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Douglas Belchior
Douglas Belchior
BRASIL, SÃO PAULO ATIVISTA, HISTORIADOR E EDUCADOR COFUNDADOR DA UNEAFRO BRASIL, ARTICULADOR DA COALIZÃO NEGRA POR DIREITOS E CONSELHEIRO DA CONECTAS
RACISMO BRASILEIRO BOICOTA DEMOCRACIA E RESSIGNIFICA OS DIREITOS HUMANOS DO PAÍS
Para ativista, movimento negro brasileiro fez campo dos direitos humanos encarar a complexidade das relações raciais no Brasil
O campo dos direitos humanos amadureceu na medida em que, finalmente, reconheceu a trajetória do movimento negro brasileiro como fundamental na luta por direitos. É assim que Douglas Belchior, educador, historiador e liderança desse movimento, enxerga as conexões feitas nos últimos anos entre organizações de direitos humanos e o ativismo negro. “Os negros tiveram a sua humanidade negada historicamente. Então, o pressuposto de atuação para a vida desse sujeito é reivindicar o direito humano dele, que a sociedade nega”, afirma Douglas. “Ao reivindicar a humanidade de um segmento violentamente desumanizado, como fomos os negros brasileiros, a gente luta pela humanidade de todos. E a sociedade ganha como um todo”, avalia ele, que é fundador da Uneafro Brasil, rede de cursinhos populares criada em 2008 para jovens negros e periféricos. “Até poucos anos atrás, o pressuposto no campo dos direitos humanos era a experiência de luta contra a ditadura militar. Aquele foi o momento da história em que corpos historicamente detentores de direitos foram violados em grande escala”, avalia Douglas. “Essa foi uma experiência que certo setor da sociedade não tinha vivido: eram filhos de trabalhadores brancos, das classes média e alta que também eram torturados e mortos. E, com isso, cresceu na sociedade uma repulsa àquele tipo de prática do Estado.”
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Mas a violência de Estado seguiu ocorrendo depois da ditadura. Em 2006, surgiu o Movimento das Mães de Maio, que escancarou a violência policial voltada à população negra após um massacre. Sob o argumento do combate a facções criminosas, a Polícia Militar de São Paulo matou 564 pessoas, em sua maioria jovens negros. “Não dava mais para o campo de direitos humanos ignorar a violência cotidiana, sistemática, imposta à população negra, seja pela repressão do Estado, seja pela negação de direitos”, afirma Douglas. A disseminação desse novo entendimento foi rapidamente percebida pela Conectas, que se propôs a fazer uma grande mudança estrutural na própria organização de modo a possibilitar uma atuação integral na promoção dos direitos humanos no Brasil, país que carrega as marcas do mais longo e intenso período de escravidão do planeta. Ao participar de uma reunião do conselho do Fundo Brasil de Direitos Humanos, em 2016, Douglas teve o primeiro contato com a Conectas e surgiu, a partir dali, um diálogo sobre a importância do debate racial dentro do campo dos direitos humanos. “A Conectas é uma das organizações que compreenderam a mudança no tempo e a necessidade de autocrítica e de mudança interna”, avalia ele. “Foi só nos últimos anos que transformações importantes aconteceram. Hoje, você não consegue falar de direitos humanos no Brasil sem falar sobre o racismo e sobre a violência do Estado contra pessoas. Mas, há apenas cinco anos, não era assim.” Segundo Douglas, os setores tradicionalmente ligados aos direitos humanos foram forçados a se movimentar, “até para se manterem coerentes com a ideia genérica de direitos humanos: que se respeite a humanidade de todos”, aponta ele. “Havia uma tensão para que os alvos da violência pudessem falar em seu próprio nome e uma pressão para que as organizações levassem essas vozes, e não apenas falassem em nome delas”, explica. Foi a partir de uma articulação de organizações de direitos humanos, da qual a Conectas foi parte importante, que Douglas representou o movimento negro brasileiro em uma sessão ordinária da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, em Washington, em 2018. “Essa prática colaborativa avançou e fortaleceu organizações negras de base. Isso é uma contribuição muito importante do nosso tempo”, afirma. Para Douglas, a Conectas é uma organização que promoveu e praticou mudanças de maneira visível. “É impossível não reconhecer que houve mudanças internas no direcionamento, na composição das equipes, na linha de atuação, na elaboração e na percepção sobre direitos humanos”, aponta. “A Conectas teve coragem, teve
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compromisso e foi coerente. Ela guardou a coerência que o campo de direitos humanos deve ter.” Dois fatos fizeram com que as organizações que atuam no campo dos direitos humanos tivessem que acelerar a compreensão sobre como opera o racismo e qual é a melhor atuação para enfrentá-lo: o assassinato da vereadora Marielle Franco, mulher negra, em março de 2018, e a morte de George Floyd, homem negro, em 2020, sufocado pelo policial branco Derek Chauvin em Minneapolis, nos Estados Unidos. “Esses acontecimentos moveram placas tectônicas que sustentam as estruturas da sociedade e encontraram um terreno fértil, trabalhado pelo movimento negro nos momentos de pior sensibilidade para o assunto”, diz Douglas. “O sangue de Marielle brota em um chão arado pelo movimento negro. Não é um chão seco. São 500 anos dizendo exatamente aquilo que esse setor branco, inclusive dos direitos humanos, só admite agora”, conclui ele, para quem o debate sobre racismo ganhou novos olhares e perspectivas também ao ser impulsionado pelo movimento antirracista que tomou os Estados Unidos. No Brasil, há ainda o contexto político imposto pela chegada de Jair Bolsonaro à Presidência junto com uma agenda de negação do racismo, desrespeito aos direitos humanos, exaltação de torturadores e defesa de abusos por parte de policiais. Esse cenário fez com que organizações do movimento negro se unissem. E dessa união nasceu a Coalizão Negra por Direitos, com centenas de organizações e coletivos negros, além de algumas instituições brancas aliadas. Douglas é um dos grandes articuladores da Coalizão, um importante marco de defesa dos direitos humanos, da democracia e do enfrentamento ao racismo. Em seu manifesto, a Coalizão afirma que “enquanto houver racismo, não haverá democracia”, um slogan que Douglas ajudou a criar a partir de sua observação do cotidiano e da polícia do país. “O racis-
mo é o principal elemento de boicote e inviabilização da democracia. Não existe
democracia com racismo”, conclui.
Por Maria Carolina Trevisan
Participantes do XVI Colóquio Internacional de Direitos visitam o Aparelha Luzia, centro cultural e quilombo urbano de São Paulo fundado pela ativista e educadora Érica Malunguinho - Crédito: Bianca Moreira/ Conectas - outubro de 2019

