Dissertação de mestrado: Beijo de Línguas - quando o poeta surdo e o poeta ouvinte se encontram

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Cibol, É isso aí. É louco ler a sua carta bem nesse momento em que também me encontro pesquisando sobre voz, e a única coisa em que consigo pensar é sobre a escuta. Na verdade, o que tenho descoberto é que o Slam, esse processo todo que está acontecendo e que a gente pensa que é sobre “ter voz”, é muito mais sobre “ter escuta”. Tenho me incomodado muito quando em instituições, em textos, as pessoas dizem que vão “dar voz” a determinado grupo e não-sei-mais-o-que-lá. Caralho! Ninguém “dá voz”, ninguém, a preto, gay, índio, trans, mulher, periférico... As pessoas já tem voz, é só escutar. Na verdade, se trata disso mais do que tudo: escuta. Olha no Slam, você vai lá falar poemas de 3 minutos e, às vezes, participa de só uma rodada! Num evento de 3, 4 horas, às vezes, você vai pra falar 3 minutos e escutar todo o resto do tempo! E escutar coisas que não necessariamente você concorda, mas que estão lá no jogo, e que não podem ser silenciadas, interrompidas ou diminuídas, como são no dia a dia! Isso é civilizatório! Isso é a prática da cidadania como nunca vista! E nesse lance dos surdos, é isso acontecendo o tempo todo! Eu amo esse trecho do poema que cê colocou na sua carta: IV. O surdo não tem audição, mas tem escuta. Quando uma surda conversa com você ela olha para sua cara, ela deixa o celular de lado, a TV de lado. Não tem conversa paralela, ou você está aqui ou em outro lugar. Quando sua família e a maioria das pessoas ao seu redor não fala sua língua, você aprende a dar atenção para a conversa. Quer aprender um sinal? Comunicação. Isso bateu como um tijolo na minha cabeça desde o primeiro dia em que ouvi, porque resume de maneira simples a diferença entre ouvir e escutar. A gente pode estar de corpo presente e simplesmente ausente na presença de espírito mesmo, numa qualidade de presença média, opaca, frouxa... Essa convivência com os surdos fala o tempo todo pra mim dessa qualidade de presença, sabe? De escuta verdadeira, de interesse verdadeiro pelo outro. Desde que esse universo foi apresentado realmente pra mim, ele só tem mostrado como criar possibilidades dentro da impossibilidade real de comunicação. É um mundo, esse assunto. Enfim, queria te dizer que tâmo junta, e que esse, apesar de tudo, é um momento muito lindo (por causa de tudo). Eu acho que estamos criando algo sem precedentes, que a gente vai entender mesmo lá na frente. Ou nem vai entender... e isso não tem a menor importância, porque o que importa mesmo é nos mantermos vivas, criativas e criando condições para que mais e mais pessoas se mantenham assim também. E vâmo seguindo, que não tá fácil. Mas fácil nunca foi... Bj e admiração, Rô.

* Roberta Estrela D’Alva é atriz-MC, integrante do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos – teatro Hip-Hop, poeta, slammer e organizadora do ZAP!Slam, primeiro Slam do Brasil. Roberta tem se dedicado a uma pesquisa engajada e ativa sobre o movimento internacional de Slam e, principalmente, sobre sua chegada ao Brasil. Como parte desta pesquisa, para a qual seu livro Teatro hip-hop: a performance poética do ator-MC é uma importante contribuição, Roberta vem circulando pelos espaços de poesia que se espalham cada vez mais pelo país, fortalecendo a construção de uma rede política e poética entre as batalhas de poesia. Uma rede que permite, cada vez mais, que o movimento construa e troque conhecimentos, se fortaleça como um coletivo composto de muitas vozes e confronte os congelamentos e estreitamentos de espaços para a cultura que a máquina do Estado tem nos empurrado.

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