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«Por dia corro cerca de 30 km»

NELSON CRUZ

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Em março de 2016, sagrou-se campeão nacional de corta-mato, um feito quase inédito para um atleta amador. Aos 39 anos e carreira de duas décadas, Nelson Cruz trabalha num hipermercado, no Feijó, e representa o Clube Pedro Pessoa – Escola de Atletismo. A Pista Municipal de Atletismo, na Sobreda, local habitual de treinos, foi o cenário escolhido para esta conversa.

«A UM PASSO DE CONSEGUIR UM FEITO INÉDITO»

A vitória no Campeonato Nacional de Corta-mato surpreendeu o mundo do atletismo nacional. Também ficou surpreendido? Para mim e para o meu treinador não foi uma surpresa porque nós trabalhamos diariamente e sabíamos que um resultado como o que acabei por alcançar era possível. Talvez esperasse que tal acontecesse numa prova de estrada e não num corta-mato, mas não foi uma total surpresa.

A tática era fugir ao pelotão logo no início da prova? A tática combinada era ir para a frente, impor o meu ritmo de corrida e chegar nos dez primeiros, que era o meu objetivo inicial.

Ainda ouviu alguns comentários para o deixar ir porque depois seria apanhado? Isso ainda me deu mais força. Quando eu ganhei vantagem, eles não estavam preocupados comigo porque pensavam que mais tarde iriam alcançar-me. Foi aí que eu forcei e ganhei uma grande vantagem. Quando é que acreditou que iria mesmo vencer? À entrada para a última volta. Sabia que tinha de dar tudo o que tinha porque estava a um passo de conseguir um feito inédito na minha carreira.

Como é que foi a receção em casa? Só no dia a seguir, com os jornalistas a ligarem e as pessoas a enviarem-me mensagens de parabéns, é que elas (mulher e duas filhas. A terceira filha vem a caminho) se aperceberam da dimensão desta vitória.

E no local de trabalho, como é que foi a reação dos colegas? Para eles também tinha sido mais uma prova, mas rapidamente perceberam que eu tinha conquistado o Título Nacional de Corta-Mato e foi uma coisa incrível. Foi muito bom.

As horas que antecederam esta prova fogem um pouco ao habitual de um atleta, quando se tem uma competição desta importância? Eu trabalho num hipermercado, no Feijó. No

Em 2013, Nelson Cruz participou e venceu a 1.ª Meia Maratona de Almada

dia anterior ao Nacional de Corta-Mato saí às 00h30, fui para casa preparar as coisas para a prova e consegui dormir algumas horas. Às seis da manhã já estava junto à Pista Municipal de Atletismo, na Sobreda, de onde partia o autocarro da Câmara Municipal de Almada, em direção ao Algarve. Durante a viagem é que aproveitei para descansar um pouco.

«EU SOU O MESMO DE SEMPRE»

Este título mudou alguma coisa no atleta Nelson Cruz? Eu sou o mesmo de sempre. A única coisa que mudou foi o mediatismo gerado por este título de campeão nacional de corta-mato. É mais stressante porque procuro dar resposta a todas as solicitações dos jornalistas, o que obriga a ter que adaptar os meus horários de trabalho e de treinos. Mas é uma sensação agradável. São, como diz, quase 20 anos dedicados ao atletismo e 16 anos com o meu treinador, o Pedro Pessoa. São muitos anos a treinar juntos e também já passámos por muito. Já tive outras vitórias, mas esta tem um sabor especial. Este título de campeão nacional é quase como um prémio de carreira porque o corta-mato não é a minha especialidade.

O que é que faltou para não se ter tornado num atleta profissional? As oportunidades não surgiram no momento certo. Eu sempre trabalhei e nunca abdiquei disso. E como os clubes também não acreditavam em mim, o tempo foi passando. Mas olhando para trás, a minha carreira tem sido pautada por uma evolução lenta mas constante, e isso deixa-me muito satisfeito.

Está a tentar o apuramento para os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, na maratona? Acredita que vai ser possível? Sim, acredito que é possível. Mas a maratona é uma prova muito específica e onde tem de haver uma grande gestão do esforço. Numa

Rodrigo Francisco no ensaio da peça O Timão de Atenas, em 2012, com o ator Luís Vicente | © Rui Carlos MateusNélson Cruz cumpriu os 21,097 km da 1.ª Meia Maratona de Almada em pouco mais de 1 hora e 9 minutos

maratona as coisas têm de conjugar-se todas, desde as condições meteorológicas, ao meu estado físico e mental, para conseguir um bom resultado.

Quando é que vai tentar o apuramento? Vai ser no dia 8 de maio, na maratona de Praga [República Checa].

Durante 42,195 km, a distância de uma maratona, pensa-se em quê? Pensa-se em tudo… até na refeição que se vai fazer a seguir. Mas temos de estar muito concentrados e atentos a todos os pormenores. A leitura da prova é constante, como é que estão os adversários, como é que nós estamos a reagir e ter uma grande atenção aos postos de reabastecimento, de cinco em cinco quilómetros, e não os falhar. É por isso que eu digo que a maratona é, sobretudo, uma gestão de esforço.

Numa prova tão longa como a maratona, existe algum quilómetro crítico? Os 35 km são, para a maioria dos maratonistas, o ponto crítico mas cada maratona é diferente e a quebra física ou psicológica pode acontecer a qualquer momento.

E o dia a seguir a uma maratona? Estou apto a ir trabalhar, mas não estou a 100%. As coisas fazem-se mais devagar porque existem ainda muitas dores musculares. E de tudo o que temos de fazer nesse dia, descer escadas é o mais doloroso.

Após uma maratona, quando é que fica apto a correr outra? Tem de se fazer uma recuperação de mais ou menos duas semanas. E depois temos de retomar, de uma forma gradual, os treinos e a intensidade dos mesmos, o que dura cerca de dois meses.

Caso consiga o apuramento para os Jogos Olímpicos, vai representar Cabo Verde e não Portugal. Porquê esta opção? Isto aconteceu porque as vagas para entrar na seleção portuguesa eram poucas. Eu nasci em

© União de Freguesias da Charneca de Caparica e Sobreda

Nelson Cruz (à dta.) acompanhado por Pedro Pessoa, treinador e amigo de longa (à esq.) e Carlos Alves, atleta veterano do Boavista do Pico, clube dos Açores (ao centro), durante o 2.º Grande Prémio de Atletismo do Clube Pedro Pessoa – Escola de Atletismo, prova que integrou o Troféu Almada 2016

Portugal mas, como os meus pais são caboverdianos, surgiu o convite para representar Cabo Verde no Campeonato do Mundo de Helsínquia (Finlândia), em 2005. Surgiu essa oportunidade e eu optei por representar, ao nível das seleções, Cabo Verde nas competições internacionais.

Já esteve nuns Jogos Olímpicos, em Pequim 2008. Como é que foi? É algo marcante para qualquer atleta. É uma sensação muito intensa. Mas aquilo que mais recordo foi a entrada no estádio, para os últimos metros da maratona… foi arrepiante.

«NOS MEUS DIAS DE FOLGA TENTO DAR MAIS ATENÇÃO À FAMÍLIA»

Apesar de ser atleta amador, treina como um profissional. Como é um dia de treinos? Faço dois treinos por dia e não há nenhum dia de descanso. De manhã, começo por volta das oito horas. À tarde, entre as 18h30 e as 20h30, faço o meu segundo treino do dia, na Pista Municipal de Atletismo. Por dia corro cerca de 30 km.

O Nelson Cruz trabalha, treina, vai às provas e, nos últimos tempos, teve de dar muitas entrevistas. Como é que se gere o tempo? Não é nada fácil. A minha mulher tem de ter muita paciência. Nos meus dias de folga tento dar mais atenção à família e o pouco tempo que estamos juntos, aproveitamos ao máximo.

E a entidade patronal também tem sido compreensiva? Sim, eles também têm-me ajudado. Eu já trabalho ali há mais de dez anos e nunca tive problemas.

É atleta do Clube Pedro Pessoa – Escola de Atletismo, clube da Sobreda. Como é que surgiu esta ligação? Entre mim e o Pedro Pessoa existe uma grande amizade, ele é mais do que um irmão. Estamos

A Pista Municipal de Atletismo, na Sobreda, é um dos principais locais de treino de Nelson Cruz

juntos há 16 anos e isto repete-se quase todos os dias. Há três anos surgiu a oportunidade de criar um clube porque já tínhamos um grupo de atletas, treinados pelo Pedro Pessoa, mas espalhados por vários clubes. E foi assim que surgiu o Clube Pedro Pessoa – Escola de Atletismo, aqui na Sobreda.

Este é um clube muito ligado à formação. Com a sua experiência pode ser uma boa ajuda para os mais novos? Eu julgo que sim, e é essa experiência e conhecimento que eu procuro transmitir aos atletas mais novos. Esse foi sempre o nosso objetivo, ajudar os jovens atletas a evoluir e os resultados têm aparecido.

Almada é candidata a Cidade Europeia do Desporto 2018. Acredita que esta é uma candidatura válida? Claro que sim. Almada tem realmente um grande potencial e nós, atletas e clube, também queremos contribuir para que o concelho consiga ser, em 2018, a Cidade Europeia do Desporto. Almada tem tudo para, também ao nível do desporto, ter uma grande projeção a nível nacional e internacional.

«CORRER É UMA NECESSIDADE»

Quando deixar de competir, vai manter-se ligado ao atletismo? Isso é quase certo. Aliás, eu já concilio a parte de atleta com a parte de treinador, procurando dar todo o meu apoio ao Pedro Pessoa. Mas só quando sentir que já não consigo obter os resultados que ambiciono é que vou parar de correr. Depois espero poder continuar ligado à formação de novos atletas.

Mas vai continuar sempre a correr? Isso sempre. Correr faz parte de mim. Nos dias em que não corro fico rabugento e irritado… não me sinto bem. Correr é uma necessidade.

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