Imagens, reverberações na poesiade Alberto da Cunha Melo:uma leitura estilística

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56 Tudo já devia estar pronto antes deste desesperar com que arrumas as estantes ou atravessas o verão.

A relação entre o título e os primeiros versos não se dá de maneira automática, o leitor se prepara, então, para uma interpretação metafórica. Na primeira estrofe, os vocábulos analgésicos e consolação introduzem a idéia de dor, sofrimento. A expressão caixa de analgésicos pode representar a munição usada para o conflito, sugerindo a opção pela fuga, o adiamento do confronto. Na segunda estrofe, a viagem de um quarto a outro traz para o âmbito do lar os perigos e as surpresas de qualquer viagem, evidenciando as dificuldades da vida familiar. A terceira estrofe se liga mais diretamente ao título e nos oferece uma pista de interpretação. A imagem do ruído de multidão que se aproxima traduz com força o ressentimento, a mágoa acumulada ao longo do tempo e que, a qualquer momento, pode levar ao descontrole, à agressão, a brigas aparentemente sem motivo, tornando o convívio insuportável. Vale notar o uso ambíguo do vocábulo ressonância, que se refere à importância atribuída às coisas simples e ao som que se propaga, o que intensifica o valor expressivo da imagem. O interior da casa passa a ser, assim, não um lugar de conforto e proteção, mas um depósito de munição, sempre exposto ao perigo de explosão. Na quarta estrofe, as interrogações revelam grande envolvimento emocional do eu lírico, que explicita seus medos. E o leitor se pergunta sobre o que pode significar o imutável: a morte, talvez, ou a separação definitiva do casal. A última estrofe explicita o sentimento sugerido ao longo do texto por meio de desesperar. A escolha pelo verbo substantivado, em vez de desespero, dá ênfase ao crescimento do sentimento, pois chama a atenção para a ação. O ambiente perigoso da vida conjugal é evidenciado por meio da descrição do cônjuge — possivelmente a esposa, embora não haja referência explícita de que o eu lírico seja o marido — que empenha seu ódio acumulado na preocupação excessiva com a organização da casa, o que enfatiza a desordem no plano dos sentimentos. A imagem de atravessar o verão amplia ao máximo a sensação do desespero, uma vez que atravessar supõe dificuldade e exclui qualquer possibilidade de permanência, de prazer. O verão é algo que deve ser superado, adquirindo conotação de algo sufocante, que oprime. A imagem do calor insuportável, contida em verão, fecha o poema com a sensação desconcertante do depósito de munição prestes a explodir. O leitor é guiado por conexões implícitas entre as estrofes, como se o sentido global do texto se fizesse pelo que é silenciado. Obviamente, o silêncio, como elemento de


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