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Anna Clara de Aguiar Rodrigues O encontro com a civilização

lembrou-se de Baleia e chorou mais ainda. Nesse dia voltou para casa diferente, sem o caderno e com um canivete.

Cerca de uma semana se passou, e o garoto estava parado no portão da escola há mais de vinte minutos, e nenhum sinal de Gabriel. Continuou esperando por mais quarenta minutos, quando sua barriga começou a se embrulhar, ele resolveu procurar o irmãozinho no terreno de trás. Ouviu um choro e risadas, ao correr para a origem do som, se deparou com seu irmão sentado no chão, chorando e banhado em uma água grudenta e fedida com restos de lixo. Dois meninos rindo e forçando-o a engolir a comida da lixeira, dizendo que o menino não comia em casa e eles estavam fazendo uma caridade. Esse foi o gatilho final para Miguel, que sem pensar duas vezes pulou em cima de um dos meninos, tirando seu canivete da mochila. O outro saiu correndo para chamar ajuda, e quando voltou, a primeira coisa que viu foi Miguel enfiando a lâmina no peito do menino, gritando palavras não totalmente conectadas umas às outras. Tudo estava vermelho, quente, desfocado, girando. Ouvia muitas pessoas fazendo muitos barulhos, não sabia ao certo o que estava acontecendo, pois a voz mais alta era sua cabeça gritando sem parar. Sua cabeça latejava, o coração quase explodia, a mão suja de sangue continuava tirando e colocando a lâmina no garoto. Naquele momento, a única coisa que soou mais alto que seu barulho interior, foi a sirene do carro de polícia. Anna Clara de Aguiar Rodrigues

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O encontro com a civilização

Estavam todos cansados, exaustos. Iam em direção ao trem. Por muito tempo, o objetivo principal da família era fugir. Dos problemas, das pessoas, da seca. Mas naquele momento, a única preocupação era pegar o trem que estava prestes a passar. Acostumaram-se com pouco, mas naquele momento, qualquer coisa perdida podia ser muito. Além do mais, suas bagagens correspondiam a todos os seus pertences.

Fabiano entregou ao homem do trem as passagens que havia comprado na tarde anterior, depois de conseguir dinheiro com um senhor de idade, que estava procurando alguém para catar frutinhas de seu quintal.

A família entrou, e os meninos já foram procurar os assentos. O menino mais novo estava hiperativo, foi correndo procurar os lugares. O menino mais velho foi atrás do mais novo, sem a velocidade e sem o ânimo do mesmo, mas foi. Sinhá Vitória carregava uma japona em seus antebraços, para caso sentisse frio, não ter que pegar na sua bagagem. Alguém contou que aquilo era deselegante, porque ela teria de interromper a passagem do corredor do trem

para se locomover a fim de pegar o casaco. Sinhá Vitória nunca se importou com se ia ser vista como elegante ou não. Mas nos últimos tempos, o medo havia consumido-a. A incerteza passou a ser uma angústia frequente. Ela não podia arriscar não ser boa o suficiente para sua nova realidade. Absolutamente tudo estava em jogo. A família se sentou nos bancos. O silêncio permanecia. Fabiano passou a mão áspera em sua nuca, tentando reduzir o calor que seu corpo estava produzindo. Por mais que o calor fosse cotidiano, Fabiano estava queimando de nervoso. Tinha se sentido assim.

Sinhá Vitória mantinha a postura ereta. Fabiano estava com o tronco torto e vista turva. O Menino mais novo olhava a janela, procurando algo que o pudesse entreter. O mais velho cutucava o dedo, tirando a cutícula causando uma hemorragia externa. Colocou o dedo na boca para estancar o sangue. O pequeno foi o primeiro a adormecer. Encolheu-se e deitou a cabeça no ombro da mãe, que havia sentado ao seu lado. Sinhá Vitória olhou para o menino, voltou a olhar a janela. Apoiou sua mão gentilmente na cabeça do menino.

Todos adormeceram, mesmo com o trem chacoalhando. Estavam cansados demais para reclamar de qualquer coisa.

Sinhá Vitória acordou assim que o sol saiu de trás de uma das montanhas. Olhou ao seu redor, e viu que era a única acordada. Admirou seus filhos e Fabiano. Teve um momento de epifania ali. Naquele momento, Sinhá Vitória se sentiu viva pela primeira vez. Fabiano respirava de forma bruta, e seus ombros pareciam pesados. Sinhá Vitória estava admirando-o quando uma gota de suor do mesmo caiu de sua testa em sua mão. Fabiano acordou no pulo. Olhou para um lado e para o outro e logo suspirou profundamente, como se estivesse hibernando e tivesse acordado depois de tanto tempo.

Os dois se olharam. Não era necessário que falassem nada. Fabiano e Sinhá Vitória nunca foram do tipo que se expressavam frequentemente. Sempre estavam de cabeça quente. Nunca sabiam o que estava acontecendo dentro da cabeça deles. Naquele momento tudo parecia se conectar. Eles finalmente se entenderam, se identificaram, se conectaram. O medo ali virou um só, o amor também.

O sol estava ficando mais forte, e a parada do trem já estava chegando. Fabiano cutucou o ombro do menino mais velho, que acordou no pulo.

—Vamos, Carlos. Pegue suas coisas, já vamos sair. — Fabiano disse num tom manso ao filho mais velho.

Sinhá Vitória mexeu o ombro no intuito de acordar o menino mais novo. Sinhá Vitória cochichou no seu ouvido:

—Acorda, meu filho. Vamos, João Miguel. Já chegamos.

João Miguel acordou e não entendeu o que estava acontecendo. O mesmo coçou os olhos e se espreguiçou. O trem fez um barulho de sino, indicando que os passageiros haviam chegado ao local. Fabiano conduziu o resto. Andou na frente. João Miguel se prendeu na barra do vestido da mãe. Carlos andava sem ânimo. Sinhá Vitória seguia Fabiano.

Fabiano parou por um instante, e deixou suas malas no chão. Parecia frustrado, cansado. O silêncio permaneceu. Todos se sentaram debaixo de uma