tine A campainha, Tentam com o dedo alargar o colarinho E é então que desatam a suar em bica Pelo gomil abaixo, escorrendo desde o umbigo Pelas pichas Morenas e pequeninas.

Caxias, 30 de Maio de 2015

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NICCOLÒ NASONI REVISITA O SOLAR DE MATEUS

Terra avara num chão de melancolia Para os próprios filhos, pior madrasta Para aqueles a quem não deu nome nem língua, Mas lhe fuçaram o ventre até ao cheiro de carne; Terra ingrata, só farta de granizos repentinos E xistos e granitos grossos caídos em pranto Corroídos pela lua e pelos ecos à deriva pelos vales! Podia ter-me quedado em Roma no clarão das púrpuras Ou ter ido pintar as fidalgas louras dos Habsburgos, Santos mártires da Polónia, dominar as diferenças De luz na imensidão gelada da Rússia. Mas as mulheres pálidas sempre me enfraqueceram O sangue e me deram engasgos de tosse Além de que teria sido o meu próprio degredo Arrastar-me entre tábuas e veludos entre paredes E postigos fincados na aridez de eixos e rochedos Que desconhecem esta curvatura de bramidos e rebate Dos sinos de íngremes cristais – o mar. E assim fui parar à hospitalária Malta, Um amontoado de cascalho e calcário De má qualidade posto à guarda De ombrosos cavaleiros de vidro, As virilhas investidas de geadas, Ajoelhados em ladainhas, em matilhas Sobre os despojos das chagas. Foi lá que me falaram desta terra onde os vinhedos Engordam à solta pelas encostas dos cabeços, Onde os bois se entesoam nos prados verdes E a urze se derrama e rebola num cheiro espesso Carregado de mar, na descrição do grão-mestre Lusitano. Ah! Manoel de Vilhena, meu Senhor, Tínheis mais de príncipe toscano pelo porte Das espáduas e cotovelos, pelos pêlos Como lenhos, pelo gosto refinado pelas artes, Do que de cavaleiro apadralhado com esporas De diamante debaixo de sotainas de cânfora carmesim, À laia de flâmulas murchas – surrexit, surrexit – Apesar do vosso gosto exacerbado pelas sedas, Faiscantes, pervicazes fios de aurora, e pelas perrucas E a vossa obsessão por luvas de que fazíeis gala e uso: Umas de cabedal com reforços de bronze, outras de renda, Que suspeito serviam para esconder actos impuros Ou deformações do metacarpo ou dos dedos.

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Dom Manoel falava desta terra como do paraíso Adão depois de o ter perdido – tudo era vergéis, As feras todas mansas e os feros homens, poucos, Todos poetas ou loucos que abrem estadas às débeis rosas. A verdade é que eu odiava Malta, a sua exígua Paz de sacristia alagadiça pairando nos campos e praças, O fedor a casernas agoniadas de esperma e mijo, Ao scirocco que açoita os machos nas estrebarias, A que o fumo insistente de incenso e círios Acrescenta um ranço de intestinos viscosos e ambíguos. E depois sentia a falta de mulher que se enclavinhasse Dos meus ombros aos joelhos e me borrasse as pernas Com prata derretida a queimar-me os tornozelos – Em vez daquelas aventesmas embiocadas de negro Coladas às paredes como lepra doentia, penitente. Foi assim que aportei a este porto entalado entre Nevoeiros de sal e mosto fazendo de toldo à cidade Como um dossel enleado de lírios e asas de anjos. Que os vergéis existiam, existiam, mas os seus habitantes Entretinham-se todos os dias a praticar má-vizinhança Excepto aos domingos quando se exercitavam na mais devota Hipocrisia entre veludos defuntos, escapulários e hissopes, Confirmando que onde muito se reza mais se peca para maior Glória dos homens e engano deles porque aqui as mulheres pias Fazem mais negaças que o desvairado clima e aliviam Um homem como a descida do pentecostes sobre os apóstolos, Falando cada um a sua língua tornadas um único grito. Porque não apreciam muito a pintura, já que esta arte requer Mais recato e um público mais reduzido e instruído, Aluguei o meu saber como experimentado arquitecto Fazendo esquissos de altares, de galilés de igrejas, De campanários, casas de recreio e chafarizes Para contentamento dos meus muitos patrocinadores E sustento das minhas duas mulheres e dos cinco filhos. Porém nunca houve filha mais dilecta do que tu, palazzina, Fruto vocativo dos meus lombos e da minha voz, somente humanos. Vejo-te avançar no meio das vinhas, morangais e cacimbas E é a mim que reconheço correndo pelos pobres veios e baixios Do Arno fugindo ao alarde dos espelhos, das profecias Escorridas da voragem das águas a morder-me os rins. Observo as cicatrizes dos acrescentos, das grilhetas e cornijas Rudes, impertinentes a que te submeteram, mas que importa?, Se já me volta à boca o gáudio dos teus arrepios e vagidos, Pernas abertas a fazer ponte na bússola das ribas, firme, De testa alta ao génio clamoroso do sol.

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Minha, a autoria Dessa passagem apoiada em fios de frescura Que descem para o pátio e penumbras de buxo Concitando os suores benfazejos de pomares e malvas, Ah! Ponte coberta dos meus suspiros da primeira hora, Num Arno de favor de choupos e juvenis aromas Que fantasio neste delirante reconstruir-te Aqui entre o verdor das uvas sob nuvens prontas A desabar-nos em cima à altura dos olhos e dos sonhos, Neste meu minucioso e incansável redesenhar-te: Cimalhas arredondadas em fitas em torções, Pináculos sinuosos – ancas, cinta, mamas, colo Boca – fogaréus a esfarfalharem-se num peitilho Recamado de emblemas entre sentinelas sobalçadas Com luzidias lanças na mão e teatrais penachos Para afugentar o mau-olhado, primeiro dos lobos, E depois claramente a inveja infinita da morte Com a sua foice de possibilidades na garganta. Vejo-me de borco caído, as artérias à mostra, Os meus compassos são borboletas e levantam voo Comigo por elevados alcantis, balaústres, precipitosos Úteros onde o meu sangue se coagula, se obtusa Caramujo no eterno regresso ao mar… Contudo, juro, quando for a hora de atravessar O último pélago não remarei na tua barca, Aqueronte, Irei pelo meu pé seguro sobre esta umbrátil ponte.

Caxias, 31 de Maio de 2015

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TAJ MAHAL (prece de Xá Jahan)

Quando se me acabarem as lágrimas – Que a misericórdia de Alá Não o permita – Que rolem cabeças, Se enforquem inocentes, Se violem mulheres!, Para que não faltem lágrimas Aguçadas de facas, Carregadas de limas A polir as nervuras A avivar as pétalas Do teu árido mármore Do zimbório à cripta. Quando se me acabarem os versos – Só se a misericórdia de Alá quiser Ainda mais me punir – Mandarei afiar a sombra dos ciprestes, Recortar os buxos Destravar os espinhos das rosas Para que escrevam hirtos de chumbo Cânticos de água santa Nos sulcos de sangue E de penumbra Caligrafados no regaço das nuvens.

Se se me acabar a débil vista Antes que a misericórdia de Alá Se apresse a pôr termo à vida, Que tenha eu a atmosfera do mármore, De que é feita a própria lua, Para vir rasar-te os seios Arranhar-te desde o fundo A sorver do teu umbigo A língua que me mata A chover na tua cúpula Linfa tanta que te fecunde.

Caxias, 24 de Agosto de 2015

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CASA DEL LABRADOR (Aranjuez)

Que faço eu aqui Neste vale alargado do Tejo Desprendido das garras da meseta? À sombra das altas árvores Carregadas de sol e de murmúrios Que tornam este meu degredo, Sem visível horizonte, ainda mais inconsolável, Sem nepente nem fármaco De abelha, ópio, tília…? Não sei qual dos dois primeiro me desejou. Porém, foram ambos quem me concebeu, suas Majestades. – Ela barrocamenta feia, Queixo, nariz, boca montados de carmim Carcomidos de asco de deitar aos cães, Desdentada, rasgada de prenhez, (ao todo vinte três) Extenuante método anticoncepcional Pra outras engenhosas pichas derramando-se De rajada entre as virilhas, entre os ramos Das tílias, Maria Luísa de Parma. – Ele barrocamente régio: O ventre a sufocar-lhe o peito Chapeado de peitilhos e condecorações, As coxas varicosas, pulguentas, Os olhos purgando devastações Pela orquite das insígnias, ligas e arções, Derramando-se entre os pulsos tímidos de noviço Entre as virilhas, O Rei! Entediados pelos artifícios da etiqueta do paço, Passavam a natureza em ronda Buscando um pouso de recato, – onde pudessem andar descalços – Recriando, como num aberto teatro, Uma casa de lavoura sem camponeses, Sem pocilga, sem horta, sem curral nem pomar, – os lacaios disfarçados de pastores arcádios, As açafatas vestidas de leiteiras sem vacas, Nas mãos carradas de alfazema. Tentavam reencontrar o desejo de ser ancestral, Num redobrado artifício reinventando a exalação do húmus, Manipulado em benjoim para os reais pulsos.

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Sim, eu deveria ser uma villa romana agrícola Onde as geórgicas viessem marcar os tempos Da semeadura, da monda, dos bailes do solstício, A dormência do feno e das papoilas o intempestivo ardor. Eu traria o sabor da antiguidade, a ranhura dos triglifos Escondida na emoção das rosas. Foi então que chamaram os afrancesados arquitectos E os emasculados marceneiros de além-Pirenéus Ladrilhadores, embutidores de mármores, Pau-rosa, platina, cobre e cristais de rocha, Tauxiados epicenos vindos de inalar turvos sonhos. Em vez de um triclinium aberto sobre um peristilo Semeado de hortelã e madressilva, Em vez dumas termas viradas a poente Onde se pudesse propalar mexericos entre amigos Sob a forma de odes píndaras e epístolas, Em vez dos cubicula sem portas nem janelas Só resguardados por pesados reposteiros de lã Desbotados pelos hiatos do sol e pelo atrito da poeira Que marca os dias nos seus flancos, Abafando os suspiros de impuros amplexos, Construíram-me esta fiada de salinhas e saletas Como células isósceles dum cérebro de poeta Numa computação de gaiolas e cortiços; Mobilada só de estáticas primaveras, sebes de seda, Hera em trompe l’oeil, pássaros com carrillon Numa orgia de engrenagens masculinas Accionadas por três chaves em forma de orquídea – caixa torácica duma casa vazia de vísceras, Sem cozinha, nem latrina, nem quartos de dormir, Nem boudoir, nem condigna sala de jantar – Uma moeda de troca do onanismo do poder Pelo útero opiáceo e escuro de antes do Verbo.

Que faço eu aqui Nesta inércia mineral da meseta? Atolada na clepsidra desta várzea do Tejo Que, arrastando inerte mênstruo, Vai escorrendo de costas para as asas brancas Das memórias espezinhadas De tanto folhear para trás e para a frente?

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Uma seca aquelas noitadas entre homens Os cachaços altos engomados, As mãos grosseiras afiando o sexo da sua vergonha Como longos tacos de bilhar enquanto bebericam Vinhos generosos picados de varíola… Perigosa ela nos seus jogos Deita cartas, deita olhos Aos valetes de guarda, alabarda e joguetes, Debaixo da mesa o joelho dela contra Umbigo dele, o pé rodopiando órbitas Como um garfo de doces mandíbulas Espicaçando a flor da renovada virgindade, a dele, Não a dela… Que faço eu aqui Nas garras da meseta? Espelho morto gemendo dores Numa língua morta Para a qual já não há tradutores.

Caxias, 8 de Setembro de 2015

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O TEMPLO DO CÉU (Pequim)

O Céu dos Deuses é redondo, Nossa a Terra é um quadrado. O Templo do Céu é redondo O arrozal é um quadrado. O Filho do Céu traz túnica Redonda da cor do sol, Brancos são seus pulsos Como a lua quando redonda se põe. O Camponês traz aos quadris Enrolado um pano quadrado, Seus pés servem, enterrados, De raízes quadradas do arroz. O Filho do Céu jejua toda uma noite Redonda e roga que o arroz brote Até às estrelas sem conta. O Camponês jejua noites sem conta E chora o Filho da Terra morto, Tão pequeno, posto num caixão quadrado. O Céu dos Deuses é leve e longe, Nossa a Terra sempre pesada.

Caxias, 9 de Setembro de 2015

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A GRANDE MURALHA DA CHINA

E

stava tanto frio nos terraços da

GRANDE MURALHA CONGELOU fotográfica máquina da bateria

Que a Não me permitindo fazer Um único disparo. Resultado: Menos umas quantas FOTOS de TURISTA, Como a GRANDE MURALHA

Tão inúteis que nunca impediu nenhuma invasão nem a conquista

Caxias, 10 de Setembro de 2015

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JARDINS DE XOCHIMILCO

Fundos pés de dálias e jarros-bravos, Braçadas de cravos armados de nuvens Não souberam defendê-la, Levantando alto como escudos seus perfumes, Da traição das pedras e das más ervas. (o filme já teria uns dez anos então Contudo eu ainda não sabia ler – O enredo chegava-me filtrado Em breves sussurros pela minha mãe – Ai que eu só tinha olhos para seus olhos Onde boiavam jardins de confederadas nuvens, Candelária das negras tranças acesas! Ai que eu só tinha ouvidos para a voz Acobreada de Armendáriz No seu espanhol líquido de leite de ágave E calças brancas com os bolsos Enchendo-se de pombas, paus e punhos! Ai quem não se lhes vergara A lhes arredondar os gumes!? Ai quem não se deixara ceifar Esvaindo-se em seivas e perfumes, Azáleas, jarros, dálias escarlates Daturas, girassóis e nuvens!?) Muito antes de suspeitar que existissem Versalhes, Kew, Generalife Ou, de Quioto, os do palácio do xogum, A febre que o meu precoce coração covava Jardinava já pelas lacustres áleas De Xochimilco onde o solo limaçoso Se eleva a custo da água cor de jade. Xochimilco minado de alavancas e músculos, De crânios ocos de índios por enterrar Empilhados a fomentar raízes Que amarram à sua órbita ventos e espíritos. Xochimilco, jardins movediços, Errantes de erva ruiva em labirinto, Seu sorriso superava mil azáleas, mil Dálias, seus olhos duplicavam daturas Mil e as nuvens celestes da mesma cor.

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Xochimolco, jardim de palmas desfraldadas Vogando à vela sobre águas absurdas Pouco fundas, deixa que eu continue A seguir o teu fresco rasto de flores, Nessa via onde, em procissão, os pontos Cardeais se atropelam e, nus, Vão lapidando, uma a uma, as estrelas Que tombam em memória daquela Candelária, de lábios castos de pálida Rosa murcha.

Caxias, 22 de Setembro de 2015

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GRUYÈRES

A torre do relógio tem a forma dum mealheiro de lata, A loja dos relógios diamantesdeamantesdemais. Atrás das casas de papier mâché as vacas pastam-pastam-mascam-pastam. Do caminho de ronda do castelo alcança-se ver os alpes.sepal.alpes em redor.roder.redor E os vales jurácidos de trevo, luzerna e merda dos currais. Os turistas – ao assalto! – fazem razia de chocolates com recheio de cautchu rosa, de peúga de atleta de orgânica casca de batata. Os antigos pauis dissimulam bocejos entre a era glaciar e a espera galáctica, de barriga para o ar. Nas vertentes verde-água as vacas de cornadura ornada de miosótis de plástico e girassóis de papel cristal badadalam badadalam, seus olhos negroinchados Fitam as nuvens que se vão baldeando badadalando muito brancas dum branco pastorizado.

Caxias, 30 de Setembro de 2015

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TAPEÇARIA DE BAYEUX Segundo a mais recente teoria dos modernos medievistas, a tapeçaria dita da Rainha Matilde é obra de monges ingleses – os vencidos – a quem Odon, bispo normando, incumbiu de tecer e bordar com esmerado colorido sobre claro desenho esta brevíssima eneida – de meia Manga – da fulgurante façanha comandada pelo duque Guilherme dos normandos – os vencedores. Matilde e as suas aias de adamados dedos tão calhados em lavores de ponto de pé de vento, ponto de liga e meia, ponto costela e púbis ponto de carcela cheia, de arrepica tufos e borbotos não meteram pràqui grelo nem estopa. Também eu vou pelos fradezinhos – ora et labora – e pelas suas competências pontuadas de pica.rotos e pica.raças, de pica.omnibus, beija.pau e pica.flor de agulha em riste de pica.dura sem dedal nem cara.púcio e, se de razões precisasse para argumentar, duas bastam: a fixação na luxúria e na gula. Em setenta metros de desenho, não aparece nem uma mulher, nem sol, nem lua, nem flor, nem nuvem – só uma estrela de pender obsceno com a forma de anémona do mar rubra e urticante, mais lembrando inflamadas hemorróidas, por estarem muito tempo sentados, familiares aos frades borda.dores dores.nas.bordas, incendiárias, mais que os frios astros de eternos lumes. Porém é um fartar de escudos oblongos vaginais de lábios abertos hiantes acoitando os arremessos de setas, frechas, lanças, zagaias em saraivadas másculas de tracejantes manchas, espadanando ricochetes de rosas róridas de sangue. Que dizer então do banquete em que as fálicas espetadas de carne escaldantes, em brasa a gotejar que os diligentes serviçais aprontam, cozinham e levam levantadas e enormes para os comensais sentados a uma mesa em semicírculo à maneira de ultima ceia – isto é o meu corpo, isto é o meu vinho trazido em tonéis da outra margem nos mesmos navios que transportaram cavalos e armas – no acto eucarístico muito agnus.dei gumes.dei dooms.day|?

E do facto de todos os cavalos se apresentarem de sexo bem visível, como não inferir disso resquício de masturbação masculina transfigurada? ou mais além, levarem na mão, à altura das virilhas, galgante perro ou falcão inchado de penachos e ávido de caça, os homens que vão embarcando de saio arregaçado pubisionado, as pernas arrepiadas e nuas, os pés descalços patinhando à vista da transparência das ôndulas que lhes ron-ronam em círculos!? Enquanto Guilherme, do seu cavalo, exorta em letras grandes, os seus marmanjos de pernas compridas, em latim batido em castelo para a posteridade “ut praeparent viriler et sapienter ad prelium”

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121 à medida que toda a história se desenrola em quadrículas: onde acabam as grutas abrem-se gradeados úteros onde se fecham os cofres abrem-se atalhos, retalhos, galhos, retratos entre parênteses rectos como conchas de nácar. Porém, prova última e irrefutável de que a obra não saiu dos dedos das castas borda-doras da rainha, por muito prendadas que fossem nas acrobacias de pontos, de nós, de remates por artes e astúcias de agulhas, tesouras e linhas, é o teor do ornamento da cercadura que corre ao longo da tela abrindo alas à parada heróica. Tivessem sido fêmeas, mesmo já conhecedoras de mênstruo e homem, as obreiras, não estariam os bordos repletos de femíneos símbolos: cestas, berços, tigelas aos gomos donde emergem cachos de uvas, taças fumegantes de nuvens, cabaças de fina cintura garças de asas em leque, grinaldas de goivos, meigas roliças rolas, cortinas corridas na alcova dos noivos ? Inconfundível e assustadoramente macha, é na verdade, no seu bestiário infernal, na sua violência exaltada e apocalíptica, o que nos oferece a figuração das ourelas numa procissão de redivivos monstros: tartarugados lagartos, tantalizados tigres, mochos insolentes enfrentando raposões.zibelinos, mastins estavanados mordendo a serpentina cauda lanceolada, javalis atarracados, salamandras com garras grifonadas de gritos, dragoados galifões debicando-se, copulando entre escombros de escadas, pugilistas nus de ameaçadores punhos e pentelhos a condizer, burros pastando ralos musgos e pas-sarões escamudos com penas de piaçabas e cadáveres humanos em carne viva, cabeças dece-----padas, membros retorcidos cadáveres já sendo espoliados dos seus vestidos, a morte ainda ruminando as cartilagens rosadas e o oxigénio retido na traqueia e no umbigo….

Caxias, 17 de Outubro de 2015

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A PONTE DE ALCÂNTARA (Cáceres – Espanha) Para a Dafne Mvnicipia Provinciae Lusitaniae Stipe Collata qvae opvs Pontis perfecervunt Igaeditani Lancienses Opidani Banienses Talori Interannienses Colarni Lancienses Transcvdani Aravi Meidvbrigenses Arabrigenses Praesures

A última ponte a jusante que os Romanos construíram no Tejo está a mais de duzentos quilómetros da foz e a quase dois mil anos de nós. Apoiava a via que ia de Mérida para Braga até à Galécia, terras de espessas névoas, águas que fervem e potentíssimos bruxedos. Mas de vós, os tais que custearam e construíram e de quem, por dois terços, descendemos o que sabemos na verdade para além dos nomes latinizados que já depuram os bárbaros fonemas que lhes estavam na origem ou não mais designam que marcos geográficos a vós de todo estranhos? Que vos fez descer desses castros postos nas corcundas dos montes de encontro a estes ruidosos homens, pernados-ao-leu, barbeados como ovos, cabelos tão curtos que apoucam a virilidade e pés pequenos tão enredados em tiras de couro e suor que só lhes podiam revoltar os corpos, as entranhas e o despudor do cio!? Que podiam pedradas e pauladas, por muito temerárias que fossem, umas poucas adagas e curtas lanças contra esse desfrechar por direitas e travessas esse desferrar de gládios pela frente e pelas avessas e o gume envenenado dos sestércios?

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123 Se o gládio vos expugnou dos castros, a grilheta vos poupou do gládio e o chicote, e a lei romana e o comércio, com os seus beijos frios, mais belos que os pés das filhas da lua, fizeram o resto. – Sim, continuavam a roubar as nossas mulheres e a matar ovelhas, mas não mais que nossos vizinhos do sul, a que chamam Bética, quando a seca lhes devasta os prados e lhes incendeia as florestas e se atiram a nós a fazer razia e saque com urros, machados e vozearias. Estes, ao menos, sabem construir bons fornos e tomam banho – nos pegões dos rios todos em pelota – levam de passeio águias de ouro, têm nomes para todas as coisas e diz-se que foi o próprio deus do arco-íris que lhes ensinou o segredo de suster arcadas, sem caírem, dos aquedutos e pontes. Mas vós, meus míseros antepassados peludos, atarracados e rudes, soturnos como sombrias nuvens, a que os outros chamaram Lusitanos, de que vivíeis, de que havíeis sustento dos magros campos? de farinha de bolota e castanhas e marmelos e figos secos? Uns de vós criavam galinhas e porcos entre o esterco que separa duma casa a outra, cobertas de colmo sem porta nem gonzo, retouçando entre as pernas das crianças? para depois morrerem, eles, de músculos estoirados, de tosses malsãs, febres e feridas em gangrena, elas, de parto, de mordeduras das serpes, do frio, do ciúme e mau-olhado.

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124 Lusitanos nervados de relâmpagos e suores ruivos e peludos, nada me diz como tomáveis mulher, raptando-as, comprando-as, tomando-as à força, por trás, como as bestas de encontro a um penedo ou um tronco de oliveira fazendo estremecer a terra e as estrelas rugindo como um javali ferido arremetendo absurdo contra a lança!? Nada consta que sacrificásseis à nascença os albinos, os cegos, os malformados antes os tomáveis como signos do divino, por muito ininteligíveis ou confusos, nascidos para aprofundar a vossa ternura, a redenção da vítima o que prefigura a tão ibérica pietas. Meus Lusitanos embrenhados em perder a vossa língua, a vossa pele como quem chega ao seu destino cedo de mais, povos de além-Coa e Igitânia, dos cabeços de Viseu, da próspera Anmaia, Arabrigenses, Lancobrigenses, Presuros, que vos fez colaborar com o invasor, na feitura desta obra, cedendo víveres, acarretando pedra, dando cinco quartos e mais de todo o sangue derramado, dos pés pisados, dos dedos decepados, desses lombos rasgados pelos andaimes? – como a infamante inscrição dos vossos nomes, lápide quase funerária embutida no arco da ponte, trombeteando continua bem alto e para sempre, para a curta eternidade dos homens…

Caxias, 3 de Novembro de 2015

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PAESTUM (e os três Templos Gregos)

I Com espelho de prata e bronze Que é do Olimpo pertença, Duas deusas com três pentes Alindavam suas tranças. O tempo não tinha conta, Dava frutos todo o ano: Duas deusas com três pentes Aravam de ouro os campos. Cego está o espelho e baço, Ora que as deusas fugiram, Seus três pentes se partiram Tombados do seu regaço.

II

Depois vieram os Cristãos com seus ritos de sangue e pão, Os Bizantinos barbudos enroupados em longos trajes de púrpura e ouro. Depois os Bárbaros do Norte com seus machados E, vindos do Sul, os Mouros para nos vender como escravos Até que o mar de nós se afastou arruinando os comércios do sal, do peixe, dos peregrinos penitentes, pródigos a pagar promessas e a prostitutas também. Depois foi a vez dos rios secarem de repente ou estagnarem em charcos pestilentos onde prosperam rãs verdes e cobras de água libertando miasmas saturados de azoto. Depois mandastes os terramotos que abriram fundas fendas no solo por onde Vulcano sorvia por inteiro estátuas nos seus pedestais acrotérios e os eus beirais, alucinados cavalos e mulheres em fuga com crianças ao colo. Os homens com a cabeça descoberta, tocando o chão, Clamavam enlouquecidos e roucos por Vós,

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Deusas tão justas, tão puras, tão sábias, excelsas e belas, Amantíssima Esposa, ó Sublime, ó Hera, Dilecta unigénita Filha, ó Casta Atena, Tu que és macho e fêmea, que incutes sabedoria aos bons e terror aos desalmados, Armada de Lança, Escudo e radiante Elmo, Cessai, cessai vossa Ira! No pronau cagavam as búfalas de costados luzidios e ossudos saltando dos lamaçais onde pululam tavões e vespas e ratos pardos e peludos; Umas poucas ovelhas sem cão nem pastor roíam cardos e alcaparras à beira das estradas de pó onde outrora – ah, outrora – corriam os jovens patrícios nos seus carros com rodas chapeadas a ouro e brancas. No fundo da cela derrocada, um cristal, talvez de quartzo, talvez de chuva quando, subindo me encandeia, quando vinda do submundo OUÇO, vinda claríssima, a voz da minha mãe; Fecho os olhos e ei-la de olhos cerúleos que, sorrindo, se penteia com pente de âmbar os cabelos de novo louros e que cheiram a leite da ordenha da manhã e a terra do Além. FALA-ME. É a sua voz que eu respiro. É a sua voz dizível e indizível Mas eu não entendo – como quando estava no útero. Fala nas línguas dos mortos, Babilonês, aqueu, assírio… Então o seu pente volteja mocho, voga cisne e vira faca, e foice, e pá de abrir sombras para cobrir covas, decifrar enigmas que me redimam.

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Ó Deusas tão sábias, tão astutas, tão caridosas Abri os nossos lábios à luz e com minhas mãos nuas, de terra macia doseada de cinzas lávicas e flexíveis raízes de murta – Illa manu moriens telum trahit – cobriremos vossas moradas de beijos, de húmus, de preces, de benfazejos fumos! Para os lados do Norte novelos de branquíssimas nuvens, descendo do Vesúvio a rodos, vão varrendo o céu, os destelhados templos, os vinhedos novos e o arcaboiço do meu peito mordiscando-me os mamilos de inalcançável púrpura, de aromas de citrinos rudes e jasmim. Do lado do mar, o vento parece sussurrar grosserias. Por ventura são as Deusas a interceder por mim… À memória da minha mãe

Caxias, 16 de Novembro de 2015

CADERNO DO PEREGRINO | Fernando Lemos


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ÁVILA MURALHADA Á Vd e I os f L al or A tos tes

M TM U le ma U E R va is A I O n al S A S ta to A S

D qu er nu E e o es I te ex em A qu por Ca S

V o et E po eco I vo rre A qu nas S

O judeu de pés grandes e mãos largas Que empresta do que é seu sem cobrar juros; O padeiro que, sem lenha nem fumo, Coze pão na fornalha conjugal Para delícia de toda a vizinhança Que lhe gaba o tender e a levedura; O soldado que ardendo em febre Vagueia nu pelos adarves Julgando assim poder tornar-se Invisível a todo o inimigo E imune às suas setas e dardos; O corno manso, bom cristão Que traz a casa o jovem padre Para lhe ouvir a mulher em confissão E cola a orelha atrás da porta Até ao grito da absolvição; O ferreiro de protervo arcaboiço Que tanto se condói das bestas Quando as ferra, e é o mesmo Que cobre a mulher de açoites E lhe vai soluçar aos pés depois Lambendo-lhe as carnes roxas; O tal sarraceno de barba espessa Que anda a monte pelas ermas charnecas E vem tanger seu alaúde, Sem que nunca ninguém o veja, Todos os sábados e terças, Nas traseiras daquela igreja Onde enclausuraram à pressa Aquela que devia ser sua; A tua santa mui letrada Que tem orgasmos em cascata Na contemplação de jesus Ali no patamar da escada Montada numa nuvem de luz;

CADERNO DO PEREGRINO | Fernando Lemos


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A viúva pobre, sem filhos Que, à falta de beijos para si, Transporta os dos outros, Adúlteros, talvez vendidos, Em bilhetes como pomba, Em palavras de boca a boca; O alcaide de sangue godo Que faz montarias pelas serras Caçando javalis e corças E roubando crianças à gleba - as meninas vende-as como escravas Aos mouros de Cádis e Granada, Os rapazes para o País Basco Onde os embarcam para a pesca Do bacalhau e do arenque; A mulher de brincos pendentes E anéis coloridos de vidro Que faz mezinhas no quarto dos fundos Com venenos de vespa e urze Contra dores de dentes e das cruzes, Que fortificam os maridos E emprenham as infecundas; O rapaz, solitário há quem diga, Que encontrou na borda do poço O diabo um dia sentado Que, puxando-o a si, o chifrudo, Lhe apalpou as partes e a barriga E, como fosse gritar o moço, Logo o tentador o tornou mudo; A taberneira que tira leitadas Aos almocreves bêbedos dos olhos dela; A freira que na solidão da cela Sonha bater em castelo tigelas E tigelas de perfumoso esperma: O velho desdentado e de língua Murcha que a deus pede e com fervor reza Que, depois de morto, volte a morder Mamilos e a sorver o muco das mulheres: A criançada que apenas conhece Currais por escola e livro e berço E ainda sonha com anjos quando adormece: E aquele par de namorados Só cobertos de céu de junho Que se miram deslumbrados Descobrindo a primeira manhã do mundo.

Caxias, 29 de Novembro de 2015

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GRAND-PLACE Bruxelas

Campo de batalha – de grandes rios

lutando entre si,

– de esquadrões de jovens aguerridos entre si vindos do Artois, de Anjou, da Escócia de Aragão, da Baixa Saxónia, da Áustria ou da remota Polónia, arregimentados, a primeira barba ainda por cortar, com mães e namoradas que vão rezar pedindo ao mesmo deus que se matem entre si, – de nuvens verdes, eléctricas vindas de noroeste a salgar de cheiro peixes, pináculos, pás, picaretas para escavar regos, trincheiras e fossas, labirintos de canais entre si onde boiam calcinados elmos, varejões sobre gatos mortos, fogos-fátuos que escrevem os desejos dos mancebos arrancados cedo de mais à vida, a fertilizar doces campos de linho, – e outras brancas de quartzo, véus desfeitos refulgindo brasonados estandartes águias de ouro, flores de lis e recurvas trinchantes alabardas desde o sopé dos Alpes até ao Delta a lamber a cara às raparigas em debandada – ah devassada Bélgica.

Resquício requentado (traçado a compasso plenipotenciário nos salões dourados de Viena) daquele reino de Lotário herdado da partilha do império carolíngio desde a Lombardia à Frísia, o Jura, a Borgonha, a Lorena, cobiçado, retalhado, por matrimónio ou morte herdado, tomado e perdido, trocado e oferecido pela sorte das armas ou por tratados de novo revogados por monarcas e bispos e príncipes…

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Vibrante fractura onde os Germanos nunca deixaram de combater os Latinos, onde a cerveja disputa o lugar sagrado do vinho, onde a autoridade do Pai Nosso vacila, ah se vacila! perante uma mãe toda poderosa na cozinha, onde as línguas bárbaras esbarram na exactidão preciosa e clara das vogais incandescentes de França, onde duques e bispos-eleitores não passam de feitores assalariados do Império ou acomodados capatazes de reis distantes… Claro que os verdadeiros senhores daqui são os mercadores de panos e as guildas dos tanoeiros, dos cervejeiros, dos padeiros. A mando da sua vontade e dinheiro se enxugaram os pântanos, se espetaram as estacas das paliçadas se ergueram os primeiros currais e pardieiros daquela que seria rival de Antuérpia e de Bruges. Burgueses de perna traçada no joelho, gananciosamente lançando contas, e aparelho, arrogantes apontando o dedo – – a Camponeses de olhos translúcidos de bruços, brutos rente aos braços, cavando nas leiras, na turfeira, nas clareiras onde os duques vão à caça de ursos heráldicos, águias bicéfalas, leões de acesas jubas, javalis com anéis de ouro saindo das bocas; – a Cardadores de lã de desvairadas unhas os calcanhares murchos nas socas, debruçando-se sobre malgas de nabos fervidos em leite que cheiram a nádegas de fêmeas requentadas nas enxergas, e sabem à palha mijada dos estábulos; – a Rendeiras de bruços sobre dedos viúvos, que elaboram florões de luz duma leveza húmida com as linhas orgiásticas do útero… – àquela cerca aberta entre paludes para mercado das catacumbas do céu ah! Bruxelas quem te viu! De coletes bordados com frisos de janelas de alamares e debruns dourados até aos artelhos, de chapéu de borlas e plumas nos pináculos, vidros biselados para servir às estrelas de espelho – de quando nos amávamos cambaleantes pela calçada acima não desejando mais que ficar ali caído, alçapão das catacumbas do céu –

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As mulheres ateiam a praça de encarnadas lamparinas: nos lábios, nas unhas, nos brincos entre as frestas dos joelhos enquanto os homens de pés suados e sovacos, de bruços sobre pixas em bico de chaleira, com as mãos grossas pelas veias lhes vão sorvendo a carnalidade redonda e cintilante exalando rangentes línguas, rangentes seios…. Por trás das fachadas de gesso e lantejoulas uma lua cheia verdigris devia estar subindo alumiando de poalha fina o tapis fleuri que não escondia a mancha de sangue onde a nobre cabeça de Egmont caíra. A noite recuava à nossa frente, desamparada e fria, correndo a esgueirar-se nas águas-furtadas dos Paços da Cidade trepando pela torre acima em gotículas de escuridão esborratando as cornijas, as estátuas, as lanternas, Quando, de olhos desabotoando-me pelo peito acima, Me disseste ali, diante da casa do Cisne, “Vem daí que o meu amor não é eterno, Mas hoje vai fazer-te para sempre feliz.”

Caxias, 13 de Dezembro de 2015

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TORRE DE BELÉM (Fortaleza de São Vicente a par de Belém)

Que é da fortaleza que el-rei mandou erguer Para defesa da nossa cidade e do Tejo? Que, de tão temível e fera, as armadas Inimigas afugentasse só de vê-la, Circulasse voz ou lenda entre os piratas Que atacá-la seria de má estrela?... Que é da fortaleza que el-rei mandou erguer? Escondida jaz dentro dum escafandro de renda Em que a pedra toma ares de fina seda. Culpe-se o arquitecto que tal debuxou, Emasculado pelas doçuras de Marrocos, Inebriado pelas miragens e pelos pós Que do Levante chegam e da Índia até – anis, amendoim, alpendre, ajimez – Para quê as arcadas da lagunar Veneza? Os inúteis balcões armados de dossel Para amesquinhar as janelas lisboetas Que sempre fizeram olhos doces ao Tejo? Que é da fortaleza que el-rei mandou erguer?, Que fornida de homens, de pólvora e de armas Nos devia guardar de ventos e desgraças? Culpem-se os provedores reais, os fidalgos, Os canteiros que esculpiram nós, cordas, gárgulas Não sobejando mais fazenda para as bombardas Que é da fortaleza que el-rei mandou erguer? Com folhos feitos de espumas alvinitentes, Mais parece barca para passear infantas Engrinaldada de palmas e agapantos Pra tomar o fresco e brincar aos mareantes Sob uma cúpula de luz e espelhos de água. Que é da fortaleza que el-rei mandou erguer? Com folhos feitos de espumas alvinitentes Que as marés tecem e desfazem quais penélopes Sempre-noivas dos gajeiros deste país Que dum postigo, terraço, janela, gávea, Lobrigam rios da Guiné claros e rápidos, Palmares das Índias, praias dos Brasis. Que é da fortaleza que el-rei mandou erguer? Escondida jaz dentro dum escafandro de renda Em que a pedra toma ares de fina seda Com folhos feitos de espumas alvinitentes Que as marés tecem e desfazem quais penélopes. Ai praias do Brasil, ai rios da Guiné. Caxias, Março de 2014/ Setembro de 2016

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LAGO DE BLED

Livro líquido onde se guardam inscritos A céu aberto Todos os nomes dos dias que foram felizes. Ondinhas de olhos verdes Vêm-se espreguiçar nos dois degraus de pedra A afagar os teus pés Com murmúrios de ninfas e ondinas Numa arcaica língua desconhecida Que só tu pareces entender Pelos acenos ao de leve Que fazes com a cabeça. Na igrejunha de feição austríaca O sino dos desejos não parava de badalar A céu aberto – a 6 euros por pessoa para puxar a corda – Por sobre o estrilo dos turistas. Eram todas japonesas a chilrear Em português do Brasil Como pássaros exóticos disfarçados Saltitando no meio dos outros, Criaturas dos ares, em despique Sobre as mesas, sobre as chávenas Debicando todos migalhas de desejos. Ao fundo da escadaria, Junto a dois barcos atracados, Via-se o teu nome inscrito A letras de ouro, miudinhas, Obra de joalheiros barrocos, Repetindo-se pelas águas, Faiscantes, a cegar-me os olhos, A incendiar o lago.

Caxias, 15 de Setembro de 2016

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AUTO-RETRATO CRÍTICO

Sim, admito que os genes do acaso Que me criaram não foram de segunda Escolha, mas devia ter a voz mais funda, Dentes invulneráveis como aço E mais grossos os músculos dos braços; Na cabeça quadrada não abunda O cabelo, porém, fantasia muita Só para me atormentar no mais dos casos ; Reconheço o desempenho quase atlético De vísceras e glândulas com surplus De ânsia, bílis, suor e sémen poético, Só não posso perdoar que nas subtis Triagens tão selectivas da genética Não me tenham calhado olhos azuis.

Lisboa, 24 de Janeiro de 1994

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