A Maior Flor

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A Maior Flor

texto de Cidália Fernandes ilustrações de Carla Leal


“Quem sabe se um dia virei a ler outra vez esta história, escrita por ti que me lês...” José Saramago


Mas que história tão estranha, pensava José ao fechar o livro.


Nunca tinha lido uma história assim! É certo que o miúdo tinha socorrido uma flor sequiosa, depois de ter feito inúmeras viagens até ao rio, numa paisagem seca e inóspita; é certo que tinha contado com o cuidado dos familiares que o procuraram sem descanso; é certo que tinha sido encontrado são e salvo... Mas... e aqueles pormenores de que tanto gostava? E aquela ação onde costumava embrenhar-se, esquecendo-se mesmo das obrigações diárias? Decididamente, daquela vez, a mãe não tinha acertado. Comentara que se tratava de um escritor muito conhecido e recomendado, mas ele não estava nada interessado no nome do seu criador; preferia apreciar o resultado da sua criação! Ah! Gostava daquela reflexão. Afinal valia a pena ser o maluquinho dos livros, como lhe chamavam na escola! E se a lesse pela segunda vez? Talvez pudesse entender melhor... Porém, aquele pensamento, já ténue, começou a esmorecer, a soar cada vez mais longe... Todos os ruídos se foram afastando, afastando... E ele deixou-se embalar, suave e lentamente, por uma paz muito profunda e muito doce que tinha o nome de sono. Em poucos segundos adormeceu.


No entanto, em menos tempo ainda, a consciĂŞncia regressou.


Um odor estranho despertou-lhe os sentidos. Olhou à sua volta, desconcertado. Arbustos, mirrados e secos, estendiam-se pelo vale amarelecido de aridez e de solidão. Baixou o olhar: os pés poeirentos denunciavam já uma longa caminhada. De onde vinha ele afinal? Foi então que se apercebeu: bem desenhados no chão, dois caminhos... Ah! Os dois tradicionais caminhos da história: um, bem limpo e arrumado; outro, cheio de pedregulhos... Ali, um conduzia a um pequeno regato que se esgueirava, ao fundo, por entre umas árvores esqueléticas e torcidas, para um infinito qualquer; o outro dirigia-se ao cimo de uma encosta e esbatia-se numas nuvens cinzentas a vogarem no céu azul. Qual era mesmo o nome da história? Não se recordava muito bem... Apenas que o rapaz se chamava João Sem Medo. Bom, mas ele, José, resolvia seguir não pelo mais fácil, nem pelo mais difícil, mas pelo mais longo. Começou, pois, a subir a encosta. No entanto, não era tarefa fácil! As ervas secas faziam estalidos debaixo dos pés e pequenos insetos zuniam à sua volta, fazendo coro com o chilrear breve dos pássaros nas árvores.


Continuou a subir.

E finalmente chegou.


Uhf! Está calor! Uma coca-cola fresquinha, agora, ia mesmo a matar! Mas primeiro quero chegar lá cima! Talvez de lá possa ver Marte! Lembrava-se de que o autor, na história que lera, tinha falado num efeito literário qualquer... Não chegara a compreender muito bem... Uma abelha atrevida pousou-lhe no braço; rapidamente a sacudiu. Era bom o mel que a mãe lhe dava, mas aquele não era o melhor momento para travar amizade com uma abelha, muito menos para ser picado...


Hum! Nada de especial! Pensava que um mundo novo se abriria perante os seus olhos, afinal era a mesma desolação, a mesma aridez... Apenas uma grande rocha se demarcava na paisagem. Correu na sua direção trepando para o cimo, num rápido impulso. E agora, o que faço? Quando se preparava para descer, algo lhe despertou a atenção: uma pequena flor amarela abrigava-se no côncavo da rocha, protegida pela sombra. José baixou-se para ver melhor. Mas, naquele momento, uma voz atrás de si obrigou-o a voltar-se.


- Para! N達o lhe toques! N達o toques nessa flor!


Era um homem um pouco desgrenhado, de boné escuro na cabeça, que corria ao seu encontro. - Mas... Mas... - Não lhe toques! - repetiu, ofegante e já mais perto. - Esta flor é minha! José reconheceu aquela voz. Reconheceu? Era a voz que ficara na sua cabeça antes de adormecer. - O que estás a fazer no meu sonho? - perguntou. - Ora, nada de especial! Apenas quero proteger a minha flor! - Eu não pretendia atacá-la, descansa! Como na tua história, ela também foi salva... - Vê-se que a conheces bem... - Claro, só não entendi... - Vou contar-te um segredo - interrompeu abruptamente o homem. - Quer acredites quer não, os adultos também gostam de histórias, apenas não querem admiti-lo. - Eu já sei isso há muito tempo. Mas o que eu não entendi na história é por que... - Não te preocupes com isso, ainda tens muito tempo à tua frente para perceberes os porquês.


O que estava a acontecer? Um escritor não deve saber sempre tudo a respeito da vida das suas personagens e de tudo o que se passa na ação? Por que motivo estava aquele a fugir às suas questões? No entanto insistiu: - Responde-me apenas a uma pergunta, mas com sinceridade: por que é que estás aqui? - Para cuidar da minha flor, já te disse! - Está claro que não! Eu posso ser criança, mas não sou idiota. - Bem... - respondeu o homem, já rendido. - Na verdade, estou aqui para aprender contigo. - Ah! Por isso é que disseste que as histórias para crianças deviam ser de leitura obrigatória... Mas José não completou a frase. Uma abelha, talvez a mesma que o incomodara na subida, girou à sua volta. Tentou afastá-la. A abelha, ágil e veloz, pousou levemente na flor. De seguida, dirigiu-se ao homem, que a enxotou, aflito; aquele pequeno inseto parecia querer sussurrar-lhe qualquer coisa, mas que outros sinais poderia conhecer ele, além dos sinais da escrita?



Entรฃo, mais rapidamente do que um raio, a abelha bateu as asas de novo, pousou na flor e regressou transportando nas patas um pรณ dourado que libertou em cima da cabeรงa dos dois. E, de repente, o mundo cresceu. A rocha tornou-se descomunal, as pequenas plantas transformaram-se numa floresta... E a frรกgil flor ficou enorme, enorme...


O quê? O que estava a acontecer? Oh! Não! Afinal o mundo não tinha crescido! Eles é que tinham minguado! Era o momento ideal para dizer: MEU DEUS! MEU DEUS! SOCORRO!


A voz de José encontrou eco na voz do homem. O pasmo de um embateu na surpresa do outro. - O que é que fez a Alice, quando se viu numa situação semelhante a esta? perguntou José. - A Alice? Mas que Alice? Era óbvio que ele não conhecia a história da Alice no País das Maravilhas! Para quê esforçar-se? Aquele homem era apenas um simples desconhecedor! Para lá daqueles óculos enormes anteviam-se olhos abertos de esperteza e perspicácia; madeixas brancas de experiência reconhecida espreitavam debaixo do boné escuro. Mas onde guardaria ele a sabedoria?


- Mas que Alice? - insistiu o escritor.


A José começou a agradar aquela teimosia, contudo, não teve tempo para o revelar. Uma enorme vespa acabava de pousar mesmo ao seu lado, de ferrão levantado, já pronta para o ataque. De repente o homem puxou-o violentamente para trás de si. O instinto protetor falou mais alto. E logo a seguir ouviu-se a sua voz: - Foge! - gritou ele. - Foge, que eu distraio-a. É demasiado grande para ti. - Não! É demasiado grande para nós! - replicou José, colocando-se ao seu lado. Vamos correr juntos! Depressa!


Em todos os sonhos acontecem coisas incompreensíveis e esta não era exceção, porque, por mais que eles corressem, não conseguiam sair do lugar. A vespa cirandava à sua volta, crescendo cada vez mais, perigando cada vez mais, já transformada em fera de dentes arreganhados e amarelos, a espumar raiva. E para piorar a situação, do outro lado, começaram a surgir uns insetos igualmente terríveis: formigas. - O que vamos fazer agora? - perguntou José. - Nada, só precisamos de abrir os olhos e acordar, não achas? Só precisamos de fazer um pouco de força... Hum! Afinal ele também sonhava! - Não resulta. Já tentei. - Então fecha os olhos! Ah! O medo não se expulsa num abrir e fechar de olhos! Deve ser encarado frente a frente! Por isso nem um nem outro conseguiu acatar a sugestão.


Entretanto, o grupo de formigas aproximava-se... E só quando estavam a alguns metros de distância é que se aperceberam de uma figura de mulher que, à sua frente, não parava de gesticular. - Mas... mas... não posso acreditar... - começou por dizer o escritor, boquiaberto e empurrando os óculos para mais perto dos olhos, repetindo um gesto que o tornava verdadeiramente cómico. - O que é que se passa? Quem é? Conhece-la? - Claro! É a minha companheira, a minha mulher... - E também escreve histórias? - Oh! Se escreve! Graças a ela...


- Até que enfim que te encontro! Estás bem? - ouviu-se então numa voz gritada e acenando com energia. - Claro que estamos! - respondeu o escritor. - Se não fosse aqui esta vespa... - E ia apontando para trás de si. No entanto, quando se virou, a vespa tinha desaparecido. - Como é que chegaste aqui? - É simples de adivinhar. Procurei-te por todo o lado. Quando encontrei a abelha, sabia que uma flor estaria por perto, por isso perguntei-lhe por ti. Só não sabia que estavas acompanhado. Ah! Finalmente alguém percebia que ele existia! Mas não tinha chegado ainda o tempo para festejar. E aquele grupo, aquela voz cantada... só precisava de transformar os braços em antenas, aquele pau numa viola e depressa apareceria a história da cigarra e da formiga... Não! Não! É melhor concentrar-me. Agora é importante resolver outras questões...



- E estas formigas, como apareceram? - Ah! Meu amor, é tudo tão fácil deste lado da realidade! Bastou pedir-lhes e elas vieram em meu auxílio. Mas pelo caminho disseram-me que estão muito descontentes com os homens. Se continuarmos assim a espalhar inseticidas e venenos na natureza, elas depressa partirão. Mas o prioritário neste momento é ajudar as abelhas. - As abelhas? - perguntaram os dois. - Claro! A que vimos é apenas a mensageira de uma grave situação. Por essa razão é que fomos transformados. Para as ouvirmos. - Para as ouvirmos? Não compreendo. - Do alto da nossa importância, não conseguimos ouvir nem as vozes que estão ao nosso lado! Muito menos a destes pequenos seres! Foi uma estratégia de mestre! replicou a mulher, com entusiasmo. Hum! Gosto dela! Sim, senhor!


- Mas então... o que é que se passa? - perguntou o escritor. - As abelhas estão a ser dizimadas por uma espécie de vespas venenosas que destroem tudo o que encontram. E, como sabem, o grande papel das abelhas não se limita à produção de mel, elas polinizam as plantas... - Pelo que sei também as vespas o fazem... - interrompeu José. - Muito bem... - continuou o escritor - vamos então pensar... se as vespas continuarem a destruir as abelhas, põem em causa o equilíbrio da natureza... Se há muitas vespas é porque a espécie que as come... - Os pássaros! Só podem ser os pássaros! - Correto! Então é porque os pássaros estão também a ser dizimados! - Com a poluição e com tantos incêndios não é difícil encontrar as causas respondeu, com desembaraço, o miúdo. O entendimento desceu de súbito sobre eles como um relâmpago e... gelou-os! E ao mesmo tempo fez-se luz! Sentiram que tinha chegado o momento de gritar: MEU DEUS! MEU DEUS! O QUE IRÁ ACONTECER? E fizeram-no em uníssono.


Tratava-se de uma cadeia tĂŁo organizada que se algum ser a perturbasse tudo ficaria afetado! E no topo da cadeia: o homem! Pelo menos era o que aprendera numa aula de CiĂŞncias! Os trĂŞs entreolharam-se. Que fazer? Estavam completamente sozinhos.


As formigas, magicamente, tinham desaparecido, como se tentassem libertar-se da responsabilidade. Afinal ali os grandes culpados eram eles! E era a eles que cabia resolver o problema! - Tive uma ideia - adiantou José, apontando para o caule da flor mesmo ao seu lado. - E se tentássemos subi-la? Há uma história muito engraçada com um caule de um feijão... Talvez... - E como? Não temos escada nem cordas... - respondeu o escritor, como se não tivesse ouvido a última parte da intervenção. - Temos pedras. Podemos colocá-las umas em cima das outras... Ou então o miúdo coloca-se às minhas costas... Que mulher determinada! Às costas dela? Franzina e magra como é? Cada vez simpatizo mais com ela. Sentaram-se, desalentados.


- Se ao menos tivéssemos um elefante... Podia levar-nos... - Um elefante? - perguntou José. - Mas a que propósito? Debaixo das suas patas seríamos transformados em papa... - Pelo meu Salomão não... - Ora, querido - socorreu a mulher, com doçura. - Essa é outra história. Não falemos dela agora! Um manto de silêncio caiu sobre eles. E foi precisamente no momento em que todos pensavam que não havia forma de sair daquela situação que a abelha regressou.



- A abelha! A nossa abelha! Estamos salvos! Estamos salvos! - gritou a mulher levantando-se com uma agilidade surpreendente. - E como sabes tu que... - ainda começou o escritor. Não valia a pena. As mulheres tinham o poder de saber coisas que os homens não entendiam! E para o provar tinha escrito aquele livro tão elogiado, que recebera até um prémio, no passado... Um forte abanão obrigou-o a concentrar-se no presente. - Anda! Vamos beber! - Mas... beber o quê? - Estavas distraído, querido! Acontece-lhe muitas vezes... - E olhou complacente para José. Depois dirigiu-se de novo e carinhosamente para o homem. - Já falámos com a abelha. Só precisamos de beber um pouco de suco da flor para regressarmos ao nosso estado normal.


- Esperem! Não se esqueçam do prometido - gritou José. - Do prometido? O que é que prometemos? - Nada de mais - respondeu a mulher. - Prometi que iremos, por todos os meios, ajudar as abelhas. E tu irás fazer o que melhor sabes fazer: alertar para o seu problema através da escrita. Não disseste já que é a palavra escrita, a que está no livro, a que faz pensar? - Sim... de facto. E nestas coisas da escrita, não é raro que uma palavra puxe por outra... A mulher sorriu, deu-lhe a mão e continuou sorrindo.


Aproximaram-se da flor ainda enorme. A abelha, olhos estranhamente arregalados de bondade, picou com suavidade o caule. Um fio de seiva brotou, então, das saliências abertas e começou a deslizar lentamente. Não precisavam de mais palavras. Os três deram as mãos, pois tinha chegado finalmente a hora de o fazer, nesta história; encostaram os lábios à superfície macia do caule e sugaram, sugaram, semicerrando os olhos... O líquido era doce, suave... escorria pela garganta...



José sentiu, pouco a pouco, o corpo a crescer, a crescer... Espreguiçou-se com gosto... Hum! Hum! De repente, um impulso estranho obrigou-o a abrir os olhos. A mãe, ao seu lado, ria satisfeita, enquanto comentava: - Mas que grande soninho! Quando te chamei para o lanche, já não respondeste. Então, foi agradável o sonho? - Hã? O quê? Onde estou? O escritor? E a flor? - Ora, filho, que imaginação a tua! Não me digas que sonhaste com a história! - História? Que história? - Eu bem te dizia! Mas agora anda lanchar, senão fica tarde e depois não comes nada ao jantar. Anda lá! Torradas com manteiga e mel. Que achas? O quê? Mel? Ela falou em mel? Instintivamente, passou a língua pelos lábios. Estavam doces. Docinhos.


Texto: Cidália Fernandes Ilustrações: Carla Leal Fotografia: Paulo Ramos Montagem: Pedro Magalhães


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