Argumento 133

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forma como associa as imagens e como se vê obrigado a imaginar uma narrativa que A ideia de necrofilia articula-se com essa vontade de prolongamento daquilo que não pode ser prolongável. Dessa forma o ensaio sobre a durabilidade da decomposisustente o curso dessas visões. “We, the spectators, connect the filmed time fragments and bridge the missing parts ção (presente de uma forma particularmente interessante nos interlúdios que ligam by association. The film diary is a method of rendering the past and of looking back as curtas sequências em “Der Todesking” de 1990) desemboca na necessidade da from the future. By condensing time, the autobiographical private film becomes pri- substituição desse corpo condenado à mortalidade e à decadência da carne. Em Mike Diana esta conclusão concretiza-se nos bonecos e demais figuras infantis, elevate history.” (9) Da condensação do tempo até á relação que se estabelece com a mortalidade vai mentos de substituição e duplicação do outro e é especialmente importante em “Seum passo lógico. Esta mumificação do instante carrega uma visão traumática dos cond Cumming”. seus movimentos e peculiaridades, uma resistência ao seu curso inalterável e neces- Estabelece-se facilmente uma ligação entre as ideias de necrofilia e blasfémia, como sidade de estagnar. “Sleazy Love” em particular, pela temática explorada, apresenta um acto de profanação também da imagem. Nesse filme o Jesus nado-morto, de algumas semelhanças com a obra do ícone underground alemão Jorg Buttgereit borracha, fruto de uma relação sodomita e expulso por um recto encharcado em que na transição dos anos oitenta para os anos noventa realizou algumas das mais sangue fresco, aponta para a conclusão dessa mesma ideia. O corpo falseado, imutárelevantes reflexões cinematográficas sobre a psicopatologia sexual humana com vel no seu teimoso rigor mortis, encarna esse final ponto de desistência dos relacionamentos e da sua potencialidade. “Nekromantik” (1987) e “Nekromantik 2” (1991). A blasfémia é uma ideia transversal a toda a sua obra Antes disso, nas suas primeiras obras em super 8, pere particularmente presente em filmes como o já corre-se um amplo leque de influências e subgéneros, referido”Second Cumming” ou “Daisy Licks Jesus”. Tancom reciclagens muito pessoais de filmes de super-heto num como noutro autor, o mal germina através dos róis (“Captain Berlin” em 1982), nazisploitation (“Blutige Berlim, 1963 circuitos dessa mesma imobilidade, propagando-se de Exzesse Im Fuhrer-bunker” em 1984) ou documentário filmografia essencial forma epidémica, numa encrustação como acto de remusical (“So War Das S.O. 36”, em 1985, um registo da Nekromantik 2, Alemanha, 1991 beldia não-direccionado. fervilhante cena punk / industrial dos anos 80 em BerDer Todesking, RFA, 1990 Esta rebelião tem tanto de sinceridade como de inconlim). Algumas, em particular, remetem para o que seria Nekromantik, RFA, 1987 sequência. Se em Korine há mais uma vez uma reaprouma versão Europeia e muito mais geek de um white So War Das S.O. 36, RFA, 1985 priação de determinados fenómenos, como sejam matrash cinema. Misto de home cinema série Z, com todas Blutige Exzesse Im Fuhrer-bunker, RFA, 1984 nifestações de subcultura popular como o Heavy Metal as referências metacinematográficas que virão a acomCaptain Berlin, RFA, 1982 nas suas mais extremas vertentes, em Diana esta ideia panhar a sua obra, e documento suburbano de uma Mein Papi, RFA, 1982 subsiste a um nível muito mais primitivo e, porque não, época (Alemanha pré-queda do muro de Berlim). genuíno na sua infantilidade. A mais relevante dessas curtas pré-Nekromantik é, a Se a figura do divino foi varrida do mapa juntamente meu ver, “Mein Papi” (1982) exercício radical em torno com o tornado em “Gummo”, manifestando-se atradas ideias de home movie e de post-mortem cinema. vés dessa contaminação que mina a possibilidade de Esta curta-metragem regista o declínio do pai do cineasmoral e apenas permite a sobrevivência, em Diana esta ta, afectado por um tumor no cérebro. É filmado sem a assume um valor epidémico ainda mais profundo, que permissão do próprio e conduz-nos numa dolorosa mas passa pelo escatológico e pelo doentiamente sexual. A estranhamente distanciada progressão do seu decair. urina, o vómito, a decomposição, a sodomia apontam Objecto único e uma das mais consequentes reflexões para as variantes mais primitivas dessas mesmas refesobre a morte e sobre a memória da história do cinema. rências culturais. Se em “Gummo” o valor de choque da “Such pictures, of course, are not only attempts to reinclusão de faixas de Black Metal Nórdico na banda socord what has been and what is no longer (the living nora, pressupõe, ou camufla uma certa necessidade de person now dead), but objects which, when looked up reconversão hipster dessa fenomenologia, no caso de on, effectively interject the absent dead into the living Diana a banda sonora remete para estratos assumidapresent.” (10) mente mais baixos e crus de tais subgéneros musicais, Esse filme iria inaugurar questões que, de forma mais remetendo para o muito mais cru e visceral o Black Meou menos reconvertidas, se viriam a prolongar e detal de uns Norte-Americanos Profanatica. senvolver nas suas longas-metragens, e em particular A aridez total, a coreografia de um esvaziamento da em ambos os Nekromantik. A necrofilia, numa primeira alma e dos sítios é possivelmente o mais importante instância, como um amor desregulado que se autoriza ponto de conexão de todas as obras que mencionei no pela profanação da imagem do ser amado, e, no seguidecurso deste estudo. Da legitimação da presença do mento desse raciocínio, como a vontade de prolongaindividuo de uma forma usualmente arredada dos cirmento da agonia é reflexo de uma vivência e condição cuitos do cinema até ao resumo da sua existência pelo de um contexto. registo da imagem em movimento no estado mais priO cinema necrófilo assume o ultrapassar da última mitivo. Reflexo de um certo panorama social e reflexo blasfémia e, como tal, há um paralelismo com o extretambém da alienação de espaços que conduzem estas mismo de Mike Diana em muito daquilo que o autor e personagens ao seu resquício, o white trash cinema é a sua obra representam. Encenação ritualizada de um uma noção que funciona por associação e sobre a qual trauma colectivo, que se pretende resolver, ou suavizar, se poderiam estabelecer muitas mais ligações. através do exercício dessa mesma dolorosa memória; A morte como resolução incontornável mas resignada, no caso de Buttgereit o passado indelével da Alemanha e todo o cinema que persiste depois disso concluem o Nacional-Socialista e em Diana a chacina fundadora da estudo sobre uma despovoação que é a da alma como pátria Americana. é a dos seus vários invólucros. Ritual fúnebre sobre o so“In his deployment of necrophiles as romantic leads, and nho americano ou escape aos pesadelos recorrentes in his depiction of sexual acts with the dead, moreover, das grandes guerras na Europa, a estática imolação de he repeatedly asserts that at any moment in time the seres encurralados num esvaziar de esperança ou de past and the present are locked together in a deathly oportunidades. embrace, an embrace that we can only make sense of © Manuel Pereira with recourse to memory.” (11)

Jorg Buttgereit

“Nas suas primeiras obras em super 8, percorre-se um amplo leque de influências e subgéneros, com reciclagens muito pessoais de filmes de super-heróis, nazisploitation ou documentário musical. Algumas remetem para uma versão Europeia e muito mais geek de um white trash cinema. Misto de home cinema série Z e documento suburbano de uma época (préqueda do muro de Berlim).

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