A poesia e o sagrado:traços do estilo de Adélia Prado

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Isabel de Andrade Moliterno

A poesia e o sagrado: traços do estilo de Adélia Prado Dissertação


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2002


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Isabel de Andrade Moliterno

A poesia e o sagrado : traços do estilo de Adélia Prado

Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas (área de concentração: Filologia e Língua Portuguesa) da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

Orientadora: Profa. Dra. Guaraciaba Micheletti

Agosto de 2002


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A minha mĂŁe, Maria Augusta, minha grande consultora sobre os mineirismos de AdĂŠlia Prado.


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Agradecimentos

Agradeço à Professora Guaraciaba Micheletti, pela orientação cuidadosa que excedeu os limites do acadêmico; a Raquel de Sousa Ribeiro, por ter me ajudado a iniciar e concluir este trabalho e pelos anos em que foi minha professora de Literatura Portuguesa, na graduação; ao Professor Mário Ferreira, pela valiosa contribuição que me fez dar um novo encaminhamento a esta pesquisa; a minha amiga Letícia Paula de Freitas, que me apresentou à obra de Adélia Prado; aos meus professores, de graduação e pós-graduação, que tanto me ensinaram e continuam a me inspirar; ao Rodrigo, que cuidou de mim enquanto eu cuidava desta dissertação.


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Resumo

Com a análise estilística de alguns poemas de Adélia Prado, este trabalho apresenta alguns traços lingüísticos expressivos recorrentes em sua obra poética, com o fim de contribuir para um mapeamento de seu estilo. A análise dos poemas verifica, ainda, como o sagrado surge na obra da autora, constituindo um elemento determinante na composição de sua linguagem poética. Palavras-chave:

Adélia

Prado;

Portuguesa; Literatura Brasileira; Poesia.

Estilística;

Língua


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Abstract

The goal of this study is to register some uses of language that are recurrent in Adelia Prado’s poetry in order to contribute to the description of her style. Once the religious effect is an important expressive element of her compositions, the poem analysis considers how this effect is constructed by the use of language, although it observes each linguistic feature considered expressive to create meaning in the studied texts. Key-words:

AdĂŠlia

Prado;

Language; Brazilian Literature; Poetry.

Stylistics;

Portuguese


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Sumário

1 Introdução .....................................................................................................08 1.1 Bases teóricas .........................................................................................10 1.2 A concepção de sagrado .........................................................................14 1.2.1

O sagrado e o profano na poesia de Adélia Prado ........................15

1.3 Das análises de poemas ...........................................................................16 2

As análises ...................................................................................................19 2.1 A invocação do sagrado .........................................................................19 2.1.1 A prece de um órfão ...................................................................20 2.1.2 A forma do sagrado ....................................................................35 2.1.3 Um poema bíblico .......................................................................49 2.1.4 Poema para um santo ..................................................................61 2.2 E o sagrado se manifesta ........................................................................71 2.2.1 A poesia “sobre o natural” ..........................................................72 2.2.2 O sagrado cotidiano ....................................................................83 2.2.3 Jonathan: a divindade do homem — a humanidade de Deus .........92 2.3 A metapoesia ........................................................................................108 2.3.1 A poesia como Missão ..............................................................110 2.3.2 O poeta e o sagrado ..................................................................122 2.3.3 A poesia e o mito ......................................................................133

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A linguagem e o sagrado nos poemas – alguns traços do estilo de Adélia Prado .........................................................................................................144

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Bibliografia ................................................................................................161

Anexos ............................................................................................................167


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Moça feita, li Drummond a primeira vez em prosa. Muitos anos mais tarde, Guimarães Rosa, Clarice. Esta é a minha turma, pensei. Gostam do que eu gosto. Minha felicidade foi imensa. Continuava a escrever, mas enfadara-me do meu próprio tom, haurido de fontes que não a minha. Até que um dia, propriamente após a morte do meu pai, começo a escrever torrencialmente e percebo uma fala minha, diversa da dos autores que amava. É isto, eu disse, é a minha fala. Adélia Prado1

1

In Poesia Sempre.


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1 Introdução

Adélia Prado. Poeta mineira, de Divinópolis. Escreve desde a adolescência, mas sua primeira publicação surgiu em 1976, quando passava dos quarenta anos. Depois disso, foram mais cinco livros de poesia e cinco de prosa. Figura entre os poetas brasileiros mais importantes da atualidade. Há vários estudos acerca de sua obra, centenas de artigos sobre sua trajetória. Ela é conhecida por seu discurso “despojado”, por uma linguagem simples, pelo olhar poético sobre o cotidiano. “Uma poeta primitiva e ao mesmo tempo sofisticada. Escrevendo como quem fala ao pé do fogão, com as mãos sujas de ovo e farinha e destrambelhada emoção.”2 Essas são palavras de Affonso Romano de Sant’Anna, mas refletem a visão geral da crítica. Adélia Prado é a “poeta-dona-de-casa”. Hoje em dia, a qualidade estética de sua obra é praticamente inquestionável. Mas a poeta teve de ouvir muitas críticas, sendo, inclusive, rotulada de “lavadeira nanica que perdeu o sabão na beira do rio” quando, ainda no anonimato, teve alguns poemas publicados n’O pasquim3. A espontaneidade da linguagem de Adélia Prado é marcante, assim como a emotividade presente em seus versos. Talvez seja considerada poeta primitiva, pois sua poesia é alheia a todo artificialismo. Seus poemas, embora abordem questões complexas, partindo para discussões metafísicas, enraízam-se em situações corriqueiras, presentes no cotidiano de qualquer um — incluindo o dia-a-dia da donade-casa, mas não somente. A sofisticação de sua obra poética reside no trato com a linguagem: de modo algum a espontaneidade exclui a elaboração artística. A sutileza de algumas

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In Instituto Moreira Salles. Cadernos de literatura brasileira: Adélia Prado, p. 18. In Hohlfeldt, Antônio. “A epifania da condição feminina”. Id. ibid., p. 72.


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relações semânticas, a complexidade sob uma aparente simplicidade, a escolha cuidadosa da palavra que exprima com intensidade cada sensação, cada pensamento, o domínio de estruturas complexas da língua portuguesa compõem uma linguagem de notável valor estético. Em Adélia Prado, o cotidiano constitui um ponto de partida para reflexões profundas sobre a condição do homem e sobre tudo o que o cerca. A respeito de sua poesia, José Hélder P. Alves escreveu: “o leitor vai encontrar em Adélia Prado uma fala provinciana, com sabor natural, mas ao mesmo tempo com verdades reveladas da experiência que assomam ao universal. (...) O estilo farto de Adélia Prado revela um eu que se move entre diversidades”.4 A hibridez do discurso de Adélia Prado não é novidade. O vocabulário usual, próprio do falar mineiro, muitas vezes, combina-se com um uso completamente inusitado da palavra, tanto morfologica quanto sintaticamente. O discurso regional, a linguagem popular mesclam-se com um português culto padrão, resultando no que a autora chama de: “minha fala”. É essa “fala” de Adélia Prado que constitui o objeto desta dissertação, que se compõe, basicamente, da análise estilística de poemas da autora. 5 Descobri ainda que a experiência poética é sempre religiosa, quer nasça do impacto da leitura de um texto sagrado, de um olhar amoroso sobre você, ou de observar formigas trabalhando.6 A religiosidade presente em sua obra também não é novidade. “Tudo permeado por Deus — é assim a obra de Adélia Prado.” 7 Para realizar este estudo de seu estilo, será fundamental, pois, observar como o sagrado aparece nos poemas. O religioso emana da construção textual, constituindo um efeito expressivo, resultado das combinações estabelecidas entre as camadas lingüísticas do texto. Mas o religioso não é apenas um efeito, está intimamente vinculado à construção dos poemas, determinando as escolhas lingüísticas da poeta. In A poesia de Adélia Prado, pp. 8 e 56. Não comentarei a fortuna crítica de Adélia Prado. Caso o leitor esteja interessado em conhecer mais estudos sobre a autora, recomendo a leitura de Cadernos de literatura brasileira: Adélia Prado, organizado pelo Instituto Moreira Salles. Nessa obra, o leitor conhecerá toda a trajetória da escritora, tendo acesso a uma bibliografia variada acerca de sua obra. Dentre os textos da publicação, destacase o de Antônio Hohlfeldt, que comenta cada um dos livros de Adélia Prado publicados até hoje. 6 Adélia Prado. In Poesia Sempre. 7 Frei Beto. “Adélia nos prados do Senhor”. In Instituto Moreira Salles. Op. cit., p. 122. 4 5


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É possível considerar que a religiosidade presente nos textos de Adélia Prado faz com que sua linguagem seja diferente daquela utilizada por autores contemporâneos, já que a espontaneidade no escrever, a tonalidade coloquial dos versos, a valorização do cotidiano pela literatura não são achados recentes. O estilo pode ser considerado aquilo que torna a linguagem de um autor única, diferente da utilizada por outros de sua época. Lembrando Murry: “tudo aquilo que possa contribuir para tornar reconhecível o que um homem escreve inclui-se no seu estilo”. E mais: “estilo é uma qualidade de linguagem, que comunica com precisão emoções ou pensamento, peculiar ao autor” 8. Desse modo, para abordar o estilo de Adélia Prado, levo em consideração tanto as marcas de linguagem que a inserem dentro de um determinado grupo — de escritores brasileiros modernos e contemporâneos — quanto o que a distingue desse grupo. Tendo em vista que o caráter sagrado dos poemas representa uma marca importante do estilo da autora estudada, procedi à seleção do corpus de análise de acordo com os diferentes modos de manifestação do sagrado no texto. Mas, antes de ingressarmos na discussão do que pode ser considerado sagrado, convém elucidar as teorias que servem de base para a realização desta pesquisa.

1.1 Bases teóricas

Para atender aos intuitos deste estudo, utilizo o arcabouço teórico da Estilística, que é um dos ramos da Lingüística voltado para as questões da afetividade da linguagem. E recorro a alguns trabalhos de Estética da Recepção e Lingüística Textual, além dos estudos de Língua Portuguesa, fundamentais para a abordagem da construção lingüística dos textos analisados. Da Estilística, aproveito o modo de abordar os poemas selecionados para análise. A Estética da Recepção complementa a visão de linguagem da Estilística e fornece alguns instrumentos para a observação da interação do texto com o leitor — relação esta crucial para o tipo de pesquisa que realizo. A Lingüística Textual e os estudos de língua contribuem com o plano mais prático do trabalho, oferecendo o instrumental necessário para a análise do material lingüístico dos poemas. 8

In O problema do estilo, pp. 17 e 83.


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Sabemos que, como quase toda área do conhecimento, a Estilística apresenta várias vertentes que, em maior ou menor grau, contribuem para o desenvolvimento desta pesquisa. Dentre elas, destacam-se a Estilística da Língua e a da Literatura. A Estilística da Língua é representada por Charles Bally9, discípulo de Saussure, o primeiro a voltar-se para os aspectos afetivos da linguagem. Bally propõe o estudo dos elementos responsáveis por transformar a língua como sistema, na acepção de Saussure, impessoal, em matéria viva. Para ele, a linguagem apresenta duas faces: a intelectiva e a afetiva. A primeira relaciona-se com o plano da informação pura; a segunda, seu objeto, vincula-se aos elementos que dão vida ao conteúdo informativo da mensagem, fruto da necessidade de expressar uma emoção, uma sensação. A Estilística da Literatura é representada por Leo Spitzer 10 e também se volta para a afetividade da linguagem. A diferença entre essas duas vertentes está no fato de Bally focalizar apenas a língua como matéria coletiva, o que descarta o estudo da linguagem literária, e Spitzer ocupar-se dos estilos literários individuais, buscando chegar ao que há de mais particular na linguagem de um autor 11. No Brasil, Mattoso Câmara foi o estudioso que conseguiu conciliar essas diferentes linhas de pesquisa, utilizando a visão de linguagem de Bally para verificar a transformação da linguagem coletiva em linguagem particular. Conforme Câmara, “a língua preexiste aos indivíduos, mas a personalidade de cada um de nós trabalha nessa matéria para integrá-la em si, de sorte que a sistematização, em princípio, resulta individual”12. Na verdade, não há muita diferença entre sua Estilística e a de Bally, excetuando o fato de que o brasileiro admite o estudo da linguagem literária. Para definir sua concepção de estilística, Mattoso Câmara recorre às três funções de linguagem de Karl Bühler: representação, manifestação psíquica e apelo. A representação equivale à linguagem intelectiva; a manifestação psíquica e o apelo correspondem à linguagem afetiva de Bally. Para Câmara, a Estilística é uma disciplina complementar da gramática, pois, enquanto esta estuda a língua pelo enfoque da representação, a Estilística a estuda como meio de manifestar estados psíquicos e de atuar sobre o interlocutor. Para Mattoso Câmara, portanto, a língua, coletiva, é transformada pelo indivíduo com o objetivo de, além de transmitir uma informação, expressar um estado Cf. El lenguaje y la vida, 1941. Cf. Lingüistica y historia literaria, 1982. 11 Para uma visão panorâmica sobre as diversas vertentes da Estilística, ver Martins. Introdução à estilística: a expressividade na língua portuguesa, 1989. 12 In Contribuição à estilística portuguesa, p. 09. 9

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emotivo e/ou de produzir um determinado efeito em alguém. E é dessa transformação do coletivo em particular que se apreende o estilo. Segundo o autor, “o estilo se apresenta, assim, como o resultado (variável conforme o indivíduo) do afã para a solução desse problema de, além da informação, chegar à expressividade”13. Neste ponto, atingimos um conceito importantíssimo para o estudo do estilo: o de expressividade, que é “a capacidade de fixar e atrair a atenção alheia em referência ao que se fala ou escreve, constituindo o objeto essencial do esforço estilístico”14. Uma vez que a expressividade é a responsável pela criação de um estilo, constitui, também, objeto desta pesquisa. Na esteira de Mattoso Câmara, busco contribuições tanto da estilística da fala quanto da literária. É a expressividade da linguagem de Adélia Prado que procuro verificar com as análises de poema. Cada movimento lingüístico que, de algum modo, contiver expressividade merece minha atenção. Vale destacar que cada camada lingüística pode conter elementos expressivos, desde a sonora à semântica, passando pela lexical e sintática. Este trabalho enfoca, portanto, o plano lingüístico da produção da autora, tangenciando também o plano temático. O papel do leitor torna-se, assim, fundamental para a análise estilística. Suas impressões e reações devem ser sempre consideradas, pois é a partir delas que depreendemos os recursos expressivos. Para Riffaterre15, “o conjunto da mensagem participa do estilo, mas são os efeitos que lhe dão estrutura. São os elementos marcados que permitem ao leitor ‘reconhecer’ um estilo e limitam a liberdade de decodificação: a estilística é, portanto, a parte da lingüística que estuda a percepção da mensagem”16. Sem dúvida, o sujeito de cada texto também deve ser focalizado, uma vez que a expressividade ocorre em função de uma “manifestação psíquica”. Para estudar esse contato entre locutor e interlocutor, a Estética da Recepção mostra-se muito útil. De acordo com Wolfgang Iser, “o repertório e as estratégias textuais se limitam a esboçar e pré-estruturar o potencial do texto; caberá ao leitor atualizá-lo para construir o objeto estético”17. Desse modo, o texto é observado em função de um leitor. O ato de leitura não pode ser estudado, ao menos neste tipo de pesquisa, mas In Princípios de Lingüística Geral, p. 171. Grifo meu. In Câmara, M. Jr. Dicionário de Lingüística e Gramática, p. 114. 15 um dos expoentes da Estilística Estrutural, que, assim como as já apresentadas, contribui para o desenvolvimento de minha pesquisa. 16 Grifo meu. In Estilística Estrutural, p. 131. 17 In O ato da leitura. vol. 2, p. 09. 13 14


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ele determina o estudo do texto, uma vez que são enfocadas as estratégias utilizadas para causar determinadas reações no leitor: estratégias estas que chamamos traços expressivos. Conforme Guaraciaba Micheletti, “o discurso artístico implica, além da comunicação, um elevado grau de expressividade, um eu que se expõe e se dirige a um outro buscando uma resposta; assim sendo, a literatura cria a partir da realidade, da experiência de um eu, um objeto verbal, visando dialogar com o espírito e a emoção de um outro” 18. Enfocando as relações entre o eu e o outro do discurso poético, fixo-me nesse “objeto verbal”. Para o estudo desse objeto, apoio-me em trabalhos de Lingüística Textual, especialmente para tratar das relações de coesão e coerência nos textos, combinados aos estudos de língua mais tradicionais, a fim de observar as relações semânticas e gramaticais entre os diferentes elementos que compõem a trama textual. Por fim, cabe lembrar a importância de estudos sobre língua oral, já que a poesia de Adélia Prado é marcada pela oralidade.

18

In “Teoria e prática da leitura”, p. 23.


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1.2 A concepção de sagrado

É no estudo de Mircea Eliade que colho a noção de sagrado utilizada nesta pesquisa. Segundo ele, “a primeira definição que pode dar-se do sagrado é que ele se opõe ao profano”19. E o que seria o profano? Conforme Eliade, compõe-se de uma visão homogênea do Universo, para a qual tudo tem o mesmo valor; o profano refere-se a uma “extensão informe” do Universo, sem uma significação precisa. Tanto o sagrado quanto o profano representam duas modalidades de ser no mundo. O sagrado reflete uma visão heterogênea do Universo. Alude a um espaço central que difere de todo o resto. Esse espaço é a única coisa que pode ser considerada real, enquanto o resto é a ilusão própria do profano. “O sagrado é o real por excelência, ao mesmo tempo poder, eficiência, fonte de vida e fecundidade”20. O sagrado é o centro organizador de tudo. “O sagrado está saturado de ser.”21 Dessa maneira, a experiência do sagrado é a experiência da vida em sua plenitude. O sagrado se manifesta em todas as coisas, sem alterar, no entanto, sua essência. E o autor elucida: para o homem religioso, uma pedra sagrada não deixa de ser uma pedra22. A manifestação do sagrado — hierofania — “funda ontologicamente o mundo”23, constitui a razão de ser do Universo. Segundo ele, não há como abolir totalmente o comportamento religioso, pois não há como atribuir o mesmo valor aos diferentes elementos que participam da vida humana. Em resumo, o profano seria o “não ser absoluto”, que se opõe ao “ser absoluto”: o sagrado. Assim, o sagrado revela a realidade sem máscaras, apresentando cada coisa no seu devido lugar, pondo ordem no caos, dando conforto ao homem.

In O sagrado e o profano, p. 25. Id. ibid., p. 42. 21 Id. ibid., p. 27. 22 Id. ibid., p. 26. 23 Id. ibid., p. 35. 19 20


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1.2.1 O sagrado e o profano na poesia de Adélia Prado

Na obra de Adélia Prado, o sagrado mostra-se, de fato, como o princípio de organização do Universo. Manifesta-se por meio de diferentes recursos, como veremos ao longo das análises de poemas. Pode aparecer na descrição de elementos da natureza, de um comportamento, da alusão ao próprio Deus dos cristãos, entre outras formas. No plano temático, os poemas apresentam, no geral, duas dimensões: uma sagrada e outra profana. A dimensão profana vincula-se a uma visão desconsolada da vida, ao sofrimento sem sentido diante da confusão da existência. O sagrado liga-se à alegria de viver, ao sofrimento que se compreende. Não raro, a dor está presente em ambos, mas de modos distintos, pois o sagrado torna a dor suportável, e bela, pois compreensível, ao contrário do profano. A poesia de Adélia Prado apresenta tudo como sagrado, pois cada coisa é tida como especial, ao mesmo tempo em que tudo participa de uma mesma essência divina. O sagrado surge como a organização do caos, uma ordem que dá sentido ao que parece ininteligível. Ele se manifesta quando a intuição se sobrepõe à razão. O homem é capaz de experimentá-lo apenas se deixar-se levar pela emoção. O profano, por sua vez, liga-se a uma visão limitada das coisas, mediada unicamente pela razão. No plano lingüístico, que não se separa do temático, as duas dimensões se fazem presentes através da ambigüidade de termos e expressões, da equivalência de estruturas, etc. A palavra apresenta dois planos. O profano revela-se no plano do significado imediato da palavra, que evoca um referente qualquer. O sagrado surge quando o leitor percebe que a palavra não veicula apenas uma idéia, mas recria um elemento, ou uma cena, como se o próprio ato de evocar conferisse realidade ao ser evocado, cuja natureza é, portanto, sagrada. Um plano não exclui o outro. É como se o profano se vinculasse à esfera intelectiva da palavra e o sagrado, à afetiva, utilizando a visão de Bally. Na poesia de Adélia Prado, aproveitando o exemplo de Eliade citado anteriormente, a palavra pedra se refere ao elemento pedra. Ao ser decodificada, ela faz com que se pense nesse elemento, através do plano intelectivo (que transmite uma informação). Ao mesmo tempo, ela chama a atenção para o caráter sagrado da pedra, o que se faz por


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meio de seu valor afetivo (que apela para a emoção). Desse modo, antes da palavra, as coisas, o Universo é sagrado. E a poesia tem o papel de despertar o sentido sagrado das coisas. Experimentar o famigerado “prazer estético”, na poesia de Adélia Prado, equivale, portanto, a atingir uma experiência religiosa.24 Em entrevista concedida a José Castello, a poeta afirma: “a poesia é um fenômeno de natureza religiosa, pois tem um papel fundador, que me conecta ao centro do ser. Deus é o grande problema e a grande platéia”25. Assim, a poesia não só trata do sagrado, mas é responsável por colocar o homem em contato com a divindade. Como já dito, há mais de uma maneira de se chegar ao efeito religioso nos poemas — o que será investigado mais adiante nas análises.

1.3 Das análises de poemas

Os poemas selecionados para a análise são enfocados separadamente, ou seja, cada poema é analisado sem que se estabeleça uma comparação com os demais. Relações de intertextualidade, jogos de palavras, oralidade, o efeito religioso que se cria em cada poema são observados juntamente com os demais recursos expressivos de cada texto. Apenas no final do trabalho as análises serão cotejadas. As análises buscam enfocar os principais traços lingüísticos que constituem o texto poético. Cada poema chama a atenção por um ou outro aspecto peculiar. De acordo com Leo Spitzer, “para cada poema há menester el crítico de una inspiración determinada, (...) es requisito indispensable en un crítico una mutabilidad proteica, pues el ardid que há resultado eficaz en un obra no puede aplicarse mecánicamente a otra”26, e o mesmo vale de poema para poema. Por esse motivo, cada análise conta com um direcionamento próprio. Ainda que cada análise de poema apresente uma interpretação, o foco desta pesquisa é o modo como a língua é manipulada com o fim de produzir um ou outro efeito,

compondo,

assim,

um

estilo.

Este

estudo

se

caracteriza

como

Sobre o prazer estético, ver Jauss, H. R. “O prazer estético e as experiências fundamentais da Poiesis, Aisthesis e Katharsis”. In Lima, L. C. (org.). A literatura e o leitor, pp. 83-132. 25 In O Estado de S. Paulo, 22 de maio de 1999. 26 Op. cit., p. 51. 24


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fundamentalmente estilístico. As relações de coesão e coerência, a combinação sintática de termos, a escolha vocabular, o ritmo, a sonoridade são observados, isoladamente e em conjunto, com a finalidade de descrever a malha expressiva do texto poético. Ainda que cada poema seja analisado individualmente, as análises se articulam através do caráter sagrado que marca cada um dos textos. O efeito religioso surge como resultado da combinação dos diferentes elementos que constroem os poemas. Observar como esse efeito é atingido constitui a primeira meta desta pesquisa. Como objetivo final, pretendo levantar alguns traços lingüísticos expressivos recorrentes nos poemas analisados, a fim de contribuir para um mapeamento do estilo de Adélia Prado. É importante registrar, ainda, uma característica interessante da obra da poeta, especialmente de Terra de Santa Cruz, O pelicano e A faca no peito. Chama a atenção o fato de que, embora cada poema apresente uma significação independente dos demais textos do livro em que se encontra, sua interpretação pode ser construída e modificada no e pelo conjunto da obra, por meio da repetição de determinadas imagens. Desse modo, a ordem dos poemas é fundamental para a criação do sentido de coerência da obra. A repetição de imagens faz com que a participação do leitor na construção de significações seja mais dinâmica. Os sentidos vão se delineando aos poucos e, não raro, o leitor é impelido por uma ou outra repetição a retroceder na sua leitura, reinterpretando os poemas já lidos. Assim, os poemas apresentam uma unidade semântica e estrutural que depende da sua seqüência no livro. A leitura é linear, na medida em que os significados vão se somando com o decorrer da leitura dos poemas, e circular, na medida em que a cada imagem repetida altera seu significado estabelecido anteriormente. Neste trabalho, entretanto, procederemos a uma leitura vertical de cada texto, ou seja, os poemas serão analisados como composições individuais, já que foram selecionados para formarem uma amostra significativa da produção da autora. As análises serão divididas em três blocos, de acordo com a maneira como o sagrado se manifesta em cada poema. O primeiro conta com a análise de quatro poemas que apresentam a característica comum de configurarem poemas-oração, ou seja, textos escritos em forma de prece, voltados, na maioria dos casos, ao próprio Deus. O segundo bloco


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compõe-se das análises de três poemas, os quais se assemelham por tratarem de epifanias, ou seja, de aparições, manifestações, do sagrado, através de elementos da natureza ou do cotidiano. O terceiro consiste das análises de três poemas que representam uma forma de composição importante na produção da autora e fundamental para a compreensão de seu estilo: a metapoesia — a poesia que tem como tema a própria poesia.


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2 As análises 2.1 A invocação do sagrado

Louvai ao Senhor, livro meu irmão, com vossas letras e palavras, com vosso verso e sentido, com vossa capa e forma, com as mãos de todos que vos fizeram existir, Louvai ao Senhor.27

Na poesia de Adélia Prado, são comuns textos em forma de prece. Nessas produções, o contato entre sagrado e profano é marcante. O divino, ou o sobrenatural, não é apenas evocado, mas invocado. O poema torna-se, portanto, mediação entre homem e Deus. Esse diálogo entre eu-lírico e divindade pode ocorrer de maneiras diversas. Com o intuito de abarcar a variedade da produção da autora, no que respeita a esse tipo de composição, selecionei quatro textos que contemplam quatro diferentes modos de interlocução com o sagrado. O primeiro a ser analisado é o poema “Orfandade”, de Bagagem28. Nele, observamos uma prece espontânea, em que o eu-lírico se volta diretamente a Deus, tido como pai, para fazer-lhe pedidos e expor um estado de espírito. O diálogo com Deus é explícito desde o primeiro verso e o leitor não participa diretamente do discurso, assumindo um papel de mero observador da intimidade do eu-lírico. “A face de Deus é Vespas”, de Terra de Santa Cruz29, também pode ser visto como uma prece espontânea. No entanto, a relação entre eu-poético e interlocutor é mais ambígua. Ao mesmo tempo em que o eu se dirige a Deus, em oração, dialoga com o leitor, assumindo-o como seu interlocutor.

Epígrafe de Bagagem. In Poesia reunida, p. 14. 29 Id. ibid., p. 247. 27 28


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O terceiro texto faz referência explícita a um tipo de oração já cristalizado. Trata-se de “Um salmo”, de Bagagem30. Embora seu vocabulário possa transmitir uma impressão de espontaneidade, o poema é todo estruturado de acordo com uma fórmula bastante rígida. O último poema-oração a ser analisado é “Responsório”, de Pelicano31. Nele, encontraremos traços de uma prece espontânea combinados com o uso de uma fórmula de oração muito popular entre alguns católicos. Com a análise estilística desses quatro poemas, será possível conhecer um tipo de composição representativo da poesia de Adélia Prado, além de verificar alguns recursos expressivos importantes para construir um estilo permeado do encontro entre o sagrado e o profano, não só no que respeita à temática, mas aos usos lingüísticos.

2.1.1 A prece de um órfão

A imagem poética se constrói de uma mescla de recursos lingüísticos que transforma a linguagem usual em signo novo, despertando reações inusitadas no leitor. O poema “Orfandade” constitui-se de elementos da língua do cotidiano, tendo realçados seus conteúdos afetivos e tocando-nos por revelar matizes expressivos de vocábulos e estruturas corriqueiras da comunicação do dia-a-dia. A noção de imagem, nesta e nas demais análises deste trabalho, abarca não apenas o caráter visual das metáforas, mas toda a construção lingüística do poema, que vai assumindo forma de acordo com cada leitor, já que a imagem é plurissêmica. De acordo com Octavio Paz: “designamos con la palabra imagen toda forma verbal, frase o conjunto de frases, que el poeta dice y que unidas componen un poema. Estas expresiones verbales han sido clasificadas por la retórica y se llaman comparaciones, símiles, metáforas, juegos de palabras, paranomasias, símbolos, alegorías, mitos, fábulas, etc. Cualesquiera que sean las diferencias que las separen, todas ellas tienen en común el preservar la pluralidad de significados de la palabra sin quebrantar la unidad sintáctica de la frase o del conjunto de frases. Cada imagen — o cada poema 30 31

Id. ibid., p. 33. Id. ibid., p. 320.


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hecho de imágenes — contiene muchos significados contrarios o dispares, a los que abarca o reconcilia sin suprimirlos”32. Como observaremos ao longo desta análise, a escolha lexical, assim como a ordenação sintática, revela um eu-lírico que se pretende criança ao se dirigir a Deus. Este, porém, não parece tido como um ser distante, há uma relação de intimidade entre o eu e seu interlocutor sugerida pelo uso de uma linguagem mais coloquial e, por esse motivo, mais apelativa.

Orfandade 1

Meu Deus,

2

me dá cinco anos.

3

Me dá um pé de fedegoso com formiga preta,

4

me dá um Natal e sua véspera,

5

o ressonar das pessoas no quartinho.

6

Me dá a negrinha Fia pra eu brincar,

7

me dá uma noite pra eu dormir com minha mãe.

8

Me dá minha mãe, alegria sã e medo remediável,

9

me dá a mão, me cura de ser grande,

10

ó meu Deus, meu pai,

11

meu pai.33

O léxico utilizado no texto, em sua maioria, pode ser considerado, com Bally, como representante da categoria dos vocábulos transmitidos, aqueles “que se ganham na infância, do meio doméstico, ao aprender a falar; com eles se associam as lembranças da experiência infantil, e o seu significado intelectivo pesa muito menos do que o conteúdo emotivo que, na base dessas lembranças, deles se desprende. Indicam, antes de tudo, um sentimento, e só secundariamente um conceito, pois foi através da manifestação psíquica e do apelo que eles radicaram em nós” 34. In El Arco y la lira, p. 98. Este e os demais poemas analisados neste trabalho estão copiados em um encarte avulso que pode ser utilizado durante a leitura das análises. Ver envelope em anexo. 34 Apud. Câmara, M. Contribuição à estilística portuguesa, p. 52. 32 33


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No poema, observamos vocábulos e expressões imbuídos de valores afetivos que remetem à infância do eu-lírico, tais como formiga preta, Natal, quartinho, negrinha Fia, brincar, ser grande, pai, mãe. Associada a outros fatores lingüísticos, essa escolha vocabular contribui para a recriação de uma realidade anterior ao estado atual do eu, revelando uma busca por uma identidade-criança. Além de realçar os valores afetivos dos vocábulos aos quais se agrega, o sufixo diminutivo — quartinho, negrinha — é um recurso expressivo que se alia à escolha lexical para traduzir o envolvimento do eu com as imagens evocadas.35 O poema é constituído de frases imperativas. Trata-se de uma petição. Antes de se voltar ao leitor, o eu-lírico se dirige a Deus. Percebemos um certo grau de informalidade nisto que concebemos como uma prece. O eu procura se colocar próximo a Deus com a intimidade e simplicidade próprias da criança. Notamos que não apenas a escolha de um léxico presente no universo infantil e o uso do diminutivo se coadunam para atingir esse efeito, como também a ordenação sintática é utilizada com vistas a produzir uma impressão de proximidade. A anteposição do pronome me ao verbo traz para o poema uma construção característica da linguagem coloquial, assim como a contração do vocábulo para: pra. O vocativo Meus Deus indica que estamos diante de um poema-oração. A figura divina é invocada logo no primeiro verso. Deus, com letra maiúscula, não só revela o respeito do eu-lírico diante de sua imagem, mas sugere sua superioridade. Deus é o ser supremo, o criador de todas as coisas, o onipotente, onisciente, onipresente. Sua “pessoa” será evocada em vários outros poemas de Adélia Prado, que não esconde o fato de ser católica, pelo contrário, faz questão de alardeá-lo. Esse Deus pode ser facilmente associado à figura paterna da Santíssima Trindade da tradição cristã, embora seja possível remetê-lo a qualquer divindade criadora, geralmente tida como pai, ou mãe, presente nas mais diversas religiões. Deus surge determinado pelo pronome possessivo meu, o que enfatiza a aproximação e o envolvimento do eu com seu interlocutor. O verbo dá pode ser tido como a forma da segunda pessoa do singular do imperativo (tu); no entanto, parece conter maior expressividade se considerado como a forma da terceira pessoa do singular do indicativo (você), visto que a linguagem do poema tende à informalidade, a fim de revelar um diálogo entre duas “pessoas” que se conhecem e são próximas. A idéia de pequenez se associa facilmente à de carinho nas formas diminutivas de algumas bases léxicas. Cf. Bechara, Moderna gramática portuguesa, p. 141. 35


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Essa ambigüidade do verbo dar funde duas formas aparentemente opostas: a) uma formal e solene, própria de textos sacros, já que as segundas pessoas sintáticas têm, ao menos no português do Brasil, se restringido a textos de cunho religioso ou a determinados falares regionais, o que não é o caso; b) e outra informal, com o uso do indicativo no lugar do imperativo. Formalidade e informalidade no trato com Deus insinuam a fusão do sagrado e do profano. O primeiro marcado pelo tom respeitoso e o segundo pelo tom de despojamento. Mais adiante, essas visões de sagrado e profano serão retomadas. Além de colaborar para a construção de uma linguagem informal, o modo indicativo usado com fim apelativo traduz a idéia de súplica, de pedido, sem o teor autoritário que caracteriza o imperativo, configurando uma maneira sutil de convencer, pois não obriga, mas traz o objeto pretendido para o plano do realizável. Sete versos do poema se iniciam por “me dá”, que ressoa ao longo do texto de forma a unificar os diversos pedidos como se fossem um único. O que permanece é um eu aflito, que procura; um eu impotente, que se volta a Deus para pedir. O poema se constitui basicamente da repetição de uma mesma estrutura: [objeto indireto] + [verbo] + [objeto direto] — “me dá ...”. A disposição dessa estrutura em paralelo nos versos sugere um crescendo enumerativo de pedidos que se insinua ao infinito, até chegar ao nono verso, em que convergem os anteriores em uma única súplica: “me cura de ser grande”. Essa repetição da mesma forma sintática nos permite traçar uma série de relações semânticas entre seus constituintes, o que observaremos mais adiante. A repetição, fator de coesão e expressividade do texto poético, se dá em dois planos: no da estrutura aparente e no da estrutura elíptica 36. O retorno de um mesmo sintagma em elipse contribui para a unidade do texto e gera ambigüidade, criando o efeito de inusitado no poema e estranhamento no leitor. Me dá um pé de fedegoso com formiga preta, me dá um Natal e sua véspera, o ressonar das pessoas no quartinho.

Sobre repetição na linguagem poética, ler Micheletti, G. “Repetição e significado poético (o desdobramento como fator constitutivo na poesia de F. Gullar)”. 36


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Para apontar essas repetições ao longo do texto, relacionando-as a outros elementos expressivos, consideraremos cada período em particular, estabelecendo as ligações entre os diferentes versos quando necessário. Logo no primeiro verso, observamos o vocativo Meu Deus posto em evidência, não só por abrir o poema, mas por figurar isolado no verso, seguido de uma pausa. Desde então, o leitor já reconhece seu papel de ‘intruso’, espreitando um discurso dirigido a outro. Sua posição lhe permitirá conhecer o interior do eu que, logo no primeiro verso, admite uma postura de desabafo, de transparência. O diálogo com Deus tende a ser um discurso sem máscaras, pois reflete um estado d’alma mais do que procura persuadir. Nessa perspectiva, verificamos a presença marcada do eu que se faz pelo pronome pessoal me, iniciando os versos e chamando a atenção para si37, e na recorrência dos pronomes possessivos meu, minha. O próprio vocábulo Deus contém em sua massa sonora o vocábulo eu, também presente no sexto e sétimo versos, permitindo-nos visualizar um eu voltado para si e sua dor mais do que para o outro. Essa ênfase no eu não é gratuita, todo o poema reflete a procura de uma identidade. A busca da infância, dos pais, a reconstrução de um passado marcam a ânsia por uma certeza de quem se é através de suas raízes. O fluxo rítmico dos versos, a repetição do sintagma38 “me dá”, a interjeição ó precedendo o vocativo no décimo verso aliam-se à idéia que se estabelece no plano semântico para delinearem um eu confuso, que, inquieto, consciente de sua impotência, não vê outra saída senão se voltar a Deus em tom de súplica. Assim, além da função apelativa, tomando a nomenclatura de Jakobson39, que é evidente pelo próprio arranjo textual constituído de frases imperativas, notamos, e de forma tão marcada que parece se sobrepor, a função emotiva, o expressar de uma personalidade. Desse modo, os pedidos que se mostram ao longo do poema parecem servir de pretexto para o eu-lírico exprimir o estado em que está imerso: sua orfandade.

“Não é por acaso que, na linguagem cotidiana, a próclise é de regra com a partícula me em frase imperativa: “Me-dá isso!”. É que assim se consegue pôr estilisticamente em realce a própria pessoa, uma afirmação da tensão psíquica e da vontade.” In Câmara, M. Id. ibid., p. 68. 38 Ao longo das análises desta dissertação, emprego o vocábulo sintagma na acepção de Saussure: “para designar dois elementos consecutivos, um dos quais é o determinado (principal) e o outro o determinante (subordinado). Há, portanto, uma relação necessária de subordinação entre os dois.” In Kury, A. G. Lições de análise sintática, p. 09. 39 Cf. Lingüística e comunicação, pp. 118-162. 37


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A tessitura fônica do poema dá relevo à expressão do interior do eu ao se fazer da recorrência de sons oclusivos, [d] e [p] — especialmente a repetição de dá, um som explosivo seguido da vogal aberta —, lembrando um explodir, um lançar-se para fora, combinada com a ocorrência dos sons [pr], [br] e [gr], que sugerem dificuldade, obstáculo, reproduzindo o sofrimento do eu. Também a repetição da constritiva [m] iniciando grande parte dos versos, aliada aos demais sons nasais — mãe, mão, grande, um, com e principalmente minha, cinco, quartinho, negrinha, brincar —, exerce papel importante na construção de sentido, pois, no conjunto dos recursos sonoros utilizados, reproduz a idéia de um choro abafado, um murmúrio. No segundo verso, temos um primeiro pedido: “me dá cinco anos”. Com o avançar na leitura, percebemos um eu deslocado, insatisfeito com seu estado atual, que busca em imagens da infância uma solução para seu conflito. Essas imagens já começam a se estabelecer a partir desse segundo verso que nos situa no tempo. O eulírico quer retornar aos seus cinco anos. Mais do que precisar um tempo cronológico, o vocábulo cinco especifica um desejo — o que se busca. Com ele está toda uma experiência de infância, de um olhar sobre o mundo, a ingenuidade e conseqüente tranqüilidade que perdemos ao nos tornarmos adultos. Daí a idéia do ser adulto como uma doença: “me cura de ser grande” (verso 9). No terceiro verso, tem-se uma imagem vinculada à lembrança do passado: “Me dá um pé de fedegoso com formiga preta”. Essa imagem reproduz o deslocamento do olhar da criança, atento para os movimentos mais simples, para as formas de vida que passam despercebidas para o olhar, muitas vezes tolhido pelas preocupações, do adulto. Para este, um pé de fedegoso pode ser apenas uma árvore e as formigas, um detalhe imperceptível. Para a criança, o detalhe importa e, aliás, tem medidas maiores, pois ela vê tudo pela perspectiva de um ser menor. Esse olhar voltado para o mais singelo prenuncia uma visão idealizada do corriqueiro, representando uma visão sagrada do profano, ou melhor, uma sacralização do profano. Assim, a busca pela infância assume uma proporção mais ampla, pois equivale à própria busca do sagrado. A formiga, no singular, sem um artigo, representa uma espécie genérica, que apenas é determinada pelo adjetivo preta. Esse tipo de indeterminação do nome realça seus valores afetivos e salienta a importância do contemplar ingênuo. Para uma criança de cinco anos, cujo léxico ainda é restrito, o que diferencia uma formiga de outra é sua cor, seu tamanho. O mais comum é que ela ainda não conheça os nomes


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de cada espécie de formiga (o que não significa que o adulto deva conhecer, é claro). O pé de fedegoso vem indeterminado pelo artigo um, que também pode ser visto como um numeral se observado em paralelo com o cinco do verso anterior, denotando o contentamento de se ter um único pé de fedegoso, o que ressalta a aflição do eu-lírico perante sua situação atual e seu posicionamento humilde frente a Deus. O corpo sonoro de fedegoso reproduz a idéia transmitida pela imagem colorida, viva, da arvorezinha de flores amarelas contrastando com o preto das formigas. O som [gozo] desprende-se do vocábulo para significar isoladamente. Uma imagem repleta de gozo, contentamento. Essa imagem da árvore ornada antecipa o verso seguinte em que surge a idéia do Natal. No quarto verso a estrutura se repete. E se soma às idéias anteriores para formar um quadro de imagens passadas — “me dá um Natal e sua véspera”. O pedido se intensifica e, ao mesmo tempo em que a relação entre o Natal e a sua véspera é estabelecida, cada um dos nomes é realçado por meio da coordenação, principalmente véspera, que não é visto como um termo subordinado como na expressão cristalizada “véspera de Natal”, mas adquire relevo, tendo aflorados os sentidos de expectativa, comemoração, encantamento que lhe são próprios. A colocação de véspera após Natal também sugere uma retroação no tempo, refletindo a ânsia do eu-lírico por voltar ao passado. À medida que o olhar do leitor desliza linearmente pelo verso, a associação entre os termos sugere um movimento inverso, já que há uma inversão na ordem usual dos acontecimentos: o leitor imagina primeiramente o Natal para retroceder a sua véspera. O quinto verso — “o ressonar das pessoas no quartinho” —, como imagem evocada, representa um dos objetos do desejo do eu que busca resgatar momentos passados. O uso do artigo definido o não só atua para transferir ressonar da categoria de verbo para a de substantivo, como para demonstrar a atitude do eu com referência à imagem recriada. Até então, observávamos um certo grau de indeterminação produzido pelo uso do artigo um — “um pé de fedegoso”, “um Natal” — inserindo as imagens em um tempo impreciso, ressaltando o valor afetivo ligado ao comum, ao habitual. Já em “o ressonar das pessoas no quartinho”, tudo vem determinado e isso cria um efeito expressivo, como se o olhar do eu-lírico se fixasse sobre a cena, ressaltando sua importância dentro de um contexto mais amplo. A ação é posta em relevo e os sons recordados trazem metonimicamente as pessoas queridas de volta à mente do eu-lírico. Reforçando a idéia dos sons


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reverberando no quartinho, observamos a aliteração da sibilante [s]. O vocábulo pessoas, além de ecoar o barulho do quartinho, contém em sua massa fônica o vocábulo soa, recurso que intensifica a imagem sonora estabelecida e chama a atenção para as sensações atreladas à cena descrita. A véspera de Natal torna-se presente através da memória do eu-lírico, que se transporta ao tempo em que permanecia acordado enquanto os familiares dormiam, vasculhando o escuro da noite pelas surpresas vinculadas ao imaginário infantil acerca dessa ocasião, ou simplesmente esperando com ansiedade pelo dia da celebração do Natal — um dia especial para os cristãos, em que, comumente, a família se reúne para comemorar o nascimento de Cristo, o próprio Deus feito homem. Como esta é uma festa de cunho religioso, a busca do sagrado se intensifica com a imagem do Natal. Celebra-se a fusão entre o frágil e o onipotente, homem e Deus. O presépio, tradição muito difundida, representa uma cena singela, imbuída de um valor sagrado. E não é essa simplicidade sacralizada, ou o sagrado desmistificado, simples, que busca o eulírico? Além disso, as pessoas no quartinho confortam a criança, que não se sente só no meio da noite e, portanto, não sente medo. Do mesmo modo, a idéia de um Deus que se submete a habitar entre os homens conforta. Com isso, percebemos que o sentimento de orfandade do eu-lírico se dá em dois planos. A sensação de orfandade não se restringe à perda dos pais, mas de toda uma organização de vida que dá segurança e sentido à existência do eu, relacionada com uma concepção religiosa das coisas e de si mesmo. Nos versos quinto, sexto e sétimo, notamos uma concentração do som nasal [in], o que sugere uma entrega mais acentuada do eu-lírico a sua emotividade, recriando no plano sonoro o choro, o grito contido, também expresso pelos sons [pr] e [gr]. Tem-se a impressão de que quanto mais o eu recria as imagens do passado, mais sente a falta do que recorda, e se descontrola. Os versos sexto e sétimo não só apresentam equivalência da estrutura [objeto indireto] + [verbo] + [objeto direto] como colocam em paralelo as orações adverbiais finais “pra eu brincar” / “pra eu dormir”, unindo no plano do sentido termos que aparentemente possuem significados contrastantes. Notamos aqui o que Samuel Levin designa como acoplamento — uma estrutura peculiar à linguagem poética, responsável pela unificação do texto e pela permanência deste na memória do leitor, que ocorre quando elementos se equivalem estrutural e semantica ou sonoramente. Desse modo, brincar e dormir são equivalentes, pois, de acordo com


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Levin, se imbricam ao cortar a massa de pensamento 40. Ambos significam sair do estado de inquietação e solidão em que se encontra o eu-poético; representam o descanso e a tranqüilidade que almeja. A idéia de movimento contida em sua natureza verbal associa esses vocábulos a atividades vitais, expressando o anseio de transpor as mortes que separaram o eu-lírico de sua infância. No infinitivo, os verbos brincar e dormir não carregam nenhuma marca de temporalidade, unindo passado e um ‘presente-futuro’, quando o eu-lírico espera reviver a infância. No entanto, concomitante a essa leitura, observamos uma distância quase infinita entre o passado e o chamado presente-futuro, pois este último se sustenta num plano imaginário que não deve se concretizar. Assim, os verbos, a um tempo, descrevem ações ocorridas no passado e revelam o desejo do eu — já expresso no vocábulo substantivado ressonar, o qual mescla significações tanto de brincar como de dormir, uma vez que pode assumir sentidos como soar, entoar (celebrando/festejando),

respirar

com regularidade,

respirar

estrepitosamente

dormindo, repousar no sono41; enfim, no plano do desejo, a vida se impõe à morte; esta presente na orfandade lamentada pelo eu-lírico. O eu é sempre posto em evidência. No sexto verso — “Me dá a negrinha Fia pra eu brincar” — assim como no verso seguinte, o eu-poético aparece como aquele que faz, sujeito (eu), e aquele que recebe, objeto indireto (me). O artigo definido revela novamente o envolvimento do eu-lírico, que parece ter grande apreço pela negrinha Fia, o que também é sugerido pelo uso do diminutivo afetivo. A ambigüidade se cria por não sabermos se o adjetivo substantivado negrinha se refere a uma pessoa ou a uma boneca. O que fica é que se trata de alguém importante para o eu, com quem este possuía intimidade e a quem chamava Fia, o que mais parece um apelido afetuoso do que um nome propriamente. Vale lembrar que Fia é uma forma popular e regional da palavra filha, um modo comum de algumas pessoas se dirigirem afetuosamente a uma menina ou uma moça42. O termo também pode reforçar a leitura de negrinha como uma boneca, da qual o eu-lírico, se feminino, se considerava mãe em suas brincadeiras de infância.

Cf. Levin, Samuel. Estruturas lingüísticas em poesia. Cf. Ferreira, A. B. H. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa, p. 1497. 42 É interessante pensar que o vocábulo fia deriva da influência africana sobre o português, o que reforça o vínculo com a figura de uma pessoa negra, como se, por meio de sua fala, o eu-lírico reproduzisse o modo de falar daquela que chama de negrinha Fia. Cf. Coutinho, I. L. Pontos de gramática histórica, pp. 325-6. 40 41


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Com esta última leitura, a situação de conforto e proteção materna que busca o eupoético já é sugerida, vindo a se confirmar no verso 8. “Me dá a negrinha Fia pra eu brincar”. Notamos também a alternância do som fechado [i] com o aberto [a], contribuindo para a idéia do choro, soluço, expressa no poema. Essas vogais combinam-se para a formação da imagem; mas não o fazem por si mesmas, e sim porque contrastam. Nesse caso, o que cria o efeito sonoro é a distribuição dos fonemas no verso. A sonoridade e a imagem, criada por uma série de fatores lingüísticos, se integram de maneira que uma confere significado à outra. Segundo Alfredo Bosi, “a invenção poética arma contextos tão variados e tão estimulantes que arrancam os fonemas da sua latência pré-semântica e os fazem vibrar de significação.”43 No sétimo verso, observamos a recorrência de sons mais fechados — “me dá uma noite pra eu dormir com minha mãe”. Esse recurso, além de reforçar a idéia de melancolia, sugere escuridão, fechamento, expressos pelos vocábulos noite e dormir. A noite, por representar o escuro, o misterioso, o assustador, deveria servir para o eucriança buscar proteção junto a sua mãe. No poema, parece desejada no contexto em que se dava o dormir com a mãe, mas quando colocada em evidência, por ser objeto de um desejar, traz consigo toda uma simbologia de encantamento, sonho, o que enriquece a imagem poética. No verso seguinte, o foco se desloca para a mãe do eu-lírico: “Me dá minha mãe”. A repetição do sintagma minha mãe revela o sentimento do eu, órfão, que busca inquietantemente a proteção materna. É este um recurso interessante que lembra o movimento de uma câmera no cinema que, ao registrar imagens diversas dentro de um contexto, passa por um objeto, pára e se detém sobre ele, enfocando-o até que esse objeto passe a ocupar toda a tela. Esse efeito é atingido no poema não só pela repetição do sintagma minha mãe como pela pontuação que o isola no verso. Depois há, também entre vírgulas, “alegria sã e medo remediável”. Podemos conceber esse sintagma como um aposto de minha mãe, caracterizando-a. Então, pensando ainda no movimento da câmera: depois de colocado em evidência, passamos a perceber os detalhes do objeto enfocado. Alegria sã e medo remediável seriam partes constituintes desse ser. Os adjetivos sã, determinando alegria, e remediável, determinando medo, denotam saúde, cura e opõem a situação passada à situação presente, em que o eu se 43

In O ser e o tempo da poesia, p. 51.


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encontra sozinho, quando saúde e remédio já não dizem respeito a sua mãe, morta — o que já vem sugerido no título do poema. A idéia do medo remediável recria a cena da criança que acorda no meio da noite e, com medo, procura o colo da mãe. Com isso, o eu cria um cenário para sua condição atual. Temos um eu-lírico com medo que, sozinho, procura conforto na oração. O próprio Deus é quem assume o papel da mãe que acalma a criança do susto de acordar no meio da noite, o que se confirmará no fim do poema. É interessante notar, ainda, que remediável contém em sua massa sonora o vocábulo dia, reforçando o contraste entre a escuridão, que causa o medo, e a proteção da mãe, afugentando os medos, clareando a noite. Somando-se a essas leituras, podemos admitir uma oração em que o sintagma repetido ao longo do poema retorna elíptico: [Me dá] alegria sã e medo remediável. Dessa forma, vemos um eu que está sempre buscando apoio, equilíbrio, proteção. A busca de proteção se explicita no nono verso, iniciado por “me dá a mão”. Essa expressão, já cristalizada em nosso idioma, traduz um pedido de ajuda. No poema, ela se enriquece, pois ocorre depois da repetição exaustiva do sintagma “me dá”, o que nos permite apreciá-la não como expressão fixa, mas atentando para o valor significativo de seus constituintes. Resume um grito de socorro, de rendição. O eu-lírico expressa sua impotência: não pode caminhar sozinho, não sabe. Como a criança, precisa da mão do adulto para andar. E Deus é esse adulto — humanizado — que deve estender a mão. Enquanto a primeira oração do nono verso reproduz a voz do eu-lírico que se coloca frente a Deus como criança, a segunda, que resume todas as outras, expressa a angústia desse eu que se reconhece adulto: “me cura de ser grande”. Esse verso evidencia a divisão do eu-lírico, o desconforto de se querer criança sendo adulto. O vocábulo grande, sinônimo de adulto, com todas suas conotações semânticas, sugere o falar de uma criança que ainda não usa termos específicos para nomear as coisas. Assim, torna-se evidente que o eu se apresenta como uma criança que se volta ao pai, nesse caso, o próprio Deus, o que reforça a sensação de inadequação do eu adulto. Sabemos, agora, a causa de seu medo. O eu encontra-se “doente”. Ser adulto, com todas suas implicações, é uma patologia que deve ser curada. Para o eu, o que deveria ser tido como uma conseqüência natural de ser humano é visto como uma anomalia, o que enfatiza seu desespero diante de sua condição.


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O medo permeia o poema com seus sentidos de inquietação, insegurança — desde a criança que procura a mãe no meio da noite até o adulto que não suporta verse sozinho, impotente e cheio de responsabilidades. O vocábulo medo figura no nono verso e se repete no corpo sonoro de seu determinante como se, mesmo atenuado, retornasse: medo/re-medo/remediável. A presença do medo se dá de forma marcada ao ser sugerida pela semelhança sonora com a combinação dos fonemas de me dá iniciando os versos, ecoando ao longo do poema. O vocativo “meu Deus” também produz o mesmo efeito de propagação do medo através da semelhança sonora, o que causa ambigüidade, pois é a Deus que o eu-lírico pede consolo. O sintagma retorna no décimo verso precedido pela interjeição, revelando um render-se à emoção do eu, além de marcar o tom apelativo do texto. Esse vocativo se repete na forma de “meu pai”, pois assim Deus é tido pelo eu-lírico, até finalizar o poema, ecoando de modo a reproduzir um grito do eu que se esgota em seus pedidos e, finalmente, sente-se confortado. Vale observar a forma triangular do poema, feita da combinação de versos longos e curtos, que sugere uma transformação no estado do eu-poético, que, após descontrolar-se, vai, aos poucos, se aquietando. A possibilidade de se observar a elipse do sintagma em “[me dá] meu pai” amplia a leitura do poema que, em princípio, busca expressar o sentimento de alguém que perdeu os pais, embora se projete para além desse único sentimento. Assim, “pai” apresenta dois referentes: o pai ausente do eu e Deus, vocativo e objeto da busca do eu-lírico. Mesmo sendo comum o uso do pronome possessivo (meu, minha) determinando pai e mãe, no poema, esse uso intensifica a dor do eu-lírico, uma vez que está inserido em um contexto de perda. O eu pede por algo que considera seu, mas que lhe foi tirado. Em contrapartida, o pronome também determina Deus, o que faz com que sua imagem se aproxime da figura paterna. No último verso, o possessivo ressalta a ambigüidade do termo pai e do sentimento que permanece ao final da leitura, uma vez que reforça a sensação de perda do eu-lírico, ao mesmo tempo em que sugere um certo conforto, pois este é acolhido por um Deus que considera como pai, como se, ainda que não completamente, sua presença suprisse a falta dos pais ausentes. Convém observar que o poema é marcado pelo uso de períodos curtos. A repetição de termos e estruturas confere coesão ao texto, construído basicamente de


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coordenação, sem muitos conectivos. De acordo com Martins, “a construção assindética é mais comum na língua oral, tem um tom mais espontâneo, menor rigor lógico; é mais ágil, sugere a simultaneidade ou a rápida seqüência dos fatos 44, (...) o período breve é mais concorde com a simplicidade do texto didático, com a espontaneidade das manifestações emotivas”45. Em “Orfandade”, a simplicidade causada pelos períodos curtos, a repetição de uma mesma estrutura, sem muitas variações, combinam-se à escolha do vocabulário, revelando, como já apontado nesta análise, um eu que pretende alcançar uma simplicidade própria da criança, o que torna a linguagem mais apelativa, pois nos captura pelo emocional. No entanto, essa simplicidade aparente está associada a uma linguagem lacunar, ambígua, admitindo múltiplas leituras. Isso cria o inusitado da imagem poética, tornando-a única, intraduzível em outras palavras senão em um sentimento que envolve o leitor em silêncio, como soube explicar Octavio Paz. La experiencia poética es irreductible a la palabra y, no obstante, sólo la palabra la expresa. La imagen reconcilia a los contrarios, mas esta reconciliación no puede ser explicada por las palabras — excepto por las de la imagen, que han cesado ya de serlo. Así, la imagen es un recurso desesperado contra el silencio que nos invade cada vez que intentamos expresar la terrible experiencia de lo que nos rodea y de nosotros mismos. El poema es lenguaje en tensión: en extremo de ser y en ser hasta el extremo. Extremos de la palabra y palabras extremas, vueltas sobre sus propias entrañas, mostrando el reverso del habla: el silencio y la no significación. (...) Tal es el sentido último de la imagen: ella misma.46 Em “Orfandade”, sagrado e profano convivem e se confundem. Em Deus, fundem-se as figuras do pai e da mãe humanos: do pai, por meio da ambigüidade que envolve o uso do sintagma “meu pai”; da mãe, uma vez que o poema-oração reproduz a mesma cena da criança que, amedrontada, busca o abraço materno no meio da noite.

No caso do poema em análise, a rápida enumeração dos fatos de memória do eu-lírico. Op. cit., p. 89. 46 In Paz, O. Op. cit., p. 111. 44 45


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O poema inicia-se com o sintagma “Meu Deus” e termina com “meu pai”. Em paralelo, representam uma espécie de transformação da figura de Deus, que vai se humanizando ao longo do poema até ser chamado simplesmente de “pai”, quando o eu se acalma, encontrando o abrigo que procurava. O poema reproduz o movimento da aproximação do eu a Deus. Enquanto este vai se revelando mais humano, o eu vai se tornando mais criança. Por fim, ecoam: ó meu Deus, meu pai, meu pai. Essas frases não são desenvolvidas, ou seja, não se organizam em sujeito e predicado, devido ao grande envolvimento emocional do eu-lírico47. A repetição de “meu pai” aproxima o eu da figura paterna, como se a própria palavra trouxesse seu pai para perto de si. A figura do pai concretiza-se tão nitidamente que suplanta o próprio desejo que vinha expresso pelo sintagma “me dá”. Isso não significa que o eu tenha se acalmado completamente, aceitando sua condição. Pode indicar um esgotamento, um render-se à emoção, já que o poema expressa um sentimento de perda muito intenso. De todo modo, a ambigüidade do sintagma sugere que, de fato, o eu encontra um certo conforto, pois o Deus a quem dirige sua prece não é uma divindade distante, pelo contrário, o acolhe como pai, ainda que não solucione completamente seu problema.

2.1.2 A forma do sagrado

“(...) aquelas [frases] com que se exprimem sentimentos (e não pensamentos) vêm muitas vezes fortemente carregadas de emoção, e não se constroem em torno de um verbo.” In Kury. Op. cit., p. 15. 47


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“A face de Deus é vespas” apresenta um jogo interessante entre locutor e interlocutor(es). O poema constitui tanto um diálogo do eu-lírico com Deus como com o leitor. Desse modo, não é simplesmente um poema-oração, como “Orfandade”, embora contenha traços de prece, também configura uma espécie de desabafo do eulírico, que tem o leitor como um cúmplice, aliado, por compartilharem da mesma condição humana. O poema, como a grande maioria da produção de Adélia Prado, não conta com uma regularidade métrica, os versos variam entre 2 e 15 sílabas poéticas. Praticamente não há rimas. Com isso, a linguagem ganha em espontaneidade. No entanto, um olhar mais detido sobre o texto notará uma estrutura de correspondências e equivalências entre frases e expressões criando ritmo e unidade semântica. A repetição do verbo ser, o contraste entre alegre e triste são recursos importantes para a construção de sentido no poema, o qual convida à reflexão desde o título que, ao contrário do que comumente encontramos na obra da poeta, faz-se de uma sentença completa. A face de Deus é vespas 1.

Queremos ser felizes.

2.

Felizes como os flagelados da cheia,

3.

que perderam tudo

4.

e dizem-se uns aos outros nos alojamentos:

5.

‘Graças a Deus, podia ser pior!’

6.

Ó Deus, podemos gemer sem culpa?

7.

Desde toda a vida a tristeza me acena,

8.

o pecado contra Vosso Espírito

9.

que é espírito de alegria e coragem.

10.

Acho bela a vida e choro

11.

porque a vida é triste,

12.

incruenta paixão servida de seringas,

13.

comprimidos minúsculos e dietas.

14.

Eu não sei quem sou.

15.

Sem me sentir banida experimento degredo.

16.

Mas não recuso os marimbondos armando suas caixas


37

17.

porque são alegres como posso ser,

18.

são dádivas,

19.

mistérios cuja resposta agora é só uma luz,

20.

a pacífica luz das coisas instintivas.

O título, “A face de Deus é vespas”, constitui uma afirmação inusitada que instaura, de início, o contraste entre o sagrado e o profano. O Deus que surge na poesia de Adélia Prado é o Deus concebido por uma ótica católica48, uno e trino, indivisível e invisível, sem uma forma que o defina. Ao se referir à face desse Deus, o eu-lírico procura dar-lhe uma forma, já que face pode significar “presença”, “aparência”. Além disso, face também equivale a “rosto”, “semblante”, o que contribui para uma personificação de Deus. Assim, antes de assumir a figura de vespas, Deus é comparado ao homem, porque, como este, tem uma face. O termo face vem precedido pelo artigo definido a; com isso, apresenta-se para o leitor um Deus conhecido, com um “semblante” determinado, ou seja, pressupõe-se que Deus tem uma forma49. No poema, essa forma é vespas. Esta é a informação nova, o que surpreende o leitor. Como assim: “a face de Deus é vespas”? A imagem desperta várias associações de significados, mas nenhuma se concretiza até a última palavra do texto. O verbo concorda com Deus, no singular, o que reforça a idéia de uma forma única, de um Deus único. O predicativo no plural, entretanto, confere ao sujeito um caráter múltiplo. Deus forma-se a partir de muitos elementos. Temos, então, um Deus uno e plural. E não é esta uma característica do Deus para os católicos? Deus é uno e trino — Deus é Pai, Filho e Espírito Santo. Mas o vocábulo vespas transmite uma idéia de plural que vai além do Deus trino, pois pode multiplicar-se ao infinito. Quando pensamos em vespas, imaginamos um sem número de seres alados, com uma forma não muito definida, o que contrasta com a idéia de face. O termo vespas apresenta um Deus sem limite, infinito. Esta palavra pode se referir a uma multiplicidade de insetos50 que nos rodeiam sem mesmo nos darmos o que, como já mencionado, não impede o leitor de pensar em qualquer outra divindade mais ou menos equivalente. 49 “O artigo definido identifica o objeto designado pelo nome a que se liga, delimitando-o, extraindoo de entre os objetos da mesma classe, como aquele que já foi (ou será imediatamente) conhecido do ouvinte (...)” In Bechara, E. Op. cit., p. 153. 50 Segundo o dicionário Aurélio, vespas é a “designação comum aos insetos himenópteros providos de ferrão na extremidade do abdome e com patas posteriores não achatadas. São reunidos em famílias que contêm espécimes com aspecto geral de marimbondos, como, p. ex., os braconídeos, 48


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conta de sua presença. Além disso, vespas pode nos remeter à idéia de algo incômodo, assumindo, assim, um caráter negativo. Afinal, pensamos no inseto com o seu ferrão51. Portanto, a idéia de dor também é evocada. De todo modo, a imagem estabelecida no título só faz confundir o leitor, que espera por uma elucidação do que ela vem a ser. E o poema todo configurará um desenvolvimento dessa afirmação categórica e, aparentemente, contraditória. No primeiro verso, mais uma afirmação peremptória: “Queremos ser felizes”. O poema inicia-se com um verbo na primeira pessoa do plural. O eu dirige-se diretamente ao leitor e o convida a ser sujeito ativo de seu discurso. Esse procedimento estabelece uma relação de empatia entre o eu e o leitor, que está inscrito no texto como interlocutor e sujeito sintático da primeira oração. Essa empatia também é estabelecida pelo tom informal do texto, pautado pelo uso de um vocabulário razoavelmente simples e pela repetição de termos e estruturas, o que é comum em conversas espontâneas52. No verso 10, por exemplo, o eu declara: “Acho bela a vida”. O termo acho, escolhido no lugar de considero ou qualquer palavra mais formal, marca a espontaneidade do discurso, próximo da conversa entre amigos. Os verbos na primeira pessoa do singular — acho, sei, sou, experimento, recuso, posso —, associados aos pronomes eu e me, imprimem subjetivismo ao texto e contribuem para a aproximação entre eu-lírico e leitor. O eu se mostra para o leitor sem reservas, compartilhando suas dúvidas em relação a sua existência, contando como concebe o fato de estar vivo. Retornando ao primeiro verso: “Queremos ser felizes”. O deslocamento de Deus, no título, para o homem, se dá instantaneamente. Há entre Deus e Homem uma relação que ainda permanece oculta para o leitor. Eu, você — leitor —, nós — homens — “queremos ser felizes”. Este é o pressuposto do poema que, aliado ao título, serve de impulso para a reflexão que se construirá ao longo do poema. O homem deseja ser feliz. Os quatro versos seguintes descrevem o que o eu quer expressar com o vocábulo felizes. Felizes como os flagelados da cheia, que perderam tudo calcidídeos, pompilídeos, esfecídeos, vespídeos”. In Aurélio eletrônico. 51 Ainda recorrendo ao Aurélio, vespas pode ter a significação figurativa de “pessoa intratável e mordaz”. 52 Cf. Deborah Tannen, “A conversação usual e o discurso literário: a coerência e a poética da repetição”.


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e dizem-se uns aos outros nos alojamentos: ‘Graças a Deus, podia ser pior!’ A ligação entre a afirmação do primeiro verso e o período seguinte se dá pela repetição de felizes, que ganha força no poema. A repetição estabelece, no segundo verso, um paradoxo aparente: queremos ser felizes como os flagelados da cheia, isto é, como as vítimas de uma catástrofe, da destruição. A imagem de pessoas que perdem suas mobílias, suas casas, seus parentes em enchentes é comum. A cada ano temos notícia de acontecimentos desse tipo e isso, a cada ano, nos comove e entristece, pois nos compadecemos dessas pessoas. O contraste se intensifica no terceiro verso: “que perderam tudo”. O sentimento de perda se opõe à idéia de felicidade, pois esta é geralmente associada à idéia de plenitude. Os dois versos seguintes, entretanto, desfazem o paradoxo. O eu lírico se refere aos flagelados que, em sua desgraça, são capazes de conservar uma visão otimista, conseguem se considerar afortunados. Mas, se perderam tudo... E o que significa tudo no poema? Se interpretarmos esse termo literalmente, e não há nada indicando que não se deva fazê-lo, a única coisa que resta a essas pessoas são suas próprias vidas. Assim, a palavra felizes assume sua conotação mais plena. A felicidade em estado puro, que não depende de nada além da própria vida. O uso do verbo na primeira pessoa do plural apresenta um eu que se expressa como porta-voz de toda a humanidade, aproximando-o do leitor, inscrito no poema por meio da forma verbal. Queremos, o eu-lírico e nós, leitores, essa felicidade idealizada, que não encontra obstáculo em nada, nem na maior catástrofe. Mas é essa busca mesma que cria infelicidade, pois, humanos que somos, precisamos de coisas, de conquistas, de meios para atingirmos essa felicidade, a qual se torna praticamente inatingível, gerando frustração. “Graças a Deus, podia ser pior!” é já uma frase feita, que utilizamos quando queremos nos consolar ou consolar alguém. O fato de ser uma sentença cristalizada fortalece o vínculo entre eu-lírico e leitor, já que essa frase não é fruto de uma personalidade única e sim de uso comum, de todos. O verbo no pretérito imperfeito em vez do futuro do pretérito (poderia) exprime o caráter popular dessa frase. Muitas vezes a pronunciamos sem nos darmos conta, de fato, de seu significado. No poema, seu valor adquire intensidade. Primeiro por estar inserida em um contexto de perda total. Segundo, porque nos lembra da nossa incapacidade de nos consolarmos


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verdadeiramente com as nossas perdas. O verso seguinte expressa a consciência do eu dessa nossa inabilidade para atingirmos a felicidade com total desprendimento. Ó Deus, podemos gemer sem culpa? Neste ponto, o poema assume ares de uma prece. O vocativo Ó Deus marca a troca de interlocutores. Agora, o eu se dirige a Deus em tom de súplica. A interrogação é extremamente ambígua. Pode representar tanto um pedido quanto uma pergunta propriamente. De todo modo, o eu revela sua impotência diante de Deus. Será que é possível gemer sem culpa? Será que o senhor nos permite gemer sem culpa? É possível reclamar sem nos sentirmos culpados por fazê-lo? Desculpe-nos por não estarmos contentes nunca... Esse sexto verso é de extrema importância para a organização e interpretação do poema. É a partir dele que a ambigüidade da relação locutorinterlocutor se constrói. Pode-se considerar, a partir dele, que, desde o início, o eulírico se dirigia a Deus, apresentando-se na primeira pessoa do plural por se colocar como um representante de toda uma espécie, a espécie humana. Ou é possível conceber o poema como uma expressão emotiva do eu, que, em meio a um revelar-se como humano e impotente frente a sua busca de felicidade, dirige-se desesperadamente a Deus. O tom inflamado, de descontrole emocional do eu-lírico, marca os versos 6-9, quando o diálogo com Deus é explícito. A idéia do sexto verso desdobra-se até o décimo quinto. Verso por verso, o eu vai se revelando incapaz de chegar à felicidade que almeja e se culpa por isso. A tristeza surge como uma espécie de tentação e, ao mesmo tempo, pecado. Desde toda a vida a tristeza me acena, o pecado contra Vosso Espírito que é espírito de alegria e coragem. O verso sétimo apresenta a tristeza personificada. Ela acena para o eu. Essa figura da tristeza que chama, que faz sinal com as mãos, os braços, cria a imagem de um ser sedutor, que tenta o eu-lírico. A partir desse verso, o eu passa a se revelar através do pronome singular. Com isso, a tristeza é materializada em um ser ardiloso, que se aproxima de um eu sozinho, desprotegido, fraco. Além disso, o pronome no


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singular indica que o eu assume sozinho a culpa por cair na tentação de ficar triste, o que aumenta o peso dessa culpa. Peso este que se expressa através do termo pecado, no verso seguinte. O verso “o pecado contra Vosso Espírito” pode tanto estar vinculado apenas à tristeza, funcionando como seu aposto, ou a todo o verso anterior, surgindo como resultado da cena descrita anteriormente, como resultado do jogo de sedução. O artigo definido adjunto a pecado coloca o termo em evidência, como se este fosse o pecado mais grave a ser cometido contra o Espírito de Deus, “que é espírito de alegria e coragem”. A descrição do Espírito de Deus contribui para formar uma idéia do que é a tristeza para o eu-lírico. Oposta ao espírito de alegria e coragem, tristeza passa a equivaler a covardia. O eu sente-se covarde ao sucumbir à tristeza. Os flagelados que dão graças a Deus por estarem vivos são corajosos. É esta coragem que o eu deseja para si, a coragem de estar feliz com o simples fato de estar vivo e, no entanto... Acho bela a vida e choro porque a vida é triste, incruenta paixão servida de seringas, comprimidos minúsculos e dietas. A vida, apesar de bela, entristece o eu por sua fragilidade. “A vida é triste”: outra afirmação categórica que parece se opor ao desejo de ser feliz do eu-lírico. A vida é “incruenta paixão”. Ou seja, a vida é sofrimento 53 sem derramamento de sangue. O adjetivo incruenta antecedendo paixão ressalta a idéia do sofrer calado, sem alarde. A paixão é “servida de seringas, comprimidos minúsculos e dietas”, o que representa a degradação do corpo, que precisa dos mais diversos cuidados para manter-se vivo e, mesmo assim, insiste em apodrecer. O adjetivo minúsculos modificando comprimidos enfatiza a fragilidade do corpo, que pode depender das menores substâncias, dos menores cuidados. A vida é triste, pois o corpo é frágil. É interessante notar a assonância das vogais posteriores, [o] e [u], e da anterior estridente [i] no verso 13 — “comprimidos minúsculos e dietas” —, reforçando a idéia de dor, da fragilidade da vida, da morte certa54. Paixão equivale a “suplício”, “martírio”. Cf. Aurélio eletrônico. “O estreitamento do conduto bucal na produção do [i] se coaduna com a expressão de pequenez, estreiteza, agudez (...). A agudez (segundo Morier) pode ser de ordem moral, intelectual (...)” 53 54


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Aliada à dor de viver constantemente lutando contra a morte do corpo, a dúvida quanto ao sentido da própria existência intensifica o sentimento de tristeza do eu-lírico. Eu não sei quem sou. O uso do pronome, que poderia vir elíptico, sendo reconhecido pela concordância do verbo, ressalta a incerteza do eu-poético, pois chama a atenção para o eu, cuja existência é questionada. O eu-lírico que até então vinha fazendo afirmações categóricas sobre a natureza de Deus e da vida — “A face de Deus é vespas” (título),“Vosso Espírito que é espírito de alegria e coragem” (versos 8-9), “a vida é triste” (verso 11) — não sabe quem é. Sua compreensão é limitada e ele tem consciência disso. A declarativa “Eu não sei quem sou” põe em dúvida as afirmações anteriores, formuladas com tanta convicção. O eu se revela frágil, e assim é o seu discurso. Suas certezas caem por terra... e a tristeza cresce, o que se confirma no verso seguinte. Sem me sentir banida experimento degredo. O eu, que agora se revela como um eu feminino, sente-se deslocado, fora do lugar, sem ao menos entender o porquê. Sente-se banida sem ter sido banida por alguém. Sente-se culpada sem ter sido incriminada55. A própria tristeza é a culpa e a punição que carrega. A recorrência de sons fechados, [ê], [i], recria, no plano sonoro, a idéia de peso, dificuldade, reforçando a sensação de angústia do eu-lírico. O sentimento de tristeza parece saturar-se, quando há uma mudança total no tom do discurso. Mudança marcada, inclusive, pela conjunção adversativa mas, que, ao iniciar o verso, ganha destaque. Mas não recuso os marimbondos armando suas caixas

“A série posterior tem a possibilidade de imitar sons profundos, cheios, graves, ruídos surdos e sugere idéias de fechamento, redondeza, escuridão, tristeza, medo, morte” In Martins. Op. cit., pp. 31 e 32. 55 Lembrar que degredo significa não apenas “exílio”, “banimento”, mas a própria “pena de desterro que a justiça impõe a criminosos”. In Aurélio eletrônico.


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A imagem dos marimbondos edificando sua moradia introduz no poema uma idéia de construção que destoa daquela expressa nos versos 12 e 13 de degradação da vida. Antes, o que chocava era a vida se esvaindo aos poucos; agora, o que surpreende é a vida se formando e renovando lentamente. Quem já viu uma caixa de marimbondos sendo armada sabe da paciência e da técnica que isso requer. Do mesmo modo, a imagem que se estabelece se opõe àquela da cheia que destrói e tira do homem suas casas. Como se a imagem dos marimbondos não bastasse para superar o sentimento de tristeza, o poema se encerra com uma explicação, ou melhor, um comentário que expande a idéia de otimismo que se instaura: porque são alegres como posso ser, são dádivas, mistérios cuja resposta agora é só uma luz, a pacífica luz das coisas instintivas. A comparação estabelecida no verso 17 remete aos dois primeiros versos, mas é muito mais otimista. Se antes o eu afirmava: “Queremos ser felizes./Felizes como os flagelados da cheia”, que devem reconstruir sua vida depois de terem perdido tudo, agora diz: [os marimbondos armando suas caixas] “são alegres como posso ser”. O querer cede lugar ao poder. O eu sente-se, agora, capaz de ser alegre como os marimbondos que, após deixarem uma casa, rapidamente se empenham na construção de outra e assim passam a vida. E assim vivem. Se o eu afirma no verso 14: “Eu não sei quem sou”, agora diz: posso ser alegre. O otimismo vai crescendo e se transformando na própria alegria. O vocábulo escolhido para concretizar o desejo expresso no primeiro verso é alegres, em vez de felizes. Com isso, o verso 9, que apresenta o Espírito de Deus como um espírito de alegria, é retomado. A imagem de Deus retorna com maior intensidade e o título começa a fazer sentido. A face de Deus vai, aos poucos, despontando como esse sentimento de alegria frente à possibilidade de construção e renovação expressa na imagem dos marimbondos armando suas caixas. E a descrição continua: “são dádivas”. O eu reconhece a cena como um presente, um dom concedido por Deus, o que contrasta com a idéia de castigo, de culpa do verso 15. A tristeza vai, passo a passo, sendo suplantada pelo sentimento de alegria.


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Nos dois últimos versos, mais um contraste contribui para o crescimento da sensação de alegria. O termo mistérios pode assumir diversas significações. Além de remeter a “tudo aquilo que a inteligência humana é incapaz de explicar ou compreender”, “objeto de fé”, também evoca a idéia de “festas particulares com que a Igreja Católica louva os mistérios da Fé”56. Dessa maneira, o não saber assume um caráter positivo, destoando da idéia do verso 14, que levava à angústia. O problema se resolve na visão do não saber como dádiva. O sentido de enigma ganha primazia com a oração adjetiva “cuja resposta agora é só uma luz”. Há uma resposta, mas esta é apenas uma claridade. O sentido da visão é posto em evidência, pois é ele que desperta para a luz. A sensação sobrepõese à maquinação da consciência. Entretanto, a idéia do saber pela razão também está implícita no vocábulo luz, que tem como sentido figurativo: “faculdade de percepção”, “inteligência”, e mais: “certeza”, “verdade”. Com o apagamento da dúvida, a tristeza se esvai. A resposta é só uma luz. O eu-lírico conforma-se com o que tem, o que o aproxima de uma felicidade mais plena. O termo luz vem antecedido pelo artigo indefinido, fazendo com que luz tenha o sentido mais comum; trata-se de uma luz qualquer, sem um valor que a torne especial. Esse recurso chama a atenção para o sentimento que cresce no eu, instintivo, independente de um fato grandioso. O último verso serve de aposto para o sintagma nominal uma luz e se liga à idéia anterior através da repetição do termo descrito: “a pacífica luz das coisas instintivas”. A luz, até então indefinida, especifica-se por meio de dois adjuntos, um atribui-lhe uma qualidade: pacífica; outro revela sua origem: das coisas instintivas. Não se trata de uma claridade, de um brilho qualquer. Essa luz é pacífica, o que acalma, definitivamente, o espírito do eu que, até o verso 15, havia se mostrado angustiado e culpado por sentir-se de tal maneira. E essa luz é refletida pelas coisas instintivas. O vocábulo coisas, por não ter uma significação precisa, pode remeter a qualquer referente, o que amplia o sentido da expressão e confere uma importância maior ao seu adjunto instintivas. A idéia do instinto é enfatizada. Pode referir-se a marimbondos, que são seres considerados irracionais, em oposição ao homem, estendendo-se para seu ato de armar suas caixas, que se desenrola instintivamente — e, de certo modo, “com inteligência” (pensando na acepção figurativa do termo luz), uma inteligência própria do instinto. E pode referir-se ao homem, já que o ato de 56

Id. ibid.


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construção e recomeço também lhe é inerente. Afinal, o homem se destaca entre a grande maioria dos animais por sua grande capacidade de adaptação aos mais diferentes meios e às mais diversas situações. Assim, o eu descarta a razão e apresenta a intuição, o instinto, como forma de atingir a felicidade. O advérbio agora enfatiza a sensação de certeza que substitui a dúvida do eu-poético: embora não seja acessível no momento, há uma resposta que virá a seu tempo. Isso também reforça a idéia de aceitação de sua condição. O eu-lírico, assim como todo homem, já que ele se apresenta como porta-voz de sua espécie, deve contentar-se com a condição de não ter todas as respostas para suas dúvidas existenciais. Como já pudemos perceber, a imagem dos marimbondos construindo suas casas estabelece relação com cada trecho do poema, mas em especial com o título. Sabemos que o marimbondo é uma espécie de vespa. O título descortina-se para o leitor. A face de Deus seria esse ato de construir e renovar, a própria vida. Cabe ressaltar que o termo luz, essencial para a descrição da imagem dos marimbondos, pode significar “claridade emitida por corpos que não a possuem, mas que a refletem de outros”, ou seja, “reflexo”57. Dessa maneira, essa luz pode ser concebida como reflexo do próprio Deus. Sua face revela-se por meio das coisas instintivas. É importante notar, nos dois últimos versos, a aliteração do [s] e do [z], reproduzindo o zunir das vespas trabalhando. As sensações do leitor são despertadas, não apenas no plano da visão, mas da audição. A única rima do poema se estabelece entre as palavras dádivas e instintivas, ligando-as na camada semântica. As coisas instintivas são igualadas a dons, a presentes ofertados pela divindade. Aceitar esses presentes é aproximar-se da felicidade que tanto buscamos. Com isso, notamos que os conteúdos do poema vão, gradativamente, sendo substituídos pelos seus opostos. Até o verso 15, há um crescimento da sensação de tristeza. Depois, a partir do verso 16 e se prolongando até o fim do poema, permanecendo para o leitor, a sensação de alegria vai aumentando. A imagem dos marimbondos como dádivas se opõe e prevalece à da vida como paixão, termo que também pode significar “tormento sofrido por mártires”58, expressa nos versos 10-13. O eu reconhece que sua vida não é oferta dolorosa, mas um dom recebido de Deus. Deus este que se manifesta por meio das coisas instintivas. 57 58

Id. ibid. Id. ibid.


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A aceitação dos marimbondos revela uma experimentação do sagrado que se descortina para o eu-lírico e, conseqüentemente, para o leitor. Com Mircea Eliade, podemos considerar essa imagem final como uma espécie de “sinal portador de significação religiosa”, um elemento que “põe fim à relatividade e à confusão”59 própria de uma visão profana da vida. O sagrado surge com essa crescente sensação de alegria, dando sentido à existência, reorganizando a visão do eu-lírico, que já não enxerga simples insetos, mas insetos que revelam a sacralidade de todo o Universo, incluindo o próprio eu-lírico, que participa da existência. Assim, o eu-poético expressa uma visão religiosa da vida, o que se reflete no valor semântico das palavras que compõem o poema, já que estas passam a apresentar um duplo sentido: um profano, como meros termos que aludem a determinados referentes, e outro sagrado, como termos que remetem à manifestação de uma divindade. Com os marimbondos, a vida se mostra ao eu-lírico em sua plenitude, dissolvendo sua angústia anterior frente à degradação do corpo, à morte. Então, cabe lembrar que “a aparição da vida é, para o homem religioso, o mistério central do Mundo. Esta Vida ‘vem’ de qualquer parte que não é este mundo, e finalmente retirase de cá de baixo e ‘vai-se’ para o além, prolonga-se de uma maneira misteriosa num lugar desconhecido, inacessível à maior parte dos vivos. A vida humana não é sentida como uma breve aparição no Tempo, entre dois Nadas; é precedida de uma preexistência e prolonga-se numa pós-existência. Sabe-se muito pouco sobre estes dois estádios extraterrestres da Vida humana, mas sabe-se, apesar disso, que eles existem. Por conseqüência, para o homem religioso, a morte não põe um termo definitivo à vida. A morte não é mais do que uma outra modalidade da existência humana”.60 Apesar de admitir o mistério que envolve a imagem dos marimbondos, o eu tem uma certeza que se insinua e que se deixa apreender instintivamente. Essa certeza é a própria experimentação do sagrado que, como já mencionado, se apresenta como a única realidade possível. Daí a afirmação categórica do título: “A face de Deus é vespas”. Vale voltar os olhos para a construção sintática do texto e notar o movimento que se instaura desde o início. Observamos que não há muitas conjunções no poema. A coesão se estabelece principalmente pela repetição de determinados termos. Nos versos 1 e 2, a repetição de felizes. Nos versos 8 e 9, a repetição de 59 60

Op. cit., p. 41. Id. ibid., pp. 156-157.


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espírito. Nos versos 19 e 20, luz. Assim, o poema vai se desdobrando. Ao surgir uma idéia, ela retorna, ampliada, nos versos seguintes. Além desse recurso, notamos a grande incidência do verbo ser (título, versos 1, 5, 9, 11, 14, 17, 19). Essa recorrência de um verbo indicando estado se coaduna com o tom do poema, que tende à discussão metafísica, à reflexão sobre a existência do homem e de Deus. O tom reflexivo também é marcado pela ocorrência da conjunção explicativa porque em dois momentos contrastantes do poema: “Acho bela a vida e choro/ porque a vida é triste” e “Mas não recuso os marimbondos armando suas caixas/ porque são alegres como posso ser”. Esse uso do porque em paralelo frisa a mudança no espírito do eu-lírico e no rumo de sua argumentação. No primeiro momento, porque introduz a explicação do choro, ou seja, do sofrimento do eu. A conjunção e, usada com valor adversativo, e a ordem sintática da frase enfatizam a idéia da dor em detrimento do encanto diante da beleza da vida. A idéia que fica para o leitor é a seguinte: apesar de bela, a vida é triste. E é a tristeza que permanece. No segundo momento, a adversativa Mas expressa exatamente o oposto. A idéia é: apesar da tristeza, de tudo o que foi exposto, a vida nos oferece a possibilidade de sermos alegres. Nesse caso, o que permanece na mente do leitor é a alegria. Percebe-se, portanto, que a organização lógica do poema busca persuadir, além de comover. O eu-lírico parte de um pressuposto: “Queremos ser felizes” e tece considerações sobre os modos de chegar à felicidade almejada. A partir da reflexão racional, que procura o sentido e o porquê da existência (“Eu não sei quem sou.”), o eu mostra que só é possível chegar à angústia. Em seguida, parte para a elaboração de uma imagem que representa o irracional, a busca instintiva pela vida. E mostra que apenas então é possível atingir a felicidade. A persuasão se faz, pois o leitor é induzido a experimentar do sentimento de tristeza do eu para depois compartilhar o sentimento de felicidade, que é a própria experiência do sagrado. Ela ocorre mais pelo irracional que pelo racional. Lembrando Mikel Dufrenne, “o sentimento coloca-nos em situação de inteligência com o conteúdo expressivo da palavra; porém, essa inteligência não é conceitual: é sensível, e a sensibilidade que recolhe o sentido não é sensorial, mas afetiva; nós comungamos com o que nos é comunicado”61. A imagem de Deus é diretamente associada à imagem que gera a felicidade. Com isso, o primeiro verso do poema, que parecia destoar do título, pode ser lido de outra maneira: “Queremos ser felizes” equivale a “Buscamos a Deus”, afinal, é Ele a 61

In O poético, p. 43.


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própria felicidade (ver verso 9). O poema convence o leitor, mas não perde seu caráter de poema-oração, pois se configura como uma espécie de diálogo com Deus em que o eu, em primeiro lugar, se reconhece fraco, pecador, para depois se entregar à alegria de participar da existência — alegria intimamente vinculada ao contato com o divino, já que o espírito de Deus é “espírito de alegria e coragem” —, reconhecendo o valor da divindade, numa espécie de agradecimento pela dádiva de estar vivo.


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2.1.3 Um poema bíblico

Já no título, “Um salmo” explicita uma intertextualidade62. O poema apresenta uma forma que se enquadra em um tipo específico de produção e que determinará a criação das imagens que o constroem. Por isso, antes de o analisar, cabe verificar o que é o salmo. Os salmos são poemas sacros do povo israelita. Cento e cinqüenta deles constam da Bíblia e compõem o Livro dos Salmos, no Velho Testamento. Muitos trazem o título hebraico mizmor, que foi traduzido por salmo, palavra de origem grega que significa: cântico sacro acompanhado de um instrumento musical chamado saltério. Originados do culto e para o culto, os salmos celebram o mistério da salvação, conhecido por experiência individual, através da oração e reflexão sobre a história do povo judeu e sobre a condição humana. O salmista, mesmo que exponha diante do Deus de Israel uma situação particular, sempre fala como membro de uma comunidade religiosa. O salmo representa, portanto, uma espécie de oração comunitária. Os salmos surgiram em épocas diversas e alguns, mais antigos, foram reformulados de acordo com novas circunstâncias. Entre os vários autores destaca-se, como salmista, o rei Davi (século X a.C.). Esses textos são comumente agrupados de acordo com seu tema. Há os salmos de louvor, ou de ação de graças, salmos de súplica e lamentação, salmos sapienciais, de instrução ou exortação, podendo ser dirigidos a Deus ou ao homem. Para o intuito desta análise, nos deteremos apenas nos salmos de louvor. Compostos para cerimônias litúrgicas, eram cantados por ocasião das solenidades de Israel. Eles têm caráter comunitário, que se manifesta pelo uso de diálogo, coro, refrão, aclamação e responsório, e ainda pela participação coletiva,

Por intertextualidade entendo não apenas o diálogo inevitável que ocorre entre um texto e outros, na concepção de Bakhtin, mas, mais especificamente, a subordinação da produção e da interpretação de um texto a outros previamente existentes, determinando fatores relativos a conteúdo, forma e tipo textual. Cf. Todorov, T. Mikhaïl Bakhtine: le principe dialogique; Beaugrande, R. A. e Dressler, W. U. Introduction to text linguistics. 62


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em forma de procissão, dança, prostração, etc. Seus elementos característicos são: invocação de Deus, convite ao louvor, motivos laudatórios, fórmula de bênção e prece.63 Vários salmos de louvor poderiam ser utilizados a fim de observarmos a intertextualidade que se trava entre eles e o poema de Adélia Prado. No entanto, ficaremos apenas com os salmos 148 e 150 da Bíblia. No Salmo 148, é importante notar um jogo entre os sujeitos sintáticos dos verbos. O poema dirige-se tanto a Deus, louvando-o, como aos homens, convidandoos a louvar. A musicalidade dos versos é criada pela repetição da construção com o verbo louvar. Salmo 148 Aleluia! Louvai o Senhor, do alto dos céus, louvai-o nas alturas! Louvai-o vós todos, seus anjos, louvai-o vós todos, seus exércitos! Louvai-o, sol e lua, louvai-o vós todas, estrelas brilhantes! Louvai-o, espaços celestes, e vós, águas que estais acima dos céus! Louvem eles o nome do Senhor, porque Ele mandou, e foram criados! Ele os estabeleceu pelos séculos sem fim, ao promulgar sua lei, que não passará. Louvai o Senhor, da face da terra: dragões e todos os oceanos, fogo e granizo, neve e neblina; vento tempestuoso, dócil à sua palavra; montanhas e todas as colinas, árvores frutíferas e todos os cedros; feras e todos os animais domésticos, 63

Cf. A Bíblia – Pão Nosso de Cada Dia, pp. 666-7.


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répteis e pássaros a voar; reis da terra e todos os povos, príncipes e todos os chefes da terra; jovens e também moças, velhos e crianças! Louvem eles o nome do Senhor, o único nome sublime! Sua majestade, sobre a terra e o céu, suscita o vigor de seu povo, o louvor de todos os seus fiéis, dos israelitas, do povo que lhe é próximo. Aleluia. Na segunda pessoa do plural, Louvai assume um tom solene, de exortação, fazendo um convite a louvar a Deus. Há, com esse uso do verbo, o estabelecimento do diálogo com diversos interlocutores. O poema dirige-se a toda a existência, convocando-a diretamente à aclamação do Senhor. Louvem eles, na terceira pessoa do plural, estabelece um outro tipo de diálogo. Os que eram antes interlocutores tornam-se apenas referentes de um hino que ressoa sem um destinatário determinado e pode, pelo seu caráter de oração, dirigir-se a Deus, embora este seja referido em terceira pessoa, representando a expressão de um estado de graça e agradecimento. Essa troca de interlocutores a referentes, aliada ao fato de não haver a marcação da voz de um locutor, permite que o salmo seja repetido por cada um que o ouvir ou ler, assumindo o papel de locutor. Daí o caráter de oração comunitária do texto. Ainda que um tanto diverso, o salmo 150 também permite esse tipo de leitura. Apesar de a segunda pessoa do plural predominar, o que enfatiza o tom exortativo do texto, este se finaliza com um pronome indefinido, tudo, como sujeito de louvar, servindo de aposto resumitivo da enumeração de “tipos de louvação” que se estabelece anteriormente. Assim, não só toda a criação é convidada a louvar a Deus, como o interlocutor é convidado a louvar e a repetir o salmo, como se o ecoasse.


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Salmo 150 Aleluia! Louvai a Deus em seu santuário, louvai-o no seu majestoso firmamento! Louvai-o por seus grandes feitos, louvai-o por sua imensa grandeza! Louvai-o ao som de trombeta, louvai-o com harpa e cítara! Louvai-o com pandeiro e dança, louvai-o com instrumentos de corda e flautas! Louvai-o com címbalos sonoros, louvai-o com címbalos vibrantes! Tudo que respira louve o Senhor! Aleluia.64

A escolha desses dois salmos para este trabalho deu-se pelo fato de o primeiro enumerar elementos de toda a criação, os sujeitos convidados a louvar, enquanto o segundo lista as diferentes maneiras de louvar a Deus. Esses dois tipos de exortação se mesclarão no poema de Adélia Prado, como veremos em seguida.

64

Id. ibid., pp. 753-4.


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Um Salmo 1.

Tudo que existe louvará.

2.

Quem tocar vai louvar,

3.

quem cantar vai louvar,

4.

o que pegar a ponta de sua saia

5.

e fizer uma pirueta, vai louvar.

6.

Os meninos, os cachorros,

7.

os gatos desesquivados,

8.

os ressuscitados,

9.

o que sob o céu mover e andar

10.

vai seguir e louvar.

11.

O abano de um rabo, um miado,

12.

u’a mão levantada, louvarão.

13.

Esperai a deflagração da alegria.

14.

A nossa alma deseja,

15.

o nosso corpo anseia

16.

o movimento pleno:

17.

cantar e dançar TE-DEUM.

De início, vale atentarmos para o título do poema: Um salmo. O artigo indefinido tem uma dupla função, a de indeterminar o substantivo — trata-se de um salmo qualquer, sem uma finalidade explícita — e a de colocar o nome em evidência — por estar indeterminada, sem nenhum atributo, a palavra salmo ganha força, suas características são ressaltadas. No poema, essas características coincidem com as dos salmos de louvor: a convocação ao louvor, a repetição com caráter enumerativo, o ritmo acelerado, o jogo entre verbos na terceira e na segunda pessoas. No texto, chamam a atenção as estruturas em paralelo, os acoplamentos 65. Através das equivalências entre termos e construções sintáticas, o texto ganha unidade e o discurso vai se construindo em um desdobrar de ritmo e imagens.

Como já mencionado na análise do poema “Orfandade”, acoplamento é o nome dado por Samuel Levin a termos que se encontram em posições sintáticas equivalentes e que compartilham de significação ou sonoridade semelhantes. 65


54

O poema inicia-se com o verso: “Tudo que existe louvará”. Tudo, pronome indefinido, evoca a idéia de totalidade, a qual é reforçada pela oração adjetiva que o segue, que existe. A existência é posta em relevo. Com um sujeito tão genérico, o verbo a que se atrela ganha força. A idéia do louvor, de exaltar, glorificar, é intensificada. Desde o início, há a referência aos salmos bíblicos. No entanto, as diferenças também começam a se impor. O verbo louvar é usado sem um complemento, ou seja, de modo intransitivo. Louvar a quem? O objeto do verbo não é explicitado, embora possa ser surpreendido por meio do título. Como vimos, o salmo é uma espécie de oração, evocando a figura de Deus constantemente. Assim, o objeto implícito do verbo é “Deus”. Com a omissão do objeto e um sujeito tão amplo quanto indefinido, o ato de louvar assume sua significação mais plena. A louvação intensifica-se, pois sua finalidade é apenas sugerida. Desse modo, os sentidos que afloram são apreendidos mais facilmente. As idéias de alegria, de contentamento, de encantamento, êxtase, do estado de graça se fazem presentes, pois elas estão, de uma maneira ou de outra, associadas ao ato de louvar. A partir do primeiro verso, o que segue é uma especificação do sujeito que se estende até o verso 12. A estrutura [sujeito] + [verbo intransitivo] vai se repetindo ao longo de todo o trecho, embora apresente algumas variações, como veremos no decorrer da análise. No momento, é interessante notar essas estruturas em paralelo: [Tudo que existe] sujeito [louvará.] verbo [Quem tocar] suj. [vai louvar,] locução verbal [quem cantar] suj. [vai louvar,] loc. verbal


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[o que pegar a ponta de sua saia e fizer uma pirueta,] suj. [vai louvar.] loc. verbal [Os meninos, os cachorros, os gatos desesquivados, os ressuscitados, o que sob o céu mover e andar] suj. [vai seguir e louvar.] verbo + verbo [O abano de um rabo, um miado, u’a mão levantada,] suj. [louvarão.] verbo66 O trecho citado pode ser dividido em três partes: do primeiro ao quinto, do sexto ao décimo segundo e do décimo terceiro ao último verso. É interessante notar, na primeira parte, que o sujeito se mostra através de orações subjetivas que concentram seu valor semântico não em um referente explícito, mas na ação desse sujeito. Quem tocar vai louvar, quem cantar vai louvar, o que pegar a ponta de sua saia e fizer uma pirueta, vai louvar. A atenção se concentra na ação praticada pelo sujeito e, com isso, revelamse as maneiras de louvar, nos remetendo ao Salmo 150: tocando, cantando e dançando, idéia expressa metonimicamente através da imagem construída nos versos 4 e 5 — imagem esta que, ao descrever o movimento da dança, torna-o presente aos olhos do leitor, intensificando-o. O sujeito que “pegar a ponta de sua saia” é determinado pelo artigo masculino, o que causa um certo estranhamento, já que, em nossa cultura, a saia é uma vestimenta própria da mulher. Com isso, a diferença entre os sexos é neutralizada. O que permanece é a idéia de alguém que dança, homem ou mulher. A louvação se dá através da expressão do espírito, com a música e o canto, e da expressão do corpo, com o movimento da dança. Assim ela é completa. A repetição de “vai louvar”, associada à repetição das estruturas sintáticas, pronomes e verbos no infinitivo, cria um ritmo intenso, reproduzindo, tanto no plano Esta não é a única maneira de ler o poema, mas por enquanto serve para mostrar algumas equivalências importantes para a coesão e criação de sentido no texto. 66


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sonoro quanto semântico, o próprio ato de louvar por meio dos movimentos da música e da dança. A recorrência dos sons abertos, [a] e [ar], transmite uma sensação de leveza, claridade, colaborando para a criação de um estado harmônico, de louvação. 67 Embora, como já apontado, reconheçamos na segunda parte uma estrutura semelhante àquela dos versos anteriores, há uma mudança considerável nesta passagem, não apenas rítmica, mas semântica. Os meninos, os cachorros, os gatos desesquivados, os ressuscitados, o que sob o céu mover e andar vai seguir e louvar. O abano de um rabo, um miado, u’a mão levantada, louvarão. Agora há uma especificação dos sujeitos, embora constituam, também, referentes genéricos. O uso do artigo definido é crucial para a criação desses sujeitos. Lembrando Cressot, o artigo definido serve para apresentar objetos precisos, conhecidos tanto para o locutor quanto para o interlocutor, podendo, também, evocar uma totalidade genérica, expressando a idéia de coletividade. O artigo serve, ainda, para conferir notoriedade a um elemento, colocando-o no centro de nossa atenção 68. No poema, todos esses valores do artigo convergem para criar a idéia de sujeitos conhecidos e que, ao mesmo tempo, representam a multidão de seres que se reúnem para louvar. A única categoria que vem qualificada são os gatos, mesmo assim, seu adjunto não aponta para uma qualidade específica. Os gatos são desesquivados, o que causa um certo estranhamento, não só por ser este um neologismo, formado por meio do acréscimo do prefixo des- ao termo esquivados, mas porque os gatos são apresentados sem uma característica marcante da espécie: o fato de parecerem sempre “Entre os autores que mais se dedicaram ao exame da expressividade dos elementos sonoros, destacam-se Maurice Grammont e Henri Morier. Ambos, como Bally, salientam que os fonemas apenas apresentam potencial expressivo, de acordo com a natureza de sua articulação; as idéias que sugerem só se percebem quando correspondem à significação das palavras ou da frase; quer dizer, seu valor latente só é posto em relevo pela significação.” In Martins. Op. cit. p. 27. 68 Cf. O estilo e as suas técnicas, pp. 106-115. 67


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desconfiados, ariscos. Essa imagem cria uma cena pacífica, sem desconfiança ou medo, perfeita para a louvação. O verbo louvar aparece apenas no fim do período, coordenado a seguir. A enumeração dos sujeitos, separados por vírgula, cria um ritmo mais acelerado, como se houvesse uma multiplicação rápida dos seres que louvarão. O verbo seguir confirma essa idéia, como se um ser fosse se juntando ao outro para seguir e louvar. Novamente, surge um verbo transitivo utilizado como intransitivo. Isso reforça a idéia de um ser se juntando ao outro, mas cria uma imagem difusa, pois o objeto a ser seguido não se manifesta claramente, embora possamos associá-lo ao mesmo objeto a que temos associado, através da relação de intertextualidade com o texto bíblico: Deus. O estranhamento da imagem também se dá pela combinação dos sujeitos. Os meninos, os cachorros, os gatos e os ressuscitados estão unidos para seguir e louvar. Há um salto instantâneo do mais comum, natural — afinal, o cachorro costuma mesmo seguir as pessoas e o gato, sem o seu característico comportamento arisco, também pode seguir o homem —, ao sobrenatural: os ressuscitados se juntarão para seguir e louvar. Podemos ler o verso 9 como aposto resumitivo de um sujeito composto que se estende pelos versos 6-8. Assim, esse sujeito seria apenas uma amostra pequena de tudo “o que sob o céu mover e andar”. Com isso, cria-se uma imagem que remete ao primeiro verso. Mover e andar são ações genéricas, que abarcam todos os seres vivos — nem todos os seres andam, mas, certamente, se movem. Até seres que consideramos inanimados podem se mover com algum auxílio externo. Dessa forma, temos uma imagem semelhante àquela do Salmo 148, em que toda a existência é conclamada a louvar ao Senhor. O poema, embora se inicie com uma alusão a toda existência, desenvolve-se a partir da ação mais específica e própria do homem, expressa por tocar, cantar e dançar à mais genérica. Tem-se a impressão de uma ampliação do ato de louvar, que começa com o homem e se estende a toda criatura. A imagem dos ressuscitados confere ao discurso um tom apocalíptico. Aliás, reitera esse tom, pois desde o primeiro verso, o verbo louvar é empregado no futuro. Ou seja, o poema não é apenas um convite ao louvor, como freqüentemente se encontram nos salmos, mas assume um ar de narrativa profética. Isso pode ser observado do verso 1 ao 12. “Um salmo” é um poema sobre o fim dos tempos. Para muitos cristãos, no fim dos tempos, todos os mortos ressuscitarão. Os vivos deixarão


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seus afazeres para se juntarem no Juízo Final. Em muitos, essa idéia suscita pavor, medo da condenação. No poema, no entanto, há apenas a idéia de júbilo, construída através da louvação. Então, o objeto do verbo louvar vai se formando no próprio poema, pois, ainda segundo uma ótica cristã, no fim dos tempos, o homem contemplará a Deus. 69

Se nos remetermos ao Apocalipse, livro do Novo Testamento, encontraremos uma passagem que também parece ser evocada pelo poema. Ela trata especificamente da narrativa sobre o final dos tempos, fruto de uma visão de São João: 69

Depois ouvi uma voz forte, como de multidão numerosa no céu, que dizia: “Aleluia! A salvação, a glória e o poder para nosso Deus, Porque verdadeiros e justos são seus juízos.” (...) Do trono saiu uma voz que dizia: “Louvai nosso Deus todos os seus servos e todos os que o temeis, pequenos e grandes.” E ouvi uma voz, como de grande multidão, como voz de muitas águas e como voz de fortes trovões, que dizia: “Aleluia! Porque estabeleceu seu reino o Senhor nosso Deus, o Todo Poderoso. Alegremo-nos, exultemos e demos glória, porque se aproximam as núpcias do Cordeiro.” (In A Bíblia – Pão Nosso de Cada Dia. Cap. 18, vers. 1-2; 5-7, p. 1467.)

O texto do Apocalipse também trata da ira divina e da punição pelos pecados cometidos. No poema de Adélia Prado, no entanto, há somente o espírito de louvação, alegria, diante da possibilidade de encontrar a Deus, mais especificamente Cristo, o qual surge no texto apocalíptico na figura do Cordeiro.


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Nos versos 11 e 12, há uma retomada da imagem construída nos cinco anteriores, mas os sujeitos retornam metonimicamente. Cada ser louva a seu modo. O cachorro abana o rabo, o gato mia, o homem levanta a mão. Os gestos mais triviais são tidos como atitudes sagradas, como se fosse inevitável aderir à louvação. O artigo definido determinando abano, aliado ao indefinido vinculado a rabo, chama a atenção para o gesto, colocando-o em evidência em detrimento do sujeito da ação, o que ressalta o ato de louvar. O abano de um rabo, um miado, u’a mão levantada, louvarão. A contração de uma para u’a, além de contribuir para a preservação da agilidade do ritmo, ressalta o caráter oral do poema, que se apresenta como “um salmo”, isto é, um cântico de louvor. Além disso, reforça o tom popular do hino, constituído basicamente por um léxico simples, sem pompas, acessível aos falantes de língua portuguesa, independente de seu estrato social, o que contribui para a ampliação do ato de louvar. Convém observar que a vírgula, no décimo segundo verso, não só apresenta uma pausa no ritmo, como vem imbuída de significação. Ela quebra a concordância direta entre o verbo (louvarão) e seu aparente sujeito sintático (o abano de um rabo, um miado, u’a mão levantada). Desse modo, a desinência número-pessoal do verbo ganha força e, com isso, a idéia da propagação do ato de louvar. É possível inferir, então, o termo todos ou, retomando o primeiro verso: tudo que existe, como sujeito elíptico do verbo. A louvação amplia-se gradativamente até atingir a todos. Na terceira parte do poema, a narrativa profética, por assim dizer, cede espaço para um novo tipo de discurso, em que o interlocutor é interpelado diretamente, com o uso da segunda pessoa do plural. Esse uso revela não apenas a tonalidade de texto sacro do poema, mas o fato de não ser dirigido a um único indivíduo, e sim a muitas pessoas, ou a toda uma comunidade, tal como os salmos bíblicos.

Esperai a deflagração da alegria.


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A construção sintática muda e o ritmo se acalma. O eu do poema dirige-se ao leitor no imperativo: esperai. A alegria, que até então estava implícita no verbo louvar e na própria sonoridade do poema, se expressa claramente. Há uma descrição velada da cena descrita nos versos anteriores. O vocábulo deflagração dá intensidade à imagem construída, pois significa “inflamar-se com chama intensa, centelhas ou explosões”70. A alegria virá como uma explosão, como algo surpreendente e grandioso. Ao mesmo tempo, deflagrar remete à idéia do inesperado, do imprevisto. Assim, o leitor deve esperar por algo que pode acontecer a qualquer momento. 71 O caráter de oração comunitária se confirma quando o eu-poético emprega a primeira pessoa do plural, incluindo o leitor — os leitores, os homens todos — no seu discurso. A nossa alma deseja, o nosso corpo anseia O acoplamento dos versos 14 e 15 realça o contraste entre corpo e alma e os apresenta em um mesmo plano. Não há hierarquia, não há separação, o homem inteiro deseja/anseia, espera por essa deflagração da alegria, ou melhor: o movimento pleno: cantar e dançar TE-DEUM. A idéia de louvação retorna nos dois últimos versos. O sintagma “o movimento pleno” condensa os gestos dos versos 11 e 12 em um único ato: o de louvar. A determinação do termo movimento pelo artigo definido e sua caracterização pelo adjunto pleno contribuem para singularizar o momento e o gesto, como se congelando a cena descrita, eternizando-a. Com isso, as diferenças entre os seres que louvarão se apaga, pois todos formam uma unidade ao louvar. Aqui, o objeto de louvação é explicitado, em latim, o que reforça o caráter de texto sacro do poema. Te Deum é a junção de te ou a ti e Deus. Dessa forma, o objeto, que até então era apenas sugerido, se confirma. “TE DEUM”, em letras In Aurélio eletrônico. Outra concepção cristã do fim dos tempos. “Vigiai, pois não sabeis o dia nem a hora em que chegará o Senhor.” (Trecho do discurso de Cristo. In A Bíblia – Pão Nosso de Cada Dia. Evangelho de São Mateus. Cap. 24, vers. 42, p. 1206). No poema, como já comentado, permanece apenas a ansiedade pela alegria, não há vestígios de preocupação com o Julgamento Final. 70 71


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maiúsculas, revela o sentimento de ansiedade e êxtase diante da oportunidade da louvação plena. Te Deum também é o nome que se dá a um cântico da Igreja Católica, em ação de graças, que principia por essas palavras latinas, seria o hino ambrosiano. A expressão serve para designar, ainda, a cerimônia que acompanha esse cântico72. No poema, todos os significados convergem. O texto se fecha em um movimento circular. Te Deum também pode ser lido como laudamus, isto é, 'louvamos'. O louvor não só é retomado pela idéia de cantar e dançar em ação de graças como também se impõe como uma exortação, um grito (reproduzido pelas letras maiúsculas) para que louvemos. Se Te Deum é uma expressão que inicia cânticos de louvor, o poema termina iniciando um novo cântico, convidando o leitor a unir-se ao eu-poético para louvar a Deus.

2.1.4 Poema para um santo

Responsório é o nome que se dá à “oração a Santo Antônio para que se achem coisas perdidas ou não aconteça mal que se receia”73. Como o próprio título anuncia, o poema todo é uma oração. Apesar de seguir uma fórmula, assim como “Um salmo”, o texto apresenta um tom coloquial e espontâneo, o que lhe confere originalidade. A mescla entre o tom respeitoso ao se dirigir ao santo e o uso de uma linguagem informal cria imagens que beiram o cômico. O texto tem a forma das orações tradicionais da Igreja Católica voltadas a santos, geralmente de origem popular: Vocativo Pedido de favor de ordem material Exaltação do santo Promessa de algo em troca do favor Pedido de favor de ordem espiritual Amém O eu-lírico se mostra por meio da primeira pessoa. Trata-se de um eu feminino. Ele se dirige ao santo para pedir que encontre um objeto perdido. Como sabemos, Santo Antônio é um dos santos mais populares, conhecido por auxiliar os 72 73

Cf. Aurélio eletrônico. Id. ibid.


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homens a encontrarem coisas desaparecidas. Também é tido por ser o santo casamenteiro, ou seja, por encontrar esposo ou esposa. O eu assume uma postura respeitosa ao se dirigir ao santo, expressa através do uso do pronome vós e dos verbos na segunda pessoa do plural, assim como alguns vocativos que o exaltam como servo de Deus.

Responsório 1.

Santo Antônio,

2.

procurai para mim a carteira perdida,

3.

vós que estais desafadigado,

4.

gozando junto de Deus a recompensa dos justos.

5.

Estão nela a paga do meu trabalho por um mês,

6.

documentos e um retrato

7.

onde apareço cansada, com uma cara

8.

que ninguém olhará mais de uma vez

9.

a não ser vós, que já em vida

10.

vos apiedáveis dos tormentos humanos:

11.

sumiu a agulha da bordadeira,

12.

sumiu o namorado,

13.

o navio no alto-mar,

14.

sumiu o dinheiro no ar.

15.

Tenho que comprar coisas, pagar contas,

16.

dívidas de existir neste planeta convulso.

17.

Prometo-vos uma vela de cera,

18.

um terço do meu salário

19.

e outro que rezarei

20.

pra entoar vossos louvores, ó Martelo dos Hereges,

21.

cuja língua restou fresca

22.

entre vossos ossos, intacta.

23.

Servo do Senhor, procurai para mim a carteira perdida

24.

e se tal não aprouver a Deus para a salvação da minha alma,

25.

procurai antes me ensinar


63

26.

a viver como vós,

27.

como um pobre de Deus.

28.

Amém!

O poema conta com cinco períodos que formam cinco partes diferentes, as quais serão comentadas na análise. Na primeira parte, que inclui os quatro primeiros versos, temos a invocação de Santo Antônio, com o vocativo no primeiro verso, a explicitação do pedido do eulírico e a exaltação do santo. Santo Antônio, procurai para mim a carteira perdida, vós que estais desafadigado, gozando junto de Deus a recompensa dos justos. O pedido é direto: “procurai para mim a carteira perdida”. O uso do artigo definido determinando carteira revela a fé do eu-lírico. Este acredita que Santo Antônio saiba do que se trata, o que demonstra que se sente próximo a ele. O tom solene da linguagem, que se constrói com o emprego de frases-feitas, comuns a esse tipo de oração — “gozando junto de Deus a recompensa dos justos”, “se tal não aprouver a Deus para a salvação da minha alma” —, e com o uso da segunda pessoa do plural, resulta em um efeito cômico pela maneira irreverente com que o eu-lírico apresenta seu pedido. O humor se estabelece, pois o eu se coloca de modo extremamente respeitoso, exaltando a figura do santo, para dizer, na verdade, o que equivale à seguinte frase: “Santo Antônio, já que o senhor não está muito ocupado, procure para mim a carteira perdida”. A irreverência com que o eu-poético se aproxima do santo é marcada pelo uso do neologismo: “desafadigado”. A linguagem do poema se constrói, portanto, da mescla entre a fórmula, de domínio coletivo, e da inovação, de domínio individual, culminando em uma linguagem completamente nova, pautada pelo solene e pelo cômico. Na segunda parte do poema, temos a descrição do objeto.


64

Estão nela a paga do meu trabalho por um mês, documentos e um retrato onde apareço cansada, com uma cara que ninguém olhará mais de uma vez a não ser vós, que já em vida vos apiedáveis dos tormentos humanos: sumiu a agulha da bordadeira, sumiu o namorado, o navio no alto-mar, sumiu o dinheiro no ar. Os objetos que constam da carteira do eu revelam o caráter corriqueiro do pedido, ao mesmo tempo em que explicitam sua urgência. Constituem elementos comuns em nossas carteiras: dinheiro, documentos e retrato. A descrição desses elementos deixa claro que não há nada de extraordinário neles, mas serve como recurso persuasivo para comover o santo. O dinheiro não é um dinheiro qualquer, mas o salário de um mês. E o eu se expressa da seguinte maneira: “a paga do meu trabalho por um mês”. Com isso, chama a atenção para o fato de perder, com a carteira, um mês inteiro de seu trabalho, de seu esforço, de sua vida, o que torna o discurso muito mais apelativo. Do mesmo modo, a foto que acompanha os outros itens perdidos não desperta qualquer sentimento, a não ser a pena do santo. O termo cara, para designar o rosto do eu-lírico feminino, não só imprime no poema uma linguagem despojada, espontânea, mas revela uma diminuição de sua pessoa, já que o termo é mais adequado para se referir a animais. O eu se rebaixa para convencer o santo. É importante notar a sintaxe nesse trecho do poema. O quinto verso se inicia com uma inversão. O verbo antecede o sujeito, o que possibilita uma enumeração mais longa. O discurso passa a se desdobrar: uma imagem vai brotando da outra. A descrição dos objetos dá margem à descrição do eu-lírico, que leva à descrição do santo, que resulta em uma enumeração dos tormentos humanos. Assim, os versos 7 e 8 se referem ao retrato, chamando a atenção para o aspecto cansado do eu-lírico. Essa imagem torna-se muito apelativa em contraste com os versos 3 e 4, em que Santo Antônio é descrito como desafadigado, gozando a recompensa dos justos. O eu mostra-se fraco, necessitando da ajuda do santo, já que nenhum outro ser se


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compadecerá de sua condição (verso 8). No verso 9, o eu exalta o santo, chamando a atenção para a sua bondade. Ele, “já em vida”, era diferente dos demais homens por se compadecer da condição humana, quanto mais agora, que é santo, se compadecerá do eu. A expressão tormentos humanos enfatiza a aflição do eu-lírico que deseja sua carteira de volta, inserindo-a em um contexto mais amplo de sofrimento. Do verso 11 ao 14, temos um aposto enumerativo em que são elencados alguns dos tormentos humanos. Esses tormentos surgem em várias esferas, do mais corriqueiro ao mais sério. O artigo definido traz os itens para o plano do conhecido, ao mesmo tempo em que os generaliza, de modo que representem realmente preocupações de toda a humanidade, assumindo uma conotação mais simbólica. A agulha que some da bordadeira remete ao problema cotidiano da perda de um objeto no âmbito doméstico. A idéia de agulha ressalta o caráter trivial do “sumiço”, já que agulha é um termo comumente relacionado a coisas pequenas e sem importância. O namorado evoca a imagem do santo casamenteiro e relaciona-se a um problema universal: a dor do amor. O navio que desaparece em alto-mar alude ao problema da morte, tão difícil de ser aceita e compreendida pelo homem. O dinheiro que some no ar remete não só ao problema financeiro familiar, como pode ser entendido num contexto mais amplo, como a economia de um país, por exemplo. De todo modo, o verso 14 retoma a aflição do eu, que perdeu sua carteira com o salário de um mês. Essa listagem relacionando preocupações de ordens diversas põe em evidência o sofrimento do homem, não importa sua causa, apelando para a compaixão do santo. Além disso, a lista de itens chama a atenção para a fugacidade das coisas, para a incerteza do homem diante da vida, para sua fragilidade e impotência diante de alguns fatos. A inversão sintática posiciona, no início dos versos 12, 13 e 14, o verbo sumiu. Dessa forma, tem-se a repetição do verbo em um paralelismo que realça o seu valor semântico, corroborando a idéia de perda, apresentando-a como centro das aflições humanas.74 O verbo sumir também é mais expressivo, pois é usado em situações em que não se tem idéia do modo como algo foi perdido. Na terceira parte do poema, a idéia se afunila, de fato, no tormento do eulírico. Tenho que comprar coisas, pagar contas, dívidas de existir neste planeta convulso. Não é de se estranhar que o eu-lírico recorra a Santo Antônio, conhecido pelo poder de achar as coisas. 74


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O tom de lamentação do discurso ganha força nessa passagem. O eu tem que pagar contas, comprar. Ele se vê obrigado a consumir e a ter despesas. Ou seja, ele precisa da carteira, trata-se de uma necessidade que lhe foi imposta. O eu está endividado pelo simples fato de existir “neste planeta convulso”. Ele demonstra sua insatisfação diante de sua condição. Vale lembrar que um outro sentido para “Responsório” é “murmúrio”, “lamentação”. O termo convulso, atributo de planeta, ressalta a aflição do eu-lírico, que se sente perdido em um mundo turbulento, cuja agitação é tamanha que não é possível nem entendermos sua origem. Assim, subentende-se que a aflição do eu vai além do fato de ter perdido sua carteira, mas compreende uma questão mais existencial. Na quarta parte do texto, o eu-lírico oferece ao santo algo em troca de seu favor e a exaltação de sua figura retorna. Prometo-vos uma vela de cera, um terço do meu salário e outro que rezarei pra entoar vossos louvores, ó Martelo dos Hereges, cuja língua restou fresca entre vossos ossos, intacta. Vela, dinheiro, reza são itens comuns oferecidos a santos em troca de seu auxílio. Com isso, o poema resgata uma tradição entre alguns católicos. Essa passagem do poema encerra um traço cômico, que se revela por meio da exploração da ambigüidade do sintagma um terço. Este é utilizado como numeral, referindo-se à terça parte do salário do eu, e como um tipo de reza, que se faz com a repetição de jaculatórias associadas ao uso de um cordão com contas que é a terça parte do rosário75, nesse caso, um pode ser tanto numeral como artigo determinando o substantivo terço. Dessa maneira, a fusão de bens materiais com bens espirituais se faz com um certo humor. A partir do verso 20 até o 22, tem-se a exaltação de Santo Antônio. O uso do vocativo “ó Martelo dos Hereges”, uma das alcunhas do santo utilizada em “Enfiada de 165 contas, correspondentes ao número de 15 dezenas de ave-marias e 15 padrenossos, para serem rezados como prática religiosa.” ou “o conjunto dessas orações”. In Aurélio eletrônico. 75


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orações e jaculatórias dedicadas a ele, constitui um recurso persuasivo do eu, que apela para o seu senso de justiça. Nos versos 15 e 16, o eu havia apresentado seu pedido como uma necessidade vital que lhe tinha sido imposta; assim, trata-se de uma questão de justiça que o santo o ajude a recuperar seus pertences. Os versos 21 e 22 exaltam o poder do santo. Basta querer ajudar, pois tem capacidade para realizar qualquer milagre. Acredita-se, realmente, que, ao exumarem o corpo de Santo Antônio, sua língua não apresentava nenhum sinal de decomposição. O eu-lírico não apenas exalta o santo, como revela seu deslumbramento diante do fato. Na última parte do poema, o eu-poético retoma o pedido inicial, repetindo a frase do segundo verso, e subordina a vontade do santo ao desejo de Deus. O eu está ciente de que há uma hierarquia em que Santo Antônio figura apenas como um “Servo do Senhor” (outra expressão cristalizada, utilizada para se referir a santos). Servo do Senhor, procurai para mim a carteira perdida e se tal não aprouver a Deus para a salvação da minha alma, procurai antes me ensinar a viver como vós, como um pobre de Deus. Amém! O verso 24 apresenta uma frase comum no encerramento desse tipo de oração: “e se tal não aprouver as Deus para a salvação da minha alma”. Dessa forma, do pedido material passa ao espiritual. O eu reconhece que a salvação da alma é mais importante que a resolução de problemas materiais. O pedido de desprendimento dos bens terrestres estabelece um contraste comum a este tipo de oração, em que o homem se volta à providência divina para fazer pedidos relacionados a problemas do seu cotidiano. No entanto, não é nítida a separação entre o material o espiritual, e o poema brinca com essa mistura. O contraste entre uma linguagem mais fluida, com um vocabulário mais simples, e o uso de construções mais eruditas, como: “e se tal não aprouver”, é responsável pela criação do jogo entre fórmula e espontaneidade, trágico e cômico. Convém notar, ainda, a repetição do verbo procurai, que, utilizado com sentidos diferentes, chama atenção para a combinação entre o material e o espiritual. No verso 23, relaciona-se à ação concreta para encontrar a carteira. Já no verso 25,


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vincula-se ao esforço mais abstrato de auxiliar o eu a desprender-se dos bens materiais. O poema-oração termina do modo mais persuasivo. Encontrando ou não a carteira, o eu clama pela solução de seu problema. Caso ela não seja encontrada, pede que o santo o ensine a viver sem o que ela representa. Podemos concluir, então, que o problema do eu é muito mais sério do que a perda da carteira, pois se relaciona com o fato de não se acostumar com a própria organização do mundo em que vive, onde os bens materiais são supervalorizados em detrimento dos espirituais. No entanto, o seu lamento não carrega a angústia característica de textos com este teor, pois o eu satiriza sua condição, o que se manifesta por meio do jogo entre formalidade e informalidade da linguagem. A expressão um pobre de Deus apresenta duplo sentido. Pode ser lida como uma expressão mais ou menos cristalizada entre os cristãos, remetendo àquele que se entrega totalmente a Deus, desapegando-se dos bens materiais. Nesse caso, predomina a busca do crescimento espiritual, do desapego aos bens terrestres como fruto da consciência de que eles não são importantes para quem serve a Deus. E pode ser lida em seu sentido literal, o que torna o pedido do eu-lírico mais enfático, e cômico também. Com “um pobre de Deus”, o eu-poético alude à sua condição sem a carteira, ou seja, ao fato de não ter dinheiro. Nesse caso, prevalece o valor material, como se o eu lançasse seu último apelo: “Se o senhor não encontrar minha carteira, ficarei pobre.” Para terminar, vale lermos uma das orações a Santo Antônio que circula entre alguns católicos nos dias de hoje. Ela foi encontrada junto à imagem do santo na Igreja de Santo Antônio, na Vila Jaguara, bairro da periferia de São Paulo, em maio de 2001. Provavelmente, foi deixada lá por algum fiel que “teve uma graça alcançada pela intercessão do santo” e que havia prometido imprimir algumas cópias da oração em troca do favor. Esse é um costume muito comum entre alguns católicos. É interessante observar a semelhança estrutural com o poema analisado, embora a linguagem seja um tanto diversa.


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1.

Ó Santo Antônio,

Vocativo (1)

2.

apóstolo cheio de bondade,

3.

recebestes de Deus o dom especial

Exaltação do santo (2-4)

4. 5.

de fazer achar as coisas perdidas. Socorrei-me neste momento

6.

para que encontre o objeto que procuro.

7.

Alcançai-me também a graça

8.

de encontrar o tesouro perdido,

9.

a fé em nosso Pai e o amor aos nossos irmãos,

10.

principalmente os mais necessitados.

11.

Assim seja!

Pedido material (5-6) Pedido espiritual (7-10)

Amém

Assim como “Responsório”, de Adélia Prado, encontramos nessa oração: o vocativo, a exaltação do santo, pedidos de favores de ordem material e espiritual e a conclusão “Assim seja”, equivalente a “Amém”. A organização é um pouco diferente, já que a exaltação do santo, nesta prece, surge como uma extensão do vocativo e não há nenhuma promessa de retribuição ao favor concedido. Convém notar, ainda, a diferença nas aproximações ao santo e na natureza dos pedidos. Nesta oração, tem-se: “recebestes o dom especial de fazer achar coisas perdidas” e “socorrei-me neste momento para que encontre o objeto que procuro”. Com isso, Santo Antônio é tido como o santo que encontra coisas perdidas — ele é, de fato, visto como detentor de “um dom especial”. Mas, na oração, o fiel pede para que o santo o ajude a encontrar, assumindo a responsabilidade por procurar o que perdeu. No poema de Adélia Prado, apesar da exaltação do santo, o eu-lírico pede: “procurai para mim a carteira perdida”. O termo procurai, em vez de encontrai, contribui para aproximar o santo de uma pessoa comum — ele precisa procurar antes de encontrar, o que requer esforço. Desse modo, o eu-lírico não está falando a uma entidade distante, mas a um ser humano, embora santo, o que permite a espontaneidade marcante do texto. Além disso, o eu se exime do trabalho de procurar a carteira, o que se articula com a idéia de que este, considerando-se cansado (verso 7), recorre ao santo, que se encontra “desafadigado” (verso 3). Isso intensifica a irreverência com que o eu-lírico aborda o santo, resultando no caráter cômico do poema.


70

Com a comparação dos dois textos, torna-se mais evidente o uso peculiar da linguagem no poema de Adélia Prado. Pode-se afirmar que “Responsório” apresenta um teor caricatural, pois enfatiza as características desse tipo de composição, seu formalismo artificial (por meio de expressões prontas e do emprego da segunda pessoa do plural), combinado a um léxico próprio do cotidiano, ao trato informal com Santo Antônio e ao contraste entre o material e o espiritual, expresso através do jogo com a polissemia de alguns termos.

2.2 E o sagrado se manifesta A borboleta pousada ou é Deus ou é nada.76

“Para o homem religioso, a Natureza nunca é exclusivamente ‘natural’: está sempre carregada de um valor religioso.”77 O eu-lírico de grande parte da obra poética de Adélia Prado pode ser associado ao homem religioso, que olha todo o Universo como manifestação divina. Uma simples paisagem contemplada, uma situação cotidiana apresentam sempre um valor que ultrapassa a beleza profana. Tudo é belo, porque sagrado. O eu-lírico que será observado nas próximas análises não é mais aquele que invoca e conversa com a divindade, mas aquele que olha. Ao olhar o mundo a sua volta, ele reconhece a sacralidade do Universo e, conseqüentemente, sua própria sacralidade. Em “O amor no éter”, de Terra de Santa Cruz78, a paisagem observada é mais do que um cenário contemplado pelo eu-lírico, materializa seu estado de alma. “Mural”, de Oráculos de Maio79, capta uma cena corriqueira, da mulher que apanha os ovos para a refeição da família, a partir da qual um eu-poético observador “Artefato nipônico”, de A faca no peito. In Poesia reunida, p. 381. Mircea Eliade. Op. cit., p. 127. 78 In Poesia reunida, p. 251. 79 p. 39. 76 77


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apreende o valor sagrado do cotidiano. De maneiras distintas, ambos os textos apresentam o homem em harmonia com seu meio e com seu papel no Universo. O sagrado se revela de maneira sutil, por meio do homem e da natureza. Em “Laetitia Cordis”, de A Faca no peito80, o sagrado também se manifesta em um dia comum, sem alarde. Nesse poema, surge a figura de Jonathan, personagem plurissêmico em que convergem valores sagrados e profanos.

2.2.1 A poesia “sobre o natural”

“O amor no éter” é um poema repleto de ambigüidades e relações semânticas e gramaticais inusitadas. Compõe-se de uma linguagem rica em metáforas, o que faz com que assuma tantos sentidos quantas associações se estabeleçam entre os planos denotativo e conotativo. Nele, há um forte apelo às impressões visuais. O leitor vê concretamente para chegar a sentidos mais abstratos, o que favorece seu maior envolvimento, enredado pela linguagem sensorial. Lembrando Mattoso Câmara: “o efeito chamado linguagem figurada é principalmente um traço estilístico, como recurso para infundir a força da emoção ou do apelo (no sentido de Bühler) à representação de um ‘objeto’, ou uma idéia”81.

80 81

In Poesia reunida, p. 377. In Princípios de lingüística geral, p. 117.


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O amor no éter 1

Há dentro de mim uma paisagem

2

entre meio-dia e duas horas da tarde.

3

Aves pernaltas, os bicos mergulhados na água,

4

entram e não neste lugar de memória,

5

uma lagoa rasa com caniços na margem.

6

Habito nele, quando os desejos do corpo,

7

a metafísica, exclamam:

8

como és bonito!

9

Quero escavar-te até encontrar

10

onde segregas tanto sentimento.

11

Pensas em mim, teu meio-riso secreto

12

atravessa mar e montanha,

13

me sobressalta em arrepios,

14

o amor sobre o natural.

15

O corpo é leve como a alma,

16

os minerais voam como borboletas.

17

Tudo neste lugar

18

entre meio-dia e duas horas da tarde.

Este poema de Terra de Santa Cruz apresenta um eu-lírico em primeira pessoa, revelado logo no primeiro verso pelo pronome mim, o que já imprime um tom subjetivo ao texto 82. Há um jogo de ambigüidade criado pelo uso de pronomes e verbos em segunda e terceira pessoas — nele (verso 6), te (verso 9), teu (verso 11) — que confunde o leitor, o qual não distingue com clareza de quem se fala e para quem se fala, ou se o eu apenas expõe seus pensamentos de maneira afetiva. O leitor oscila entre interlocutor direto do eu e alguém que tem acesso a um enunciado dirigido a outro, ou restrito à mente do eu.

Conforme Martins, “o tipo fundamental de subjetividade é o da manifestação do falante pelo pronome de primeira pessoa (eu, me, mim, comigo, meu) ou pelas formas verbais da primeira pessoa”. Op. cit., p.190. 82


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Logo no primeiro verso, somos inseridos em uma paisagem. E sabemos que não se trata de uma simples descrição de um ambiente externo. Essa paisagem existe no interior do eu e, portanto, adquire valor simbólico. O leitor já é preparado para ir além dos significados que estão na superfície da linguagem. A paisagem descrita é usada indiretamente para expressar conteúdos — sensações e pensamentos — que povoam a mente do eu-lírico. Segundo Alfredo Bosi, “o que dá o ser à imagem acha-se necessariamente mediado pela finitude do corpo que olha. A imagem do objeto em si é inaferrável; e quem quer apanhar para sempre o que transcende o seu corpo acaba criando um novo corpo: a imagem interna, ou o desejo, o ícone, a estátua” 83. Assim, a paisagem captada pelo eu-lírico reflete seu próprio modo de olhar, e nos fala de seus olhos, do mesmo modo que apreendemos tal paisagem de acordo com nossa subjetividade. Cria-se, então, uma terceira imagem. Há dentro de mim uma paisagem A inversão sintática desse primeiro verso dá ênfase ao “haver”, “existir”. O eu é apresentado como um lugar em que existem coisas independentes de sua vontade, que têm uma certa autonomia. O sintagma Há dentro de mim combina-se à sentença “Habito nele”, do sexto verso, e produz estranhamento. Em posições equivalentes, com uma sonoridade semelhante — Há dentro / habito — também são semanticamente equivalentes, já que “haver dentro” e “habitar em” são permutáveis, indicando a idéia de existir, estar em algum lugar. Isso preserva o caráter mais ou menos circular do texto poético, produzindo sentido através da ressonância e do retorno de formas e idéias84. O estranhamento vem do fato de, no primeiro verso, ser o eu uma espécie de recipiente que contém algo e depois, no sexto verso, ele próprio estar inserido dentro desse algo que se amplia de forma a tornar-se maior que o eu e o abarcar. Com isso, percebe-se que a descrição dessa paisagem coincide com a apresentação do próprio eu, que se observa. Há uma ruptura inicial causada pela colocação de uma paisagem externa no interior do eu, o que confere à paisagem características/conotações inusitadas. Depois, ela vai adquirindo contornos próximos de um cenário natural, e o eu-lírico é 83 84

Op. cit., p. 14. Id. ibid., pp. 23-36.


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inserido nesse cenário. Há um novo movimento que rompe com o código estabelecido e retoma o antigo, causando um novo estranhamento. No primeiro verso, uma paisagem é mencionada. O artigo uma expressa o caráter indefinido dessa paisagem ainda desconhecida para o leitor, que vai se apresentando aos poucos. Mas o artigo indefinido também cumpre o papel de singularizar o nome, torná-lo, no contexto do poema, único. A paisagem é semelhante a uma pintura, um quadro que representa um único instante, mesmo que esse instante se prolongue. O segundo verso contribui para a construção da paisagem. entre meio-dia e duas horas da tarde. Esse verso situa a imagem no tempo — igualmente exato e impreciso. O verso pode ser lido em dois planos. O primeiro refere-se ao tempo do eu, quando a paisagem nasce em sua mente. O segundo atribui o tempo à paisagem, é o momento que ela representa. Esses dois planos interagem e conferem à imagem traços de narração e descrição. O tempo cronológico traz cores e contornos para a paisagem. “Entre meio-dia e duas horas da tarde” também determina o espaço. É o momento do dia quando a luz é mais forte, o calor mais intenso. Essa luz confere certas nuances ao cenário: as cores são mais vivas, há poucas sombras. A imagem adquire uma claridade, uma suavidade, que transmite calma ao leitor. Embora haja a precisão de um momento do dia, esse dia não vem expresso. Isso aproxima o poema do leitor, que o atualiza para seu próprio tempo, o que ressalta o aspecto universal e simbólico da imagem poética.


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Aves pernaltas, os bicos mergulhados na água, entram e não neste lugar de memória, uma lagoa rasa com caniços na margem. No segundo período, uma certa estaticidade composta pelos sintagmas nominais. As pausas entre os sintagmas ressaltam o caráter estático e pictórico da imagem. A combinação dos sintagmas nominais com as pausas nos dá a impressão de apreendermos imagens em flashes, reproduzindo o movimento dos olhos. A voz do eu parece apagar-se, enquanto temos a sensação de estarmos frente à paisagem, sem olhares intermediários. Isso acontece pela quase ausência de vocábulos conectivos que revelem o texto como uma construção do eu. O leitor é quem deve efetuar a ligação entre as imagens. O terceiro verso expressa uma paisagem em equilíbrio. Aves [pernaltas] equivale sintaticamente ao sintagma bicos [mergulhados na água] — substantivo + adjunto adnominal — este retomando metonimicamente o primeiro. O olhar do eu, e por conseqüência o nosso, move-se do mais geral ao mais particular. O equilíbrio vem dos dois extremos das aves: as pernas e os bicos, sugerindo duas tendências contrastantes ao serem determinados respectivamente por altas e mergulhados, um extremo apontando para o alto — o céu, o ar — e outro para baixo — a água, a terra. O elemento água, com toda sua simbologia de mistério, de “fonte de vida”, colabora para a criação de uma imagem essencialmente sugestiva. Duas realidades complementam-se, uma aérea, outra aquática. A primeira representa o lugar da troca, do contato com o outro e com a natureza, da vida ativa. “O ar é o meio próprio da luz, do alçar vôo, do perfume, da cor, das vibrações interplanetárias; é a via de comunicação entre a terra e o céu”85. A segunda indica o mergulho em si mesmo, a passagem para o mundo interior. “A água é o símbolo das energias inconscientes, das virtudes informes da alma, das motivações secretas e desconhecidas”86. Assim, os bicos mergulhados na água prenunciam a entrada no interior do eu, a qual se concretiza no verso seguinte com o verbo entram. O verbo entram confirma a passagem do conhecido para o inusitado. Sua sonoridade combina-se com o vocábulo dentro (primeiro verso), o que ressalta o 85 86

In J. Chevalier e A. Gheerbrant, p. 68. Id. ibid., pp. 21-22.


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aspecto subjetivo do texto, enfatizando o mergulho na interioridade do eu, a total entrega ao ambiente aquático. Um estranhamento. O verbo aparece sem o seu complemento locativo, não sabemos onde entram. Depois, como se retornasse elíptico após a conjunção, apresenta um complemento incomum, pois marcado pela negação. A aditiva e adquire valor adversativo. Se não sabemos ao certo o lugar em que as aves pernaltas, aparente sujeito do verbo, entram, sabemos onde não entram: neste lugar de memória. O complemento se faz por uma espécie de ‘não-complemento’. Existe, também, a possibilidade de uma outra leitura desse quarto verso: “entram e não neste lugar de memória” pode conter uma elipse do verbo entram. Desse modo, temos: “entram e não entram neste lugar de memória”. Com essa leitura, a imagem torna-se difusa, não se firma no interior do eu, como se este tivesse dificuldade para compreender o quadro que se forma em sua mente. O que permanece é o movimento das aves. Ao mesmo tempo, as aves não entram “neste lugar de memória”, o que sugere que o lugar pode e não pode ser a memória do eu, como se a imagem se tornasse mais concreta, mostrando-se, de fato, como um lugar fora do eu, como se tivesse existência própria. Há um movimento de aproximação e distanciamento na medida em que o advérbio não, afastando a possibilidade de concretização da imagem que segue, contrasta com o demonstrativo este (em neste), que traz o sintagma “lugar de memória” para próximo do eu e, conseqüentemente, do leitor. De qualquer modo, o advérbio de negação confere autonomia à paisagem, que adquire vida própria, existindo fora do eu, embora nasça de/em sua mente. A noção de elaboração mental — o “lugar de memória” —, ainda que presente, é negada, apenas o que for visível e concreto permanece, a metáfora ganha força. O sintagma uma lagoa rasa com caniços na margem pode tanto ser tido como um complemento do verbo e/ou como um sintagma descritivo associado a “neste lugar de memória”. O elemento água retorna mais específico em lagoa e sua simbologia é ressaltada; a paisagem adquire contornos mais nítidos. O termo lagoa reitera a imagem da imersão em um universo particular. A lagoa, com suas margens definidas, representa os limites do eu, um lugar onde represa seus sentimentos e pensamentos. Essa idéia de limite vem expressa pelos vocábulos rasa e margem. O espaço é bem demarcado, o que contrasta com o sentimento de incerteza transmitido por água no terceiro verso. O desconhecido é apresentado como uma paisagem acolhedora, que convida mais do que assusta.


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Habito nele, quando os desejos do corpo, a metafísica, exclamam: como és bonito! O eu retorna no sexto verso, como já apontado anteriormente. O complemento verbal nele evoca um nome masculino e pode tanto retomar o vocábulo lugar, aludindo à paisagem criada no interior do eu e expandida para além do mesmo, ou antecipar o interlocutor dos dois períodos seguintes. De qualquer maneira, nele assume um valor expressivo, uma vez que é utilizado em uma combinação inusitada com o verbo habito. Este não costuma ter como complemento, ao menos na escrita, pronomes pessoais, sugerindo não apenas um lugar, mas presentificando um lugar especial, com vida própria, próximo do humano. Essa é uma construção que pode ser facilmente encontrada no português popular oral; porém, nesse contexto, a linguagem oral não imprime simplicidade ou espontaneidade, contribui, sim, para a densidade, complexidade, da imagem. Como sujeito de exclamam, os desejos do corpo ganham autonomia, desvencilham-se do eu como se constituíssem um outro sujeito. O sintagma a metafísica, entre vírgulas, adquire função ambígua, podendo ser tido como um segundo sujeito do verbo, coordenado assindeticamente através da pausa a os desejos do corpo, e/ou figurando como uma espécie de aposto, uma especificação dos desejos. Percebemos uma integração entre um e outro que se concretiza em uma única exclamação: como és bonito!. A voz dos desejos do corpo e da metafísica é uma só. Há uma fusão entre o físico e o metafísico, ambos constituem uma só coisa. É interessante notar o arranjo dos morfemas em metafísica: meta e física, retomando o nome corpo por meio de física, e aludindo ao que vai além deste, através de meta — os desejos nascem do corpo, mas vêm a tomar todo o ser, que é físico e metafísico, corpo e alma. O físico, que à primeira vista remete ao profano, une-se semântica e graficamente ao metafísico, que equivaleria ao valor sagrado das coisas. Essa fusão, embora marque uma diferença entre ambos, apresenta-os em um mesmo plano: não há separação entre físico e metafísico, pois são ambos sacralizados. O verbo em segunda pessoa reforça a ambigüidade do texto — “como és bonito!”. Não conhecemos ao certo a quem se refere, mas sabemos que o poema


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conta com um duplo interlocutor: nós, leitores, e, provavelmente, o ser amado do eulírico. A construção sintática, o vocábulo como utilizado de modo enfático e a exclamação revelam não apenas um impulso emotivo, mas contrastam com o sentido de metafísica como “um corpo de conhecimentos racionais (e não de conhecimentos revelados ou empíricos) em que se procura determinar as regras fundamentais do pensamento (...) e nos dá a chave do conhecimento do real, tal como este verdadeiramente é (em oposição à aparência)”87. A metafísica rende-se não apenas à emoção, mas à percepção de algo como bonito, cuja beleza gera encantamento, que tolhe o pensar racional. Nos versos seguintes, o desejo se verbaliza por meio do verbo iniciando o período. Quero escavar-te até encontrar onde segregas tanto sentimento. Escavar remete a pesquisa, busca, retomando metafísica. Encontrar também está associado a escavar e metafísica; figura na mesma posição final que sentimento, o que, mais uma vez, permite a fusão entre o racional e o emocional, aquilo que está além da compreensão. O pronome objeto te amplia a ambigüidade do texto. Escavar liga-se a uma ação concreta, de perfurar a terra. Vincula-se à busca arqueológica. O sentimento é o fim da procura. Com isso, a razão subordina-se à emoção. A busca do entender, o que geralmente guia a pesquisa, é suplantada pela busca do sentir. Além disso, o termo sentimento colabora para personificar a paisagem. Homem e espaço natural se equivalem. A paisagem descrita configura-se, portanto, como um espaço marcado principalmente por uma sensação: o alumbramento diante de algo que se apresenta belo. É possível compreender, então, a ausência de termos que a tornem específica. Não sabemos que aves exatamente são vistas, apenas que são pernaltas. A falta de um artigo determinando o vocábulo aves enfatiza seu caráter vago. O termo lagoa introduzido pelo artigo indefinido contribui para intensificar o traço difuso da paisagem. 87

Op. cit., p.1126.


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Pensas em mim, teu meio-riso secreto atravessa mar e montanha, me sobressalta em arrepios, o amor sobre o natural. Há uma passagem gradativa da terceira pessoa para a segunda. Primeiro o eu-lírico fala de uma paisagem, um referente. Depois, no nono verso, o eu se dirige a um interlocutor em segunda pessoa que, embora não seja especificado, apresenta características humanas, com sentimento. No décimo primeiro verso, a imagem desse interlocutor vai se concretizando, ele pensa e “meio-ri”. A natureza, antes confundida com esse interlocutor, permanece, em mar e montanha no décimo segundo verso, mas agora como um cenário que se interpõe entre o eu e o interlocutor, certamente o ser amado. A pausa do décimo primeiro verso faz a vez de conectivos, colaborando para a coesão do texto, e confere agilidade ao verso, expressando a relação de causa e efeito instantâneo entre “Pensas em mim” e “teu meio-riso secreto/ atravessa mar e montanha”. Do mesmo modo, a vírgula no final do décimo segundo verso liga este ao seguinte, conectando-os e mantendo a agilidade rítmica dos versos, expressando a rapidez com que se estabelece a comunicação entre o eu e o ser amado. Os termos mar e montanha, assim como aves, não são introduzidos por artigo. Com isso, suas significações são ressaltadas, enfatizando o ato de atravessar obstáculos. Uma vez que o poema apresenta mais de uma imagem em que natureza e homem se fundem, também é possível conceber mar e montanha como metáfora das resistências do eu-lírico às sensações. Equivaleriam, assim, à razão ou aos medos que o impediriam de se deixar levar pelo prazer. É importante enfatizar que, embora, no poema, descreva uma cena e apresente uma paisagem, a expressão “atravessar mar e montanha” é utilizada na linguagem falada para se referir à decisão de fazer qualquer coisa para conquistar algo que se deseja. Assim, observa-se uma reatualização de uma expressão que já está, se não completamente, parcialmente cristalizada na língua. O outro transpõe os obstáculos do eu-lírico com seu meio-riso, e faz de tudo o possível, até que este se entregue totalmente à emoção. A relação do décimo quarto verso com os anteriores não é sintaticamente marcada, mas esse sintagma retoma os versos precedentes, explicando-os. Notamos


80

um jogo com a sonoridade de sobre o natural que cria ambigüidade e amplia a leitura. Pode referir-se à metáfora do meio-riso atravessando obstáculos naturais, mar e montanha, ou seja, da soberania do amor sobre o natural. O adjetivo natural é substantivado pelo artigo, que também serve de conectivo sonoro entre a preposição e o adjetivo, possibilitando a seguinte leitura do verso: o amor sobrenatural, ou seja, o amor espiritual, idealizado, que não se explica. A idéia do meio-riso que viaja no espaço remete ao título do poema — “O amor no éter”. O amor é concretizado, ele próprio atravessa mar e montanha e é maior que esses obstáculos. Éter pode significar, além de “espaço celeste”, o “meio elástico hipotético em que se propagariam as ondas eletromagnéticas”88. No dia-a-dia, é um tipo de anestésico. Assim, no contexto do poema, contribui para intensificar a sensação de êxtase e alumbramento do eu. Cabe lembrar que, em certos casos, a anestesia provoca um certo formigamento, o que nos remete ao verso 13: “me sobressalta em arrepios”. Também vale observar o jogo com o vocábulo eterno, que se dá na sintaxe de “o amor no éter”. O sintagma ‘no éter’ constitui um anagrama de eterno (no éter ↔ eter-no). Nesse sentido, a própria palavra pode aparecer como algo a ser escavado, ou seja, uma combinação aparentemente simples de dois vocábulos pode esconder relações semânticas mais complexas e mais afetivas. A palavra “segrega sentimento”. É a palavra que possibilita a criação das mais diversas imagens, como as dos versos 15 e 16. O corpo é leve como a alma, os minerais voam como borboletas. Esses versos são sintaticamente equivalentes e acabam por se aproximar no plano semântico, constituindo um acoplamento 89. As comparações inusitadas entre elementos essencialmente antagônicos refletem não um desequilíbrio, mas um estado harmônico em que elementos inanimados como minerais ganham vida. As leis da natureza são contrariadas, estabelece-se uma nova ordem, já que o amor é sobre o natural. O inusitado dessa imagem, assim como das anteriores, ganha plausibilidade no verso seguinte. 88 89

Id. ibid., p. 732. Levin, S. Op. cit.


81

Tudo neste lugar entre meio-dia e duas horas da tarde. O sintagma neste lugar retorna, agora sem adjunto, e se refere a esse espaço mágico, a um tempo interior e exterior ao eu, onde tudo é verossímil. Tudo, um aposto resumitivo, refere-se não apenas às imagens anteriores, mas permanece em aberto, insinuando infinitas “paisagens”. Assim como no quarto verso, neste particulariza o lugar, tornando-o único ao mesmo tempo em que o aproxima do eu e do leitor. O poema termina com a repetição exata do segundo verso, ressaltando o caráter único desse momento mágico em que o amor transforma a realidade. O retorno desse verso abre o poema para novas leituras, como se toda a imagem do poema retornasse, agora mais clara, “entre meio-dia e duas horas da tarde”. Essa expressão temporal adquire maior peso no poema e chama a atenção do leitor para sentidos ainda latentes no texto, que permanecem na sua memória como algo para ser decifrado. Por fim, vale chamar a atenção para o papel das repetições e da pontuação na construção de ambigüidade no texto. Em outros casos, esse recurso deixaria a linguagem do poema mais fluida e mais espontânea. Em “O amor no éter”, contribui para tornar a linguagem mais hermética. Neste poema, de caráter epifânico, o sagrado apenas se insinua em uma certa contemplação do belo, embalada por um sentimento.

2.2.2 O sagrado cotidiano

Em “Mural” a Natureza também se mostra como lugar de manifestação do sagrado. Assim como em “O amor no éter”, ela se funde com o homem. No entanto, desta vez, o eu-lírico não apresenta apenas um estado de espírito. Ele nos mostra uma cena, a partir da qual tece uma reflexão sobre a organização da vida. A Natureza não surge como metáfora do homem, mas este é apresentado como parte dela.


82

Mural 1.

Recolhe do ninho os ovos

2.

a mulher

3.

nem jovem nem velha,

4.

em estado de perfeito uso.

5.

Não vem do sol indeciso

6.

a claridade expandindo-se,

7.

é dela que nasce a luz

8.

de natureza velada,

9.

é seu próprio gosto

10.

em ter uma família,

11.

amar a aprazível rotina.

12.

Ela não sabe que sabe,

13.

a rotina perfeita é Deus:

14.

as galinhas porão seus ovos,

15.

ela porá sua saia,

16.

a árvore a seu tempo

17.

dará suas flores rosadas.

18.

A mulher não sabe que reza:

19.

que nada mude, Senhor.

O título do poema nos remete a uma paisagem estática, já que mural é o nome que se dá à pintura feita diretamente sobre uma parede, ou nela aplicada 90. O corpo do texto é coerente com o título e atinge diretamente o visual do leitor. A plasticidade no texto é criada não pela simples descrição de uma paisagem, mas pela combinação da descrição com uma narrativa peculiar de uma cena cotidiana. Já no primeiro verso, o tom narrativo se instaura. A ação é posta em evidência através da inversão sintática que situa o verbo logo no início do texto. Recolhe do ninho os ovos a mulher nem jovem nem velha, 90

Cf. Aurélio eletrônico.


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em estado de perfeito uso. A ação também é enfatizada pela aliteração do som [lh], em recolho, mulher e velha, sugerindo o barulho do material que compõe o ninho sendo tocado pelas mãos da mulher. As nasais do vocábulo ninho e a assonância da nasal [em], no terceiro verso, atenuam a sensação de aspereza produzida pela recorrência de [lh]. Imagina-se um gesto leve da mulher que toca o ninho, provavelmente forrado de palha ou algo parecido, com delicadeza. A cena é tranqüila e transmite essa tranqüilidade ao leitor. Trata-se de uma mulher que apanha os ovos em um ninho. Pouco se sabe sobre essa mulher, apenas que não é jovem nem velha. No entanto, não é uma mulher qualquer. Também não é um ninho qualquer. Os substantivos são todos apresentados por meio do artigo definido. Esse recurso põe os nomes em evidência. Ao mesmo tempo em que se constrói uma cena específica, essa cena tem algo de universal. O sujeito, a mulher, surge isolado no segundo verso, chamando a atenção para sua figura. Recolhe, assim como a maioria dos verbos empregados ao longo do texto, encontra-se no presente do indicativo, situando a ação em um agora que pode significar este exato momento, como se a ação se desenrolasse diante dos olhos do leitor, mas que pode se estender no tempo, indicando uma ação corriqueira, habitual e, como veremos, universal. De qualquer modo, não há um tempo definido. Tem-se a impressão de que houve uma suspensão no tempo para que a ação se imprimisse em um mural. A temporalidade também é suprimida na descrição do sujeito. A mulher não é jovem, não é velha. Apenas sabemos que seu estado é de “perfeito uso”. Assim, há, de fato, uma universalização dessa mulher, já que não apresenta nenhum traço que a exponha como um indivíduo. Na verdade, o que importa é o estado em que se encontra: “de perfeito uso”. Essa expressão “em estado de perfeito uso” causa um estranhamento pelo jogo com a expressão mais usual: “em perfeito estado (de conservação)”. Com isso, enfatiza-se a “utilidade” da personagem. O termo conservação (que, às vezes, pode ser omitido na expressão original), expressando estaticidade, é substituído por uso, o que chama a atenção para as ações da mulher. Na nova expressão, o adjetivo perfeito modifica o termo uso e não estado, como na original, frisando que a atuação da


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mulher é perfeita. Dessa maneira, a perfeição da cena narrada evidencia-se. Afinal, para que tipo de uso? A própria narrativa nos dá a resposta: a mulher apanha os ovos para o sustento da família, o que se confirma no verso 10. Ela representa toda mulher nessa condição. A mulher em si não é perfeita, mas sim a função que exerce. Há uma idealização do seu papel: ela é vista como o ser que gera e sustenta a vida. Seu papel é importantíssimo. Em seguida, o tom narrativo estabelecido no início do poema é logo substituído por um discurso mais descritivo. Não vem do sol indeciso a claridade expandindo-se, é dela que nasce a luz de natureza velada, Tem-se a imagem de uma mulher de quem emana uma luz. Essa imagem poderia ser interpretada apenas por seu sentido figurativo. A luz pode se referir à atitude da mulher, tida como uma atitude especial, iluminada, no sentido metafórico. No entanto, a imagem é mais inusitada, pois é essa luz da mulher que colore todo o ambiente ao seu redor. É a partir da descrição do estado de espírito da mulher que podemos visualizar o espaço físico. Ao contrário do que comumente se verifica, o figurativo assume caráter denotativo, e não vice-versa. Desse modo, a figura da mulher é posta no centro do quadro que vai se delineando como uma fonte de luz, enquanto o sol é descrito como indeciso, assumindo uma característica própria do humano. Temos, assim, um sol fraco, que não sabe se aparece ou se permanece escondido atrás de alguma nuvem. A sintaxe chama a atenção para a troca de papéis entre a mulher e o sol, reforçando o inusitado da imagem: a inversão entre sujeito e parte do predicado, nos versos 5 e 6, alerta o leitor para o fato de que a imagem que está sendo construída é diversa daquela comumente esperada. O que surpreende é a troca de papéis: o sol é humanizado, enquanto o homem é descrito como fonte de luz. A paisagem adquire ares de uma paisagem sobrenatural, ao mesmo tempo em que conserva seu aspecto de cena corriqueira, cotidiana. O termo claridade, em vez de luminosidade, por exemplo, apresenta uma imagem que seduz mais pela sua


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singeleza do que pelo extraordinário. A aliteração das constritivas surda [s] e sonora [z] (versos 5-9) contribui para intensificar a suavidade da cena. Como toda imagem sutil, requer um olhar sensível, capaz de perceber sua beleza. Com isso, o poema apela para os sentidos do leitor, despertado-os para perceber a beleza velada do cotidiano, que muitas vezes é desapercebida. A paisagem descortina-se por meio da mulher. É por seu intermédio que podemos enxergar o cenário. Isso revela um jogo com a própria expressão “dar à luz”. A vida surge e se mostra ao ser humano através da mulher. É ela, também, responsável por manter a vida — o ato de recolher os ovos para o sustento confirma essa idéia. Assim, a mulher é santificada e, até certo ponto, divinizada, pois dela depende a vida. E ela é santificadora, pois é dela que emana a luz que colore a paisagem. Sobre a figura da mulher, Eliade escreve: A mulher está, pois, misticamente solidarizada com a Terra, o dar à luz apresenta-se como uma variante, à escala humana, da fertilidade telúrica. (...) A sacralidade da mulher depende da santidade da Terra. A fecundidade feminina tem um modelo cósmico: o da Terra Mater, a Mãe Universal.91 O poema reproduz essa idéia, apresentando a mulher como representante da fertilidade de todo o Universo. Ela não é um indivíduo qualquer — por isso não tem um nome específico —, é a certeza da renovação da existência. Se apenas a idéia do cotidiano fosse ressaltada no poema — afinal, como veremos, é a rotina que se coloca no centro das atenções —, seria indiferente apresentar a mulher lavando roupa, ou preparando o almoço. O ato de apanhar os ovos também não pode ser interpretado como um gesto qualquer. A imagem do ovo é importante para a construção da imagem poética. Como sabemos, o ovo representa a própria vida. “O ovo, considerado como aquele que contém o germe e a partir do qual se desenvolverá a manifestação, é um símbolo universal e explica-se por si mesmo. O nascimento do mundo a partir de um ovo é uma idéia comum a celtas, gregos, egípcios, fenícios, cananeus, tibetanos, hindus,

91

Op. cit., p. 153.


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vietnamitas, chineses, japoneses, às populações da Sibéria e da Indonésia e a muitas outras ainda.”92 Dessa forma, ao apanhar os ovos, a mulher chama a atenção do leitor para a sacralidade de toda a existência. Aparentemente, o ovo é apenas um objeto sem vida. Esta vai se desenvolvendo silenciosamente em seu interior. De maneira análoga, o sagrado no cotidiano pode passar despercebido. A mulher segura a vida em suas mãos sem se dar conta, do mesmo modo que sua rotina sustenta a ordem sagrada de todo o Universo. Prosseguindo com a leitura, se desconhecemos a natureza da luz que emana da mulher, o que ressalta o seu aspecto sobrenatural, sabemos o que ela é: é seu próprio gosto em ter uma família, amar a aprazível rotina. A luz é o amor àquilo que faz, à sua condição de mulher que, entre outras coisas, deve cuidar de nutrir a família. A mulher transborda seu contentamento e é ele a própria luz que colore o dia. O modo como realiza sua rotina de cuidar da família encanta. De uma ação corriqueira, surge o belo. Mas quem reflete sobre isto é o eulírico. A mulher age como por instinto. O verso 13 expressa o alumbramento do eu-poético, que se mantém em terceira pessoa, como mero observador de um mural: “A rotina perfeita é Deus”. O sagrado surge do mais corriqueiro, do mais habitual. Ela não sabe que sabe, a rotina perfeita é Deus: as galinhas porão seus ovos, ela porá sua saia, a árvore a seu tempo dará suas flores rosadas.

92

In J. Chevalier e A. Gheerbrant. Op. cit., p. 672.


87

Os versos de 14 a 17 descrevem o que o eu-lírico considera como rotina perfeita e, ao mesmo tempo, o que a própria mulher considera, mesmo sem saber, como rotina perfeita. Há uma equivalência sintática e semântica entre esses versos que ressalta seus conteúdos e os relaciona de modo inusitado. Assim: Sujeito as galinhas ela a árvore

Verbo porão porá (a seu tempo) dará

Objeto seus ovos sua saia suas flores rosadas

A equivalência entre as galinhas, a mulher e a árvore evidencia-se não apenas por estarem em paralelo nos versos, mas porque os três sujeitos são descritos como fonte de onde surge e se renova a vida, o ciclo contínuo da Natureza se garante pelo papel que esses três sujeitos desempenham. A repetição do verbo pôr ressalta as semelhanças e as diferenças entre mulher e galinhas, além de criar um efeito cômico, devido ao jogo com os diferentes sentidos do verbo: as galinhas botam seus ovos e a mulher veste a sua saia. São ambas ações certas e habituais, a mulher veste sua saia no início do dia para cuidar de seus afazeres domésticos, ela também veste sua saia para seduzir o marido, para ir a uma festa, etc.. Seja qual for a ocasião: a saia é o elemento que insere a mulher em uma sociedade, marcando a diferença com os demais animais e a diferença com o próprio homem. Mas com mulher e galinha em paralelo enfatiza-se o traço irracional da mulher, instintivo. Afinal, a mulher realiza seus afazeres sem se dar conta de seu significado, como se apenas desempenhasse uma função determinada pelos seus genes, de modo hereditário. Os verbos no futuro do presente do indicativo indicam a certeza da vida que se renova, de uma organização, de uma ordem que é o próprio Deus. A árvore, a seu tempo, dará suas flores rosadas. Não só a árvore, mas cada elemento da natureza: devido ao paralelismo sintático, também é possível vincular o adjunto adverbial a seu tempo às duas ações anteriores, das galinhas que porão seus ovos e da mulher que porá sua saia. A organização do Universo depende da harmonia estabelecida entre as ações dos diferentes seres. Os versos 14 e 15 sugerem a garantia da perpetuação da rotina da mulher, subordinando-a à rotina das galinhas. Podem ser lidos da seguinte maneira:


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na medida em que as galinhas porão seus ovos, a mulher porá sua saia para apanhálos. A equivalência dos verbos porão e porá ressalta a interdependência das ações. Todos estão ligados por uma ordem preestabelecida e tão certa — e misteriosa — que só pode ser divina. Assim, Deus é visto como a certeza da vida, uma força que organiza e sustenta a existência, unido os seres em uma única natureza sagrada. É no mais corriqueiro e repetitivo que Ele se manifesta. A repetição do adjetivo perfeito/a — que significa: feito/a até o fim —, atrelado, primeiramente, à descrição do papel desempenhado pela mulher em um momento e, posteriormente, ao termo mais genérico rotina confirma a idéia de que cada ato é responsável pela organização de toda existência. E cada ato reproduz uma ordem preestabelecida, acabada, que vai se repetindo enquanto durar a vida. O uso do pronome possessivo ressalta essa organização da natureza. As galinhas porão seus ovos, a mulher porá sua saia, a árvore dará suas flores. Cada ser tem o seu papel específico e insubstituível. A imagem da árvore é fundamental para a construção dessa imagem do sagrado que se manifesta através da certeza de renovação da vida, já que ela representa a regularidade da Natureza por excelência: cresce, dá folhas, flores, fruto, às vezes perde as folhas e recomeça um novo ciclo idêntico. O fato de dar “flores rosadas” não especifica completamente a árvore (há milhares de árvores que dão flores rosadas). Essa imagem configura um recurso importante para a descrição da cena, pois, embora mantenha o caráter universal da árvore, particulariza o momento descrito. O mural ganha mais um contorno e mais uma cor. Aos poucos, o leitor vai visualizando: uma mulher, ao centro, recolhe os ovos em um galinheiro; a paisagem é rural, vê-se uma (ou até mais de uma) árvore com flores rosadas. Os tons são suaves. Da mulher expande-se, suavemente, uma claridade. No verso 6, temos: a claridade; não se trata de uma claridade qualquer, o que chama a atenção para a força da figura da mulher. Parece mesmo o quadro de uma santa. Uma santa que é uma mulher vivendo sua rotina: sagrado e profano se fundem nessa imagem. Para a mulher, no entanto, o sagrado passa despercebido. O paralelismo entre os versos 12 e 18 chama a atenção para o caráter instintivo como exerce sua função e se insere em uma ordem que envolve toda a existência. E ela recolhe os ovos — o próprio verbo re-colher traz consigo o morfema indicador da repetição, apesar de este já não ser notado.


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Ela não é uma simples mulher, mas garante a preservação do ciclo da vida. Seu papel é, aos olhos do eu, sagrado, pois sua rotina é o próprio Deus. Isso significa que o divino, o sobrenatural, depende do humano, do natural, para se manifestar. Dessa maneira, o mais corriqueiro é sacralizado, ao mesmo tempo em que o próprio Deus deixa de ter a imagem do Deus onipotente. A existência se organiza por meio de uma relação harmônica entre criador e criatura, de modo silencioso. Sem saber, o homem fala com Deus ao realizar sua rotina, cumprir seu papel dentro da existência. A mulher não sabe que reza: que nada mude, Senhor. Essa organização, essa certeza de organização da vida, conforta o ser humano: “que nada mude, Senhor”. O último verso do poema, assim como os versos de 13 a 17, pode tanto ser a fala do eu-lírico como a fala inconsciente da mulher que este procura reproduzir com o uso do discurso indireto livre. Desse modo, o eu revela ao leitor uma experimentação do sagrado através da observação de uma cena cotidiana. Conscientemente, o eu reza junto com a mulher.


90

2.2.3 Jonathan: a divindade do homem — a humanidade de Deus

Abordaremos, agora, um outro modo significativo de aproximação entre homem e Deus na poesia de Adélia Prado. Como visto em análises anteriores, o homem pode dialogar com o sagrado ou mesmo ser tido como sagrado. Essas, no entanto, não constituem as únicas maneiras de aproximar o homem do divino. Em muitos poemas, Deus é humanizado; o homem experimenta a natureza de Deus e este experimenta a do homem. Essa inversão de papéis se manifesta no plano lingüístico por meio de paralelismos sintáticos e diversas associações semânticas, resultando em uma linguagem peculiar, que contribui para marcar o estilo da poeta. “Laetitia Cordis”, poema de A faca no peito93, foi escolhido para ser analisado por mostrar claramente a ligação entre Deus e homem. A figura de Jonathan, personagem criado pela poeta, é de fundamental importância para entendermos a imagem do Homem que é Deus e do Deus que é homem. Jonathan surge, pela primeira vez, em O pelicano, mas ganha consistência na publicação seguinte: A faca no peito. Lançado em 1988, tem uma identidade marcada: é o único livro de Adélia Prado em que os poemas apresentam versos deslocados (no geral, eles vêm alinhados à esquerda da página). É tido pela crítica como um livro de menor importância. A própria autora confessa: “Eu achei que nunca ia cometer esse pecado, mas fiz essa bobagem: publiquei 12 poemas horríveis.”94 No entanto, A faca no peito não deve ser desconsiderado, especialmente se desejarmos vislumbrar o estilo da autora. Trata-se de um livro importante, que revela traços fundamentais para a constituição do estilo e significação da obra de Adélia Prado como um todo. Assim como os demais livros de Adélia Prado, apresenta poemas que podem ser considerados bons e outros não tão bons95. Jonathan, personagem recorrente mais nesse livro do que em qualquer outro 96, também foi visto pela crítica geral como um “projeto falido” 97, um personagem que In Poesia reunida, p. 377. Apud. Alves, H. P. Op. cit., p. 12. 95 Essa é uma discussão que não cabe neste trabalho. 96 No livro de poemas publicado após A faca no peito, em Oráculos de maio, Jonathan já não aparece. 97 Palavras de Ubirajara Araújo Moreira, em sua defesa de Doutorado, na FFLCH/USP, em 2000. 93 94


91

não deu certo. Mas o estudo de sua significação ajudará a compreender a construção do sagrado na obra da autora e explicitará sua visão do homem e de Deus. Entender Jonathan é, portanto, crucial para compreender a obra de Adélia Prado. Penso, ainda, que não se trata de um projeto fracassado, e sim de um personagem mal-interpretado pela crítica98. Obviamente, ao longo da análise de “Laetitia Cordis”, não só observaremos a construção do personagem Jonathan, mas também todos os recursos expressivos que forem considerados importantes para produzirem sentido. Afinal, o objeto de estudo é o poema; por isso, inclusive, não discutiremos todas as acepções que o personagem assume na obra de Adélia Prado. Ao término da análise, entretanto, teremos visto como cada efeito expressivo utilizado participa da criação desse personagem. Laetitia Cordis 1

Sossegai um minuto para ver o milagre:

2

está nublado o tempo, de manhã,

3

um pouco frio e bruma.

4

Meu coração, amarelo como um pequi,

5

bate desta maneira:

6

Jonathan, Jonathan, Jonathan.

7

À minha volta dizem:

8

‘Apesar da névoa, parece que um sol ameaça.’

9

Penso em Giordano Bruno

10

e em que amante incrível ele seria.

11

Quero dançar

12

e ver um filme eslavo, sem legenda,

13

adivinhando a hora em que o som estrangeiro

14 15 16

está dizendo eu te amo. Como o homem é belo, como Deus é bonito.

Isso porque, muitas vezes, Jonathan é analisado sem que se levem em conta os múltiplos sentidos que assume ao longo dos poemas. Jonathan pode ser tido como um homem qualquer, Deus e a própria poesia, entre outros. 98


92

17

Jonathan sou eu apoiada em minha bicicleta,

18 19

posando para um retrato. Quando ficam maduros

20

os pequis racham e caem,

21

formam ninhos no chão de pura gema.

22

Meu coração quer saltar,

23

bater do lado de fora,

24

como o coração de Jesus.

Em Roland Barthes, lemos: “o prazer da leitura vem evidentemente de certas rupturas (ou de certas colisões): códigos antipáticos (o nobre e o trivial, por exemplo) entram em contato” 99. Em “Laetitia Cordis”, ao entrarem em contato, linguagens e sentidos contrastantes se transformam e formam um código novo, em que não há contradição. É daí que brota o encantamento, quando o leitor efetua a síntese de elementos distintos em um único, que se traduz em alegria. Ao bater os olhos no poema, percebemos já um certo movimento prenunciado pela disposição gráfica dos versos. Alguns deles estão deslocados para a direita, dando a impressão de estarem soltos na página. Esse movimento também é expresso pelo uso reiterado de verbos que, além de remeterem, no plano denotativo, a diversos movimentos, reproduzem a vibração da vida, do estar vivo, são eles: bater, saltar, cair, dançar. Também os verbos querer e ameaçar sugerem movimento, o primeiro exprimindo vontade, que induz à ansiedade e à inquietação, e o segundo indicando um mover latente que aos poucos desponta. Assim como querer, ameaçar também traz explícita uma certa ansiedade, pois as pessoas percebem e esperam uma transformação, o que gera expectativa, suscitando sensações variadas — movimentos da mente e do espírito. Sossegai um minuto para ver o milagre: O poema se abre por um verbo imperativo, sossegai, que também apresenta a idéia de movimento, uma vez que sossegar pressupõe uma agitação anterior. O eu99

In O Prazer do texto, p. 11.


93

lírico solicita a atenção do leitor, interpela-o diretamente. Sossegai. Neste ponto, vale pensarmos no processo de análise para melhor compreendê-lo. Quando analisamos estilisticamente um poema, deparamo-nos com a questão da escolha100. Considerarmos que a seleção de vocábulos e a organização destes na sintaxe do texto, ainda que não sejam planejadas, não são de forma alguma arbitrárias, pois obedecem a impulsos afetivos e intelectuais que produzem expressividade. Assim, admitindo que a expressividade pode ser produzida em diferentes camadas lingüísticas, é possível perceber que a escolha da forma sossegai para abrir o poema vai além da simples busca da atenção do leitor através do apelo, ou função conativa, como nomeia Jakobson101. Sossegar implica uma parada brusca, um refrear que deixa os sentidos livres para absorverem mais. Nesse primeiro verso, o eu privilegia um sentido — para ver —, o que causa um estranhamento. Ver é, geralmente, uma ação natural, espontânea — basta abrirmos os olhos para ver. Mas aqui ver é uma ação extremamente delicada, que exige uma predisposição do corpo e da mente para se realizar. Isso é confirmado pelo complemento: o milagre. O que se verá não é algo trivial, comum, mas extraordinário. Ver adquire um valor sagrado; ver o milagre é mais do que ver, equivale a experimentar uma sensação inteiramente nova. Esse ver pleno contrasta com o vocábulo sossegar, uma vez que este sugere, por meio de sua constituição sonora, uma ação, em uma primeira leitura, totalmente oposta. Sossegai traz em sua massa fônica um outro vocábulo: cegai. Assim, nesse contexto específico, sossegai adquire duplo sentido: o de aquietar-se e o de fechar os olhos, e por um minuto. Esse fechar os olhos implica transportar-se de uma realidade a outra, abrir os olhos, ver de uma nova maneira. Então, cegar e ver, aparentemente opostos, unem-se e adquirem um mesmo sentido. O eu convida o leitor a assumir uma nova postura diante do que é lido. A pontuação, os dois pontos, prepara o leitor para ver o milagre. está nublado o tempo, de manhã, um pouco frio e bruma. Segundo Cressot, “o nosso objetivo [da Estilística] será o de interpretar a escolha feita pelo utente em todos os compartimentos da língua, com vista a assegurar o máximo de eficácia ao seu ato de comunicação”. In Op. cit., p. 14. 101 “A orientação para o DESTINATÁRIO, a função CONATIVA, encontra sua expressão gramatical mais pura no vocativo e no imperativo.” Op. cit., p. 125. 100


94

A partir do segundo verso, a ruptura. O milagre se apresenta como algo trivial, o tempo nublado, nada de inédito: apenas um pouco de frio e bruma. A inversão sintática do segundo verso coloca o verbo está em evidência. No presente, introduz uma descrição, criando um cenário e transportando o leitor para dentro dele. O leitor faz parte desse cenário, o tempo do poema é, também, o seu presente. A inversão que salienta o ‘estar’ ressalta o caráter estático da paisagem descrita; nada se move — como em um quadro —, o que reforça o aspecto visual da imagem que se relaciona ao verbo ver do primeiro verso. A inversão do segundo verso não apenas coloca o verbo em destaque como o predicativo nublado. Essa construção aumenta o estranhamento do leitor. Nublado contrasta com ver, pois indica uma diminuição da luz que possibilita a visão. A sonoridade desse vocábulo sugere a idéia de escuro através das vogais fechadas [u] e [o], assim como uma certa dificuldade, marcada pela consoante líquida [l] aumentando o traço explosivo do [b]. Intensificando essa idéia, o vocábulo bruma — tanto semantica quanto sonoramente (por meio da vogal [u] e da combinação de [br] e [m], sons que se projetam com algum tipo de obstrução) — reforça os sentidos de nublado e contribui para criar uma atmosfera baça, turva, sem nitidez102. Nesse contexto, o sintagma de manhã amplia a estranheza da imagem, já que manhã remete ao momento de luz, clareza, do dia. O fato de que o sintagma adverbial de tempo esteja entre vírgulas reforça o contraste e chama a atenção para o instante do milagre, definindo, também, o seu espaço. Esse instante pode ser tão rápido quanto a sucessão de idéias na mente do eu-lírico ou se alongar por toda a manhã, já que a expressão “um minuto” do primeiro verso é usada nas conversas informais, geralmente, com valor indefinido, apenas com a intenção de chamar a atenção do interlocutor para algo, ou seja, com uma função fática. Com isso, percebe-se o tom narrativo-descritivo do texto. Uma cena é posta em relevo, e esta vai, aos poucos, se formando na mente do leitor. O eu-poético é também um narrador nesse primeiro momento do poema. As sensações predominam. O vocábulo frio remete ao tátil. Bruma sugere uma cena embaçada. Os sentidos se sobrepõem a uma visão racional. Embora o vocábulo bruma se combine com nublado e névoa (8º verso), formando uma unidade

102

Cf. Ferreira, A. B. H. Op. cit., p. 289.


95

significativa, destoa dos demais, uma vez que é menos usual, mais comum em textos literários, enquanto os outros compõem um léxico mais coloquial, a fala do dia-a-dia. Essa combinação de uma linguagem própria do oral, mais popular, a uma outra, mais literária, erudita, está presente em todo o poema e estabelece um movimento de contraste e equilíbrio criando o inusitado do texto. Assim, o comum ganha um toque de incomum e o extraordinário é posto como trivial. O título em latim — Laetitia Cordis —, o verbo na segunda pessoa do plural — sossegai, forma restrita, ao menos no Brasil, especialmente a escritos, ou ritos, religiosos — já introduzem no texto uma linguagem solene, sagrada, que contrasta, em um primeiro momento, com a maior parte dos vocábulos usados que são, de certa forma, ‘prosaicos’, na medida em que fazem parte do léxico utilizado na linguagem oral cotidiana. A mescla de linguagens envolve o leitor na atmosfera descrita. A mistura entre comum e inusitado se faz, concomitantemente, na paisagem delineada nos versos e na escolha lexical. Com isso, o poema se torna mais sugestivo — não estamos diante de um relato objetivo, as palavras são ambíguas. A ambigüidade também é criada pela pontuação. Há poucos conectivos no texto; a coesão se estabelece principalmente pela repetição de vocábulos e pelas relações semânticas entre eles. Os períodos são curtos e, ao se sucederem, vão se ligando através da coordenação assindética. O leitor é mais ativo, cabe a ele fazer as conexões, que podem acontecer de forma variada, preencher os “vazios no texto”, como aponta Iser: “O texto é um sistema de tais combinações e assim deve haver também um lugar dentro do sistema para aquele a quem cabe realizar a combinação. Este lugar é dado pelos vazios (Leerstellen) no texto, que assim se oferecem para a ocupação pelo leitor. Como eles não podem ser preenchidos pelo próprio sistema, só o podem ser por meio doutro sistema. Quando isso sucede, se inicia a atividade de constituição, pela qual tais vazios funcionam como um comutador central da interação do texto com o leitor. Donde, os vazios regulam a atividade de representação (Vorstellungstatigkeit) do leitor, que agora segue as condições postas pelo texto” 103. Ao longo do primeiro verso — Sossegai um minuto para ver o milagre: —, temos um exemplo de pontuação que cria ambigüidade. Os dois pontos introduzem um aposto, que indica o que vem a ser o milagre anunciado pelo eu. Esse aposto pode se resumir aos versos 2 e 3 e/ou corresponder a todo o texto que segue. As duas 103

In Lima, L. C. (org.). A leitura e o Leitor: Textos de estética da recepção, p. 91.


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leituras não são excludentes. Se considerarmos a primeira, os versos de 4 a 24 podem ser uma reação ao milagre descrito em 2 e 3 — o efeito que este causou no eu e nas pessoas a sua volta. Já a segunda tem todo o poema como o relato de um milagre. O que toca o leitor é que esse milagre não apresenta muito de extraordinário: trata-se de uma paisagem corriqueira, sobre a qual as pessoas fazem um comentário “banal”. O eu contempla a beleza de Deus e do homem sem ser despertado por qualquer fato inusitado. Contudo, é exatamente a apresentação do trivial como o milagre — o uso do artigo definido o apresenta como algo singular — que encanta o leitor, pois ele passa a conhecer o comum como algo sagrado, com outros olhos, e experimenta a alegria – laetitia – do eu-lírico, o qual se apresenta como um eu subjetivo, em primeira pessoa, que mostra seu interior para o interlocutor, como uma maneira de extravasar seu sentimento de júbilo. Meu coração, amarelo como um pequi, bate desta maneira: Jonathan, Jonathan, Jonathan. À minha volta dizem: ‘Apesar da névoa, parece que um sol ameaça.’ Após a paisagem cinza e fria descrita nos versos 2 e 3, chegamos ao interior do eu-lírico. O poema assume um outro tom. No primeiro verso, o verbo imperativo na segunda pessoa do plural, sossegai, parecia introduzir um discurso solene, como se o eu chamasse a atenção de um certo público para que escutasse um ensinamento, atentando para uma paisagem externa. No entanto, a partir do quarto verso, o poema se torna mais intimista, adquirindo um tom confessional. A comparação entre vírgulas, o que por si só faz com que nos fixemos sobre ela por estar isolada entre duas pausas, introduz um elemento inusitado. O coração é amarelo como um pequi. A cor amarela assume um valor simbólico, já que no plano denotativo não se associa a coração, e traz uma luminosidade e um calor que contrastam com os vocábulos nublado, frio e bruma dos versos anteriores. A cor viva expressa a idéia do título: Laetitia cordis — "Alegria do coração". O estado de espírito é que recebe destaque, coração apenas caracteriza alegria.


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Há uma aparente oposição entre o período que abarca os versos de 4 a 6 e os três primeiros. Há um deslocamento de uma paisagem externa, pálida e fria, para o interior do eu que cria uma imagem quente, luminosa, para representar seu estado de espírito. Os versos 2 e 3 encerram uma certa estaticidade, enquanto, no verso 5, o verbo bater, combinado à recorrência de sons oclusivos — bate desta maneira —, instaura um movimento, uma batida que se intensifica no verso seguinte. Jonathan, Jonathan, Jonathan. A repetição de Jonathan cria um efeito onomatopaico, reproduzindo o som do coração batendo. O isolamento dos versos 6 e 7 em uma estrofe chama a atenção para o interior do eu-lírico, como se, por um instante, a realidade externa se tornasse opaca diante da sensação de intensa alegria expressa pelo coração batendo. Os dizeres das pessoas a sua volta constituem vozes distantes, que servem mais para marcar o contato do eu com o resto do mundo, enquanto este é posto em destaque. O deslocamento dos versos 5, 6 e 7 na página, além de conferir movimento à forma gráfica do texto, reproduz duas realidades distintas. Os versos de 1 a 4 e 8 são mais longos e contrastam com os três primeiros versos deslocados, formando um contexto exterior que abarca um mais reduzido, interior. No entanto, as duas realidades se interpenetram, se integram de tal maneira a se confundirem. O eu se apresenta no verso 4, logo iniciado por um dêitico marcador da primeira pessoa — Meu —, introduzindo um espaço individual, íntimo. Esse verso forma um bloco com os três primeiros, já que é mais longo e não vem deslocado. Imagem interna e externa não se distinguem no plano visual. De modo semelhante, o verso 7, que se volta a um contexto externo, é um verso curto e vem deslocado, formando um bloco com os versos que descrevem o interior do eu. Esse movimento do exterior para o interior e vice-versa se mostra não como um simples jogo de oposições, mas estabelecendo um diálogo, uma harmonia, entre o eu e seu ambiente externo, que se constitui de elementos da natureza, versos 2 e 3, e de elementos humanos, versos 7 e 8. Esses elementos aparecem para descrever o estado de espírito do eu, como se fizessem parte dele: pequi, evocando a natureza, e Jonathan, evocando o humano por corresponder a um nome masculino. O oitavo verso retoma o segundo e o terceiro. Como já apontado, névoa se associa a nublado e bruma, estabelecendo a coesão do texto e construindo uma rede de significações. Um sol ameaça retoma de manhã, já que ambos estão relacionados semanticamente e figuram em posições equivalentes finalizando os versos. Este verso


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8 vem entre aspas, reproduzindo a fala de pessoas que comentam sobre o estado do tempo. Trata-se de um comentário comum revelando o contato entre indivíduos que se encontram na rua, no portão, no dia-a-dia. Parece mais uma expressão usada para estabelecer esse contato do que uma asserção sobre um fato específico. No entanto, no contexto do poema, essa expressão adquire uma coloração nova. Está carregada de um valor místico, sagrado, já introduzido pelo título em latim, remetendo a textos e ritos religiosos, e pelos vocábulos milagre e bruma. A primeira impressão que se tem é a de que o eu-lírico, ao introduzir no poema essa fala, não está lhe atribuindo valores novos, mas abrindo os olhos do leitor para ver significações latentes, que em geral passam despercebidas. Há uma certa esperança expressa nessa fala, uma busca de luz, apesar da névoa, um otimismo marcante. A idéia do sol que ameaça surgir por trás das nuvens equivale semanticamente à imagem dos pequis, que racham e caem quando maduros, e ao coração do eu-lírico, que deseja bater do lado de fora. Nessas três imagens, o que permanece oculto busca revelar-se. Apesar de encoberto pela névoa, o sol está presente; os pequis vão amadurecendo sem alarde; o coração do eu-lírico bate sem que faça grande conta disso. A vida pulsa silenciosamente. O milagre da existência vai passando sem chamar muita atenção. Porém, o eu-lírico acorda os sentidos do leitor para que perceba que a vida, o amor são o milagre. É preciso sossegar um pouco para notar milagre tão sutil. Assim, o comentário sobre o sol não consiste apenas de uma frase corriqueira sobre o tempo, mas alude à sacralidade velada do dia mais prosaico. Remete, ainda, ao próprio estado de espírito do eu-lírico, cujo sentimento está à flor da pele. Como o sol que ameaça sair, as sensações desejam revelar-se a todos. O nono verso, também deslocado, inicia-se pelo verbo penso e marca a relação entre a frase citada no verso oito e o interior do eu-lírico. Penso em Giordano Bruno e em que amante incrível ele seria. Não há, como já vimos, um vocábulo explicitando o elo entre os períodos. O nono verso parece representar uma idéia suscitada pelo oitavo, como se aquela fala ativasse automaticamente a memória do eu. A ausência de conectivos confere agilidade aos versos e, junto com o verbo no presente, causa a impressão de que o


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texto flui simultaneamente às idéias que traz, como se nascesse no momento da leitura, sem planejamento, fruto de uma inspiração súbita. A figura de Giordano Bruno atribui um sentido novo ao vocábulo sol e a toda atmosfera descrita nos versos 2 e 3. Aliás, é o sol que parece evocar ao eu-lírico a imagem de Giordano Bruno, filósofo italiano (1548-1600), queimado pela Inquisição por divulgar suas idéias tidas como heréticas. Para ele, o sol correspondia à verdade, ao entendimento, e a ausência dele, à ignorância104. Dois planos se estabelecem simultaneamente — uma cena concreta, do dia nublado em que o sol desponta, e outra metafórica, metafísica. O sol é um elemento que sugere a presença do sagrado na imagem descrita, pois “se não é o próprio deus, é, para muitos povos, uma manifestação da divindade”105. De todo modo, o sagrado manifesta-se de uma maneira sutil, sem alarde. Tão sem alarde que é preciso sossegar para vê-lo. O décimo verso coordena-se ao anterior por meio da conjunção e, dando seqüência ao pensamento do eu. A ausência de um marcador de pausa entre os versos reforça o vínculo entre eles. Embora os sintagmas em Giordano Bruno e em que amante incrível ele seria sejam ambos complemento do mesmo verbo, o segundo parece estar subordinado ao primeiro, uma vez que se estabelece uma relação de dependência: ele só existe em função daquele. As relações se dão em um nível ‘subjacente’ ao nível sintático, mais semântico. Há um efeito de estranhamento causado com o décimo verso, em que o vocábulo amante traz a idéia do contato físico, além do espiritual. A figura do pensador e idealista é apresentada concomitante à imagem do homem carnal. O pensador é ‘físico’ e ‘metafísico’. E revela-se o desejo. Esse desejo se firma logo no verso seguinte com o verbo quero. Quero dançar e ver um filme eslavo, sem legenda, adivinhando a hora em que o som estrangeiro está dizendo eu te amo.

“Quais réus afeitos às trevas que, depois de libertados do fundo de alguma torre sombria, saem à luz, muitos do que praticam a filosofia vulgar hão de se atemorizar, assombrar-se-ão e, não suportando o novo sol dos teus [de Bruno] claros conceitos, muito se hão de se agitar.” Grifo meu. Trecho da fala de Helitrópio. In Bruno, Giordano. A causa, o princípio e o uno, p. 23. 105 In J. Chevalier e A. Gheerbrant. Op. cit., p. 836. 104


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A construção desse período se assemelha à do anterior. Em um verso, o verbo e seu complemento. Penso [em Giordano Bruno] Quero [dançar] No outro, a conjunção e mais novo complemento. e [em que amante incrível ele seria.] e [ver um filme eslavo…] Os complementos de quero não parecem estabelecer entre si a mesma relação subordinante dos complementos de penso, isto é, não apresentam uma mesma referência (no caso, Giordano Bruno, é retomado no verso subseqüente pelo pronome ele). Essa falta de subordinação entre as idéias ressalta o valor nocional do verbo. O eu, mais do que querer algo específico, quer. A emoção se intensifica. Querer dançar e decifrar o “eu te amo” numa língua estrangeira traduz a alegria incontida do eu, que deseja expressar-se para além dos códigos regionais, em uma linguagem universal, humana. A dança e o amor representariam essa linguagem. O querer sobrepõe-se ao pensar, o que significa que a emoção se sobrepõe à razão. E a escassez de termos conectivos no texto reforça essa idéia. A coesão se estabelece pela repetição de vocábulos, o que não só unifica estruturalmente o poema como cria uma rede de significações que se somam e multiplicam com agilidade, sem os rebusques próprios do pensar mais articulado. Vale observar como algumas dessas repetições se combinam na construção da imagem poética. No verso 10, o vocábulo incrível remete à idéia expressa em milagre, no primeiro verso. O vocábulo ver retorna no décimo segundo e adivinhando reforça a idéia transmitida no primeiro verso de “cegar”, fechar os olhos para ver com os demais sentidos do corpo — que são comumente utilizados em situações específicas, enquanto a visão é considerada o sentido mais explorado em nossa sociedade — e com a intuição. O verbo dizer está no sétimo (dizem) e décimo quarto verso (dizendo); é usado para introduzir outras falas no discurso do eu-lírico. É, de certo modo, um


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dicendi neutro, que não revela muito sobre o modo como é pronunciada, sentida, a expressão que reporta. Isso deixa o texto mais aberto para o leitor atuar. O uso do discurso direto confere um caráter de realidade ao que é citado no oitavo verso. Já no décimo quarto, eu te amo não vem entre aspas, mas conserva algumas características do discurso direto, como o uso dos dêiticos e a ausência da conjunção que. No entanto, por não haver nenhuma pontuação indicando a mudança de vozes, a sentença eu te amo forma uma unidade que corresponde ao complemento de está dizendo. Esse recurso faz com que a expressão eu te amo se especifique, e presentifique, através do uso do discurso direto, ao mesmo tempo em que, como expressão cristalizada, se universalize, contrariando a idéia transmitida pelo verso 12 — e ver um filme eslavo, sem legenda — e pelo vocábulo estrangeiro, verso 13, como se houvesse uma única linguagem para todos os homens. Novamente observamos o uso reiterado de formas e idéias: amante e amo apresentam a mesma raiz. O sentir sobrepõe-se ao pensar. Nos versos 15 e 16, a emoção se intensifica, observamos a expressão de um eu extasiado, completamente tomado pela emoção diante do Belo. O uso enfático do vocábulo como, muito comum na língua oral, reflete um modo espontâneo de mostrar admiração e encantamento. Como o homem é belo, como Deus é bonito. Os dois versos são estrutural e semanticamente equivalentes, configurando um acoplamento. Homem e Deus são postos em um mesmo plano. O homem adquire um brilho divino, enquanto Deus não é apresentado como um ser abstrato, inatingível. Os vocábulos belo, como predicativo de homem, e bonito, como predicativo de Deus, enfatizam a aproximação de ambos, por meio de uma espécie de inversão. Belo, comparado a bonito, é menos usual, menos popular e, portanto, mais “literário”. Assim, Deus é visto de maneira diferente, mais simples, enquanto o homem também é tido de outra maneira, mais nobre. Nesse caso, o contraste entre o termo mais erudito e o mais popular equivale ao contraste entre as imagens do mais divino e do mais humano — uma característica recorrente em quase toda a obra de Adélia Prado. Jonathan sou eu apoiada em minha bicicleta,


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posando para um retrato. No décimo sétimo verso, há uma retomada do sexto — “Jonathan, Jonathan, Jonathan” — em que Jonathan ressoa presentificando as batidas do coração, como se fosse o nome do amado do eu-lírico feminino que causasse tais batidas; ou ainda, sendo o bater do coração, representasse o próprio movimento da vida. De qualquer maneira, é tido como um ser simbólico, associado ao sentimento de alegria e euforia expresso no poema. Em seu livro de prosa O homem da mão seca, Adélia Prado revela usar o nome Jonathan como um modo de se referir a um personagem que é ao mesmo tempo homem e Deus: “Jonathan, é o nome que inventei pro Teo nas poéticas106e Teo é o nome que inventei pro Soledade. Penso nele de manhã à noite, até quando não estou pensando (...) estou apaixonada pelo Soledade”107. Assim, os nexos entre os versos se mostram mais intensos. Além da repetição do nome Jonathan estabelecendo a coesão no texto, há um movimento duplo, de retorno e avanço, construído pelas relações semânticas entre os vocábulos. Abrindo um novo período, Jonathan estabelece a coesão com os versos 15 e 16, dando seqüência aos mesmos e atuando como um elemento sobre o qual convergem as idéias presentes nos dois versos anteriores, remetendo à figura de Jesus, que se explicita no último verso. Jonathan é a imagem humana de Deus e é a imagem divina do homem. A repetição de Jonathan representa a própria alegria do eu que vai crescendo ao longo do poema. Primeiro é um modo de o coração bater, centra-se em uma parte do eu (versos 4 e 6). Depois (verso 17), é como se tomasse conta dele todo. A busca de expressar esse sentimento único leva o eu-lírico a usar imagens que evoquem momentos únicos, específicos, que atinjam a memória afetiva do leitor. Isso pode ser observado no verso 14, em que o sintagma verbal está dizendo indica o momento exato em que se diz eu te amo, ao mesmo tempo em que o gerúndio prolonga o ato de dizer, fazendo com que o leitor repare no caráter sublime da cena, como uma câmera lenta revelando os detalhes. Nos versos 17 e 18, Jonathan é o eupoético em um instante muito específico. Posar para um retrato se dá em um momento muito breve, quase instantâneo; porém, está associado a ocasiões especiais, à tentativa de eternizar um presente. O vocábulo bicicleta evoca uma cena simples, cotidiana; pode remeter à infância do eu 106 107

Adélia Prado costuma chamar seus poemas de “poéticas”. In O homem da mão seca, pp. 36-37.


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ou a uma cena descontraída do seu dia-a-dia. Então, o que pode ser visto como uma cena simples, trivial, ganha um sentido especial, milagroso. Os seis últimos versos retomam o quarto. Enquanto neste há uma comparação explícita, amarelo como um pequi, os versos de 19 a 21 constituem uma metáfora. A imagem dos pequis é logo associada ao coração do eu e, conseqüentemente, corresponde ao seu interior, seu estado de alegria. Quando ficam maduros os pequis racham e caem, formam ninhos no chão de pura gema. A cor amarela retorna com a imagem dos pequis maduros e da gema, intensificada pelo adjetivo pura. “O amarelo é a cor da eternidade, como o ouro é o metal da eternidade”108. O amarelo representa a vida em plenitude. Essa idéia de vida pulsante, que cresce junto com a alegria, vem expressa no vigésimo primeiro verso: formam ninhos no chão de pura gema. O verso é ambíguo, pois pode corresponder à imagem de frutos caídos em montes no chão como se fossem ninhos feitos de gema, ou seja, amarelos como gema. Também podemos considerar uma outra imagem, a qual requer maior abstração: a de ninhos contendo gemas, ninhos de pássaros por nascer, já que a gema é o próprio ser vivo em potencial. De qualquer modo, os frutos que caem e racham não finalizam um ciclo, mas dão início a outro. A cor amarela se espalha, então, por todo o poema, desde o sol, os pequis, até à gema indicando vida. Em um outro poema de Adélia Prado, temos: “O amarelo engendra”109. O amarelo evoca, assim, a própria divindade, ligada ao mistério, ao milagre, da existência. “A luz de ouro (o amarelo) se torna, por vezes, um caminho de comunicação nos dois sentidos, um mediador entre os homens e os deuses” 110. Com isso, a presença do sagrado é cada vez mais intensa. O sintagma Meu Coração (quarto verso) reaparece em posição equivalente iniciando o verso 22, o que reforça a coesão do texto, além de estreitar os vínculos entre esse sintagma e a imagem dos pequis.

In J. Chevalier e A. Gheerbrant. Op. cit., p. 40. “Louvação para uma cor”, de Bagagem. In Poesia reunida, p. 31. 110 In J. Chevalier e A. Gheerbrant. Id. ibid. 108 109


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Meu coração quer saltar, bater do lado de fora, como o coração de Jesus. Além de revelar-se através da metonímia: Meu coração, o eu-lírico atribui ao coração vontade própria como se fosse um outro, alguém que não pode dominar — Meu coração quer saltar. Desse modo, a emoção toma o eu-poético de maneira incontrolável, inevitável. Não se contém a alegria que cresceu e cresceu. O vocábulo maduros, associado a racham e caem, traduz o desenvolvimento dos pequis, do mesmo modo que remete à ampliação de um estado de êxtase que ultrapassa os limites do eu. No último verso, temos uma nova comparação, explicitada pelo vocábulo como, retomando a estrutura utilizada na comparação do quarto verso. O vocábulo coração é repetido e essa repetição cria uma ambigüidade, possibilitando entender a imagem formada como uma metonímia para Jesus e remetendo o leitor ao retrato do “Sagrado Coração de Jesus”, em que Cristo aparece com o seu coração, envolto em espinhos, pintado do lado de fora de suas vestes. Essa imagem é muito comum em casas de católicos mais pobres, em “folhinhas”, calendários que se pregam nas paredes. A alusão ao retrato reforça o contraste entre o erudito e o popular já mencionados nesta análise. É interessante notar que o retrato é conhecido como “Sagrado Coração de Jesus”. No poema, o vocábulo sagrado é excluído, o que elimina a distinção entre o humano e o divino, como se tudo assumisse um valor sagrado, ao mesmo tempo em que o aspecto humano de Cristo é enfatizado. A imagem do coração reflete a fusão do concreto e abstrato no texto, uma vez que dá corpo a um sentimento concebido como divino: Laetitia Cordis. As imagens e repetições de termos e estruturas vão dando forma ao poema e envolvendo o leitor em um ritmo que parece acompanhar os movimentos da psique do eu, como se as palavras fossem apenas se engastando em um pulsar que é mesmo a ‘alegria do coração’.

2.3 A metapoesia


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Ó Deus, me deixa trabalhar na cozinha, nem vendedor nem escrivão, me deixa fazer Teu pão. Filha, diz-me o Senhor, eu só como palavras.111

Desde o primeiro texto de Bagagem, primeiro livro de poemas de Adélia Prado, até Oráculos de maio, último livro de poemas publicado até o momento, a metapoesia está presente. Por meio dela, podemos entender toda a produção da poeta, sua concepção de palavra, sua visão de poesia no geral e de sua própria obra. Para a autora, escrever poemas excede todo ato de comunicação, implica ultrapassar as fronteiras da aparência das coisas e do verbo, desvelando o sagrado que tudo reveste. O poeta é um “alvissareiro” (como Adélia Prado o denomina no primeiro poema de A faca no peito), responsável por chamar atenção para a divindade do e no Universo. A palavra recria o mundo e, ao recriá-lo, torna-o crível, real. E não é esta a noção de sagrado com a qual estamos lidando ao longo de todo este estudo? Retomando as palavras de Eliade na Introdução: o sagrado é o real por excelência. Por isso, Adélia Prado não se contenta com a palavra que apenas alude, evoca. Quer antes a palavra como a própria coisa que significa. A poesia assume, assim, um caráter sagrado e sacralizante. E o poeta passa a ser porta-voz de uma divindade, desempenhando um papel sagrado. Em entrevista a José Castello, Adélia Prado revela: “sei que sou só porta-voz”112. Neste último bloco de análise, veremos uma amostra da poesia metalingüística. O primeiro poema a ser analisado é “Anunciação ao poeta”, de Bagagem113, no qual se estabelece uma intertextualidade explícita com a Bíblia, apresentando a tarefa do poeta como uma Missão que lhe é atribuída por Deus. O segundo poema é “A formalística”, de A faca no peito114, que tece uma crítica à poesia cerebral, desvinculada do chamamento divino. O último a ser analisado é “Genesíaco”, de O pelicano115, que apresenta o caráter mitológico da poesia a partir da descrição de uma cena peculiar. Trecho de “O poeta ficou cansado”. In Oráculos de Maio, p. 13. Op. cit. 113 In Poesia reunida, p. 66. 114 Id. ibid., p. 376. 115 Id. Ibid, p. 309. 111 112


106

Nos três poemas, observa-se o uso da alegoria — “processo mental, que consiste em simbolizar como ser humano ou animal uma ação ou uma qualidade”116 —, já que apresentam narrativas expressando conceitos e sensações abstratas a respeito do que seja poesia. Os dois primeiros poemas a serem analisados

são

completamente alegóricos. O último combina à alegoria uma reflexão do eu-lírico sobre o que é poesia. O interessante é que os três poemas são a manifestação concreta das idéias que veiculam. Assim, a metalinguagem ocorre duplamente: são poemas que falam de poesia e são a realização prática da temática que abordam.

116

In Câmara, J. M. Dicionário de lingüística e gramática, p. 46.


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2.3.1 A poesia como Missão

Em “Anunciação ao poeta”, a referência à passagem bíblica da “Anunciação à Virgem Maria” é explícita e se dá desde o título a todo o formato do texto. É à luz dessa intertextualidade que o poema deve ser interpretado. Dessa forma, antes de proceder a sua leitura, cabe nos remetermos à cena do Novo Testamento.

(...) foi enviado por Deus o anjo Gabriel a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um varão que se chamava José, da casa de Davi, e o nome da virgem era Maria. Entrando, pois, o anjo onde ela estava, disse-lhe: “Deus te salve, cheia de graça! O Senhor é contigo! Bendita és tu entre as mulheres”. Ela, quando o ouviu, turbou-se do seu falar, e discorria pensativa sobre que saudação seria esta. Então o anjo lhe disse: “Não temas, Maria, pois achaste graça diante de Deus. Eis que conceberás no teu ventre, e darás à luz um filho, pôr-lhe-ás o nome de Jesus. Este será grande e será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi: e reinará eternamente na casa de Jacó, e seu reino não terá fim.” E disse Maria ao anjo: “Como se fará isso, pois eu não conheço varão?” E respondendo, o anjo lhe disse: “O Espírito Santo descerá sobre ti, e a virtude do Altíssimo te cobrirá da sua sombra. E por isso mesmo o Santo, que há de nascer de ti, será chamado Filho de Deus. Aí tens tu a Isabel, tua parenta, que até concebeu um filho em sua velhice: e este é o sexto mês da que se diz estéril. Porque a Deus nada é impossível.” Então disse Maria: “Eis aqui a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra.” E o anjo se apartou dela.117

117

In Bíblia Sagrada. Evangelho de São Lucas. Cap. I, vers. 26-38, p. 918.


108

Nessa tradução, o anjo saúda Maria com a frase: “Deus te salve”. Em uma outra tradução, temos: “Alegra-te” 118. Mas o trecho da fala do anjo se perpetuou, em língua portuguesa, do seguinte modo: “Ave, Maria”. É dessa forma que alguns católicos relembram a cena da anunciação e saúdam a mãe de Cristo através da oração conhecida como “Ave Maria”. A interjeição Ave equivale à saudação alegre do anjo e compreende o valor semântico das traduções anteriores. É a partir dessa saudação do anjo que o poema resgata o episódio bíblico.

Anunciação ao poeta 1.

Ave, ávido.

2.

Ave fome incansável e boca enorme,

3.

come.

4.

Da parte do Altíssimo te concedo

5.

que não descansarás e tudo te ferirá de morte:

6.

o lixo, a catedral e a forma das mãos.

7.

Ave, cheio de dor.

O poema “Anunciação ao poeta” retoma o episódio do Novo Testamento em uma espécie de paródia119. Sua significação é construída em um movimento de aproximação e distanciamento do texto bíblico. Os versos são pautados nas palavras do anjo à Maria. O leitor deve inferir que um anjo aparece ao poeta e anuncia seu destino. Ao contrário do que ocorre com Maria, o mensageiro não conforta o poeta com suas palavras, pelo contrário: seu conteúdo é pesado, duro, o que imprime na saudação “ave” um tom irônico. O poeta não é cheio de graça, mas de dor.

In A Bíblia — Pão Nosso de Cada Dia. Para Affonso Romano de Sant’Anna, que revê as noções de Tynianov e Bakhtin, a paródia consiste na retomada de um determinado texto, modificando-o, de algum modo, para criar algo novo. Difere da paráfrase, uma vez que esta se “conforma” com o estilo anterior e a paródia o “deforma”, configurando-se como o “gesto inaugural da autoria e da individualidade”. Segundo ele, a paródia seria uma espécie de “estilização negativa”, em oposição à paráfrase, que seria uma “estilização positiva”. “Evidentemente que esses termos ‘negativa’ e ‘positiva’ não têm aí nenhum valor ideológico ou ético, senão que indicam uma aproximação maior ou menor ao modelo original. Assim é que talvez pudéssemos falar da paráfrase como um efeito pró-estilo, e da paródia como um contraestilo.” In Paródia, paráfrase e cia., pp. 32, 35-36. 118 119


109

O poema pode ser dividido em duas partes. A primeira, que encerra os dois primeiros períodos (versos 1-3), constitui a saudação do anjo. A segunda: a anunciação propriamente, a revelação da missão do poeta. Ave, ávido. Ave fome incansável e boca enorme, come. Na primeira parte, o poeta é apresentado por meio de três vocativos: ávido, fome incansável e boca enorme. O jogo sonoro entre ave e ávido ressalta, de início, o contraste entre a anunciação ao poeta e a anunciação à virgem Maria. Esta é cheia de graça, plena. O poeta é ávido, ou seja, faminto — caracteriza-se pela falta de algo, pela insatisfação. A idéia de avidez intensifica-se no segundo verso, com o sintagma “fome incansável”, já que um dos sentidos figurativos de fome é exatamente o de “avidez” 120. Denotativamente, a fome é um dos instintos mais básicos de qualquer animal; é ela o indicador de que urge alimentar-se. Assim, a fome se manifesta como uma sensação de desconforto, mas primordial para preservar a vida. O poeta é caracterizado de modo ambíguo: “fome incansável” pode configurar uma metonímia do poeta, presentificando-o pela sua sensação — com essa leitura, o sentimento é posto em evidência, o poeta caracteriza-se pelo que sente, sendo ele todo sentimento121 —, e pode ser compreendida como uma metáfora — nesse caso, o poeta constitui a fome de outrem, um alerta para que busque alimento. A figura do poeta constrói-se, portanto, por um sentimento de desconforto e, ao mesmo tempo, pela importância de seu papel, que visa garantir a vida. O substantivo fome tem por modificador o adjetivo incansável, indicando que a necessidade de alimento é contínua. O fato de a fome ser incansável deveria transmitir a idéia de que o poeta é incansável, já que é caracterizado como a própria fome. No entanto, o cansaço existe e repercute em todo o poema. O quinto verso In Ferreira, A. B. H. Op. cit., p. 796. A visão do poeta como aquele que sente acima de tudo é recorrente na poesia de Adélia Prado, que escreve: “Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica, mas atravessa a noite, a madrugada, o dia, atravessou minha vida, virou só sentimento.” (“Explicação de poesia sem ninguém pedir”. In Poesia reunida, p. 48.) 120 121


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reitera: “não descansarás”. O uso do advérbio de negação precedendo o verbo no futuro do indicativo122, na segunda pessoa do singular, aos moldes dos Mandamentos do Velho Testamento, revela um anjo que não apenas anuncia, mas transmite um mandamento que se expressa pela negação. O poeta é alertado a não fazer algo. As idéias de limitação e impotência se impõem. Convém notar a relação entre o adjetivo incansável e o verbo descansarás em posições paralelas na página. Esse paralelismo chama a atenção para o significado do tema123 que se repete: cansa e para o contraste entre os prefixos latinos in- e des(derivado de dis-). Ambos indicam negação, entretanto, levam a sentidos completamente diferentes. O prefixo in- (que exprime negação ou privação), aliado a -cansável, expressa a impossibilidade de se cansar. O prefixo des- (que remete à idéia de cessação de algum estado primitivo ou negação da qualidade expressa pelo termo primitivo), atrelado a cansarás, significa possibilidade de abandonar o estado de cansaço124. No entanto, descansar é modificado por não. Observa-se uma fome que não se cansa em paralelo com um poeta que não pode descansar. Dessa maneira, o poeta é duplamente limitado: pela fome incansável, contra a qual não pode lutar, já que se trata de um instinto, e pelo mandamento do anjo. Com a dupla negação, em “incansável” e “não descansarás”, o que permanece é a idéia de esgotamento, expressa pela sensação de impotência diante do inevitável. O poeta sente-se cansado, sim, mas impedido de descansar, o que amplia sua dor. Ao vocativo “fome incansável” coordena-se “boca enorme”, configurando um paralelismo. Se antes o poeta era invocado, e evocado, por meio do termo fome, agora o é pelo termo boca. Ou seja, se antes era caracterizado pelo impulso que o leva a procurar alimento, agora caracteriza-se pelo instrumento que permite alimentar-se. A figura do poeta é metonimicamente apresentada pelo sintagma “boca enorme”, pois é através de sua boca que desempenha seu papel. E trata-se de uma boca enorme, proporcional ao tamanho da fome. Cabe refletir sobre o significado de boca. O primeiro sentido que vem à mente, e primeiro registrado nos dicionários, é o de “cavidade na parte inferior da face (ou da cabeça), entrada do tubo digestivo, pela qual os homens e outros animais Segundo Bechara, o verbo no futuro do presente do indicativo pode exprimir, “em lugar do imperativo, uma ordem ou recomendação, principalmente nas prescrições e recomendações morais: Defenderás os teus direitos./ Não furtarás.” Op. cit., p. 279. 123 Segundo Mattoso Câmara,o tema do verbo “é constituído pelo radical seguido da vogal temática da conjugação correspondente”. In Estrutura da língua portuguesa, p. 104. 124 Cf. Cunha, A. G. Dicionário etimológico Nova Fronteira, pp. 249 e 429. 122


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ingerem os alimentos”125. Cada ser humano, saudável, nasce com sua boca. O homem não é capaz de escolher com que boca nasce. Herda sua boca de seus pais, avós, antepassados. No contexto do poema, o poeta tem uma boca enorme. O adjetivo, no superlativo absoluto, indica que sua boca tem proporções fora do normal. E o poeta nasceu com ela, não pediu para ter uma boca enorme. Assim, ele é apresentado como alguém que já nasce dotado para uma função específica, para ser poeta, o que requer uma boca enorme. Tal como Maria, é um predestinado. Não há o que fazer senão aceitar sua condição. No terceiro verso, o verbo no imperativo expressa ordem: “come”. O poeta não tem escolha, deve comer, para isso foi feito com uma fome incansável e uma boca enorme. O terceiro verso contrasta com o anterior por ser muito mais curto, o que dá ênfase à ação expressa pelo verbo. O anjo diz apenas: “come”. Não sabemos se ele oferece algum alimento ao poeta, ou se apenas permite, ou ordena, que coma. De todo modo, o poema permanece hermético. Ávido e fome são palavras transitivas, isto é, necessitam de complemento. Quem é ávido é ávido por algo, quem tem fome tem fome de algo. A falta do complemento realça o desejo do poeta, especialmente porque o termo fome é comumente utilizado para se referir à vontade ou necessidade de qualquer coisa. O poeta revela-se apenas como aquele que deseja incansavelmente. O verbo comer também é empregado como intransitivo. Por enquanto, não se sabe qual é a comida do poeta, evidencia-se apenas o chamado para comer. Vale observar, ainda, que o vocábulo boca não está apenas relacionado à alimentação, mas à própria fala. O poeta tem uma boca enorme, o que ressalta não apenas sua fome por alimento, mas sua habilidade para falar. Afinal, o poeta assim é chamado por fazer poemas, ou seja, por sua função específica de se comunicar. São comuns, na linguagem cotidiana, frases do tipo: “Fulano tem uma boca grande” ou “Sicrano tem uma língua grande” para se referirem, na maioria dos casos, pejorativamente, à pessoa que fala demais e que, muitas vezes, diz o que não deveria. Com isso, o poeta tem a missão de falar, e falar demais, mesmo que desagrade os outros. Uma vez recebendo essa missão do Altíssimo, o poeta tem a responsabilidade de representá-lo, ou seja, de atuar como uma espécie de porta-voz da divindade. Com a segunda parte do poema, as imagens dos primeiros versos adquirem maior significação. 125

Cf. Ferreira, A. B. H. Op. cit., p. 266.


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Da parte do Altíssimo te concedo que não descansarás e tudo te ferirá de morte: o lixo, a catedral e a forma das mãos. Ave, cheio de dor. O anjo, que sabemos ser um anjo apenas por meio da intertextualidade com a Bíblia, declara-se como um representante do próprio Deus. A expressão “Da parte do Altíssimo” marca a intertextualidade com o episódio bíblico, em que Deus é referido através do termo Altíssimo. O verbo conceder significa dar, atribuir, permitir126, o que confere ao texto um tom irônico, ao mesmo tempo em que estreita a relação com seu intertexto. Assim como Maria, o poeta recebe de Deus uma graça, escolhido entre muitos outros para realizar uma missão especial. No entanto, a “graça” recebida não lhe traz alegria, é, antes, um fardo bem pesado. A “boa-nova” para o poeta é a revelação de que será eternamente um sofredor. Está condenado à dor: “não descansarás e tudo te ferirá de morte”. Os verbos no futuro definem o destino do poeta. E esse destino apresenta-se inexorável. De maneira diversa do texto do Novo Testamento, o anjo não é questionado. O poeta não se manifesta, o que indica que este aceita, espontânea ou forçosamente, seu destino. É importante verificar que, embora utilize a segunda pessoa do singular, assim como na tradução do texto bíblico, o anjo não emprega a mesóclise (ferir-te-á), o que seria esperado com o verbo no futuro; utiliza a próclise (te ferirá), mais comum na oralidade e cada vez mais recorrente em textos escritos (uma tendência do português do Brasil)127. Assim, a fala do anjo ganha força, pois está mais próxima da realidade do falante brasileiro, tornando a cena mais real. Vale lembrar, ainda, que o poeta não é exaltado como Maria; é antes chamado por “ávido”, “fome incansável” e “boca enorme”, o que, à primeira vista, soa um tanto ofensivo. O anjo do poeta parece ser um anjo frio, autoritário, especialmente por empregar o imperativo (come) e o futuro com valor imperativo (não descansarás). Cf. Aurélio eletrônico. Cf. Pagotto, E. “Clíticos, mudança e seleção natural” e Nunes, J. “Direção de clitização, objeto nulo e pronome tônico na posição de objeto em português brasileiro”. In Roberts, Ian e Kato, M. (orgs.) Português brasileiro – uma viagem diacrônica. 126 127


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O anjo não diz o que o poeta deverá fazer. Ele apenas aponta o que ele não poderá fazer: descansar (o que amplia o tom irônico do verbo conceder, já que se trata de uma negação) e o que acontecerá com ele: será ferido. A posição do poeta é de completa passividade. É certo que no terceiro verso o anjo concede: “come”. Esse é o único verbo que apresenta o poeta como sujeito ativo. Entretanto, sabemos que, se ele comer (seja o que for), é por estar impelido por uma fome incansável. De nenhum modo tem a possibilidade de escolha. Como mencionado anteriormente, o poeta já nasce com uma boca enorme, pronto para cumprir sua sina. O mesmo se observa com Maria, que, segundo um dos dogmas da Igreja Católica, é concebida sem pecado original, e é uma Virgem, exatamente como determinavam as Escrituras. Ambos nascem como se somente para desempenharem um papel dentro dos desígnios divinos. Ao mesmo tempo em que isso exalta o poeta (e a mãe de Cristo) diante dos homens, submete-o ao poder da divindade. Não é a pessoa em si que importa, mas o papel que desempenha. Maria só é venerada por ter sido escolhida como a mãe do salvador. No poema, isto se dá de maneira mais radical. O título indica: “Anunciação ao poeta”. O termo poeta, determinado pelo artigo definido, representa toda uma categoria. Não se trata de um poeta específico, mas do poeta, que é a síntese de todos. O termo, derivado de poesia, designa aquele que produz poemas, ou seja, a função é posta em evidência, em detrimento do indivíduo. A dor, prenunciada em “não descansarás”, intensifica-se em “tudo te ferirá de morte”. A missão do poeta chega ao extremo da dor. O termo tudo indica que o poeta não será ferido uma única vez, mas constantemente. A dor do ferimento prolonga-se ao infinito. O poeta é ferido de morte sem morrer, ou vai morrendo a cada golpe. O anjo se comunica por meio de metáforas e metonímias, o que torna a mensagem mais lacunar. Não se sabe exatamente qual a missão do poeta, nem como deve realizá-la. Sabe-se que o anjo anuncia uma missão por meio da intertextualidade com a Bíblia. Na cena da anunciação à Maria, o mensageiro revela qual é o seu destino, o seu papel. Ao fazer isto, determina a identidade de Maria. No poema, o poeta também é caracterizado pelas palavras do anjo, que revela seu futuro e seu papel. A única certeza sobre sua missão é que ela está essencialmente vinculada ao sofrimento, expresso nas idéias veiculadas pelas expressões “ávido”, “fome enorme” (que indicam falta, insatisfação), “não descansarás”, “ferirá de morte”. Assim, tem-se


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a imagem de alguém oferecido em sacrifício. Nesse aspecto, o poeta aproxima-se não mais da mãe, mas de seu filho, já que, segundo a Bíblia, Cristo nasce com o objetivo de redimir os homens por meio de seu sofrimento e morte. A missão atribuída ao poeta não é uma missão qualquer, pois, ainda que de maneira implícita, vincula-se à redenção dos homens, como será comentado posteriormente. No verso seguinte, há uma especificação desse tudo que ferirá o poeta: “o lixo, a catedral e a forma das mãos”. O lixo representa tudo o que há de mais vil, de desprezível, de pouco valor — profano. Em seguida, a catedral equivale ao que há de grandioso, importante, elevado — sagrado. A forma das mãos remete àquilo que passa despercebido ao homem, que raramente se dá conta da perfeição de seus membros. A mão serve para acenar, pegar, bater, alisar; para o trabalho, o afago, para tantas coisas.128 Novamente, o artigo definido apresenta o substantivo como representante de toda uma categoria. Assim, o poeta se deterá em tudo, desde o mais simples e desprezado até o mais suntuoso e respeitado. A enumeração de itens semanticamente tão díspares enfatiza que nada lhe passará despercebido. Com esse penúltimo verso, a missão do poeta torna-se um pouco mais clara. É sua tarefa converter tudo em poesia. Seu alimento se explicita: cada detalhe, cada paisagem, cada gesto, tudo servirá de alimento para criar sua poesia. No entanto, a conversão não se dá automaticamente. O poeta deverá sofrer. Sua poesia nasce de sua dor, seu sentimento. Deverá entregar-se completamente a cada poema: “tudo te ferirá de morte” — o poeta não tem a opção de sentir pela metade, deve sentir até chegar ao limite entre a vida e a morte. E não pode descansar. Sua fome é uma fome de vida. E o mesmo que fere lhe serve de alimento. Alimentar-se e sofrer, para o poeta, são equivalentes. O poeta alimenta-se do lixo, da catedral, da forma das mãos e transforma tudo isso em poemas, por meio de sua boca enorme. A idéia de dor vincula-se à necessidade constante de converter tudo em poesia e à incapacidade de expressar tudo em palavra. O anjo, metonimicamente, apresenta-lhe toda a existência, toda a vida como alimento e fonte de dor para o poeta. Embora dotado de uma boca enorme, ou seja, de uma habilidade maior para manipular a linguagem, o poeta sofre com a impossibilidade de traduzir tudo em palavra. E há a angústia de não poder descansar como um homem comum, pois a necessidade de perceber e fazer poesia é incessante.

128

que bem soube descrever Alfredo Bosi em O ser e o tempo da poesia, pp. 53-57.


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Como mencionado no início desta análise, o poeta pode consistir na fome de alguém, ou seja, no sinal de alerta para se sustentar. O poeta se sacrifica para levar o outro a se alimentar. Seu papel é importantíssimo, pois serve de sinal para o outro se preencher de vida, uma vez que abre seus olhos para tudo o que está a sua volta: desde o lixo à catedral, do que há de mais vil ao mais sagrado. O poeta tem o papel de tirar as travas dos olhos do outro, apresentando a poesia presente nas coisas. Obviamente, essa constitui uma visão idealizada da poesia como redentora dos homens e das coisas.129 Assim como Maria, o poeta é um mediador entre Deus e os homens. Ao pôr o homem em contato com a poesia, ele está colocando o homem em contato com o sagrado. Para tanto, deve sacrificar-se, deve sofrer. Por fim, “Ave, cheio de dor”. O último verso do poema pode equivaler à última palavra do anjo, que abandona o poeta. E também atua como uma deixa para que o poeta se manifeste. De todo modo, o poema termina e o que permanece é o silêncio e a sensação de dor; dor esta sugerida a cada verso, por meio do valor semântico de alguns termos e expressões, e que se confirma definitivamente com o vocábulo que conclui o poema. A expressão contrasta, mais uma vez, com “Ave, cheia de graça”, ressaltando o tom sarcástico do texto. É importante observar o jogo entre locutores e interlocutores que se estabelece na construção do poema. Com o uso da primeira pessoa (concedo concorda com um eu elíptico) e a intertextualidade, o leitor tem acesso a um discurso direto, às palavras de um mensageiro do Altíssimo (um anjo130). Desse modo, o poema tem um caráter narrativo, já que o leitor é posicionado frente a uma cena. Com o verbo no presente, tem-se a impressão de que essa cena se desenrola no momento em que o leitor corre os olhos pelos versos. E, com o verbo no indicativo (concedo), tem-se a impressão de que o que se assiste é real131. O uso do pronome de segunda pessoa (te) indica o interlocutor do anjo. O leitor reconhece ser ele o poeta pelo título do texto. Assim, o leitor se coloca no discurso como expectador de uma cena. Sendo um poema, o texto é escrito por um

Essa visão é recorrente na obra de Adélia Prado. Em um outro poema da autora, temos: “(...) Frigoríficos são horríveis mas devo poetizá-los para que nada escape à redenção (...)”. In “Duas horas da tarde no Brasil”. In Poesia reunida, p. 326. 130 Anjo equivale a mensageiro de Deus. Cf. Cunha, A. G. Op. cit., p. 50. 131 “Indicativo é o modo que normalmente aparece nas orações independentes, e nas dependentes que encerram um fato real ou tido como tal.” In Bechara, E. Op. cit., p. 273. 129


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poeta — daí seu caráter metalingüístico. O fato de o poeta não se pronunciar, nem como eu-lírico, nem como personagem, confere um ar de objetividade ao texto. O poeta é caracterizado por meio das palavras do anjo, dos vocativos e do conteúdo da anunciação. Assim, mais do que narrar uma cena, o texto descreve o poeta. O último vocativo usado para se referir a ele é “cheio de dor”. As palavras do anjo são, na verdade, as palavras do poeta, pois o que se tem, ao longo de todo o poema, é a expressão de seu estado de espírito. O fato de não se manifestar diretamente é fundamental para entender a figura do poeta. O poema é impregnado da sua dor. O sentimento ultrapassa a figura daquele que sente. O sentimento é tão forte que assume vida própria. Ao terminar de ler o poema, o leitor conhece o poeta, mas, acima de tudo, conhece sua dor. O poeta mostra estar cumprindo sua sina, aceita seu papel, mostrando-se submisso perante as duras palavras do mensageiro. Mais do que assistir, o leitor experimenta, compartilha da dor do eu-poético, cuja voz subjaz à do anjo e que é, de fato, “cheio de dor”. “Anunciação ao poeta” não constitui apenas a apresentação de uma cena, mas a confirmação de que essa cena é verdadeira, pelo menos como alegoria não só do estado de espírito do poeta, mas do que o eu-lírico pensa acerca da poesia e de si mesmo. Para finalizar esta leitura do poema, é interessante observar a intertextualidade que se estabelece entre “Anunciação ao poeta” e “O ajudante de Deus”, poema posterior, publicado em Oráculos de maio132. Invoquei o Santo Espírito, Ele me disse: sofre, come na paciência esta amargura, porque tens boca e eu não. Toma o pequeno cálice, massa de cinza e fel não transmutados. É pão de mirra, come.

132

p. 15.


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O título do poema não se dá por acaso. Na poesia de Adélia Prado, e como acabamos de observar, o poeta é tido como um ajudante de Deus. A intertextualidade não ocorre apenas pela temática de ambos os textos, mas pelo emprego dos termos come e boca. O segundo poema esclarece o anterior. A comida oferecida pelo anjo torna-se mais clara por meio do diálogo entre os dois textos. Ao menos, o segundo confirma a interpretação do primeiro. O que o anjo oferece ao poeta como alimento pode ser compreendido, pois, como o sofrimento que, no poema mais recente, é dado pelo Espírito Santo (uma das pessoas da Santíssima Trindade) e referido como amargura. Como já mencionado, o protagonista de “Anunciação ao poeta”, que permanece anônimo e em silêncio exatamente por ser apenas um servo do Altíssimo, tem uma boca enorme, pois recebe uma missão a cumprir. Deus lhe atribui essa característica para que fale em seu lugar. Trata-se de uma responsabilidade imensa, que reforça a ambigüidade da figura do poeta: que é criatura e, portanto, inferior a Deus, mas, ao mesmo tempo, detentor de um poder que o próprio criador não tem, o poder de falar através da poesia.

2.3.2 O poeta e o sagrado

Em “A formalística”, temos que a palavra não deve estar desvinculada da realidade, das coisas. E a realidade das coisas leva, fatalmente, a Deus. O poeta tem, assim, uma missão divina, tal como se observou no poema analisado anteriormente. Sua palavra é mais que palavra, pois não nasce em um gabinete fechado, artificialmente, mas brota do contato com o mundo, sacralizado, como se o recriasse.

A formalística 1.

O poeta cerebral tomou café sem açúcar

2.

e foi pro gabinete concentrar-se.

3.

Seu lápis é um bisturi

4.

que ele afia na pedra,


118

5.

na pedra calcinada das palavras,

6.

imagem que elegeu porque ama a dificuldade,

7.

o efeito respeitoso que produz

8.

seu trato com o dicionário.

9.

Faz três horas já que estuma as musas.

10.

O dia arde. Seu prepúcio coça.

11.

Daqui a pouco começam a fosforescer coisas no mato.

12.

A serva de Deus sai de sua cela à noite

13. 14.

e caminha na estrada, passeia porque Deus quis passear

15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22.

e ela caminha. O jovem poeta, fedendo a suicídio e glória, rouba de todos nós e nem assina: ‘Deus é impecável’. As rãs pulam sobressaltadas e o pelejador não entende, quer escrever as coisas com as palavras.

Neste poema, o eu não se apresenta por meio de indicadores de primeira pessoa, ele se forma, principalmente, através da caracterização dos sujeitos sintáticos do texto. Seu tom é bastante irônico e vai se mostrando aos poucos. O poema é narrativo. E o eu descreve as cenas sem se manifestar, como se apagasse do leitor a imagem de um observador que filtra as imagens. O leitor tem a impressão de estar presenciando os acontecimentos desenrolarem-se ao longo do texto. Contudo, sua interpretação é direcionada pelo eu que, ao caracterizar os sujeitos, com adjetivos ou ações, vai inculcando no leitor o seu próprio ponto de vista. A narração é encaminhada assim até que, no verso 18, o eu se exalta e exterioriza claramente todo o seu sentimento, e o seu juízo, sobre o que é narrado; sentimento até então expresso simplesmente por meio de ironia. O primeiro sujeito sintático do texto é apresentado logo no primeiro verso. É a partir de sua descrição que notamos a crítica irônica do eu. “O poeta cerebral tomou café sem açúcar/ e foi pro gabinete concentrar-se.” O adjetivo cerebral


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determinando poeta causa uma certa estranheza, uma vez que a imagem do poeta é comumente associada a alguém sensível, emotivo, que usa a inspiração. Esse poeta também é caracterizado por suas ações. Ele toma café sem açúcar, uma bebida que contém propriedades estimulantes, responsáveis por deixar as pessoas mais alertas, atentas. Toma um café amargo, como se não o fizesse por prazer, mas apenas para ficar acordado. Depois vai para o gabinete concentrar-se. A narração recria a manhã de alguém que acorda, toma um café rapidamente e se dirige para o seu local de trabalho: o gabinete — onde logo inicia sua atividade cerebral, em que usa apenas a razão. O termo gabinete é determinado pelo artigo definido. Com isso, a ação é tida como habitual, que se repete dia após dia. O artigo também confere naturalidade à cena, como se já fosse de se esperar que o local de trabalho de um poeta cerebral seja o gabinete. Os sons fechados predominam neste segundo verso, criando uma atmosfera pesada, fechada e sombria. O gabinete não é apenas um local de trabalho, mas um lugar de isolamento133. O poeta — caracterizado de um modo nada agradável — por vir acompanhado do artigo definido, representa um grupo de pessoas que são e agem do mesmo modo. Assim, por meio dele, o eu critica todos os que têm o mesmo comportamento diante da poesia. Seu lápis é um bisturi que ele afia na pedra, na pedra calcinada das palavras, imagem que elegeu porque ama a dificuldade, o efeito respeitoso que produz seu trato com o dicionário. O eu usa uma metáfora que amplia a imagem do poeta como um trabalhador. “Seu lápis é um bisturi”. A escrita do poeta equivale a uma operação realizada por um cirurgião. Desse modo, seu ato de “criação” é ironicamente apresentado como um ato que fere, corta, um organismo vivo: a língua, e sua poesia. Mas o poeta não percebe que machuca esse organismo. Para ele, a palavra é como pedra. Não se trata de uma pedra qualquer, mas uma pedra calcinada, ou seja, reduzida a pó, muito seca134. A No dicionário, encontramos, entre outras, esta definição para o vocábulo: “aposento ou compartimento mais ou menos isolado do uso geral do resto da edificação”. In Aurélio eletrônico. 134 Id. ibid. 133


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pedra da palavra se desfaz, vai, aos poucos, deixando de ser pedra, desgastada pelo trabalho do poeta, que vai se mostrando mais e mais absurdo, sem sentido, árido, tendo nada de poesia. É um trabalho que destrói seu objeto. A recorrência do sintagma na pedra, no final do quarto e início do quinto verso, chama a atenção para o sentido de pedra, que evoca a idéia de frieza, dificuldade e ausência de vida, já que a pedra é geralmente tida como inanimada. Na segunda vez, o vocábulo vem modificado, e a metáfora se explicita: trata-se da pedra calcinada das palavras. A imagem da pedra calcinada destoa, devido ao termo pouco comum, do resto do discurso. Essa não é a voz do eu, mas sim do próprio poeta cerebral, que enxerga a palavra como um material sem vida, que apenas serve para afiar seu bisturi. O poema todo apresenta vocábulos mais comuns na comunicação oral. A linguagem do poema apresenta, de fato, um tom coloquial — no segundo verso, observa-se o emprego de uma contração própria da língua falada (pro). O ritmo lembra a prosa. A linguagem é fluida, não se prende a uma fôrma. A disposição gráfica dos versos confere movimento ao texto. Os versos parecem “dançar” pela página. Já o poeta cerebral gosta do formalismo exagerado, busca as palavras artificialmente, no dicionário, onde elas são apenas componentes de uma lista sem vida. O uso do verbo eleger, no sexto verso, indica a arbitrariedade com que esse poeta cria as imagens. As palavras não nascem de uma idéia ou um sentimento a serem expressos, mas de uma busca mecânica no dicionário. Mas o poeta não parece preocupado com expressar algo, e sim produzir um efeito respeitoso. A aparência lhe importa mais do que a essência das palavras. “Seus lápis é um bisturi”. O termo lápis indica a insistência do poeta em procurar os termos mais difíceis. Ele trabalha, trabalha, até encontrar a palavra que procura. Escolhe uma palavra, pensa, escreve, repensa, apaga, reescreve — essa idéia não seria tão forte se o termo empregado fosse caneta, por exemplo. O vocábulo bisturi está ligado à idéia de corte, ferimento, ao trabalho preciso do médico que deve se concentrar, agir exclusivamente com a razão para levar sua cirurgia ao cabo com sucesso. O poeta é descrito, assim, desprovido de qualquer emoção. Além disso, a intervenção cirúrgica é sempre um processo agressivo e artificial, o que reforça o caráter negativo da atividade do poeta cerebral.


121

Neste momento, cabe voltar a atenção para o título, que serve como um rótulo para a cena descrita. Um rótulo que expressa o ponto de vista do eu com relação a esse comportamento do poeta. A formalística refere-se à preocupação com a forma, separada de seu conteúdo. Também remete ao sentido de “formal”: “aquilo que não é espontâneo, que se atém a fórmulas estabelecidas”135. Formalística soa, ainda, como um termo ligado a ciência136, relativo ao estudo da forma, o que associa o poeta a um pesquisador, que atua guiado pelo raciocínio lógico. Desde o título, passando pela descrição do poeta cerebral, até a própria forma do poema, com versos livres e brancos, o eu-lírico expressa sua crítica à poesia formatada, racional, desvinculada de sentimento. O tom narrativo, suspenso nos versos de 3 a 7 — em que o eu faz uma pequena digressão para precisar o perfil do poeta, mostrando seu modo de “trabalhar” — retorna no nono verso. A passagem do tempo é bem marcada e os verbos no presente aproximam o leitor da ação. Faz três horas já que estuma as musas. O dia arde. Seu prepúcio coça. Já passaram três horas desde que o poeta tomou o café e foi para o gabinete. Se o lugar de onde fala o eu-lírico não é explicitado, seu discurso é marcado no tempo. Tem-se a impressão de que o poema é escrito, e lido, exatamente três horas após o início do “trabalho” do poeta cerebral. O contraste entre os verbos tomou e foi (versos 1 e 2), no pretérito, e estuma e coça (versos 9 e 10), no presente, enfatiza a passagem do tempo, reforçando a idéia do trabalho duro e inútil do poeta. Passam-se três horas e o poeta ainda “peleja” com as palavras, sem chegar a lugar algum. O advérbio já revela a impaciência do eu, seu enfado diante do que vê e mostra para o leitor. O verbo estumar, de maneira irônica, destoa do léxico utilizado no texto, como se o eu empregasse uma palavra que seria “eleita” pelo poeta do gabinete para conferir ao poema um ar pomposo, quebrando a coesão entre os vocábulos do texto. Mas estumar assume uma maior importância na construção de sentido do poema, na medida em que, combinado com o termo musa, reproduz a idéia de abafamento, de escuridão, sugerida pela assonância do som fechado [u], recriando a atmosfera “anti135 136

Id ibid. assim como lingüística, balística, estatística, entre outras.


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lírica”, por assim dizer, do gabinete em que o poeta se encontra, o que torna seu esforço mais absurdo. O poeta estuma as musas. Mais uma vez, a ironia do eu-lírico, que se remete à figura mitológica das musas para caracterizar o comportamento do poeta que, contraditoriamente, “se esforça” para ter inspiração. A imagem chega a ser cômica. Imagina-se um chato perturbando as musas, tentando roubar-lhes um pouco de inspiração. Enquanto o poeta está enclausurado em seu gabinete, “o dia arde”. Além de frisar a passagem do tempo — imagina-se um sol forte, próximo do meio-dia —, essa sentença ressalta a insanidade do poeta. A beleza do dia se mostra como um convite à poesia e ele nem se dá conta. “Seu prepúcio coça”. E isto se configura como um outro convite ao poeta. Seu corpo, o que é instintivo, dá sinal de vida, chamandoo a perceber-se como ser humano, vivo. Contudo, concentrado em seu “bisturi”, ele não nota. Sabemos do impulso involuntário do prepúcio que coça. O verbo é intransitivo, ressaltando a autonomia do corpo. Não sabemos ao certo a reação do poeta, mas podemos visualizar um ato mecânico em resposta ao estímulo da coceira, tamanha é sua concentração frente à busca pela palavra “certa”. Não se trata de um órgão qualquer que coça, é seu prepúcio, órgão relacionado ao prazer sexual e à perpetuação da vida, o que enfatiza a total negação do prazer e frieza do poeta, como se não fosse mais homem e sim uma máquina que trabalha inutilmente. O verso 11 marca mais uma passagem do tempo. E agora o olhar do leitor é guiado para o que ainda vai acontecer. Novamente, uma imagem com elementos da natureza e luz se opõe ao escuro do gabinete. “Daqui a pouco começam a fosforescer coisas no mato”. O vocábulo coisas não é apenas um marcador de indeterminação, muito usado na linguagem oral, mas significa tudo “aquilo que existe ou pode existir, realidade, fato, mistério, enigma”137. O fosforescer de bichinhos no mato forma uma imagem singela e bonita do anoitecer. Imaginam-se vaga-lumes piscando no início da noite. Mas a indeterminação da frase — não se sabe exatamente o que vai fosforescer — sugere algo além, uma imagem sobrenatural, o próprio sagrado se manifestando através da natureza. Assim, a vida, com seu valor divino, vai acontecendo, enquanto o poeta convive com as palavras soltas do dicionário. O leitor, de certo modo, indigna-se com essa atitude. O eu consegue causar esse sentimento no leitor apenas colocando, lado a lado, fatos diferentes, sem revelar 137

In Aurélio eletrônico.


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a sua voz, conservando o uso da terceira pessoa. As frases são curtas, o ritmo é mais acelerado nesses versos (9-11). Flashes de imagens vão se sucedendo. Isso faz com que a indignação do leitor seja mais intensa, pois nasce da visualização dos fatos — é como se ele presenciasse tudo, sem perceber que é influenciado. Os versos de 12 a 15 já comportam um outro tom. O ritmo torna-se mais fluido. As coordenações com a aditiva e, além das repetições alternadas dos verbos, contribuem para a fluidez, revelando um maior envolvimento afetivo do eu. Aqui o sujeito sintático é outro e a diferença no seu tratamento é evidente. Dessa vez, o eu se reconhece no sujeito. O leitor fica sem saber ao certo de quem se fala. A serva de Deus sai de sua cela à noite e caminha na estrada, passeia porque Deus quis passear e ela caminha. A serva de Deus é um modo de se referir a freira. Cela é o nome que se dá a seu aposento. Este sujeito surge como oposto ao anterior, ao poeta cerebral, pois representa aquele que dedica a vida ao espiritual. A oposição também se dá no plano sintático, com o paralelismo entre os versos 1-2 e 12-13, através da coordenação de orações: o poeta toma café e vai para seu gabinete, a serva de Deus sai de sua cela e caminha na estrada. A ordem das ações explicita o contraste entre os dois personagens: as ações do poeta levam-no à clausura, enquanto as da serva guiam-na do claustro à liberdade. Nos versos 12, 13 e 14, os verbos denotam maior movimento — sair, caminhar e passear; também o verbo querer expressa um movimento do emocional, da vontade, opondo-se ao rígido controle da mente. As ações são, assim, mais espontâneas, não se pautam pela razão, e sim pela vontade. Embora seja uma serva, suas ações refletem liberdade, como se o fato de atender ao espírito a tornasse mais livre, o que contrasta com a atitude do poeta. Essa serva de Deus pode também se referir ao próprio eu-lírico. Por um instante, ele nos revela seu espírito, pois não mais descreve uma ação apenas, ele parece experimentá-la, desejá-la, tamanho é o envolvimento que demonstra ter com a ação. Além disso, depois de repreender, ainda que indiretamente, a atitude do poeta, o eu-lírico é facilmente identificado com aquela que se deixa mover pela vontade, pelo


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divino, e vai ao encontro do misterioso, que se expressa na palavra noite. O sentimento de liberdade intensifica-se com este termo: geralmente, por razões reais ou imaginárias, teme-se sair sozinho à noite (especialmente em uma estrada escura, como se imagina que seja a do poema, já que o ambiente descrito parece completamente afastado da civilização urbana e sua, conseqüente, iluminação elétrica); nesse caso, porém, uma mulher, a serva de Deus, passeia na estrada, provavelmente só, sem nenhum receio, o que indica a total entrega ao chamado divino. É válido perceber que, com o uso da expressão serva de Deus, o eu-lírico apresenta o poeta — não o cerebral — subordinado à divindade. A serva obedece a seu senhor; e este a guia. Assim, a serva de Deus equivale ao poeta que responde a um chamado divino. Sua poesia é fruto da sensação da vida pulsando, que é a própria manifestação do sagrado. A poesia, para esse poeta, enraíza-se no sagrado, sendo ela própria sagrada. Não se trata de um trabalho, mas de um passeio, ou seja, liga-se à emoção e ao prazer. O poeta cerebral atua alheio a tudo isso. Ele está mais preocupado com sua própria aparência, dedicando-se a produzir um efeito respeitoso com a escolha de imagens raras e rebuscadas. Ele próprio quer ser respeitado, busca a “glória”. Já o poeta servo de Deus coloca a poesia em primeiro lugar, sua pessoa não importa, pois o objetivo do servo é agradar a seu senhor, embora sinta prazer nisso. No décimo sexto verso, o poeta cerebral retorna como sujeito, dessa vez determinado pelo adjetivo jovem, no sentido de inexperiente, que pouco conhece da vida. Nesse caso, o adjunto não se refere à idade do poeta, mas expressa uma crítica ao seu comportamento, que o impede de viver, no seu sentido mais amplo. Assim, o poeta fede a suicídio e glória — mata seus sentidos, seu espírito, e nem sabe que o faz, preocupado com o “efeito respeitoso” das palavras do dicionário. O uso do verbo feder exprime o asco sentido pelo eu em relação ao jovem poeta; sentimento este que também atinge o leitor. A glória do poeta cerebral é uma glória que fede, pois se apóia na destruição da poesia — cheira à decomposição da palavra morta e à sua própria decomposição. Ele volta contra si mesmo seu bisturi, pois, ao matar a poesia, suicida-se, uma vez que só em função dela é que o poeta (como o próprio termo diz) deve existir. O sentimento de repulsa é tão forte que não caberia em uma palavra mais eufemística. Embora utilizado com sentido metafórico, o vocábulo feder atribui uma característica concreta ao sujeito e seu aposento. É possível, assim, visualizar um


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gabinete fechado e fétido, onde trabalha insanamente o poeta cerebral. Sua degradação vai se revelando e intensificando aos poucos e pode ser percebida tanto pela visão quanto pelo olfato. No início do poema, imagina-se um homem que, como qualquer outro, vai para o trabalho. Paulatinamente, esse homem vai se transformando em um ser doente e repulsivo. O jovem poeta, fedendo a suicídio e glória, rouba de todos nós e nem assina: ‘Deus é impecável’. As rãs pulam sobressaltadas e o pelejador não entende, quer escrever as coisas com as palavras. No verso 18, pela primeira e única vez, o eu se mostra por meio de um pronome em primeira pessoa. Isso acontece como se fosse um desabafo, a expressão de um sentimento o tempo todo manifesto de maneira velada, por meio de ironia. E o eu não se coloca sozinho, ao fazê-lo, também insere, lingüisticamente, o leitor no discurso, falando diretamente a ele, assumindo que compartilham do mesmo posicionamento. E não inclui apenas o leitor, pois, ao dizer todos nós, se refere a todos os que não são como o poeta orgulhoso, que pensa controlar tudo racionalmente, matando sua sensibilidade. E se refere, também, a Deus, tido como criador de toda a existência. O eu afirma que o poeta “rouba de todos nós”. Por não apresentar um complemento, o leitor pode fazer mais de uma leitura a respeito do que é roubado. Uma das acepções de roubar é: “apresentar indevidamente trabalho artístico ou científico como de sua autoria”138. O eu acredita no Deus autor de todas as coisas, de tudo que vive, de toda beleza. Ao desejar tomar essa autoria para si — acreditando ser capaz de criar o belo com o esforço do raciocínio — o poeta cerebral age de maneira arrogante, ignorando sua condição de mera criatura; e se comporta como um ladrão, sem, ao menos, reconhecer a autoria de Deus, apreciando sua criação. Esse Deus é impecável, ou seja, perfeito em si mesmo (não peca, não erra). O predicativo ressalta o despropósito do poeta, que busca criar a perfeição com as 138

Id. ibid.


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palavras, sendo que esta perfeição está em Deus e em sua criação. E nem assina:/ ‘Deus é impecável’. No décimo nono verso, indignado com o poeta, o eu revela o seu próprio modo de se relacionar com a vida, a criação divina. Ele, sim, assina essas palavras. Vê as rãs que pulam sobressaltadas e enxerga nelas a criação viva, divina, a própria poesia, que o poeta cerebral não vê. E por isso este já não é mais chamado poeta, mas pelejador. “Pelejador”, não “trabalhador”, pois trabalhar implica construir algo, enquanto pelejar se refere apenas à tentativa de fazer algo, não a sua construção. A atividade do poeta é infrutífera. O eu-lírico, por sua vez, se revela para o leitor como um poeta que vive e sente a poesia no seu fluxo de vida, e que se revolta frente àqueles que, ao se dizerem poetas, fazem apenas fechar os olhos para a poesia, que é anterior a toda palavra, buscando construí-la, artificialmente, através do arranjo vazio de vocábulos que recolhem de dicionários. O eu-poético não se revela diretamente ao leitor, não fala de um comportamento seu, mas de um outro. E é na desaprovação desse comportamento que ele vai se mostrando. Ele surge, primeiramente, como um narrador. Descreve uma série de cenas ao longo de um dia. E descreve as ações de um poeta preocupado em usar palavras difíceis, impressionar com o seu vocabulário, alheio a tudo que se relaciona ao emocional, ao humano e à vida. Com a descrição irônica desse personagem, o eu expressa seu ponto de vista acerca de poesia. Ele acredita na poesia que surge como inspiração divina. No único momento em que aparece um pronome em primeira pessoa no poema, esse pronome está no plural. Ele surge numa extrapolação dos sentimentos do eu que não se conforma com a atitude do poeta alheio à poesia. Verifica-se uma preocupação em inserir o leitor no discurso, como alguém que compartilha de suas visões. O uso de uma linguagem próxima da fala não apenas revela a noção de poesia do eu, criando um efeito de espontaneidade, mas o aproxima de seu leitor. O eu apresenta uma preocupação maior com o que é invisível, acreditando na forma apenas quando ela se preenche do espírito. E ele se refere a Deus como o espírito que dá vida a todas as coisas. Ao mencionar o dia ardendo, as coisas que em breve fosforescerão no mato, as rãs que pulam sobressaltadas, a serva que passeia à noite (o que alude ao próprio ato de fazer poesia), mostra a vida pulsando em sua plenitude, movida pelo toque divino; e subordina a palavra a essas coisas, assumindo


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que o poema precisa dessa realidade para fazer sentido, não deve, pois, ser um construto de palavras vazias e respeitosas. Desse modo, todo o poema se constrói de maneira a negar a validade da atitude do poeta cerebral: a disposição livre dos versos na página, com o deslocamento dos versos e o contraste entre versos longos e curtos, a ausência de rimas, a espontaneidade da linguagem, com o uso de um léxico, no geral, simples, acessível e com a predominância da ordem direta. Para o eu-lírico, a poesia seria uma expressão do encontro do espírito do homem com o espírito das coisas, que é o próprio Deus. A poesia viria como um flash de luz sobre o Universo que nos cerca, desvelando o seu valor divino. Por isso ela não pode constituir um mero rebusque de palavras, já que tem o papel de recriar o sagrado, devendo ela própria ser sagrada.

2.3.3 A poesia e o mito

Em “Genesíaco”, a concepção de poesia se manifesta de maneira mais explícita. O poema inicia-se com a narração de uma cena. Em seguida, como uma interpretação dessa cena, o eu-lírico faz uma declaração acerca da poesia. Assim, a narrativa serve para ilustrar a afirmação do eu-lírico.

Genesíaco 1.

Um homem na campina olhava o céu. As estrelas

2.

pareciam aumentadas, de tamanho brilho.

3.

Estrela, ó estrela, estrelas

4.

ele suplicou como se injuriasse.

5.

Os que alimentavam o fogo

6.

aproximaram-se admirados:

7.

nós também queremos, repeti para nós.

8.

Ó noite de mil olhos, reluzente.

9.

Os vocativos


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10.

são o princípio de toda poesia.

11.

Ó homem, ó filho meu,

12.

convoca-me a voz do amor,

13.

até que eu responda

14.

ó Deus, ó Pai.

O poema pode ser dividido em dois momentos distintos. O primeiro compreende desde o primeiro verso até o oitavo e apresenta caráter narrativo; o segundo constitui uma reflexão que se constrói a partir da primeira parte e se estende do nono verso até o fim do texto, embora não deixe, de todo, de apresentar marcas de narração. Na primeira parte, o discurso se faz com a descrição de uma paisagem e o uso do discurso direto. No primeiro verso, o cenário se cria: uma imagem bucólica. “Um homem na campina olhava o céu”. O primeiro personagem é apresentado apenas como “um homem”. Não sabemos quem é, somente que está em uma campina olhando o céu. O personagem se mostra, assim, por meio de sua ação. Temos um sujeito que olha. A posição do adjunto na campina entre um homem e olhava atribui-lhe caráter ambíguo. Pode ser entendido como um adjunto adverbial que antecede o verbo, localizando a ação de olhar. Com essa leitura, a grandeza do céu é ressaltada. Em uma campina, o céu parece aumentado, pois não há nada que sirva de obstáculo à visão. Posicionado logo após o sujeito, o sintagma também pode funcionar como adjunto adnominal de um homem. Embora este apareça como um homem indeterminado, define-se pelo lugar onde se encontra. Assim, o sujeito de olhar não é apenas um homem, mas “um homem na campina”. Com isso, mostra-se integrado em um espaço natural. Não há nenhuma marca que o insira em uma ou outra cultura. Ele pode ser qualquer homem. Sabemos, no entanto, que a ação narrada se dá em um tempo remoto, pois o verbo está no pretérito imperfeito do indicativo. Esse tempo pode equivaler a um passado distante ou próximo. Também não é possível precisar a duração da ação, sabe-se apenas que ela se prolonga por algum período indeterminado. Com tamanha indeterminação, o ato de olhar ganha importância. O olhar é das ações mais primitivas do homem. Antes de pronunciar qualquer palavra, o homem olha o mundo ao seu


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redor. O título, “Genesíaco”, evoca a idéia de origem, princípio. Desse modo, é possível localizar esse homem no passado mais remoto da humanidade. “As estrelas” iniciam o período seguinte, que descreve o céu observado. Aparecem já no primeiro verso, ganhando ênfase. É nas estrelas que o olhar do homem se concentra. O céu observado é um céu noturno. O verbo pareciam indica tanto a subjetividade do eu-narrador, que se mantém distanciado em terceira pessoa, como o próprio olhar do sujeito da ação. As estrelas pareciam aumentadas, isto é, alguém as percebe como aumentadas. Tem-se, portanto, que o olhar cria o seu objeto. O olhar se projeta sobre o espaço e o recria. A subjetividade se faz presente e é através dela que o leitor tem acesso à cena descrita. Essa não é uma noite qualquer, mas uma noite especial, em que o brilho das estrelas é mais intenso. Sabe-se, ainda, que algo diferente acontece no interior do sujeito observador, permitindo que este enxergue o brilho das estrelas com maior intensidade. A subjetividade do homem se manifesta marcadamente nos versos 3 e 4. Estrela, ó estrela, estrelas ele suplicou como se injuriasse. No terceiro verso, o homem se dirige às estrelas por meio dos vocativos. A interjeição enfatiza a emotividade do sujeito. O uso do singular e, em seguida, do plural causa a impressão de que as estrelas vão se multiplicando com a fala do homem. O som se projeta na noite escura e se propaga como se deixasse um lastro de luz impresso no espaço. Os verbos no verso seguinte descrevem o grito do sujeito e revelam sua intensidade. O homem “suplicou como se injuriasse”. O chamado pelas estrelas revela o estado de espírito do homem. Seu grito é de lamento, de dor, de... Não é possível conhecer ao certo o que se passa com ele. Não se sabe por que suplica, nem a causa de sua cólera. Nem é possível afirmar com certeza se está injuriado, com raiva, pois temos: “como se injuriasse”. O próprio narrador mostra-se como mero observador que não tem acesso ao interior do personagem. De todo modo, o que fica para o leitor é a imagem de um homem que se manifesta emotivamente, que grita para as estrelas, como se clamasse por uma resposta, por uma “luz”. A não descrição do exato sentimento do sujeito torna seu lamento universal. O leitor compartilha de sua emoção, pois também é humano e, provavelmente, já


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gritou ou sentiu vontade de gritar diante de um céu estrelado. Afinal, o céu à noite (com exceção dos lugares extremamente poluídos, onde não é possível enxergar o céu, como a cidade de São Paulo, por exemplo) suscita uma série de indagações sobre a existência do homem, do Universo. Sentimo-nos tão pequenos diante da grandeza do céu, de seus mistérios. Sentimo-nos extasiados por sua beleza, por sua imensidão. O céu parece nos lembrar de uma certa sede de infinito e, ao mesmo tempo, de uma fragilidade própria do homem. O céu lembra-nos de quem somos e que sabemos tão pouco sobre nós e sobre o mundo em que vivemos. O céu encanta e apavora. O céu é uma espécie de abismo ao contrário139. Nos versos seguintes, vemos que esse homem não se encontra sozinho. Há outros ao seu redor que se sentem atraídos pelo seu grito e se aproximam. Os que alimentavam o fogo aproximaram-se admirados: nós também queremos, repeti para nós. Esses homens definem-se por serem “os que alimentavam o fogo”. O cenário se completa e tem agora, como centro, o fogo. A imagem dos homens em torno da fogueira reforça a idéia transmitida pelo título, pois evoca o mais primitivo. O fogo é tido como a primeira grande descoberta da humanidade e remete à Era Paleolítica. Ao mesmo tempo em que o poema cria uma imagem corriqueira, de homens em volta do fogo à noite, a cena descrita é representativa do princípio das civilizações. O fogo serve para aquecer, iluminar, afugentar animais perigosos e para a preparação de alimento, o que é essencial à vida, e natural entre homens em uma campina. Vincula-se, ainda, a ritos sagrados. Nas mais diversas culturas, é associado a divindades e em torno dele se organizam os mais variados rituais. Desse modo, no fogo, fundem-se o profano e o sagrado. Essa fusão se confirmará mais adiante. Esses homens “aproximaram-se admirados”. As palavras do homem atraem os outros, que se admiram, ou seja, que se encantam com sua força e beleza. São eles seduzidos pela palavra e pedem que a repita. A partir de então, reunem-se em torno da palavra, como se esta tomasse o lugar do fogo, que

Lembrando as palavras de Zaratustra, no belo romance de Nietzsche: “O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem — uma corda sobre um abismo”. In Assim falou Zaratustra, p. 38. 139


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permanece esquecido. Desse modo, a palavra surge como integradora dos homens, constituindo fator decisivo para sua evolução. O homem passa de ser instintivo, que busca apenas se proteger do frio, se alimentar, a um ser mais complexo, que sente e procura o sentido das coisas por meio da linguagem. O fato de não contar com um complemento explícito faz com que o verbo querer tenha seu significado reforçado. Os homens querem que o outro repita suas palavras. É possível saber isso porque eles pedem claramente que repita, com o uso do imperativo: “repeti para nós”. Mas não dizem: “queremos que repita”. O objeto de querer se mantém elíptico, como se o complemento do verbo fosse tão óbvio que não precisasse ser explicitado e, ao mesmo tempo, como se os homens não fossem capazes de descrever o que queriam. O leitor deduz que os homens desejam compartilhar da mesma sensação daquele que grita às estrelas, experimentando a força expressiva das palavras, que os tocam de uma maneira inusitada, de difícil descrição. Ó noite de mil olhos, reluzente. Embora não haja nenhuma referência a seu locutor, o novo vocativo parece ser proferido pelo mesmo homem que gritara anteriormente, atendendo, agora, ao pedido dos outros. O vocativo vem isolado, o que intensifica seu valor. A palavra, em si, assume vida própria. Esse não é um simples vocativo, mas uma metáfora que se refere à noite como um ser de mil olhos. A noite ganha vida por meio das palavras proferidas pelo homem, em uma imagem que ressalta seu caráter assustador. Simbolicamente, a noite está associada à idéia de mistério. “A noite esconde muitos segredos” — uma frase que se tornou lugar-comum. A noite também se associa ao irracional, à emoção, ou seja, ao desconhecido que habita o próprio ser humano. Assim, o grito do homem pode configurar expressão da sensação de medo diante do desconhecido, assim como do encantamento diante da beleza da noite de céu estrelado. No poema, nada disso é explícito. A cena é descrita com poucos detalhes, o que amplia o caráter sugestivo e simbólico da imagem. A metáfora dos mil olhos retoma estrelas. O vocábulo mil remete à infinidade de estrelas no céu. O termo reluzente, no singular, atribui à noite a


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característica das estrelas. Toda a noite torna-se iluminada. E sua luz é mais forte, já que reluzir significa brilhar com intensidade.140 À medida que a subjetividade se manifesta com mais força, o cenário se torna mais nítido. Novamente, o modo de ver recria seu objeto. O Universo se reconstrói através da palavra. Neste ponto, vale nos remetermos ao texto bíblico, Gênesis, já que o próprio título do poema sugere a intertextualidade: Genesíaco. O texto trata da origem do Universo. O primeiro item da criação é a luz, e esta se faz a partir da palavra de Deus. Deus disse: “Faça-se a luz!” E a luz se fez. Deus viu que a luz era boa. Deus separou a luz das trevas. E à luz Deus chamou “dia”, às trevas chamou “noite”. Fez-se tarde e veio a manhã: o primeiro dia.141 A partir dessa intertextualidade, é possível associar o discurso do homem a um discurso de fundação, como se ele próprio assumisse o papel de criador do Universo. Com isso, o que parecia ser apenas um grito de lamento adquire uma conotação mítica, sagrada. A noite, escura, é reluzente. A luz nasce das trevas. O grito do homem atrai os demais, pois a luz que irradia de suas palavras é mais forte do que o fogo que os atraía, pois essa luz revela a noite para eles, ou melhor, através dela a noite se revela. O homem parece descobrir o Universo por meio da palavra. Ao mesmo tempo em que a idéia de brilho, de claridade, é associada à descrição da noite, revelando uma noite especial, belíssima, ela tem o valor figurativo de entendimento, de clarividência. O homem dialoga com a noite e demonstra entendê-la, embora seu entendimento brote do inconsciente, da emoção, da própria noite do homem. Em seguida, o discurso muda de tom. A narração termina e tem-se a manifestação do eu-lírico em primeira pessoa. Nos versos 9 e 10, uma oração declarativa expressa uma reflexão a partir da cena descrita. Depois, o texto se torna mais emotivo, exprimindo o estado de espírito do eu, embora retome um certo tom narrativo. Os vocativos 140 141

Cf. Aurélio eletrônico. In A Bíblia — Pão Nosso de Cada Dia. Gênesis. Cap I, vers. 3-5, p. 27.


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são o princípio de toda poesia. Os vocativos142 revelam o caráter metalingüístico do poema. O sintagma se refere não apenas à invocação do homem na campina, mas ao próprio poema que se constrói a partir da expressividade dos vocativos. Assim, o eu reflete sobre o próprio fazer poético. Para ele, a origem, a gênese, da poesia se dá a partir do invocar, do chamar pelo nome. Com o vocativo, aquele por quem se chama se presentifica no discurso, como se a palavra mesma o criasse. A poesia liga-se, portanto, à própria origem das coisas. Ainda explorando as relações intertextuais sugeridas pelo título do poema, cabe lembrar que, após criar a Terra, com sua variedade de habitantes, Deus confere ao primeiro homem o poder de nomear: Então o Senhor Deus formou da terra todos os animais selvagens e todas a aves do céu, e os trouxe ao homem para ver como os chamaria; cada ser vivo teria o nome que o homem lhe desse. E o homem deu nome a todos os animais domésticos, às aves do céu e a todos os animais selvagens.143 Nas palavras de Alfredo Bosi, “o poder de nomear significava para os antigos hebreus dar às coisas a sua verdadeira natureza, ou reconhecê-la. Esse poder é o fundamento da linguagem, e, por extensão, o fundamento da poesia. O poeta é o doador de sentido”. 144 Dessa maneira, o grito do homem na campina remete ao próprio mito de criação judaico-cristão e, nesse contexto, a palavra adquire uma força incrível. Do mesmo modo, o homem-poeta assume valor divino, já que recebe de Deus o poder de dar nome a sua criação. A poesia é apresentada como natural ao homem, já que, como mencionado anteriormente, aquele que grita na campina representa o primeiro dos humanos. E a poesia é associada a essa palavra que o atrai ao desvelar o Universo. A poesia está na origem das coisas. Ela é o mais subjetivo que se exprime. É a concretização de uma sensação, um sentimento. Surge do irracional e do mais primitivo no homem. É a “Forma lingüística (usualmente um substantivo) que expressa, no discurso direto, aquele a quem o emissor se dirige.” In Aurélio eletrônico. 143 In A Bíblia — Pão Nosso de Cada Dia. Gênesis. Cap. I, vers. 19-20, p. 30. 144 Op. cit., p. 141. 142


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necessidade de se comunicar com o Universo e entendê-lo. A poesia unifica os homens que se reconhecem e são atraídos pelo belo. A primeira cena mostra o nascimento da poesia, que coincide com o nascimento do Universo e do ser humano, que, assim como tudo a sua volta, é sagrado. A narrativa que se estende do primeiro ao oitavo verso pode ser considerada uma narrativa mítica. De acordo com Mircea Eliade: O mito conta uma história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos “começos”. Noutros termos, o mito conta como, graças aos feitos de Seres Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, quer seja a realidade total, o Cosmos, quer apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narração de uma “criação”: descreve-se como uma coisa foi produzida, como começou a existir.145 E novos vocativos surgem. Os verbos da primeira parte do texto, no pretérito do indicativo (olhava, pareciam, suplicou, aproximaram), cedem lugar ao presente (convoca-me). Embora separadas pela linha do tempo, uma vez que a separação entre passado e presente é marcada pelo uso verbal, as cenas se equivalem, pois em ambas prevalece o uso dos vocativos para manifestar um estado de alma, invocar e criar uma realidade. A poesia transcende a noção de tempo. Ó homem, ó filho meu, convoca-me a voz do amor, até que eu responda ó Deus, ó Pai. O eu é invocado pela voz do amor. A metonímia chama a atenção para a palavra, uma vez que a voz é a sua matéria. É o próprio amor que chama pelo eu. O vocábulo amor remete metaforicamente a um sujeito que só irá se revelar posteriormente. Essa voz o chama de filho, e isto o define. A única informação que se

145

In Aspectos do mito, pp. 12-13.


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tem do eu-lírico é que ele é homem e filho dessa voz do amor. Assim, o próprio eu se mostra através dos vocativos, como se estes o criassem. O termo homem se repete em posição paralela ao primeiro verso. Esse recurso aproxima aquele que suplica às estrelas do eu-lírico. Tem-se a impressão de que este reproduz o ato do primeiro Homem em uma espécie de ritual sagrado. A poesia se perpetua e une os homens de geração a gerações — ela é o fio que os liga a uma raiz comum. Mas ela não nasce dos homens. O homem na campina responde à noite de mil olhos; o eu-lírico responde à voz do amor — no último verso, descobrese quem é essa voz do amor: “Ó Deus, ó Pai”; ambos respondem a um chamado divino. A poesia nasce, antes, do próprio Deus. Por isso é sagrada. A figura de Deus se explicita no último verso por meio do vocativo, ou seja, a imagem de Deus é criada pela palavra do eu-lírico, assim como a palavra do homem na campina havia criado a imagem da noite de mil olhos, assim como o eu-lírico foi apresentado pelas palavras de Deus. O paralelismo sintático entre os versos 11 e 14 (“Ó homem, ó filho meu” e “ó Deus, ó Pai”) ressalta a relação entre as duas figuras que se criam mutuamente por meio da palavra. Pela palavra do Pai, o filho é gerado e, pela palavra do filho, o Pai é gerado. Assim, a gênese da poesia relaciona-se diretamente com a gênese de Deus e do homem. Se os vocativos são o princípio de toda poesia, a poesia está presente no princípio de tudo. E a poesia não consiste apenas na atribuição de sentido às coisas. Enraíza-se nas emoções, nos sentimentos que não se explicam — o uso das interjeições compondo a maioria dos vocativos utilizados enfatiza o valor afetivo da palavra. É importante voltar à primeira parte do poema, a fim de explorar a imagem do olho/olhar. A mesma relação de reciprocidade já tinha se estabelecido na primeira imagem entre os versos 1 e 8. Primeiramente, o homem olha o céu. Depois, o céu, a noite, o observa com seus mil olhos. O olho revela o ser olhado, um serve de espelho para o outro. Não raro, o olho representa o conhecimento, a percepção sobrenatural. Assim, ao apresentar o primeiro homem como alguém que olha, o eu-narrador o apresenta como um ser que pensa e procura entender o mundo e a si mesmo. O mais curioso dessa imagem é que o olho é geralmente associado à verdade, à inteligência suprema, ou melhor, ao próprio Deus146. O homem que olha a noite de mil olhos olha o próprio Deus, que o olha de volta. No olhar de um, o outro se faz. O eu-lírico, filho, se cria através da palavra do Pai e vice-versa. 146

Cf. J. Chevalier e A. Gheerbrant. Op. cit., pp. 653-656.


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A imagem do céu estrelado também sugere a manifestação do sagrado, visto que, tradicionalmente, em diversas culturas, o céu é tido como a casa de Deus, sendo o lugar para onde vão as pessoas de bom coração quando morrem.147 Retornando à imagem dos últimos versos, o eu é invocado por uma voz divina, à qual ele responde nos mesmos moldes. Sua resposta é um reconhecimento da divindade e de si mesmo. Ao aceitar o pai, o eu se aceita como filho. E não só. Sua resposta, assim como o chamado, se dá pelo uso de vocativos. E, retomando a asserção dos versos 9 e 10: não são os vocativos o início de toda poesia? Dessa maneira, a poesia nasce da resposta a um chamado divino, e é o próprio chamado de Deus. Ela seria, então, o diálogo entre Deus e Homem. Um diálogo cuja matéria primeira é o amor; afinal, é através da voz do amor que Deus se manifesta. Perceber essa voz é perceber Deus. A poesia seria, então, uma experiência de amor. De algum modo, conforta o homem, que não se sente sozinho em meio à criação, mas é filho de Deus. Fruto de um chamado divino, a poesia torna-se divina e revela a divindade do próprio homem — esta é a noção de poesia que fica para o leitor após a leitura do poema. Por fim, vale chamar a atenção para o caráter circular do texto, que se inicia pelo sintagma “um homem” e se fecha com termo “Pai”, o que frisa o vínculo entre um e outro, aproximando o ser divino do humano e salientando a natureza sagrada do homem.

Em meio às várias definições de céu, encontram-se: “região para onde, segundo as crenças religiosas, vão as almas dos justos”, “qualquer lugar onde se possa ser feliz, paraíso”, “a providência, Deus”. In Ferreira, A. B. H. Op. cit., p. 387. 147


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3 A linguagem e o sagrado nos poemas – alguns traços do estilo de Adélia Prado

Vimos, com as análises dos metapoemas, que a poesia tem, na obra de Adélia Prado, o papel de revelar o sagrado nas/das coisas, sendo ela própria sagrada. Por isso, não deve brotar de um mero trabalho intelectual para impressionar, mas da percepção do divino que se manifesta em todas as coisas; percepção esta que se dá pela emoção, mais do que pela razão. A poesia, para Adélia Prado, materializa a voz do próprio Deus, já que o poeta é apenas um porta-voz. E ela é sacralizante, pois o sagrado depende dela para se manifestar. Desse modo, o profano não cabe dentro da poesia de Adélia Prado. O profano está apenas aonde ela não chega. Daí decorre a angústia do poeta, que, para a autora, tem a Missão de tornar tudo sagrado através da poesia, mas sua tarefa é interminável, pois a matéria sobre a qual atua é infinita: Queria ficar alegre sem precisar escrever, sem pensar que labor de abelhas e vôo de borboletas precisam desse registro. 148 Essa visão de poesia determina a linguagem dos poemas, uma vez que a palavra não apenas comunica idéias ou pensamentos de um indivíduo, mas veicula a voz da divindade. Assim, os textos de Adélia Prado apresentam sempre um caráter de discurso religioso. Cada termo utilizado, cada arranjo sintático resultam da busca por estabelecer a comunicação com o divino. Na primeira parte deste trabalho, vimos os poemas-oração. Neles, o religioso se faz presente de maneira explícita, pois advém do próprio tipo textual. Esses 148

Trecho do poema “Salve Rainha”. In Oráculos de maio, p. 17.


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poemas compartilham o fato de terem a divindade como interlocutor direto. No entanto, o modo como constroem o diálogo com o sagrado é diverso. Em “Orfandade”, encontramos um eu que busca consolo junto a Deus, que tem como pai. Em “A face de Deus é vespas”, o diálogo com o sagrado se dá de uma maneira um pouco menos direta, pois o poema conserva uma ambigüidade que permite considerarmos como interlocutores tanto Deus como o leitor. Em ambos os poemas, Deus surge como figura que conforta e ampara o eu-lírico. Nesse segundo texto, ele é a própria alegria que toma o lugar da tristeza sentida frente à efemeridade da vida. Em “Um salmo” e “Responsório”, o contato com o divino acorre por meio da intertextualidade. No primeiro poema, o diálogo com o texto bíblico; no segundo, com uma oração tradicional da Igreja Católica. Apesar da retomada de textos prontos, encontramos uma linguagem espontânea, criada pelo uso de termos e expressões comuns na fala cotidiana. Nos poemas que integram a segunda parte deste estudo, o religioso é evocado por meio de determinadas cenas e pela expressão de estados de alma. Neles, a divindade é apenas referente, em terceira pessoa, não participando como interlocutor. Em “O amor no éter”, o eu-lírico descreve uma paisagem natural, e “sobrenatural”, que representa seu interior. O eu exprime os desejos do corpo e da alma, como sensações diante do belo. Em “Mural”, o eu-poético apresenta uma cena cotidiana, revelando a mulher que recolhe os ovos do ninho como um ser divinizado, pois se conforma completamente com a ordem do Universo, que é obra de Deus. Em “Laetitia Cordis”, o eu lírico expressa sua admiração pela beleza que coloca homem e Deus em um mesmo plano. Nesses três poemas, o efeito religioso se dá pela contemplação do belo, da perfeição divina e do homem e pelo amor. Nos últimos poemas analisados, o efeito religioso decorre da percepção da poesia como sagrada e sacralizante. Em “Anunciação ao poeta”, a intertextualidade com a Bíblia, sugerindo a figura de um anjo que fala em nome do “Altíssimo”, explicita o caráter religioso do texto. Em “A formalística”, o religioso se manifesta, novamente, na descrição de uma paisagem natural, na contemplação da beleza da criação divina e na reflexão sobre poesia vinculada às manifestações do sagrado. “Genesíaco” alude ao texto bíblico, ou a qualquer mito de criação, desde o título, vinculando a poesia à origem sagrada de tudo. Nos três poemas, a experiência poética


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equivale à experiência religiosa, pois aproxima o homem de Deus e é ela o meio e o resultado dessa aproximação. Agora, veremos como o religioso se reflete nos usos da língua e da linguagem nos poemas estudados. O primeiro aspecto a destacar é o caráter descritivo-narrativo de todos os dez poemas analisados. Em “Orfandade”, ao pedir a Deus que o tire do estado de órfão, o eu-lírico lembra cenas de sua infância: a véspera de Natal com as pessoas ressonando no quartinho, a negrinha Fia, com quem brincava, o pé de fedegoso com formiga preta. Em “A face de Deus é vespas”, os flagelados que perderam tudo na cheia, os marimbondos armando suas caixas. “Um salmo” apresenta a imagens de seres louvando, tocando, cantando, dançando, meninos, gatos, cachorros seguindo e se multiplicando. “Responsório” trata da perda da carteira do eu-lírico, que a descreve e menciona seus tormentos, ou melhor, os tormentos dos homens todos: “sumiu a agulha da bordadeira, / sumiu o namorado,/ o navio no alto-mar,/ sumiu o dinheiro no ar”. “Amor no éter” mostra aves pernaltas em uma lagoa com caniços na margem. “Mural”, uma mulher apanhando ovos no ninho. “Laetitia Cordis” aborda um instante em que pessoas comentam a respeito do tempo nublado e o sentimento do eu nesse instante. “Anunciação ao poeta” narra o momento em que o poeta recebe a visita de um anjo que lhe diz qual será seu destino. “A formalística” apresenta em paralelo o trabalho do poeta cerebral e o passeio da serva de Deus. Em “Genesíaco”, narra-se a cena de um homem na campina que grita para as estrelas e, depois, o momento em que o eu-lírico ouve e responde a Deus. Em cada um desses poemas, tem-se a criação de um (ou mais) cenário(s) e a descrição de alguma(s) ação(ões), em uns com mais detalhes, em outros como flashes de memória. Isso confirma a visão de poesia observada nos poemas metalingüísticos. A palavra nunca é um objeto a ser manipulado por si mesmo. Ela antes evoca uma realidade e, a partir disso, passa a representar essa realidade, santificada. Aliado a esse recurso, em todos os poemas analisados, observamos o uso do presente do indicativo para descrever as cenas, para manifestar um sentimento, ou para fazer uma reflexão. Isso faz com que a realidade (re)criada com as palavras se imponha com mais força para o leitor, transportando-o para o cenário descrito. Uma vez em contato com a “realidade” do poema, o leitor experimenta o contato com o sagrado, pois essa realidade é sempre sagrada.


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Tudo isso é feito através de uma linguagem acessível, com termos, no geral, presentes no dia-a-dia de um falante da norma culta do português. Observa-se, então, um efeito de espontaneidade nos poemas, atingido não apenas pelo uso de uma linguagem menos rebuscada, mas pelo emprego de termos e construções coloquiais. De modo algum isso resulta em uma linguagem simplista, pobre de recursos expressivos. A ordem direta da frase predomina. A inversão, porém, também foi observada em vários poemas, responsável por manter o ritmo do texto e conferir expressividade a determinados vocábulos e expressões, como a anteposição do predicado ao sujeito, enfatizando a ação: “Recolhe do ninho os ovos/ a mulher”, “Não vem do sol indeciso/ a claridade expandindo-se” (“Mural”), “está nublado o tempo, de manhã” (“Laetitia Cordis”), “começam a fosforescer coisas no mato” (“A formalística”); ou do predicativo ou adjunto ao substantivo que modifica, frisando a característica de determinada coisa: “Acho bela a vida”, “incruenta paixão servida de seringas”, “a pacífica luz das coisas instintivas” (“A face de Deus é vespas”). Essas inversões, no entanto, não dificultam o entendimento do texto. Aliás, apesar de servirem para dar ênfase a determinadas idéias, muitas delas são muito comuns na fala, como a colocação de adjuntos adverbiais no início da frase: “Desde toda a vida a tristeza me acena”, “Sem me sentir banida experimento degredo” (“A face de Deus é vespas”), “Quando ficam maduros/ os pequis racham e caem” (“Laetitia Cordis”), “Da parte do Altíssimo te concedo” (“Anunciação ao poeta”), “Daqui a pouco começam a fosforescer coisas no mato” (“A formalística”). É importante notar que, em nenhum desses casos, há vírgula depois do adjunto adverbial marcando a inversão. Uma vez que a vírgula é a regra 149, o fato de não usála poderia ser concebido como uma marca individual de Adélia Prado. No entanto, é cada vez mais comum observar textos em que a vírgula não ocorre (o que, por muitos, é considerado um erro). Isso demonstra que, não apenas a autora, mas os falantes de português no geral podem estar considerando esse uso do advérbio anteposto ao verbo ou à oração principal comum, sem notarem que se trata de uma inversão. De qualquer modo, nos poemas estudados, a ausência de vírgula contribui para a fluidez do ritmo do texto, colaborando para criar o efeito de espontaneidade do discurso, aproximando-o do ritmo da fala.

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Cf. Bechara, E. Op. cit., p. 610.


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A espontaneidade é atingida, ainda, pela preferência pela próclise: “a tristeza me acena” (“A face de Deus é vespas”), “procurai antes me ensinar” (“Responsório”), “me sobressalta em arrepios” (“O amor no éter”), “Da parte do Altíssimo te concedo” (“Anunciação ao poeta”). Em “Orfandade”, o pronome clítico inicia vários períodos: “Me dá...” e constitui recurso importante para o estabelecimento do ritmo e do sentido no texto. Contribuindo para a fluidez da linguagem dos poemas, o que pode estar relacionado a seu aspecto narrativo e a sua proximidade do texto falado, os versos — na maioria livres e brancos — quase nunca são separados em estrofes e o enjambement é freqüente. A rima ocorre, geralmente, mais para ressaltar o vínculo semântico entre os vocábulos do que simplesmente para criar um efeito sonoro, embora constitua um recurso importante para o estabelecimento do ritmo do texto. Por vezes, tem-se a impressão de não estar diante de um discurso escrito, mas de um texto falado, tal é a espontaneidade da linguagem. O tom coloquial dos poemas aproxima leitor e eu-lírico, gerando maior empatia entre ambos e inserindo mais facilmente o leitor na atmosfera de cada poema. O caráter oral de alguns textos é criado, por exemplo, pelo uso de pra e pro em vez de para a e para o: “Me dá a negrinha Fia pra eu brincar”, “Me dá uma noite pra eu dormir com minha mãe” (“Orfandade”), “pra entoar vossos louvores”, (“Responsório”), “foi pro gabinete” (“A formalística”). Em “Um salmo”, temos: “u’a mão”, em vez de “uma mão”, marcando a oralidade do texto. A escolha lexical também contribui para a coloquialidade, ou informalidade, dos textos: “Acho bela a vida” (“A face de Deus é vespas”), “com uma cara/ que ninguém olhará mais de uma vez” (“Responsório”). Ao lado de construções e de vocábulos mais comuns na linguagem oral, figuram termos e construções mais formais, ou mais elaboradas, resultando em um discurso híbrido. Em “A face de Deus é vespas”, os termos incruenta, degredo e o uso de cujo contrastam com um léxico mais simples e um ritmo próprio da conversa espontânea. Em “Um salmo”, o termo deflagração, a expressão latina Te-Deum, o neologismo desesquivados figuram incrustados em frases na ordem direta, combinando-se com um vocabulário acessível até ao leitor mais desacostumado com a escrita. “Responsório” apresenta expressões como “vós que estais desafadigado”, “se tal não aprouver a Deus” e “cuja língua restou fresca” ao lado de uma linguagem mais trivial: “onde apareço cansada, com uma cara...”, “Tenho que comprar coisas, pagar contas”, “procurai antes me ensinar”. Em “O amor no éter”, encontramos uma


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construção própria da fala: “Habito nele” e vocábulos ou construções mais formais: “Quero escavar-te até encontrar/ onde segregas tanto sentimento”. Em um verso, temos: “me sobressalta em arrepios” — a colocação proclítica do pronome segue a fala corrente, o termo sobressalta é mais formal. As inversões sintáticas em “Mural” fogem da linguagem cotidiana — “Recolhe do ninho os ovos/ a mulher”, “Não vem do sol indeciso/ a claridade expandindo-se” — e figuram junto a um léxico comum na fala. Nesse poema, os termos mais formais são: expandindo, velada e aprazível. Em “Laetitia Cordis”, o mesmo referente é evocado pelos termos névoa, comum no português cotidiano, e bruma, mais raro. A maior parte do texto, assim como os demais poemas estudados, constitui-se de um léxico comum na linguagem falada no dia-a-dia. “Anunciação ao poeta”, por sua natureza intertextual, apresenta uma linguagem com um tom formal, solene, especialmente pelo uso da segunda pessoa. Mas os únicos termos que podem causar dificuldade a um leitor menos instruído, ou seja, com menos acesso a uma linguagem mais culta, são ávido e concedo. O poema “A formalística” é quase todo composto de um léxico de fácil compreensão. Alguns vocábulos mais raros são utilizados com ironia, com o fim de repreender a atividade do poeta cerebral; são eles: calcinada, prepúcio e estuma. O vocábulo pelejador também é mais raro, contudo, ao contrário dos termos anteriores, está mais próximo de uma fala popular, em que o verbo pelejar é utilizado com mais freqüência. “Genesíaco” não foge à regra e apresenta um léxico de fácil entendimento, aliado a uma sintaxe de ordem direta, contrastando com o uso da segunda pessoa do plural: “repeti para nós”. Contribuindo para a mescla entre popular e erudito, ou mescla entre formal e informal, o uso de verbos e pronomes na segunda pessoa (tu e vós) imprime um caráter de texto religioso a uma boa parte dos poemas, uma vez que essas pessoas já foram quase totalmente abolidas da linguagem corrente do Brasil, restringindo-se a textos muito formais ou religiosos150. Esse uso da segunda pessoa foi verificado em metade dos poemas estudados: “Responsório”, “O amor no éter”, “Laetitia Cordis”, “Anunciação ao poeta” e “Genesíaco”. Como não se trata de um uso muito freqüente em sua obra como um todo, não constitui, isoladamente, um marcador do estilo de Adélia Prado. Entretanto, não pode ser desconsiderado, já que, com outros recursos lingüísticos, cria o efeito de texto religioso, marca registrada de seus textos, e Cabe lembrar que o tu e o verbo na segunda pessoa do singular ainda é utilizado em algumas localidades do Nordeste brasileiro. O tu também é usado em algumas regiões do Sul e Sudeste, mas, na maioria dos casos, com o verbo na terceira pessoa do singular. O uso regional da segunda pessoa, porém, não se aplica à obra de Adélia Prado. 150


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colabora para o estabelecimento do que podemos considerar como a mescla entre o popular e o erudito — um traço estilístico fundamental da obra de Adélia Prado. Em sua poesia, como pudemos observar, a linguagem corrente é explorada com o fim de produzir um efeito de espontaneidade e não só isso: ela é utilizada pois a poesia de Adélia Prado não tem o objetivo de criar um “efeito respeitoso” com o uso de termos e construções rebuscadas — isso fica a cargo do “poeta cerebral”. Ela busca, antes, recriar uma realidade, da maneira mais fiel possível, e revelar o seu valor sagrado. Sua linguagem é simples — no sentido de acessível —, visto que a poesia não tem um fim em si mesma, mas é, de certo modo, catequizante, visando comunicar ao maior número de leitores possível. Assim, o uso de uma linguagem mais culta, associado a uma linguagem cotidiana, se dá especialmente porque, em determinados contextos, o termo, o sintagma, ou a frase mais cultos são mais expressivos, seja para preservar o ritmo do poema, seja para expressar melhor uma idéia ou uma sensação, nunca para impressionar apenas. O uso de expressões cristalizadas da língua portuguesa também pode ser considerado um traço relevante para delinear o estilo da autora. Comumente, verificamos o emprego de frases ou expressões prontas, mas que, no contexto dos poemas — pela combinação com outros termos ou pela alteração de sua estrutura —, assumem novas conotações, reatualizando-se. Esse é o caso de “véspera de Natal”, que, como vimos, aparece com a inversão dos termos em “Orfandade” como “Natal e sua véspera”, criando um efeito expressivo inusitado. Ainda nesse poema, observamos as expressões “ser grande” e “me dá a mão”, reproduzindo o discurso da criança. A primeira é usada com ironia, pois sabemos que o eu-lírico se sente pequeno, frágil, desprotegido. A segunda é empregada para solicitar a ajuda de Deus e, ao mesmo tempo, contribui para traçar o perfil do eu-lírico, que se apresenta como uma criança que ainda não sabe caminhar sozinha. Em “A face de Deus é vespas”, a frase “Graças a Deus, podia ser pior!” é utilizada em um discurso direto, reproduzindo a fala dos flagelados da cheia. Por ser uma frase tão comum, reproduz um discurso estereotipado, daqueles que aceitam sua condição. Com ela, a imagem dos flagelados se reduz para dar espaço à idéia de resignação e fé, desejadas pelo eu-poético. Em “Um salmo”, o uso de frases-feitas é um pouco diverso: o poema todo é a repetição de um discurso anterior, seguindo a fórmula dos salmos de louvor. Com isso, ressalta-se seu caráter de texto religioso, ao


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mesmo tempo em que o poema é atrelado a uma tradição de textos de louvor, como se reproduzisse um rito antigo, atualizando-o. O mesmo ocorre com “Responsório”, mas, nesse texto, o uso de frases cristalizadas, ao contrastar com a espontaneidade do discurso e a natureza do pedido feito a Santo Antônio, cria um efeito cômico: “Servo do Senhor, procurai para mim a carteira perdida/ e se tal não aprouver a Deus para a salvação da minha alma,/ procurai antes me ensinar/ a viver como vós,/ como um pobre de Deus”. Assim como os dois poemas anteriores, “Anunciação ao poeta” apresenta algumas estruturas feitas com o fim de remeter ao intertexto religioso: “Da parte do Altíssimo, te concedo” e “Ave, cheio de dor” são entendidas como ironia especialmente porque essas construções estão relacionadas a um sentido positivo, devido à intertextualidade. Em “O amor no éter”, a expressão “atravessa mar e montanha” é uma frase-feita para indicar que o sujeito é capaz de tudo para alcançar um objetivo. No poema, além de contar com essa significação, a expressão contribui para criar um cenário natural. Em “Mural”, a expressão “em perfeito estado de conservação” cede lugar a “em estado de perfeito uso”, para enfatizar a atividade, a função da mulher que recolhe os ovos para a família. A frase “parece que um sol ameaça”, muito comum nas conversas de mineiros, em “Laetitia Cordis”, não apenas recria uma situação cotidiana, mas descreve, de maneira sugestiva, o estado de espírito do eu-lírico, chamando atenção para a manifestação sutil do sagrado. Uma outra característica significativa da obra de Adélia Prado é o predomínio da função emotiva da linguagem151. Dos dez poemas analisados, oito apresentam eu-lírico em primeira pessoa. Os pronomes pessoais, eu, me, e possessivos, meu, minha, além de verbos concordando com a primeira pessoa marcam a subjetividade dos textos. Mesmo em “Mural”, em que o eu-lírico se conserva em terceira pessoa, como um eu-narrador, sua subjetividade se manifesta em uma espécie de discurso indireto livre. Quando afirma: “A mulher não sabe que reza:/ que nada mude, Senhor”, o eu-lírico exprime seu próprio sentimento diante do “mural” que descreve, ou seja, diante da organização sagrada do Universo. Em “Anunciação ao poeta”, o poema é todo feito de um discurso direto, representando a fala do anjo. Ainda que não se exponha em primeira pessoa, o eu-lírico expressa seus sentimentos por meio do caráter metalingüístico do texto: ele e o poeta sofredor são a mesma pessoa. “A chamada função emotiva ou ‘expressiva’, centrada no remetente, visa a uma expressão direta da atitude de quem fala em relação àquilo de que está falando. Tende a suscitar a impressão de uma certa emoção, verdadeira ou simulada”. In Jakobson, R. Op. cit., pp. 123-4. 151


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É importante notar a relação entre o uso de um eu em primeira pessoa e a abordagem do sagrado nos poemas. Como vimos ao longo das análises, e mais detidamente nos poemas metalingüísticos, o sagrado só é atingido pela emoção, nunca pela razão. Dessa forma, entende-se a emotividade marcante dos poemas. Ela não apenas revela o estado de espírito do eu, mas é responsável para que o sagrado se torne presente. Convém destacar que, apenas em três poemas analisados, o eu-poético é explicitamente feminino. Trata-se de “A face de Deus é vespas”, em que a determinação do gênero feminino aparece no adjetivo banida, “Responsório”, através de cansada, e “Laetitia Cordis”, por meio de apoiada. Em “Orfandade”, o leitor pode considerar que o eu-lírico é feminino apenas se admitir que a negrinha Fia, com quem o eu deseja brincar, seja uma boneca, já que, ainda nos dias de hoje, não é comum um menino brincando com boneca. Em “O amor no éter”, é possível inferir que o eu-lírico seja feminino se interpretarmos que o amor descrito no poema seja um amor entre homem e mulher. Quando o eu exclama: “como és bonito!”, pode estar aludindo ao amado do sexo masculino. Em “A formalística”, o eu-lírico pode ser confundido com “a serva de Deus”. Nos três poemas, no entanto, não se pode afirmar categoricamente que o eu-lírico seja feminino. Dessa forma, podemos dizer que, na poesia de Adélia Prado, há vários poemas em que o eu-lírico é feminino. Não é possível, no entanto, afirmar que o uso de um eu-lírico feminino seja determinante para a construção do estilo da autora, já que a neutralidade ocorre com freqüência. Apesar de a linguagem ser marcadamente emotiva, isso não exclui a elaboração mental — a função intelectiva, ou referencial, para manter a terminologia de Jakobson. O leitor tem acesso aos sentimentos do eu, mas esses sentimentos estão sempre subordinados às cenas descritas ou narradas. Não é simplesmente o estado de espírito do eu que importa, mas sim a sensação diante da experimentação do sagrado. São comuns expressões do tipo: “Como o homem é belo,/ como Deus é bonito”, aos moldes de “Laetitia Cordis”, expressando uma atitude de contemplação do sagrado. A emotividade do eu-lírico é fundamental, pois é ela que determina o valor especial de cada coisa. O eu-lírico que se apresenta nos poemas pode ser considerado um homem religioso, na visão de Mircea Eliade, pois, para ele, cada coisa tem um valor único, especial e, por isso, sagrado. Em “Orfandade”, por exemplo, “o pé de fedegoso com formiga preta” ou “as pessoas no quartinho”; em “A face de Deus é vespas”, “os marimbondos armando suas caixas” (que equivalem à própria face de


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Deus); em “Responsório”, a carteira perdida; em “Um salmo”, “tudo que existe”; em “O amor no éter”, “uma lagoa com caniços na margem”, o próprio interior do eu; em “Mural”, uma mulher recolhendo ovos; em “Laetitia Cordis”, um dia nublado, a lembrança do ser amado (que personifica o próprio Deus); em “A formalística”, “o dia”, as rãs pulando sobressaltadas; em “Genesíaco”, o céu estrelado. Um outro fator importante na composição do estilo de Adélia Prado é o uso de estruturas paralelas. Os acoplamentos são recorrentes nos poemas analisados e cumprem essa função de aproximar as coisas do sagrado e de equiparar o homem com Deus. Observamos isto em “Orfandade”, em que as estruturas paralelas associam os complementos de “Me dá” à própria sede de sagrado do eu-lírico. Além disso, “Meu Deus” e “Meu pai” equivalem-se, igualando a figura de Deus à de pai, e viceversa — as figuras do homem e da divindade compõem uma única imagem. Em “Um salmo”, “os meninos”, “os cachorros”, “os gatos”, “os ressuscitados”, “quem tocar”, “quem cantar”, “quem dançar”, enfim, “tudo que existe”, em paralelo, formam um conjunto infinito de seres que se unem para louvarem a Deus. Ainda nesse poema, “corpo” e “alma”, em posições equivalentes, juntam-se no desejo de louvar — matéria e espírito são uma coisa só, e é o desejo do sagrado que os unifica. Em “Responsório”, “uma vela de cera” e “um terço do meu salário” são estruturalmente equivalentes, unindo o trabalho profano à devoção religiosa. Em “O amor no éter”, “os desejos do corpo” e “a metafísica” também se equivalem na contemplação da beleza, que assume uma conotação sagrada, “sobrenatural”. Um outro paralelismo, entre “O corpo é leve como a alma” e “os minerais voam como borboletas”, intensifica o caráter sobrenatural da imagem, associando, novamente, carne e espírito, aparência e essência. Em “Mural”, “a mulher”, “as galinhas” e “a árvore”, em paralelo, expressam a sacralidade do Universo, sua ordem que emana do próprio Deus. Em “Laetitia Cordis”, homem e Deus equivalem-se por meio das estruturas em paralelo: “como o homem é belo” e “como Deus é bonito”. Em “Genesíaco”, os vocativos “Ó homem, ó filho meu” e “ó Deus, ó Pai” são equivalentes, aproximando o homem de Deus e vice-versa. A posição de termos com sentido contrastante em paralelo chama a atenção para a sacralidade de tudo o que existe. Corpo e alma, homem e Deus, desejo e metafísica se equivalem. Como já mencionado, não há espaço para o profano na obra de Adélia Prado, pois a poesia apresenta tudo como sagrado. Os paralelismos chamam a atenção para a diferença entre o carnal e o espiritual, o especial e o trivial,


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por exemplo, para desfazer a oposição: tudo é especial e, portanto, sagrado; se tudo é sagrado, tudo compartilha da mesma natureza. Com isso, alguns mitos são desfeitos. O material passa a ter um valor espiritual e o espiritual passa a ser mais acessível, palpável. O homem é divinizado, enquanto Deus surge como uma figura mais concreta, com características humanas e, assim, mais real e acessível. Por meio desses recursos, o leitor reconhece a sua própria natureza como sagrada, vivenciando uma experiência religiosa. A exploração do duplo sentido em termos e estruturas também é um recurso muito usado a fim de apresentar o sagrado nas coisas, aparentemente, profanas. Em “Orfandade”, o termo “pai”, por meio de uma ambigüidade estrutural, pode se referir ao pai do eu-lírico (cuja ausência é lamentada pelo filho, ou filha), ou seja, a um homem, e pode remeter ao Deus criador, considerado como Pai, não só pelos cristãos mas por diversas religiões. Em “Responsório”, a ambigüidade de um sintagma cria um efeito cômico, apresentando, ao mesmo tempo, um valor sagrado e profano. Esse sintagma é “um terço”, utilizado como um terço do salário e um terço para ser rezado. Em princípio, dinheiro liga-se ao profano e a reza, ao sagrado — a ambigüidade, no entanto, ao mesmo tempo em que marca a diferença entre ambos, a neutraliza, apresentando tudo em um único plano, sacralizado pela poesia. Em “O amor no éter”, o duplo sentido ocorre por meio da exploração da sintaxe da frase e da palavra, com o auxílio da sonoridade. A expressão “o amor sobre o natural” sugere a ligação entre o natural e o sobrenatural, o profano e o sagrado. Em “Mural”, temos o jogo com a polissemia do verbo “pôr”, criando um efeito cômico. As galinhas porão seus ovos e a mulher porá sua saia. Isso sugere a sacralidade de cada ato, pois cada ação reflete a organização da vida, a rotina que, segundo o eu-poético desse texto, é o próprio Deus. Observamos, ainda, nos poemas estudados, e esta também pode ser considerada uma característica do estilo da autora, um uso peculiar da metáfora. Essa é uma figura de linguagem conhecida como a “transferência (gr. metaphorá) de um termo para um âmbito de significação que não é o seu”. “A metáfora é um fato de sincronia e só existe quando o termo tem a significação própria nitidamente distinta da do termo que é substituído.” 152 Em Adélia Prado, porém, muitas vezes, a metáfora ocorre, mas não substitui o valor referencial, denotativo, dos termos.

152

In Câmara, M. Dicionário de lingüística e gramática, p. 166.


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Em “A face de Deus é vespas”, a imagem dos marimbondos armando suas caixas tem um valor metafórico, pois, como o próprio título aponta, representa a face de Deus. Entretanto, preserva seu valor referencial, pois não deixa de descrever, de fato, a cena dos insetos construindo sua casa. A peculiaridade desse uso da metáfora pode ficar mais clara ao compararmos esse recurso com o texto de um outro poeta brasileiro, escolhido aleatoriamente: O engenheiro O lápis, o esquadro, o papel; o desenho, o projeto, o número: o engenheiro pensa o mundo justo, mundo que nenhum véu encobre. (Em certas tardes nós subíamos ao edifício. A cidade diária, como um jornal que todos liam, ganhava um pulmão de cimento e vidro). A água, o vento, a claridade, de um lado o rio, no alto as nuvens, situavam na natureza o edifício crescendo de suas forças simples.153 Nesse poema, de João Cabral de Melo Neto, temos a descrição de um edifício que se ergueu no meio da cidade e que convive com os demais elementos da natureza. O “pulmão de cimento e vidro” constitui uma metáfora para se referir ao prédio que tenta se impor como uma espécie de órgão vivo, o que resulta em um efeito trágico, já que se trata de um pulmão inútil, duro e frio, que não respira. A idéia do pulmão de cimento e vidro é uma metáfora, pois, no plano referencial, edifício e pulmão são coisas completamente distintas. No poema, pulmão de vidro é o edifício, e apenas este permanece em nossa mente, com algumas características ressaltadas. Há uma transferência de sentido, pois não se deve pensar 153

Apud. A. Bosi. História concisa da literatura brasileira, p. 525.


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que ocorre, de fato, a descrição da cena de um pulmão de vidro crescendo. A comparação requer certa capacidade de abstração do leitor. Na poesia de Adélia Prado, a denotação convive com a conotação, uma não substitui a outra. Esse recurso também pode ser observado em “O amor no éter”, em que a paisagem descrita é, de fato, a memória de um lugar e, ao mesmo tempo, metáfora do estado de espírito do eu-lírico. Em “Mural”, a luz que nasce da mulher representa o seu valor sagrado (indica que não se trata apenas de uma mulher, mas de uma mulher divinizada) e, ao mesmo tempo, é a própria luz do dia colorindo a cena. Em “Laetitia Cordis”, a frase “Jonathan sou eu apoiada em minha bicicleta,/ posando para um retrato” pode ser interpretada tanto como uma metáfora quanto em seu sentido literal. No primeiro caso, Jonathan remete a uma pessoa, o ser amado. No segundo caso, Jonathan é, de fato, o eu posando para um retrato, indicando o valor sagrado da cena. Em “A formalística”, a imagem da serva de Deus que passeia, no plano denotativo, pode se referir a uma mulher passeando e, no plano conotativo, pode remeter ao próprio ato de escrever poesia do eu-lírico, que escreve atendendo a um chamado divino. Em “Genesíaco”, o homem na campina olha o céu estrelado, que também é o próprio Deus que o observa. Desse modo, a linguagem dos poemas reproduz a idéia de que o sagrado se manifesta sem alterar a natureza das coisas. Lembrando Eliade, uma pedra sagrada não deixa de ser uma pedra. Daí a convivência, no plano lingüístico, da conotação com a denotação. O sagrado também se manifesta com a determinação dos substantivos pelo artigo definido. Sabemos que o artigo definido serve para apresentar algo como conhecido, específico, o que se coaduna com a idéia de que as coisas sagradas são tidas como especiais. Além disso, o artigo definido pode apresentar um termo como representante de uma categoria. Esse uso é muito freqüente nos poemas de Adélia Prado. Ao apontar a sacralidade da árvore com suas flores rosadas, em “Mural”, por exemplo, o eu-lírico evoca uma árvore única, especial e, ao mesmo tempo, indica que todas as árvores, com seu ritmo regular, são especiais, ou seja, sagradas. Assim, o poeta vai cumprindo sua missão de revelar o sagrado em tudo que o cerca, como vimos na análise de “Anunciação ao poeta”. O uso do artigo definido, mesmo antes de pronomes possessivos (o que é muito comum na linguagem falada), é significativo em todos os poemas analisados. Como resultado disso, os textos podem ser continuamente atualizados, além de,


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muitas vezes, aproximarem-se do leitor, como se este já conhecesse os referentes determinados. Para reforçar esse efeito, não há muitos adjetivos nos textos, enfatizando a universalidade dos elementos. Assim, temos, em “Orfandade”: “o ressonar das pessoas no quartinho” (nesse caso, o artigo serve, ainda, para transformar o verbo em substantivo), “a negrinha Fia”; em “A face de Deus é vespas”: “os flagelados da cheia”, “a vida”, “o pecado”, “os marimbondos armando suas caixas”, “a pacífica luz das coisas instintivas”; em “Um Salmo”: “o que pegar a ponta de sua saia”, “os meninos”, “os cachorros”, “os gatos desesquivados”, “a nossa alma”, “o nosso corpo”, “o movimento pleno”; em “Responsório”: “a carteira perdida”, “a paga do meu trabalho”, “a agulha da bordadeira”, “o namorado”, “o navio no alto-mar”, “o dinheiro no ar”; em “O amor no éter”: “o amor sobre o natural” (aqui, o artigo é responsável pela transformação de natural em substantivo e por aproximar a expressão do termo sobrenatural), “o corpo”, “a alma”, “os minerais”; em “Mural”: “o ninho”, “os ovos”, “a mulher”; “o sol”, “a claridade”, “as galinhas”, “a árvore”, “a rotina”; em “Laetitia Cordis”: “o milagre”, “o tempo”, “o homem”, “os pequis”, “o coração de Jesus”; em “Anunciação ao poeta”: “o lixo”, “a catedral”, “a forma das mãos”; em “A formalística”: “o poeta cerebral”, “o gabinete”, “a pedra calcinada das palavras”, “o dicionário”, “o dia”, “a serva de Deus”, “o pelejador”; em “Genesíaco”: “a campina”, “o céu”, “o fogo”, “os vocativos”, “a voz do amor”. Essa universalização dos elementos também cria o efeito de sagrado ao apagar as marcas de tempo, já que a suspensão da temporalidade é própria de uma visão religiosa do Universo. Segundo Eliade, “o sagrado revela a realidade absoluta”154. E o uso dos artigos definidos (associado à recorrência dos verbos no presente do indicativo) contribui para esse efeito do absoluto, já que apresentam referentes genéricos. A intertextualidade também é um recurso importante para a revelação do sagrado por meio da linguagem poética. Em “Um Salmo”, o poema evoca uma cerimônia religiosa, aludindo explicitamente ao texto bíblico que até hoje é utilizado em ritos judaicos e cristãos. “Responsório” marca o diálogo com uma tradição popular da Igreja Católica, inserindo-se em um contexto de devoção. Em “Laetitia Cordis”, a intertextualidade ocorre com um ícone do Cristianismo, que é o “Sagrado coração de Jesus”, dialogando com a cultura popular. “Anunciação ao poeta” 154

In O sagrado e o profano, p. 44.


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explicita a retomada do episódio bíblico desde o título e sugere a natureza sagrada da atividade poética. Em “Genesíaco”, a intertextualidade com a passagem de “Gênesis”, primeiro livro da Bíblia é menos explícita, mas sugerida desde o título do poema. Segundo Adélia Prado, o poeta cumpre uma missão que lhe é atribuída por Deus. A poesia apresenta um papel na redenção do homem e de todo o Universo, como já foi comentado. O poeta é apenas um instrumento nas mãos de seu Senhor e, ao mesmo tempo, muito importante, em quem o próprio Deus se apóia. No livro não por acaso intitulado Oráculos de Maio, encontramos o seguinte metapoema: Direitos humanos Sei que Deus mora em mim como sua melhor casa. Sou sua paisagem, sua retorta alquímica e para sua alegria seus dois olhos. Mas esta letra é minha.155

Ao reclamar seus direitos, o eu-lírico, que (por que não?) associo a Adélia Prado, firma sua posição, reconhecendo sua importância no processo sacralizante da poesia. Portanto, é possível afirmar que, embora se considere inspirada por Deus, Adélia Prado usa sua própria letra. E esta letra é o seu estilo, o qual procuramos conhecer por meio das análises realizadas. Um estilo determinado por essa visão de poesia como criação e criadora do sagrado. Os traços lingüísticos expressivos mais recorrentes percebidos nas análises estilísticas apresentadas estão registrados nesta conclusão. É importante salientar que eles são fruto de um recorte específico da obra de Adélia Prado, que privilegia o caráter religioso dos textos. No entanto, são considerados traços importantes para delinear o estilo da autora, pois são encontrados ao longo de toda sua obra poética. Obviamente, esta constitui apenas uma amostra do estilo da autora; a seleção de um corpus diferente, aliada a uma abordagem diversa, poderá observar outros elementos 155

p. 73.


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que não foram contemplados por esta pesquisa. Mas espero que, junto com outros estudos, esta dissertação venha a contribuir para um mapeamento do estilo de Adélia Prado.


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Anexos


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