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O legado de ódio a jornalistas deixado pela Era Bolsonaro

Momento atual merece atenção, visto que o país se encontra em um período “entre safras” afirma um dos líderes do The Trust Project no Brasil

Por Eduarda Teixeira Basso, Isabelle Maieru, Jalile Elias, Malu Araujo e Melissa Mariano Joanin

“Você pode ter direito à sua opinião, mas você não pode ter direito aos seus fatos”. Com posicionamento firme, Francisco Rolfsen Belda, um dos líderes do The Trust Project no Brasil – iniciativa dedicada à promoção da credibilidade em veículos de imprensa – compartilhou em entrevista ao Jornal Contraponto como os ataques aos jornalistas na Era Bolsonaro fazem parte de um processo calculado de descredibilização da imprensa.

Casos de ataques a jornalistas são contabilizados pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) desde do ano de 2013. Dos 376 casos de ataques aos profissionais no ano de 2022, pelo menos 104 desses (27,66%) são de responsabilidade direta do ex-presidente Jair Bolsonaro, como aponta o relatório ‘Violência Contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil’, lançado em 2023 pela Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ).

Para Belda, esse “modus operandi” com base nos ataques direto aos jornalistas visa deteriorar a confiança da população nos órgãos de imprensa, procurando driblar o escrutínio do criticismo que caracteriza o trabalho jornalístico.

Nem de longe esse mecanismo é uma exclusividade apenas do ex-presidente Jair Bolsonaro. De acordo com Belda, esse processo também pode ser visto em outros países europeus ou do hemisfério norte, como na Hungria, com Viktor Orbán e Donald Trump, nos Estados Unidos. O líder do The Trust Project no Brasil avalia que este fato, “permite caracterizar uma espécie de modus operandi de governos de perfil extremista e autoritário”.

A professora e pesquisadora na área de comunicação, democracia e política da Universidade Federal de São Carlos, Lucy Oliveira, levanta que além dos ataques serem tentativas claras para “burlar” os veículos de comunicação, eles também buscam uma comunicação direta com o eleitorado do ex-presidente.

Um dos maiores vetores para essa “comunicação direta” foi por meio das mídias sociais, que culminaram em um dos maiores problemas da sociedade como um todo atualmente: a propagação das Fake News (notícias falsas). O que caracteriza o feito, é a dissipação deliberada de informações enganosas, sendo feitas por meio de descontextualização ou informações mentirosas.

Normalmente esse material acaba tendo um apelo emocional maior, o que facilita sua partilha em massa e contribui para o fenômeno visto hoje, sendo considerado um risco à democracia.

Entre os diversos motivos para o aumento do compartilhamento das fake news estão: a facilidade de compartilhamento de informação, a falta de verificação de quem compartilha, a procura de mais visualizações e a desvalorização do trabalho jornalístico profissional, que tem como objetivo levar notícias sérias e apuradas.

Principalmente no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, os jornalistas foram constantemente atacados, e os veículos de comunicação descredibilizados. Em 2019, ano em que o político assumiu a presidência, a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) também expôs no relatório publicado que o número de ataques a jornalistas, em comparação ao ano anterior, tinha subido 54,7%.

Violência como agenda política

De uma maneira estratégica, as acusações contra profissionais de comunicação levam a população, principalmente os fiéis seguidores do Bolsonaro, a não acreditarem nas notícias compartilhadas por veículos oficiais de imprensa.

Na saída do Palácio do Alvorada, o ex-presidente dava breves “entrevistas” coletivas, que ficaram conhecidas como “o cercadinho”, mas se tornou um local no qual

seus apoiadores agrediram verbalmente os jornalistas. Agressões tão severas, que o sindicato chegou a fazer um pedido ao governo federal para que eles fossem obrigados a acatar medidas preventivas, proporcionando mais seguranças aos jornalistas que faziam cobertura no local.

Observando essas situações, o professor de criminologia na Escola de Ciencias Sociais da “University of the West of England” na Inglaterra e pesquisador em terrorismo, João Raphael da Silva, defende que se um “ato envolveu o uso da violencia, ou ameaça, isso pode ser considerado terrorrismo por motivações politicas”.

Os casos que a Abraji começou a contabilizar desde 2013, mostraram que dos 114, 71 eram atentados intencionais. Um desses ataques levou um fotógrafo, que estava cobrindo as jornadas de junho, a perder seu olho esquerdo, consequência de um tiro de bala de borracha disparado pela Policial Militar de São Paulo.

A agressão policial não foi exclusiva neste episódio, já que das 114 agressões, 56 foram de responsabilidade de agentes de segurança, revelam dados da Abraji.

Mesmo com o passar do tempo, os ataques não melhoraram. No último ano de mandato de Jair Bolsonaro, em 2022, a Abraji mapeou em seu relatório “Monitoramento de ataques a jornalistas no Brasil” que os ataques cresceram 23%, resultando em 557 episódios.

O meio mais comum de ataque a categoria se deu pelos discursos estigmatizantes, a violência verbal, totalizando 61,2% dos alertas – quase um ataque verbal por dia. Depois está a categoria Agressões e Ataques, emitida em 31,2% dos alertas, que representou um aumento de 102,3% em relação ao ano passado.

De acordo com dados do Relatório da Violência Contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil, só em 2022, foram registrados 376 casos de agressão a jornalistas e veículos de comunicação no país, o que equivale a praticamente um caso por dia.

Jornalistas mulheres sob o front: por quê?

As questões de gênero também não deixam de aparecer nos ataques à profissão. Em entrevista ao Contraponto, Silvana Andrade, jornalista e fundadora da Associação Nacional de Difusão de Adubos (ANDA), dedicada a proteção animal e ambiental, relatou que durante a Era Bolsonaro chegou a sofrer ameaças físicas e perseguições, chegando inclusive a ser “encurralada” enquanto voltava de um evento. Além dos danos morais, as ameaças incluem perdas financeiras à jornalista.

Silvana participa de um quadro social onde 145 casos apontados pela Abraji mostram traços explícitos de violência de gênero, apresentando um aumento de 13,1%. Novamente os discursos estigmatizantes despontam 74 casos (51% do total), seguido por ameaças, intimidação e ciberameaças.

Sobre o assunto, a professora Oliveira pontua que “violência de gênero é uma violência estrutural” e que as jornalistas já sofriam dificuldades e violências nas suas práticas cotidianas. “É um ambiente hostil para as mulheres exatamente por ser um ambiente altamente masculinizado”, complementa.

Condenado em duas instâncias

Apesar das tantas ameaças e agressões, tanto verbais quanto físicas, a ideia da certeza da impunidade caiu por terra à medida que processos judiciais foram abertos por jornalistas e por todos os diretamente afetados por essa onda bolsonarista.

Em um processo movido pelo Sindicato dos Jornalistas de São Paulo (SJSP), Jair Bolsonaro foi condenado em segunda instância por dano moral e coletivo à categoria dos jornalistas, em um episódio inédito tratando-se de um presidente da República.

Raphael Maia destacou a derrota de Bolsonaro na justiça, fato que ganhou notoriedade internacional. “O que a gente queria era a condenação política e ele foi condenado. A repercussão foi a nível nacional e comentou-se em outros países que ele recorreu e a justiça manteve uma condenação”.

Maia diz que durante o processo arquivou matérias e entrevistas onde o então presidente atacava os jornalistas para embasar a denúncia e explica o tamanho da gravidade que ele acredita terem os ataques: “Por ser chefe do Poder Executivo, Bolsonaro influenciou muitas pessoas na máquina pública e os seus seguidores, e principalmente por conta da utilização da internet”.

Durante o julgamento, Bolsonaro não negou os ataques, mas tentou se esquivar da culpa. Em primeiro momento, alegou estar usufruindo de sua “liberdade de expressão” e foi condenado a pagar uma multa de R$ 100 mil.

Quando recorreu em segunda instância, disse que os ataques eram somente para “a esquerda”, do mesmo modo, entendeu-se que ele havia de ser responsabilizado. No entanto, a multa foi reduzida a R$ 50 mil. Para Raphael, o valor é simbólico e o que importa de fato é que o ex-presidente seja responsabilizado pelos crimes que cometeu.

Para Thiago Tanji, presidente do Sindicato dos Jornalistas em São Paulo, essa vitória foi um marco importante para a história recente do país, principalmente porque reafirmou que “tem atribuições que são inerentes ao papel de um chefe de Estado e certamente atacar uma categoria profissional não faz parte desse papel”, afirma Tanji.

Embora a categoria conte com o apoio de uma parte significativa da população, os jornalistas ainda, sim, viveram períodos sombrios nos últimos quatro anos. Em síntese, a pesquisadora Oliveira caracteriza essa agenda violenta como uma “disputa pelo poder político, porque a prática jornalística é, em si, base do próprio poder político; é base de uma sociedade democrática.”

As ameaças ficaram para trás?

Embora haja um avanço notável na relação do atual governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) com os jornalistas, Belda ressalta que na verdade apenas se voltou à normalidade, algo que não era sentido pelo péssimo padrão de relacionamento com os órgãos de imprensa no governo anterior.

Para o líder do Trust Project no Brasil, o momento atual merece atenção, visto que o país se encontra em um período “entre safras”.

“Nós temos agora uma janela de oportunidade de dois anos para aprovar no Congresso Nacional algum arcabouço legal que limite o uso de plataformas para fins de propagação de desinformação e discurso de ódio”, uma vez que o cenário político pró democracia pode ajudar na reconstrução de um debate sadio e da valorização do trabalho jornalístico.

Para o país seguir neste caminho o poder público tem um papel fundamental na garantia do pleno exercício da liberdade de imprensa, decorrente do direito de informação. “A sociedade também está junto nisso. O poder público deve salvaguardar em todas as suas instâncias, no Legislativo, no Executivo e no Judiciário, a própria liberdade de imprensa”, ressalta Lucy Oliveira.

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