Dissertação de mestrado: Beijo de Línguas - quando o poeta surdo e o poeta ouvinte se encontram

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Quando o corpo se manifesta na rua A história escolar dos surdos é marcada por um esforço de não aproximá-los, inibindo a existência e o fortalecimento de comunidades surdas, espaços com potencial de aprofundar e proliferar as línguas de sinais; surdos pobres foram apagados por completo da experiência escolar enquanto surdos nobres foram treinados por professores particulares para ler e oralizar e, assim, serem “bons herdeiros”. Escolas e internatos começam a aparecer como opção de formação dos surdos, sempre na condição das crianças terem seus corpos controlados, vigiados e normatizados. A partir de meados do século XVIII, e principalmente a partir do século XIX, quando surgem as Escolas Especiais de surdos em alguns países, a negação total do corpo passa a ser substituída pelas inúmeras formas de defini-lo como anomalia. (LOPES, 2011). Para Maura Corcini Lopes, O que antes era proibido, agora se torna declarado. A escola de surdos dá visibilidade ao corpo surdo, enquanto discursos liberais criam teorias e recursos que enunciam a incapacidade surda por meio da afirmação da sua (d)eficiência. O que antes era imposto, agora tem um ar de negociação e orientação técnico-científica do olhar. 13

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As escolas especiais não se tornaram, então, espaços de produção de contranarrativas; ao contrário, fundaram-se como clínicas de reabilitação dentro das quais as crianças passavam anos presas em salas fechadas com aparelhos monitorados por professores ouvintes imbuídos da tarefa de ensiná-los a falar. Foi a partir da década de 1990, quando a comunidade passou a aprofundar um projeto de educação bilíngue para surdos, que as escolas especiais puderam vislumbrar a possibilidade de fazer uma mudança profunda no seu pensamento, introduzindo uma perspectiva micropolítica, agora, sim, criando, de dentro da existência e potência surda, da singularidade de sua língua e de seu modo de pensamento, caminhos e dispositivos de ensino e aprendizagem. Em 2010, recebemos o convite de uma produtora audiovisual para realizar um documentário curta-metragem para a televisão. Dentre seis temas sugeridos, o 13 LOPES, Maura Corcini. Surdez e Educação. Corposinalizante escolheu pensar sobre “educação”, mobilizado pela urgência de fazer 2. ed. rev. ampl. Belo Horizonte: Autêntica, circular reflexões sobre as experiências dos surdos com a escola. Corpo Nossa Língua 2011, p. 50. nasceu de um levantamento, em um primeiro momento, das experiências escolares do próprio grupo. A maioria dos integrantes havia estudado em Escola Especial para surdos até o final do Ensino Fundamental e estava, naquele momento, cursando o Ensino Médio em escolas regulares, dentro do que se propõe no Brasil como Educação Inclusiva. Já Amarilis Reto, intérprete de Libras que integrava o grupo, era professora de Educação Infantil em uma escola bilíngue para surdos. Tínhamos então três experiências – e projetos políticos – distintos sobre a mesa: a escola especial, a escola inclusiva e a escola bilíngue. E o desafio que nos colocávamos era o de criar uma obra audiovisual que pudesse abri-las para o mundo, evidenciando-as para aqueles que não participam nem conhecem essa realidade. Ao recolher, no espaço do coletivo, as perturbações vividas pelos jovens na escola e ao investigar com eles os debates e pautas que estavam sendo produzidos no interior da comunidade surda, fomos compondo uma cartografia que conectava as urgências que se manifestavam nos corpos com os modelos de educação a eles impostos. E foi deste tecido complexo que pôde nascer um roteiro para o filme.


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