INTERAÇÃO HOMEM-ANIMAL
Do utilitarismo ao abolicionismo: as origens e a evolução das principais correntes de pensamento a respeito de proteção animal nas últimas décadas Introdução A inclusão dos animais na esfera moral da sociedade é algo recente do ponto de vista histórico, o que se torna compreensível se considerarmos que, até pouco mais de um século atrás, mesmo os seres humanos (mulheres, negros, judeus e tantas outras etnias) foram, de diferentes formas, excluídos dessa esfera em diferentes sociedades. Os séculos XIX e XX foram marcados por mudanças políticas, econômicas e sociais que inegavelmente remodelaram nossos parâmetros morais. A II Guerra Mundial trouxe não só os horrores do genocídio declarado, mas, como toda guerra, obrigou mais uma vez o mundo todo a repensar aquilo que chamamos de direitos humanos. Todavia, bem mais além, a fome e a miséria produzidas pelas duas grandes guerras deram início a uma nova relação com os alimentos 1,2 e a sua forma de produção. Em seu livro Eating animals, Foer 3 discorre a respeito da força da cultura alimentar e do significado do alimento para pessoas da geração de sua avó, sobrevivente judia da Segunda Guerra, fugida da Europa para os Estados Unidos: “Durante a guerra era o inferno na terra, e eu não tinha nada. Eu deixei minha família, você sabe. Estava sempre correndo, dia e noite, porque os alemães estavam sempre logo atrás de mim. Se você parasse, morria. Nunca havia comida suficiente. Fui ficando cada vez mais doente por não comer, e não falo só de estar pele e osso. Eu tinha feridas por todo o corpo. Ficava difícil mover-me. Eu não tinha escrúpulos de comer de uma lixeira. Eu comia as partes que outros não comeriam. Se você se servisse, você poderia sobreviver. Eu comia aquilo que encontrasse. Comi coisas que não contaria a você.” Depois da fome e da crise mundial gerada pelas grandes guerras, após 1945 o mundo deparou com a necessidade de produzir muito alimento, e alimento barato. Desenvolveramse o que chamamos hoje de factory farms: a criação de animais em sistemas de alta densidade populacional e alta produtividade (carne, ovos, leite e derivados) a baixo custo, com sérias consequências para o bem-estar dos animais. Para o consumidor, no entanto, a imagem tradicional da fazenda com diversas pequenas criações ao ar livre pareceu perdurar por muito mais tempo. Com algumas raras exceções, a maior parte dos movimentos de proteção animal surgiu por volta da década de 1980: a International Organization for Animal Protection (Organização Internacional para a Proteção Animal – OIPA) 4, assim como a People for the Ethic Treatment of Animals (Pessoas a Favor do Tratamento Ético dos Animais – PETA) 5 , surgiram em 1981; a World Society for the Protection of Animals (Sociedade Mundial de Protecção dos Animais – WSPA) 6, outra instituição de atuação mundialmente 36
conhecida, surgiu logo após, em 1986. O movimento pelos direitos dos animais teve início bem mais cedo na Europa, e em seguida nos Estados Unidos, sendo bem mais recente no Brasil. A Oeuvre d’Assistance aux Bêtes d’Abattoirs (Trabalho de Assistência aos Animais de Abatedouro – OABA) 7 existe na França desde 1961, e o Farm Animal Welfare Comittee (Comitê de Bem-estar dos Animais de Produção – FAWC) 8 existe na Grã-Bretanha desde 1979. Em 1964, Ruth Harrison lançou na Inglaterra o livro Animal machines 9. Trata-se do primeiro livro a denunciar os maus-tratos infligidos aos animais de produção para a população consumidora, que inaugurou um debate ético a respeito da produção animal. A publicação teve tamanho impacto que, em seguida, o Parlamento britânico criou o Comitê Brambell 10, visando examinar as condições de criação dos animais de produção e decidir sobre o estabelecimento de padrões mínimos de bem-estar animal (BEA) 11. O exemplo de Ruth Harrison mostra como uma iniciativa bem-sucedida em termos de comunicação tem o poder de modificar o sistema de produção, seja diretamente, pela pressão do consumidor, seja pela legislação (por sua vez, também determinada por pressão da população). Principais concepções sobre bem-estar animal Até os anos 1990, a literatura – mais especificamente, a proposta de Tom Regan – descreve o conceito de BEA como uma tríade. Por um lado, há a visão ocidental antropocêntrica, isto é, a proposta conservadora, defendida pelos que entendem não haver necessidade de mudança na atual condição dos animais não humanos. Há então a visão compassiva, baseada na convicção de que um ser vivo capaz de sentir também é capaz de sofrer. Esse grupo foi posteriormente definido como reformista – que propõe uma reforma no bem-estar dos animais, mas ainda dentro de um contexto de exploração. E temos finalmente a abordagem definida como biocêntrica, que afirma que todos os animais merecem respeito como seres portadores de valor intrínseco. Esta última, conhecida como corrente abolicionista, defende a cessação de todas as práticas que usam os animais não humanos como objetos ou instrumentos para os propósitos humanos. Assim, são duas as grandes vertentes em que se dividem os defensores dos direitos dos animais: bem-estar animal e abolicionismo animal, com suas respectivas complexidades 11,12. A concretização de verdadeiras escolas de pensadores voltadas especificamente para a questão do BEA e dos direitos dos animais é algo notório da década de 1970 até os dias de hoje, e merece especial atenção neste trabalho. O blog do grupo de estudos sobre direitos dos animais da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) oferece aos internautas um resumo dos principais pensadores da
Clínica Veterinária, Ano XVII, n. 101, novembro/dezembro, 2012