Revista Correntes d'Escritas 2021

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Correntes D’Escritas 76

Companheiros de viagem

Dossier

Ilide Carmignani Em frente à secretária tenho a fotografia de um homem robusto de barba e cabelos negros. Tem óculos escuros, um blusão de pele e sorri no meio de um rio de ovelhas brancas. Por trás dele estende-se o cinzento ténue de uma pradaria recortada por gradeamentos precários, pedaços de madeira e arame farpado. O homem estende os braços e é como se aquele gesto abrisse a fotografia, a desdobrasse diante do meu olhar. O horizonte não se vê, mas eu sei que é amplo, imenso, porque estamos na Patagónia. Aquele homem robusto de barba e cabelos negros chama-se Luis Sepúlveda e fez-me companhia durante vários anos da minha vida: todas as manhãs me sentei a traduzir as suas histórias até à noite, vinte e cinco livros, um número considerável de poemas, dois guiões e já nem sei quantos artigos que transmitiram a sua respiração, a sua cor aos meus dias, um fio de palavras tão longo que ligou a ele para sempre aqueles pedaços do meu passado: filhos que nasciam, pais que morriam, alegrias e tristezas da vida. Uma velha metáfora afirma que traduzir é como pôr os pés nas pegadas do outro, e é grande o esforço para medir exatamente o passo, para que seja daquele exato comprimento, ora tão pesado, ora tão leve, na sua terra latino-americana. Às vezes falta-nos o terreno debaixo dos pés: aquela pradaria é feita de ervas que não têm nome em italiano e aquele verão ofuscante resplandece durante o nosso inverno. Às vezes a desorientação é mais subtil: por que razão o escritor deu aquele passo e escolheu precisamente aquele caminho de entre todas as estradas que podia percorrer na sua língua, na sua literatura? A perseguição torna-se mais complicada, não basta estudar a paisagem, é preciso escutar. Então, no silêncio, ressoa baixinho a voz de um ausente, que fala de outros e de si e, como sempre acontece, fala de si mesmo falando de outros. Claudio Magris disse que “para traduzir uma cor que desce num entardecer sobre a curva de um rio, seria preciso de alguma forma saber o que foi aquela vivência, naquele entardecer”. Acho que é para esta intimidade extrema, quase assustadora, que tendem todos os tradutores, apesar de se contentarem, ao fim e ao cabo, com simples pressentimentos, pequenas intuições, minúsculas descobertas. Por vezes a intimidade de papel que liga o tradutor ao escritor é abalada por um encontro real. A primeira vez que me

encontrei com Luis Sepúlveda foi há vinte e seis anos e poderia falar-vos da ansiedade que me acompanhou durante toda a viagem desde as colinas toscanas até Milão, porque um tradutor é recebido com uma tenaz desconfiança, não é da casa nem de cá nem de lá da fronteira que separa duas línguas, dois mundos, e está sempre num precário equilíbrio sobre a aresta subtil que divide fidelidade e beleza. Poderia falar-vos da aflição que naquela noite me dominou no hall do hotel quando do elevador saiu um homem robusto de barba e cabelos negros exatamente igual ao da fotografia publicada nos jornais que dizia por baixo “Luis Sepúlveda”. Poderia falar-vos do olhar interrogativo que ele me dirigiu, da hesitação na minha voz quando me apresentei, e do abraço de urso com que quase me ergueu do chão ao mesmo tempo que me agradecia por lhe ter emprestado a minha voz perante os leitores italianos. Não traditrice, mas compañera de camino. Se as fotografias mostrassem também o outro lado, ou seja, a cena que tem à frente o homem de barba e cabelos negros, sei que veria um homem magro, vestido de escuro, de barba e cabelos ruivos que o preto e branco tornaram cinzentos, Daniel Mordzinski, o fotógrafo que a tirou. Desde aquela noite de há muitos anos atrás, em Milão, Luis Sepúlveda nunca mais deixou de me convidar para me sentar à sua mesa, ao lado de Daniel, de Pelusa, de Luigi, de Bruno, dos amigos de tantos países distantes, reunidos diante de um copo de vinho, e eu não poderia estar-lhe mais grata pelo caminho que percorremos juntos. Não consigo dizer como me dói agora a sua cadeira vazia. Tradução de Regina Valente

Ilide Carmignani é a tradutora para italiano de toda a obra de Luis Sepúlveda e de autores como Bolaño, Cortázar, García Márquez, Neruda, Onetti, Paz, entre outros. Desde 2000 organiza os encontros profissionais sobre Tradução do Salão do Livro de Turim.


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