Argumento #143

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Ano XXIX | n. 143 | junho 2013 | € 2

NA RETINA

CINE-COSMOS

ensaio

Luis buñuel no méxico

DE EDGAR PÊRA

Pode o cinema esboçar um gesto político a partir da estética?

VIDEODROME - 30 anos o tempo deu razão a cronenberg?

OBSERVATÓRIO Alexandra bellissimo


F I C H A T ÉC N I C A

EDITOR E PROPRIETÁRIO CINE CLUBE DE VISEU inscrito no ICS sob o nº 211173

SEDE E ADMINISTRAÇÃO Largo da Misericórdia, 24, 2º Apartado 2102 3500 – 158 Viseu

Periodicidade Quadrimestral

TEL 232 432 760 geral@cineclubeviseu.pt www.cineclubeviseu.pt

ANO XXIX Boletim inscrito no ICS sob o nº 111174

CONCEPÇÃO E EXECUÇÃO GRÁFICA DPX .com.pt

CAPA David Cronenberg © DR

IMPRESSÃO Tipografia Beira Alta, Viseu TIRAGEM 500 ex.

colaboram neste número

Manuel S. Fonseca

edgar pêra

Carlos Losilla

Luís Nogueira

Manuel S. Fonseca é editor. Foi programador da Cinemateca e trabalhou na produção de cinema e audiovisual. Do que mais gosta é de escrever.

Terminou, em 2011, a sua última longa-metragem, “O Barão”. Além de cineasta, desenvolve, neste momento, a tese de doutoramento O Espectador Espantado.

Escritor, crítico e professor da Universidade Pompeu Fabra de Barcelona. Membro do Conselho de Redação de Caimán. Cuadernos de Cine e La Furia Umana, o seu último livro é “A invenção da modernidade”.

Professor e Director da Licenciatura em Cinema da Universidade da Beira Interior.

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CINEMA PA R A A S ESCOLAS

pa r c e r i a s a r g u m e n to

alexandra bellissimo Fotógrafa conceptual de Los Angeles, mais interessada em colagem de universos do que no mero registo do existente.

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índice

edit!

P.4 bilhete postal

Quase a terminar mais uma temporada, o Cine Clube edita um Argumento, como os anteriores, sensível ao momento, como ponto de chegada mas também de partida, buraco e trampolim; desta vez inaugurando o espaço de colaboração com a revista virtual catalã Transit, num texto em que se reflecte acerca de uma das grandes questões de todas as artes – a pertinência, a capacidade, o poder do “gesto político” desenhado, neste caso, pelo cinema. E talvez seja também esta energia um dos motivos que nos levam a gostar de cinema, a atribuir-lhe um lugar maior e a nos deslumbrarmos a cada vez. É de um sentimento de inclusão partilhado pelos que naquele instante ocupam a sala que decorre a resposta afirmativa, um aceno ao cineasta, que na duração de um plano ou na luz que lhe empresta inscreve muito mais do que isso mesmo. Ou não. Passados trinta anos sobre a estreia de Videodrome, parece-nos interessante repensar a sua adequação, a sua força… a sombra do seu gesto? Ter-se-á aquele futuro tornado realmente no nosso presente? Seremos todos filhos de um orifício na barriga ou de um tumor cerebral? Este é, efectivamente, um tempo de distorções e prodígios, onde a ficção científica se torna cada vez menos ficcional, ou ficcionável. E, nisto, surpreendentemente, o cinema não perde a sua vertente janelal, pelo contrário. Qualquer barquinho de madeira com arco-íris à proa nos leva ao infinito… Truffaut dizia que só quando não se gosta da vida, quando ela não é suficiente, é que se vai ao cinema. Ainda que se discorde, é provavelmente inegável tanta força de evasão – que chega a ser assustadora, porquanto nos envolve e desresponsabiliza, quando baralha e (con)funde realidade e fantasia. Mas são, ao descermos, as mesmas ilusões sedutoras que nos convidam a ultrapassá-las. A preparação do combate, que Carlos Losilla menciona, é despertada ali, mas continua no hiato entre o espectador e a tela, aqui também.

Como vão os cine clubes? Uma cartografia do movimento cineclubista: o que fazem, para quem e com que objectivos trabalham os cine clubes pelo mundo fora.

P.5 na retina

Espaço para partilha de olhares e gostos sobre um filme ou realizador escolhido por um convidado. “Porque o cinema é sobretudo isto: emoção que se quer partilhável”.

P.6 cine-cosmos

A crónica de Edgar Pêra.

P.8 ensaio

Novos desaparecimentos: pode o cinema contemporâneo desenhar um gesto político a partir da estética?

P.12 VIDEODROME

O tempo parece dar razão a David Cronenberg, que realizou este filme há 30 anos. Será o futuro de VIDEODROME o nosso presente?

P.17 what’s up ccv?

Actividade do Cine Clube de Viseu.

P.19 observatório

A palavra aos autores. Edição de trabalhos originais, e um olhar sobre o estado das artes e do cinema na primeira pessoa.

Argumento Publicação editada pelo CCV desde 1984, pensada, originalmente, para a divulgação de actividades e debate do fenómeno fílmico. O boletim tornou-se um veículo indispensável de reflexão da sétima arte e divulgação do CCV, a justificar um cuidado permanente das suas sucessivas direcções. Fundado em 1955, o CCV é um dos mais antigos cineclubes do país, sendo o Argumento um projecto central na sua actividade.

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bilhete postal

© E m i l i a n o P e n e l a s , d i r e c to r

Cine Clube La Rosa SEDE: BUENOS AIRES, ARGENTINA

“Os cine clubes devem ser espaços de reflexão e pensamento, além de lugares que resgatam retrospectivamente o cinema e renovam olhares sobre aquelas obras que, por diversas circunstâncias, não chegaram ao público e merecem a nossa difusão.” Pablo Giorgelli, realizador de “Las acacias” (prémio Camera d’Or do Festival de Cannes 2011), na apresentação da sessão na Biblioteca Sánchez Viamonte

Francesa e do Goethe Institut (únicas filmotecas que cedem este tipo de filmes). Com material próprio, conseguimos também apresentar alguns filmes em Super 8. A sala pertence à Biblioteca, tem capacidade para 80 pessoas, e regista uma média de 40 espectadores, o que é muito para um espaço com estas características. Não temos associados, as sessões são públicas e abertas, e tão pouco temos subsídios ou apoios, à excepção das colaborações voluntárias dos espectadores e do apoio prestado pela Biblioteca. Interagimos com os outros cine clubes da cidade, fazemos parte da Federação Argentina de Cine Clubes (FACC), e apresentámos um projecto de lei ao Governo da Cidade de Buenos Aires, solicitando a concessão de um subsídio anual para a “protecção, desenvolvimento e fomento” dos cine clubes da cidade. Lamentavelmente, o governo municipal de direita não levou o projecto a discussão na Câmara. Este ano começou com um clássico do cinema mudo, Die büchse der Pandora, de G.W. Pabst; seguido do ciclo “Imagens de África” com a projecção de Coup de torchon, de Bertrand Tavernier e Fata Morgana, de Werner Herzog. Prosseguimos com o ciclo “Obras-primas de Mestres franceses”, com Ascenseur pour l’Echafaud, de Louis Malle e L’Immortelle, de Alain Robbe-Grillet, e o ciclo “Comédias de Março” com Adorable menteuse, de Michele Deville e Porte des Lilas, de Rene Clair (em 16mm). Actualmente, estamos a apresentar o ciclo “Aki Kaurismäki para todos”, com cinco longas-metragens e uma curta do realizador finlandês.

Buenos Aires é uma cidade rica no campo do cineclubismo, cuja génese remonta a 1928, quando o então crítico León Klimovsky (décadas depois também realizador e guionista) começou a idealizar o que seria, um ano mais tarde, o Cine Clube de Buenos Aires. O Cine Clube La Rosa funciona na Biblioteca Popular Carlos Sánchez Viamonte desde há sete anos, nos quais programou de forma ininterrupta mais de 135 sessões com entrada livre e com a colaboração voluntária da assistência. No meu caso, é o terceiro cine clube que fundo, e procuro sempre construir um espaço aberto e acessível para todo o público – uma característica que distingue a nossa Biblioteca e o Cine Clube. Geralmente, programamos ciclos temáticos, genéricos, por realizadores ou actores. Pontualmente, organizamos sessões especiais (aniversários e momentos particulares ao longo do ano) e contamos com a presença de cineastas, críticos e especialistas para a apresentação de determinados filmes e diálogo com o público. Realizamos sessões ao longo de todo o ano, às quartas-feiras, e por vezes temos sessões especiais ao fim-de-semana. Durante dois anos organizámos “O cine clube dos pequenos” no primeiro sábado de cada mês, com filmes especialmente pensados para público infantil. As projecções são feitas, em regra, a partir de suporte digital, ainda que, desde o ano passado, tenhamos ao dispôr um projector 16mm, que permitiu programar filmes franceses e alemães em película, da Embaixada

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na retina

© M a n u e l S . Fo n s e c a

As deliciosas anomalias do Buñuel mexicano De 1946, com Gran Casino, a 1965, ano de Simon del Deserto, Luis Buñuel fil­mou no México a parte mais abun­dante da sua obra. Fugido de Espa­nha, Buñuel viu frus­trada a entrada em Hollywood. Des­men­tindo a sua repulsa pela Amé­rica Latina – dizia aos ami­gos: “Se um dia desa­pa­re­cer, procurem-me em todo o lado, menos aí” – instalou-se no México realizando fil­mes olha­dos des­de­nho­sa­mente por quase toda a gente, ati­tude que, de resto, enco­ra­jou com ambí­gua iro­nia. Fil­mes ali­men­ta­res, «comé­dias ran­che­ras», melo­ dra­mas ba­ratos, tudo se cha­mou a obras como Susana, Demó­nio Y Carne, Subida al Cielo, Una Mujer Sin Amor ou La Ilu­sion Viaja de Tran­via. Os títu­los – que títu­los! – são de ama­ri­nhar pelas pare­des. Mas, fixando bem o olhar, detec­tam-se deliciosas ano­ma­lias nes­sas obras con­ven­ci­o­na­lís­si­mas. Em Gran Casino, com as estrelas latinas Liber­tad Lamar­que e Jorge Negrete, Buñuel pon­tuou tudo com por­me­no­res que, disse “me diver­tis­sem”. O que divertiu Buñuel foram coisas ingénuas como as per­nas de can­to­ras, ou uma atenção nada fetichista a pezi­nhos. Descal­ços ou cal­ça­dos. No momento cru­cial do filme, quando Liber­tad e Negrete, apai­xo­na­dos, vão cair na boca um do outro, o cine­asta, em vez do beijo, corta para um grande plano de uma vara a remexer numa poça de lama. Podem ir ver: não há lá beijo coisa nenhuma. Conta Buñuel e quase que o podemos ouvir a rir-se: “ ‘O senhor quer matar o meu irmão e por isso eu quero matá-lo a si. Odiamo-nos, mas no fundo amamo-nos… Meu amor!’ …e um beijo. Não podia ser. Dei uma vara a Negrete e disse-lhe que brin­casse dis­traído com ela. Depois fil­mei um grande plano com uma mão que remexe a lama com a vara e intercalei-o na cena de amor para a depu­ rar do mau gosto.” De cer­teza que a ideia de bom gosto de Negrete não era a mesma. Se tivesse per­ce­bido o que estava para ali a fazer, de vari­nha na lama, no mínimo, confes­sou Buñuel, «tinha-me dado um tiro». Os filmes estão cheios de buñuelismos: um feti­chismo exa­cer­bado de pés, sapa­tos, espin­gar­das e plu­mas. E há um bes­tiá­rio dominado por gali­nhas, mas também ara­nhas, por­cos, éguas, vacas, pom­bas e ove­lhas, para não falar de algu­mas mons­tru­o­si­da­des huma­nas de que o cego de Los Olvi­da­dos é o mais ter­rí­vel repre­sen­ tante. À perversão zoófilia junta-se um humaníssimo ero­tismo, uma car­na­li­dade omni­pre­sen­te. São pulposas as mulhe­res que esco­lheu para pro­ta­go­ni­zar Susana (Rosita Quin­tano), Subida al Cielo (Lilia Prado “que fez estre­me­cer a nossa ado­les­cên­cia”, con­fes­sam os crí­ti­cos mexi­ca­nos) e El Bruto (Katy Jurado). E são escan­ dalosos os sub­entendidos sexu­ais, o da famosa cena dos ovos esma­ga­dos con­tra as coxas de Susana, a gema e a

Um fetichismo exacerbado de pés, sapatos, um bestiário dominado por galinhas, mas também aranhas, porcos, éguas, para não falar de algumas monstruosidades humanas clara a abri­rem uma grande rosa húmida no ves­tido, até ao leite de burra a cor­rer pelas per­nas da menina que o cego de Los Olvi­da­dos ado­rava sen­tar ao colo. No México, Buñuel não fil­mou o que quis e muito menos como quis. Mas a meno­ri­dade implí­cita des­ses melo­ dra­mas pro­vo­cou no cine­asta uma des­compressão que – e estou a cor­rer por minha conta e risco – o fazem apai­ xonar-se pelo cinema, con­ver­tido agora num fim, enquanto em Chien ou L’Âge d’Or fora sobre­tudo um meio. Buñuel apren­deu a trans­gre­dir usando o pró­prio cinema. Pas­sou por cima das regras do campo-contracampo, explo­rou as possibi­lidades do plano-sequência, expe­ri­ men­tou recur­sos como a câmara lenta que aban­do­na­ria na sua «obra séria» pos­te­rior. “Naquela altura a téc­nica inte­res­sava-me muito e que­ria pô-la ao ser­viço do que con­tava, evi­tando sem­pre que um espec­ta­dor se lem­bre que existe uma câmara.” Diria que, se o cinema de Buñuel é o cinema de um esti­ lista, se ele é muito menos o «poeta oní­rico» de Chien Andalou e muito mais um cine­asta com grande con­trolo da cons­tru­ção dra­má­tica, é por­que estes fil­mes mexi­ ca­nos lhe fize­ram a «mão», ensinando-lhe o valor de um olhar, ensinando-o a pro­du­zir inver­sões de sen­tido só pelo recurso a soluções téc­ni­cas, tornando-o enfim cons­ci­ente do pró­prio cinema. O mundo de Buñuel é um mundo de sexo e sumarenta culpa que vai acompanhado por um lúcido e lúdico cep­ti­cismo moral. Los Olvi­da­dos, Susana, Subida al Cielo, El Bruto e El são os fil­mes onde esse uni­verso se ins­creve de forma mais espon­tâ­nea e genuína. É uma conclusão que deve temperar-se com algum sentido de humor. Por­que é que apa­re­cem tan­tas gali­ nhas em Los Olvi­da­dos, perguntaram-lhe. A res­posta é desar­mante: “Há uma jus­ti­fi­ca­ção rea­lista. Pedrito tem aves de capo­eira e trata delas.” 5


cine-cosmos Š edgar pêra

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Imagens do filme Cinesapiens kino-citações: Jaques Rancière, Jacques Dèrrida, Bruce Isaacs, Eliot Weinberger

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ensaio

© C a r lo s Lo s i l l a

Novos desaparecimentos

A Loucura de Almayer de Chantal Akerman

A duração dos planos finais de A Loucura de Almayer de Chantal Akerman, e O Cavalo de Turim de Béla Tarr mostra uma resistência ao desaparecimento através da imobilidade e de um silêncio quase absoluto. Pode o cinema contemporâneo desenhar um gesto político a partir da estética?

Pode o cinema contemporâneo desenhar um gesto polí­ tico a partir da estética? A linguagem da crise, os resgates e as intervenções propõem um cenário no qual se torna difícil a deflagração da imagem, onde a imagem nada pode ante a contundência dessas palavras. Olhemos, por exemplo, para os jornais: como representar um resgate? Que imagem dar a uma intervenção? O rosto mesquinho dos nossos políticos substitui-se à ilustração dessas catástrofes que, a partir desse momento, se

desloca para o lado contrário. Nesse sentido, somos levados até às famílias que mendigam nas ruas, às crianças que vivem na miséria, ao rosto do horror mais gigantesco vivido pela Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Se o poder já era invisível, as novas operações financeiras impõem-se pela força gráfica dos números, de tal forma que para fazer um filme sobre isso bastaria a monstruosa secura dos números.

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O Cavalo de Turim de Béla Tarr

De todas as formas vejo, nas profundezas do filme de Truffaut, um gesto interior, um gesto de rebeldia, de rebeldia da imagem por subsistir, mesmo que apenas subsista à luz das velas, a luz do cinema. Estamos em finais dos anos setenta e o chamado cinema moderno realiza os seus últimos gestos de sobrevivência, a sua recusa em desaparecer. Daí as sucessivas quedas de Davenne que a câmara continua a procurar, precisa­ mente para não o perder, para não perder a história. E daí a subsistência da luz. Como chega isso ao cinema contemporâneo? Opto por dois filmes que terminam, também, com essa resistência, mas de um modo muito menos dinâmico, mais estático e mais reconcentrado. São dois planos, respectivamente, de A Loucura de Almayer (La folie Almayer, 2011), de Chantal Akerman, e O Cavalo de Turim (A torinói ló, 2011) de Béla Tarr. O primeiro dura uns seis minutos e consiste num primeiro plano do protagonista, só e desesperado, no final da história, murmurando algumas palavras, olhando o vazio, chorando, e com o rosto iluminado pelo sol, outras vezes na sombra. Depois, Akerman corta subi­ tamente e seguem-se os créditos do filme. O segundo tem quatro minutos e mostra esse pai e essa filha que esperam algo idêntico ao fim do mundo, comendo uma batata crua, cada um num extremo da mesa. O homem

Tudo desaparece para dar vez às contas, o pesadelo da minha infância. É como um eterno retorno diabólico. Aquilo de que parecia estar livre para sempre regressa convertido em algo sinistro, as contas da professora nas de Angela Merkel, os números no quadro transpostos digitalmente ao televisor nos noticiários. A ausência de tudo isso durante tantos anos converteu-se agora numa presença total, absoluta, inominável ou irrepre­ sentável. Lembram-se de Julien Davenne, o protagonista de La chambre verte (1978) de François Truffaut? A sua obsessão era preservar a imagem dos mortos, mas também o seu número. Acendia uma vela por cada um deles, na sua capela. Eis a mistura perfeita, o elo. O huma­ nismo da memória reconvertido na contabilidade dos desaparecidos. Na cena final, gritando a Nathalie Baye, diz que falta ele, que a cifra não está completa. E então cai fulminado, desaparece do enquadramento pela parte inferior, e por fim sobra, apenas, a imagem das velas, que é à vez a luz do cinema e o desfile uniforme das baixas. Nesta altura nem sequer isso se pode representar, pois a tentativa de colocar em cena o apocalipse dá lugar a uma grande resistência ou a um interminável desapare­ cimento, como prefiram. Qualquer mudança de plano seria fatal para o cinema.

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Já que o carácter fantasmático do dinheiro, que Marx avançou, nos arrebatou o pensamento, já que não vemos dinheiro em nenhum lado mas apenas ouvimos falar dele, esse dinheirofantasma que tem voz mas não visibilidade, vamos opor a ele a nossa ausênciapresença, o nosso estado de estar e não estar no tempo.

O Cavalo de Turim de Béla Tarr

diz somente: “come” e “temos que comer”, e o plano mantém-se até que a luz, pouco a pouco, se extingue. A duração dos planos mostra uma resistência ao desapa­ recimento através da imobilidade e de um silêncio quase absoluto. Como se só pudéssemos resistir mediante uma espécie de presença-ausência, como se as figuras lá estivessem mas as víssemos num processo de não estar. Um estado flutuante, e também de suspense para o espectador, que agora provém de uma história igual­ mente imóvel: o que vai acontecer depois dessa imagem? E se não há nada, como é que se acaba com ela? Que gesto será o último dos personagens? Como é que vão concretizar esse gesto de desaparecer? Ou alguém o fará por eles? O próprio realizador, o próprio cinema? No filme de Truffaut, há 35 anos, era o corpo que resistia ao desaparecimento. E que era, depois, substituído pela luz. Agora não há gestos, ou só gestos mínimos, sem significado (olhar, pelar uma batata), e é essa mesma luz herdada de então aquela que resiste à extinção. Não importa que no final tudo termine no escuro; o que inte­ ressa é que se adiou o momento em que desaparece. Pode dizer-se que o cinema europeu contemporâneo, na sua insistência em manter-se como projecto moderno, adia constantemente o final mesmo sabendo que será precisamente esse. É um gesto de resistência, mas também uma afirmação. É o gesto que elimina os gestos para assegurar uma sobrevivência mínima, como se fossem poses para uma das fotografias que a capela de Truffaut acolhia. Essa suspensão, esse prolongamento, esse adiamento. Mas há uma questão em aberto: porque é que Akerman termina com um corte rápido e Tarr com um fundido? Qual a diferença entre os dois gestos que aniquilam os gestos dos actores, que os dão por concluídos? Digamos que são duas formas possíveis de o fazer, de transferir o gesto do actor ao gesto do cineasta, que no final é quem se torna mais visível. Ausência do corpo compensada

com a presença desse corpo oculto que decide cortar ou fundir. E a decisão implica tempo, pois de tempo e não de outra coisa falamos: tempo em que a figura permanece na imagem e o tempo que tarda em desaparecer. Também o tempo fica suspenso, sendo reivindicado como matéria principal do cinema. Indo além do que devemos a Gilles Deleuze neste sentido, não é que o cinema contemporâneo seja feito de tempo, é que procura que o seu conceito de tempo converta estes desaparecimentos noutro tipo de gesto, um gesto de rebelião: alguém desaparece para ter o seu tempo, converte-se aos poucos em fantasma e é o cineasta quem também toma o seu tempo para lutar no mesmo território no qual, agora, o dinheiro e o capitalismo lutam contra nós, precisamente com a ideia de que se nos acaba o tempo. Isto é, já que o carácter fantasmático do dinheiro, que Marx avançou, nos arrebatou o pensamento, já que não vemos dinheiro em nenhum lado mas apenas ouvimos falar dele, esse dinheiro-fantasma que tem voz mas não visibilidade, vamos opor a ele a nossa ausência­ -presença, o nosso estado de estar e não estar no tempo. E trata-se de uma ausência ameaçadora para o poder, que não consegue suportar o que se situa nas dobras, cuja máxima é, agora mais do que nunca, a visibilidade absoluta. Akerman e Tarr propõem o desaparecimento não como rendição, mas como ocultação para que o poder não veja a figura. E fazem-no evocando o início de tudo, os anos 80 e 90 do século XIX, e o colonialismo e a miséria que é como um fim do mundo. Desaparecimento súbito ou lento, é indiferente, importante é o transe, a passagem, ir ao outro lado para que não nos possam apanhar. Desaparece-se para preparar o combate. © La furia umana / Transit: cine y otros desvios. www.lafuriaumana.it www.cinentransit.com Tradução: Cine Clube de Viseu 10


Videodrome

O mundo, individual e colectivamente, entrou numa engrenagem universal de filmagem, arquivamento, mixagem e re-editing. O que é o youtube senão uma mixing board planetária? O que é a contemporaneidade senão, em grande medida, um infindável procedimento de reconversão, reinterpretação e recriação? O tempo parece dar razão a David Cronenberg, que realizou este filme há 30 anos. Será o futuro de VIDEODROME o nosso presente?

© Luís nogueir a

Corpo, alucinação, violência, metafísica

Olhado à distância de três décadas, a primeira inquie­ tação que Videodrome nos causa é não apenas desar­ mante, como de uma ingenuidade quase perturbadora: afinal, na realidade, sobre o que é este filme? Esta questão coloca-se desde logo ao nível primeiro da narra­ tiva: o da verosimilhança. Acreditamos naquela história? Questão que muito rapidamente se revela supérflua e se desdobra: precisamos de acreditar naquela história (ou em qualquer história, se quisermos ser radicais)? E então somos levados da superfície fantasiosa e inverosímil dos

eventos para uma dimensão mais profunda – filosófica, sociológica, política, teórica – onde a relevância temática e a gravidade dramática do filme se instauram. Entramos então numa espécie de leitura alegórica que nos dará a ver, em jeito de fantasia ou ficção científica – e a (in)verosimilhança da história instabiliza-se precisa­ mente pela indecisão de género cinematográfico que parece percorrer este filme –, o futuro que hoje é o nosso presente. Trata-se, portanto, de um filme não tanto sobre o seu tempo, nem tanto sobre o seu universo, ou 11


mesmo sobre o seu imaginário, mas mais sobre o futuro que nele estava contido, ainda que de modo retorcida­ mente alucinado (e, neste caso, o termo parece inteira­ mente adequado). É esta, pelo menos, a nossa perspec­ tiva. Voltaremos a estas questões mais adiante. Se olharmos a obra no contexto da carreira de Cronenberg, facilmente nela encontramos os seus temas recorrentes: o corpo e o modo como ele se degrada, destrói, devém, transmuta, sucumbe, oferece, visceraliza, fantasmatiza; a tecnologia e o modo como penetra e religa a mente e o corpo, como se repercute social e politicamente, como questiona ética e tecnica­ mente os limites do poder ou do desejo; a realidade e as suas multiplicações e imbricações, as fronteiras rasgadas ou invisíveis em que se desdobra ou redobra, em que se espelha ou esconde: alucinação, fantasia, neurose, demência; a violência e o modo como integra, conciliada ou abruptamente, o criminal do thriller e a experiência mais subjetiva, a deriva psicológica e a reverberação política. Não se esgotam aqui os temas deste cineasta, mas parece-nos que resumem suficientemente bem as preocupações presentes ao longo da sua carreira e constantes deste filme. Estilisticamente, é possível também detetar aqui as suas marcas: a cadência do thriller em versão downtempo, feita de vagar e discrição; o look que se desloca serena e despreocupadamente na fronteira entre o indie e o underground, entre o dirty e o trash; o uso da montagem como ferramenta de desorientação espacial e temporal do espectador, ou seja, como um dispositivo cinematográfico deliberadamente alucinatório; uma escolha e contenção de planos que nos mostram apenas o essencial e nada mais do que isso. Daí que, ainda que encontremos motivos de géneros reconhecíveis como o terror, o thriller, a fantasia ou a ficção científica, nos pareçamos manter sempre no tom de um cinema vincadamente autoral.

em consideração o lado sarcástico e profético do filme de Cronenberg... numa matiz de negrume filosófico e niilismo político, naturalmente. A certa altura fala-se mesmo de snuff TV – um estádio último de exploitation e sensacionalismo que nos parece quotidianamente prestes a eclodir no mundo da reality television. Negro e cáustico é também o humor com que Cronenberg resolve nomear o canal de televisão: Civic TV. Em que consiste esse papel cívico? Em percorrer na sua programação o espectro que vai da pornografia à violência. Podemos perguntar: será que se impõe aqui uma leitura moral? Pode ser que sim, mas dispensemo­ -la. Afinal, não é o wrestling a fantasia de violência prefe­ rida das gerações mais jovens atuais? Essa fantasia de violência é também o que, numa escala obviamente diferente, oferece o próprio Videodrome: uma arena (e aqui não podemos deixar de remeter para os espetá­ culos romanos tão graficamente reavivados na recente série televisiva Spartacus) ou um palco (e aqui a violência cruza-se com a performance e o peep-show) onde as fantasias, pulsões ou sensações mais carnais se entregam a um insuportável e insuperável realismo: tortura, assas­ sínio, mutilação. Já agora, refira-se, que não estaremos também longe das vagas e sagas de torture porn que nos foram servidas em anos recentes, como Hostel ou Saw. Às ideias de palco e de arena poderíamos acrescentar ainda as de prisão ou ilha que tão presentes estão na história da ficção literária e audiovisual, e igualmente na contemporaneidade (obras como A Invenção de Morel, com a qual se podem notar pontos de convergência temática, a série Lost ou os filmes Battle Royal, Hunger Games ou Gamer são disso exemplo). Interessante não deixará de ser encontrar igualmente sinais de proximidade entre Videodrome e Truman Show, essa parábola da humanidade do espetáculo total: se num caso se é aprisionado na mente, no outro é-se aprisionado na realidade. E sobre este último filme parecem ganhar ainda mais sentido as palavras ditas por Brian O’Blivion, uma das personagens de Videodrome: “television is reality, and reality is less than television”. Fora dos média, parece que a realidade se empobrece, fraqueja, desmaia. A experiência contemporânea é, obviamente, a experiência mediática. Será eventualmente por aí que se pode compreender a ideia de que Videodrome tem uma filosofia: seria esta a filosofia da intensidade, do extremo, do radical, do ultra­ -estésico, do visceral, da situação-limite onde através da violência se pode aspirar à transcendência.

Vislumbrarmos num filme tão excêntrico reflexos do nosso presente é seguramente algo que enriquece a sua análise e consequente reflexão. Um dos aspetos contem­ porâneos que se vislumbram no filme prende-se preci­ samente com a descrição do Videodrome, o programa televisivo que o filme aborda, como uma espécie de ultimate reality show, uma experiência de reality television levada ao extremo. Numa era como a nossa, em que este tipo de entretenimento funciona como pivot das grelhas de programação televisiva, não podemos deixar de tomar

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Diz uma das personagens: “television is reality, and reality is less than television”. A experiência contemporânea é, obviamente, a experiência mediática. Será por aí que se pode compreender a ideia de que Videodrome tem uma filosofia: seria esta a filosofia da intensidade, do radical, do ultra-estésico, do visceral, da situação-limite onde através da violência se pode aspirar à transcendência.

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Onde se escreveu transcendência podia escrever­ -se igualmente imanência. Sabemos bem que quer na violência quer na sexualidade o que permeia estas duas dimensões é sempre ténue, frágil, transitório. Aí, nessa passagem intermitente entre imanente e transcendente, se vai entrecruzar uma outra: entre o físico e o fantas­ mático. A figura que nos parece melhor demonstrar esse trânsito será a de Nicki Brand interpretada por Debbie Harry. Ela é a figura do desejo, mas também do ímpeto, da sensualidade e da fantasmagoria. Pelo seu lado de femme fatale ela parece condensar todos os perigos, e mesmo abraçá-los: todas as experiências a seduzem, toda a sedução a vulcaniza. Ela tem a força de atração de um buraco negro – e se a metáfora parece conter um tom sexual, não é despropositado: a televisão que se torna pulsional e suga Max Renn reflete a libido e o animismo à qual o protagonista não pode escapar; como Nicki, diga-se, não pode fugir ao seu masoquismo (pelo contrário: quer abraçar e exponenciar o seu prazer). O corpo ocupa nesta história, em torno de Nicki, um poder de atração tal que desenha uma narrativa­ -fantasma ao longo do filme, a qual conhece no plano aproximado dos lábios da personagem a origem do vórtice de desejo e perdição em que os protagonistas se vão abandonar – como, relembrando outro clássico dos anos 80, os lábios de Dorothy, (en)carnados e incendiá­ rios, condensavam as pulsões bravias de Blue Velvet. A presença de Nicki torna-se, portanto, a alucinação de um desejo para o espectador e o desejo de uma alucinação para Max – mas também poderia ser o inverso. A metáfora talvez mais evidente, e por isso a mais contundente, mas também a menos elegante, que perpassa o filme será a da televisão como dependência. Um mundo sob a influência radical e inescapável dos raios catódicos não parece ideia despropositada, mas sofre de excesso panfletário. Não que o curso do tempo não lhe tenha sublinhado a sua justeza, mas incorre obviamente no perigo da facilidade. Mais interessante parece-nos a forma como a síndrome é descrita: fala-se

de uma world mixing board. E revela-se tão mais interes­ sante quanto não podemos deixar de vislumbrar aqui, em jeito de raccord, a saliência com que Dziga Vertov atendia à mesa de montagem como local derradeiro do processo criativo cinematográfico. Era aí que a matéria fílmica adquiria a sua morfologia final, aí que toda a vida filmada se organizava, aí que todo o mundo ganhava ritmo e plasticidade. Também a este propósito podemos ver como o tempo fez justiça a Videodrome: o mundo, individual e coletiva­ mente, entrou numa engrenagem universal de filmagem, arquivamento, mixagem e re-editing. O que é o youtube senão uma mixing board planetária? O que é a contem­ poraneidade senão, em grande medida, mas não exclu­ sivamente, um infindável procedimento de reconversão, reinterpretação e recriação? A toda a hora encontramos o pastiche, o mash-up, o cross-over, o home-movie, o fan-film, o fake trailer, e demais variantes que tantas vezes indistinguem o amador e o profissional, o original e a homenagem. Já não estamos na idade do VHS nem do catódico. Agora o mundo é digital e multiplica os interfaces. Em Videodrome ouvimos dizer que “the television screen is the retina of the mind’s eye”. Hoje em dia multiplicaram-se os ecrãs, em número e formato. Ver (e rever, operação à qual, em diversos sentidos, nem sempre damos a devida atenção) tornou-se lugar comum – porque os ecrãs ocuparam todos os lugares. Parafraseando as citações de Lorenzo de Medici escu­ tadas em Videodrome (“love comes in at the eye” e “the eye is the window of the soul”) podemos dizer que não apenas o amor e a alma continuam a ser maté­ rias eminentemente visuais como todo o espectro de emoções e informações são visualizações na contempo­ raneidade. Quem se perde em abismo nas janelas múlti­ plas do interface ou nas inesgotáveis bases de dados das mais diversas imagens – da festa de aniversário à pornografia – sabe que tudo existe em multiplicado,

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algures, para ser disfrutado. E que sem essa multipli­ imediatamente catalisa as nossas aflições. Videodrome cação, acredita-se com ingenuidade, a efemeridade e o seria então o reverso do Big Brother orwelliano e ao localismo votam os acontecimentos ao oblívio. mesmo tempo o verso do Big Brother televisivo. Ele Quando forçamos uma interpretação de Videodrome, estaria a meio caminho entre a vigilância implacável e e se para ela queremos partir com a segurança que o omnisciente, despótica e constritiva, da obra de Orwell verosímil dá a qualquer análise, logo uma dificuldade e a insinuação doce, consentida, mesmo desejada do de elevado grau se nos coloca e que podemos resumir Big Brother-reality show. Um misto de sociedade de numa ideia que o filme adianta: as visões tornadas consumo e sociedade totalitária, onde perfídia e consen­ carne. Esta dimensão quase sinestésica é tão fasci­ timento se diluem (já agora, diga-se que esta diluição nante quanto incredível. Mais uma vez, implica a fuga entre perfídia e consentimento constituiu desde sempre da literalidade, ao mesmo tempo que nos tenta ou a dificuldade maior que os teóricos da cultura de massas compele à mesma. Quando se diz que o sinal televisivo nunca conseguiram ultrapassar sem cair num discurso de Videodrome, o programa, induz um tumor cere­ elitista ou fundamentalista). bral quase somos levados a suspender a descrença e Videodrome é político também porque produz um acreditar – literalmente – numa possibilidade tão fictícia, discurso sobre o poder num sentido muito amplo e para não dizer fantasiosa. Pensar que as imagens podem de consequências sempre inestimáveis: o controlo da coalescer no cérebro criando nele um novo órgão é levar mente. Sobre este assunto, talvez valha a pena alinhar ao extremo da especulação aceitável as ideias mcluha­ um conjunto de filmes que contemporânea ou poste­ nianas de que o meio é a mensagem e de que os meios riormente à obra de Cronenberg abordaram a mesma são próteses, extensões, do ser humano. É sedutora esta temática: Dreamscape, Brainstorm, Until the End of the hipótese, quando colocada World, Strange Days, Matrix, no âmbito da ficção científica. Inception ou a série Wild Palms Videodrome é um filme sobre o poder. É menos sedutora quando são alguns casos. O que se Um poder para lá da dicotomia corpo/ coloca em questão em cada entendemos esta ideia como uma metáfora do vírus infor­ mente, um filme sobre a política das um destes exemplos, de mático ou, ainda mais prosai­ imagens e sobre o poder dos dispositivos. formas diversas e por vezes camente, do trash televisivo. coincidentes, é a possibilidade Daí que quando se fala de uma giant e o modo de atravessar a mais O que significa, então, algo como “the video word made alucination machine universalmente próxima, e simultaneamente a flesh”? Só assumindo a sua disseminada e operante nos regressem mais distante, das fronteiras: dimensão de alucinação a a mente humana. São filmes memórias de distopias como Neuromante que preconizam uma possi­ podemos aceitar como hipó­ tese. Ou para lhe trazer alguma e Matrix. E que quando nos é apresentada bilidade meramente teórica, clareza teremos de ecoar na a Spectacular Optical e o seu slogan mas fascinante: o derradeiro mesma duas outras ideias: interface, o derradeiro dispo­ keeping an eye on the world a hiperligação sitivo, a derradeira câmara, “death to videodrome, long live the new flesh” faz-nos escutar à distopia se exponencie ainda mais: 1984 aquela que seria capaz de nos o “death to existenz, long live é a obra que imediatamente catalisa as fazer aceder, sem mediação, the new flesh” de eXistenZ, o à vida mental. Nesse aspeto, nossas aflições. Videodrome revela e ultra­ filme-espelho de Videodrome que Cronenberg fez anos passa algumas preocupações depois, no qual passa a luta pelo poder das imagens, das teóricas e especulativas do seu tempo: quem controla tecnologias e dos dispositivos dos aparelhos televisivos a mente controla a matéria, e nesse sentido, até pelos para os videojogos, numa espécie de update mediático ecos de Michel Foucault que deixa escutar, é um filme dos lugares da alucinação contemporânea. A outra ideia extremamente político. que pode ser igualmente evocada vem-nos do clássico Ora, quando passamos da dimensão política para a de Wiliam Gibson, da mesma altura, Neuromante, onde dimensão narrativa, o filme abre novas questões, no centro se fala de data made flesh, formulação que mais tarde das quais está uma ideia: a mise en abime, ou seja, a exis­ filmes como Matrix, Avalon ou Surrogates haveriam de tência de uma história que se integra, esconde, desdobra recuperar. ou imbrica noutra história. É que, desde muito cedo, eventualmente desde a primeira exibição de Videodrome, Videodrome é um filme sobre o poder. Um poder para o espectador fica perdido num labirinto de incertezas e lá da dicotomia corpo/mente, um filme sobre a polí­ volatilidades sobre o estatuto ontológico do que vê, do tica das imagens e sobre o poder dos dispositivos. Daí qual só a custo parece recuperar. Entre o real e a aluci­ que quando se fala de uma giant alucination machine nação não há sinais ou marcas de passagem. Baralham-se universalmente disseminada e operante nos regressem as coordenadas: onde estamos onde e quando estamos memórias de distopias como Neuromante e Matrix. E quando? Onde estamos quando e quando estamos onde? que quando nos é apresentada a Spectacular Optical e Conclui-se, então, de algum modo que a alucinação é o o seu slogan keeping an eye on the world a hiperligação grau extremo da mise en abime, em que uma história se à distopia se exponencie ainda mais: 1984 é a obra que esconde num universo, secreta e silenciosamente, sem 15


que a sua origem ou o seu término sejam imediatamente reconhecíveis. Toda a alucinação é, por isso, uma mise en abime, uma espécie de realidade que se vem colar e subs­ tituir a própria realidade. Nesse sentido, e prolongando a ideia, poderíamos dizer que toda a arte tende a ser uma mise en abime em relação à vida; mas não necessariamente uma aluci­ nação, ainda que nos casos de transfiguração narrativa mais extrema da realidade se possa aproximar desta: pensemos no desdobramento de dimensões no final deste filme e vemos bem o quanto a arte dos pode levar para um longínquo infinito de reflexos e transmutações. Ou então pensemos nos labirintos inescapáveis das parábolas-puzzles de David Lynch. Para concluir, fixemo-nos neste motivo dos desdobra­ mentos que atravessam a obra de Cronenberg e são, parece-nos, o que de mais distintivo – logo, autoral – encontramos no cineasta canadiano. Desdobramentos que apenas na aparência representam uma colisão, pois diga-se que, em larga medida, aspiram a uma totalidade: corpo com mente, orgânico com tecnológico, político com subjectivo, imanente com transcendente, profano com religioso. Falamos sobre desdobramento e totali­ dade sob duas perspetivas: uma lúdica, no que esta ideia pode comportar de intrigante, e uma filosófica, no que esta ideia pode ter de (meta)físico. Lúdico porque somos convidados, interpelados, a perder-nos nos meandros da identidade e da realidade: são as próprias personagens que em certos momentos nos fazem notar a intriga ou a perplexidade: “não sei onde estou neste momento”, ouve-se em Videodrome, ou “ainda estou no jogo?”, questiona-se no fim de eXistenZ. Ou seja: as coisas nunca são exactamente o que parecem e os contrários acabarão por fundir-se ou dilacerar-se... ou dilacerar-se para se fundirem. E é então que as personagens se reconhecem na sua identidade mais profunda – e nessa medida mais filosófica. A este propósito note-se a dimensão ritual, quase mística, dos suicídios que encerram algumas das obras do realizador como M Butterfly, Dead Ringers ou Videodrome. Ou a necessidade ou o desejo de passar a “uma nova fase”, ou uma nova carne, como se anuncia em Videodrome, eXistenZ, Crash ou Dead Ringers. Nesse aspeto, o corpo é, imbricado sempre na mente, em Cronenberg, o lugar da alteridade: o duplo em Dead Ringers, a mutação em The Fly ou Naked Lunch, a erotização em Crash, a fantasma­ goria em M Butterfly, o homicida em A History of Violence. Há, pois, simultaneamente, algo de muito desafiante, um repto reiterado, mas também de profundamente solitário e triste, no cinema de Cronenberg e nas suas personagens. Algo aquém ou além (é difícil decidir) do romanesco ou do poético. Um universo da fisicalidade e da pungência, por um lado, mas ao mesmo tempo, por outro, do inefável e do intangível. Daí ser, nos seus melhores momentos, um cinema (meta)físico: soberano e resistente à interpretação, por um lado, subsumido na violência da existência, por outro.

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what’s up ccv?

CNC’13 Cinema na Cidade

VISTACURTA 2013

Em Junho, teremos a pausa habitual das sessões regu­ lares de cinema. Voltaremos, em Julho, com o cinema ao ar livre no CNC — CINEMA NA CIDADE, na Praça D. Duarte, que voltará a acolher sessões capazes de fazer as delícias do grande público e cinéfilos, em excepcio­ nais condições de espaço e convívio. O programa terá lugar na segunda quinzena de Julho, em datas a anunciar.

PARA FILMES REALIZADOS NA REGIÃO DE VISEU, POR AUTORES DA REGIÃO, OU SOBRE TEMÁTICAS TRANSVERSAIS À REGIÃO VISTACURTA – FESTIVAL DE CURTAS DE VISEU é orga­ nizado pela Projecto Património / Empório e CCV com o propósito de divulgar a produção audiovisual regional. A avaliação da participação e resultados das primeiras edições, 2010/2012, traduz o interesse despertado pelo VISTACURTA junto dos criadores, e revela a vitalidade neste campo de produção, o que levou a organização a assumir a continuidade do projecto em 2013. Até 10 de Maio, foram recebidos filmes com duração não superior a 20 minutos, realizados desde 2011. O Júri determinará o melhor filme nas seguintes catego­ rias: Ficção / Documentário / Animação / Micro filmes / Experimental / Filmes de escola. Os filmes seleccionados serão visionados no portal vídeos.sapo.pt/ccv e os filmes vencedores serão projec­ tados na Praça D. Duarte, em Viseu, durante o CNC13 – Cinema na Cidade.

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Kim Longinotto

Uma das mais proeminentes documentaristas em actividade, Kim Longinotto, é reconhecida internacional­ mente pelos seus pungentes retratos e pelo seu sensível e apaixonante tratamento de tópicos difíceis. Observando, reflectindo e contando as estórias de mulheres que desafiam convenções e lutam contra instituições, opressão e preconceitos, Longinotto documenta e revela as idiossincrasias e os costumes de sociedades opressoras. No Irão, filmou a batalha por um divórcio (Divorce Iranian Style, 1998), no Quénia, a muti­ lação genital feminina (The day I will never forget, 2002),

no Japão, a identidade sexual e contradições culturais da actualidade (Dream Girls, 1993). Além de Lisboa e Porto, os filmes de Kim Longinotto estarão em diversas cidades através dos cine clubes que se associam à primeira retrospectiva da cineasta britânica em Portugal. As sessões em Viseu serão divulgadas em breve. GRANDES PERSONAGENS PARA GRANDES CAUSAS: OS DOCUMENTÁRIOS DE KIM LONGINOTTO REVELAM ALGUNS DOS DRAMAS MAIS PRESENTES, E SECRETOS, DO NOSSO MUNDO. Francisco Valente, Público

da nossa história 1955

2001

2013

EDIÇÃO DO LIVRO “CRISE NO CINEMA ESPANHOL” JUNHO 2001

Retrospectiva de cinema espanhol (uma das mais vastas em território português), Workshops, Cinema ao ar livre, de tudo isto de fez a SÉTIMA EUROPA 2001, orga­ nizada pelo Cine Clube de Viseu e ACERT de Tondela. Oportunidade, também, para editar “Crise no Cinema Espanhol — As adaptações de textos literários de Rafael

Gil para a Cifesa: 1942-1945”, de Fernando González García, sobre um dos mais prolíficos realizadores do cinema espanhol. “Para Rafael Gil, a América conquistou a Europa de modo mediático, e nesta conquista, deixando de lado os cânones, o cinema desempenhou um papel mais eficaz do que a literatura ou a rádio”. 18


observatório

Alexandra Bellissimo Criar imagens únicas e provocadoras é, desde sempre, a inspiração para o trabalho de Alexandra Bellissimo. A sua série de foto-colagens ‘Simulations’ revela imagética psicológica e emocional, pela fusão da figura humana com várias formas da natureza, para comunicar uma certa emoção ou sentimento. Monta cada peça pelas técnicas tradicionais de colagem, manuais, de corte, posicionamento e fixação. Bellissimo constrói estas imagens para explorar e confrontar a percepção do espectador com a relação entre natureza e o comportamento humano. www.alexandrabellissimo.com

o Estado da arte

sobre o Cinema

O que é que marca a criação artística actual?

o cinema é uma incontornável mais-valia na construção da visão do mundo, ou não?...

Na minha opinião os artistas contemporâneos distin­ guem o seu trabalho indo para além dos limites e das expectativas do que é comumentemente considerado “arte” tradicional. Enquanto os artistas ainda dependem dos meios tradicionais da arte como forma de expressão cria­ tiva, o uso dos meios não tradicionais de produção de arte (incluíndo instalações de vídeo, colagens, perfor­ mances, manipulação digital, etc) tem progredido nos últimos anos. Mesmo os nossos métodos para mostrar o trabalho têm-se expandido através do recurso a diversos dispositivos digitais (ex. computadores, smart phones, tablets). O nosso fascínio por novas tecnologias tem ampliado a própria definição do que é considerado uma plataforma credível para apresentar o nosso trabalho. Esta larga acessibilidade ao público tem-se revelado também um novo desafio para as mentes criativas. Nesta Era digital somos constantemente “bombardeados” com imagens e gravações através da internet, televisão e outros meios de comunicação. Num mundo moderno que é excessivamente saturado com todas as coisas visuais, os artistas são fortemente encorajados a produzir imagens únicas e instigantes, vídeos e produtos de design que se destaquem dos demais. Os artistas contemporâneos podem alcançar a notabilidade exercitando conceitos visio­ nários enquanto utilizam técnicas inovadoras no seu ambiente de eleição.

Eu acredito que há aspectos válidos a favor ou contra o impacto dos cinemas na nossa sociedade. Eu, pesso­ almente, considero o cinema, assim como outras formas de expressão visual um meio essencial para a criação/formação de pontos de vista do mundo em que vivemos. O cinema pode ser uma das ferramentas mais eficazes utilizada para comunicar/expressar um pensamento específico ou ideia para o público em geral. Muitas vezes retratando situações da vida real (sejam estas ficcionais ou históricas) o cinema pode utilizar eficaz­ mente os comentários sobre os comportamentos sociais e culturais. Mesmo sendo considerado uma interpretação visual, o cinema tem a capacidade de revelar algo sobre a nossa sociedade enquanto, simul­ taneamente, influencia tendências e ideias futuras.

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observatório

A p p ly © A l e x a n d r a b e l l i s s i m o

Dizer que “Apply” foi de montagem difícil, seria dizer pouco. Cada ramo foi cortado e colado individualmente, e, considerando que estava a trabalhar em pequena escala, foi um absoluto pesadelo. Dito isto, estou aliviada por ter decidido aceitar os desafios desta peça, dado que o resultado final é exactamente o que tinha previsto.


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