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Bruna Volpe Arnoni Silêncio na Cidade

Bruna Volpe Arnoni

Silêncio na Cidade

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Nos morros acinzentados, os prédios alargavam manchas pretas. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Fazia dias que procuravam um lugar para ficar.

Chegados à cidade grande, a família já exausta, não encontrava onde iria se encaixar. Andaram por todos os cantos, e já perto do sol se pôr, uma mulher os avistou e rapidamente foi oferecer ajuda. Em um lugar novo, sem conhecer ninguém, um ato de empatia amoleceu os corações dos viajantes.

Dona Lola, como era conhecida, vivia no bairro desde sempre. Conhecia tudo e todos. Quando viu os coitados completamente desalojados, perdidos, sentiu a necessidade de se aproximar. Com a melhor das intenções possíveis ela falou;

— Vocês são novos por aqui? Precisam de alguma ajuda?

Se sentindo “ameaçados”, a primeira reação deles foi se esquivar. Mas após a mulher insistir que só queria ajudar, Sinhá Vitória acabou cedendo.

A mulher os levou para casa. Deu-lhes comida, roupas e um lugar para ficar. A casa não era grande, mas era melhor que ficar na rua. Os meninos dormiram no chão, no pé da cama dos pais. Uma cama grande e macia, confortável e muito diferente da cama de varas. Do jeito que Sinhá Vitória sempre sonhou.

Passados alguns meses, a família estava instalada na cidade. Conseguiram uma pequena casinha, graças ao serviço de cozinheira de Sinhá Vitória. Ela não ganhava muito, mas recebiam ajuda de dona Lola e de outras pessoas da vizinhança. Claro que a família teve dificuldades. Não acostumados a uma convivência social estranha, foram jogados no meio de uma cidade grande e obrigados a lidar com as pessoas dali. Todos tiveram dificuldades e cada um expressou isso de uma maneira completamente diferente.

Fabiano, sempre muito fechado, encontrou desafios novos. Não sendo alfabetizado e tendo certos receios sobre praticamente tudo, o homem se isolou. Quando a família chegou à cidade, Fabiano foi em busca de um novo trabalho e nas primeiras semanas até conseguiu algumas oportunidades, mas nada fixo ou que garantisse algo para seus filhos. Ele entrou em uma crise, se questionando novamente: “Eu sou um homem? Sou um bicho?”.

Sem suportar a ideia de não conseguir ajudar sua família, o homem que não era de muitas palavras, encontrou o refúgio em outra coisa. Voltando para sua vida antiga, no interior da caatinga, a única maneira com que o pai conseguia se divertir era bebendo. Ele conseguia esquecer, conseguia imaginar, se sentia livre de julgamentos, livre da sua vida seca. Ele não sabia expressar o que queria, o que sentia. Não conseguia conversar. Tinha muitas palavras não

faladas. Sua vida já não fazia mais sentido.

Os meninos começaram a estudar. Lola havia os matriculado em uma escola do estado, a algumas quadras de suas casas. O mais velho acabava de completar 13 anos, estava no oitavo ano do fundamental. O mais novo com seus 10 anos, estava no quinto ano do mesmo período. Tiveram facilidade para se encaixar. Estavam sempre prontos para mudanças. Acostumados com não ter nada, ficavam felizes com o mínimo. Tinham sofrido com a morte de Baleia, afinal ela era parte da família, era parte dos meninos.

A mãe da família que estava sustentando a todos. Trabalhava a semana toda, mais de 12 horas por dia. Não aguentava mais. Estava exausta. Seu marido não saía da cama, a não ser que fosse para beber. Os filhos brigavam o dia todo. Não tinha a quem recorrer, não conseguia fazer tudo sozinha. Simplesmente desejava que sua família voltasse ao normal, mas assim como seu marido, não tinha capacidade de expressar o que estava sentindo.

A bebida estava destruindo Fabiano aos poucos, mas ele nem se importava mais. Não tinha mais prazeres na vida. Ele via sua esposa triste, mesmo sem dizer. Queria ajudá-la, mas como, se não conseguia nem se ajudar? Ela se esforçava para tudo acontecer e ele se sentia cada vez mais inútil. Cada vez mais próximo de um animal, estava deixando de ser um cabra. Não tinha lugar para ele naquela cidade. Seu lugar era com os animais. Seu lugar já não era mais com os humanos. Fabiano desejava se juntar à Baleia. Ele queria ir da mesma forma que sua cachorra, doente, pois ele sabia que o que ele tinha nada podia curar. A mesma arma que tinha matado um membro da família, agora matava dois. Sua vida já não era mais seca.

Após ter sobrevivido a tortura de todas as formas possiveis, Fabiano já não estava mais entre nós e agora só haviam restado três, que um dia foram cinco. A angústia era tanta, o medo era tanto, que Sinhá Vitória não conseguiu se conter. Chorou durante dias. Pensando por que ela não conseguiu ajudar Fabiano. Pensando em quem seria o próximo.

Não conseguiam se comunicar. Todos estavam abalados com a morte do pai, mas ninguém falava nada. O menino mais velho havia encontrado o pai recém morto. Foi o primeiro a ver a tragédia e dessa vez não podia conversar com Baleia. O silêncio dentro da casa era ensurdecedor. Vozes tão barulhentas não conseguiam escapar da cabeça. Eles já não eram mais os mesmos. O sangue derramado era tão molhado que nesse ponto nenhuma de suas vidas seria seca nunca mais.