O monstruoso na literatura e outras artes

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João Carlos Firmino Andrade de Carvalho

hermafrodita de Esgueira, perto de Coimbra, que transitou de mulher (Maria Pacheca) a homem (Manuel), enriqueceu na Índia e, tendo regressado ao país, casou (vol. I, pp. 230-231). O campo da ginecologia-obstetrícia e o do corpo feminino são, aliás, férteis em explorações teratológicas relacionadas com os interditos (tabus) sexuais. Amato Lusitano abre a sua escrita aos encantamentos de certa mitologia sexual feminina, como se constata no caso da mulher que engravida com o sémen viril deixado na água do banho (vol. II, p. 49) ou no caso da extração da mama cancerosa articulada com a fábula/mito da castração mamária das Amazonas (vol. I, p. 326; vol. II, p. 108). Exemplo loquaz desse deslumbramento pela mitologia sexual feminina é o daquele caso de uma gravidez decorrente do relacionamento lésbico entre duas turcas, uma casada e outra viúva, que transcrevemos em seguida: Vou descrever um caso estranho, mas verdadeiro, acontecido em Salónica. Duas mulheres turcas vizinhas, em virtude de muitos actos de coito, íncubos e súcubos, contaminavam-se e poluíam-se. Destas, uma era viúva e a outra tinha marido. Ora, quando uma vez a viúva, excitada para o coito, provocasse a outra companheira para a acção do coito, e por acaso na altura em que o marido com que esta tivera a prática, saíra de casa, pôs-se em atitude súcuba. Neste trabalho do coito e de abraços, depois de muita fricção e apegos e da ejaculação de sémen, o útero da viúva súcuba sorveu, em virtude de enorme apetência, não só o sémen da mulher íncuba, mas ainda algum sémen viril deixado antes no útero dela. Em virtude deste sémen ficou prenhe, na afirmação da própria, após feitos vários juramentos. E devemos-lhe dar crédito, visto ser-lhe menos ignominioso confessar ter concebido de um homem do que de uma mulher, feito desta forma.12

Finalmente, nas Centúrias, a disformidade/anormalidade de natureza psicológica evidencia-se nos casos de loucura induzida por feitiçaria/bruxedo (vol. II, p. 292) ou, sobretudo, nos casos de patologias da alma/espírito/cabeça (mais graves do que as do corpo, segundo Amato) de que fazem parte a mania, a loucura e uma das principais doenças da época – a melancolia – de que podem padecer os afetados por mal de amor (tópico literário presente na 12

Amato Lusitano, Centúrias de Curas Médicas, reed. da tradução de Firmino Crespo, Lisboa, Centro Editor Livreiro da Ordem dos Médicos, Sociedade Unipessoal, Lda., 2010, vol. II, p. 361.

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