Revista MedAtual - 2ª edição

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SUMÁRIO

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Atualizações patológicas AINEs - vilões ou mocinhos?

EDITORIAL Caro Leitor,

hospitais

Hospital Oftalmológico de Sorocaba: Referência na área oftalmológica

DO MÉDICO 6 DIREIT0S Seguros médicos pauta 8 EM Cirurgia minimamente invasiva humanitária 10 atuação Ajuda humanitária NUCLEAR 12 MEDICINA Para o bem e para o mal da arte 14 estado A medicina regenerativa e as células-tronco negligenciadas 15 doenças Da relevante mortalidade à inexpressividade financeira

de destaque 16 Profissionais Entrevista: Antônio Carlos Lopes de trabalho 17 Mercado A prática da medicina esportiva no país do hospital 18 Além Aventura longe do consultório 20 Ética Direito de morrer 21 multidisciplinar Além do consultório médico 22 especial O dilema do diploma de capa 24 matéria Brasil sob consulta 29 vida José Alencar: “Doutor, estou pronto para vencer a doença”

30 vacinas Evolução das vacinas na Pediatria de residente 31 Vida Enfim, residente e agradável 32 Útil Eventos médicos aliam atualização profissional e lazer

33 bastidores Como é montada a estrutura médica de suporte nos grandes eventos

34 medicin@ Publicidade e medicina na internet históricos 35 Fatos Anestesia: a busca do domínio da dor 36 cultura Suspense na medicina 37 Curiosidades Detalhes históricos e mitos colocados à prova 38 Verdades e mitos 39 crônica A pizza 40 Fotos e eventos 42 aGENDA MEDATUAL

É com enorme satisfação que publicamos a 3ª edição da Revista MedAtual. Recebemos diversas mensagens de incentivo e inúmeras sugestões nas primeiras edições, o que nos confirma a aceitação e a repercussão da Revista. Algumas matérias desta edição surgiram a partir de ideias enviadas por leitores, a quem agradecemos o contato. O tema principal é a discussão entre médicos e planos de saúde, onde apresentamos um panorama dessa relação, incluindo o pedido de uma remuneração mais digna para os médicos. Além disso, entre outros temas, abordamos o consumo dos anti-inflamatórios e suas consequências, fazemos um alerta em relação aos seguros médicos e apresentamos uma matéria sobre doenças negligenciadas. Mostramos o trabalho voluntário do projeto Médicos Sem Fronteiras ao redor do mundo, falamos dos doutores que se aventuram em salvamentos em locais de difícil acesso e trazemos um panorama da Medicina Nuclear. Como matéria especial, focamos o processo de revalidação do diploma médico do exterior no Brasil. Boa leitura! Editores

EXPEDIENTE

Diretores: Atílio Barbosa e Sandriani Caldeira Produção Editorial: Fátima Rodrigues Morais Conselho Editorial: Dra Flávia Fairbanks Lima de Oliveira Marino – mestre em Ginecologia e especialista em Endometriose e Sexualidade Humana pelo HC-FMUSP; Dr Marcos Laercio Pontes Reis – especialista em Hematologia pela Casa de Saúde Santa Marcelina e mestre em Transplante de Medula Óssea pela UNIFESP; Dr Eduardo Bertolli – especialista em Cirurgia Geral pela PUC-SP e em Cirurgia Oncológica pelo Hospital do Câncer A. C. Camargo; Dra Denize Borges Pedretti - residente em Clínica Médica pela UNIFESP; Dr Leandro Faustino - residente em Cirurgia Geral pela UNIFESP. Colaboração: Dr Antonio Bomfim Marçal Avertano Rocha, Dr Ernesto Reggio, Dr Durval Alex G. e Costa, Laísa de Moura e Marlon Gomes Sobrinho Jornalista Responsável: Fátima Rodrigues Morais - MTB 48447 Reportagens: Paula Maria Prado, Pamella Indaiá e Yasmim Mauriz Revisão: Alessandra Barbosa Valença, Denis de Jesus Souza, Fabricio José Fernandes, Henrique Tadeu Malfará de Souza e Luciana de Barros Bocci Serviços Editoriais: Milena Patriota e Tatiana Takiuti Auxiliares Administrativos: Juliana Ferreira e Kátia Suênia Projeto Gráfico e Diagramação: Jorlandi Ribeiro Artes: Martha N. F. Leite e Luciane Sturaro Capa: R2 Criações Fotos: Martha N. F. Leite e Yasmim Mauriz Marketing e Publicidade: Camila Miquelim Tiragem: 100.000 exemplares Periodicidade: Semestral Circulação: Nacional Distribuição: Gratuita MedAtual Avenida Paulista, 1776 - 2º andar www.medatual.com.br medatual@medatual.com.br (11) 3511 6182

A Revista MedAtual é gratuita. Solicite seu exemplar, cadastrando-se em nosso site: www.medatual.com.br. Envie suas opiniões e sugestões pelo e-mail medatual@medatual.com.br.


ATUALIZAÇÕES PATOLÓGICAS ATUALIZAÇÕES PATOLÓGICAS

Robô na sala de operações Com o objetivo de realizar operações minimamente invasivas, os robôs têm ocupado cada vez mais espaço nas salas cirúrgicas

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ioneiro no uso da cirurgia robótica, o Hospital Sírio-Libanês recebeu, em 2008, o primeiro robô do país. O Da Vinci (The da Vinci Surgical System) custou cerca de R$ 5 milhões e já realizou, até o momento, mais de 200 operações. “A grande vantagem do robô é facilitar a cirurgia laparoscópica, tornando-a menos invasiva ao paciente”, afirma o urologista Anuar Mitre, um dos primeiros no país a utilizar o robô Da Vinci em procedimentos cirúrgicos. “Com ele, é possível realizar cortes menores, reduzir sangramentos e facilitar a recuperação, tornando-a mais rápida. Também diminui os riscos de uma infecção hospitalar”, acrescenta o especialista. Desenvolvida para ser realizada nos campos de batalha, espaço onde os profissionais de saúde não podem estar constantemente presentes, a cirurgia robótica é usada em diversas especialidades médicas. “Ela pode ser utilizada na urologia, na ginecologia e em cirurgias do aparelho digestivo, torácica, cardíaca, da cabeça e do pescoço, entre outras”, explica Carlo Passerotti, cirurgião do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, que também adotou a tecnologia. “Os robôs

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são úteis, principalmente, em procedimentos que requerem suturas e processos delicados, realizados em espaços limitados”. Ainda segundo o médico, já existem diversos procedimentos que foram facilitados pela robótica: “a própria prostatectomia era, até o momento, pouquíssimo realizada pela via laparoscópica, devido às dificuldades e à necessidade de suturas em espaços restritos. Outros exemplos são as nefrectomias parciais.” Precisão e profundidade O primeiro robô criado para ser utilizado em cirurgias data de 1985, e tinha por objetivo direcionar uma agulha na biópsia cerebral. Em 1997, a Intuitive Surgical criou uma tecnologia que deu origem ao Da Vinci. O robô, que se assemelha a um polvo, possui quatro braços: em um deles, há uma câmera que reproduz imagens em 3D, e os outros três ficam livres para portarem instrumentos cirúrgicos, como tesouras, pinças e bisturis. “Quem opera a câmera também é o cirurgião. Com os braços, conseguimos chegar a lugares


ATUALIZAÇÕES PATOLÓGICAS

Segundo Mitre, o aprendizado é rápido, e o manuseio do equipamento é fácil. “Quase intuitivo”, acrescenta. “Me interessei pela cirurgia robótica porque queria diminuir o nível de invasão no corpo do paciente. E, com o robô, isso é possível”, conta o médico, que fez o treinamento na Flórida. Pós-doutor pela Harvard Medical School, nos Estados Unidos, Passerotti aprendeu a técnica sob a supervisão de um profissional que já realizava a cirurgia robótica havia mais de cinco anos: “Minha experiência em treinamento foi um pouco diferente da de todos os outros cirurgiões brasileiros. Normalmente, realizam-se um curso de dois dias e, depois, no mínimo quatro cirurgias supervisionadas. No meu caso, tudo isso foi realizado nos Estados Unidos, com a supervisão de um expert em cirurgia robótica e ainda com um treinamento intenso em laboratório, antes da primeira cirurgia”. Ambos os especialistas concordam que essa tecnologia só tem a somar na formação dos residentes, mas ela não deve se sobrepor aos procedimentos comuns. “Em casos de complicações e dificuldade cirúrgica, o acesso aberto é realmente necessário para finalizar a cirurgia”, alerta Passerotti. “As melhores maneiras de aperfeiçoar e praticar a técnica com segurança e bons resultados são o treinamento e a prática contínua.” Realidade nacional que a mão humana pode ser grande demais para alcançar”, afirma Mitre. A imagem vista na tela pode ser ampliada em até dez vezes, mantendo sua nitidez e sensação de profundidade, sem ser necessário abrir ainda mais a região operada. Além de não reproduzirem o natural tremor das mãos, os braços mecânicos permitem 7 graus de rotação a mais que a capacidade da mão humana. A partir de uma mesa de controle, à medida que o médico move as mãos e os dedos, o robô reproduz os movimentos no corpo do paciente. “São movimentados sempre dois braços por vez”, explica Mitre. “Com esse tipo de cirurgia, é possível, inclusive, operar a distância, por telecirurgia, com o médico e o paciente em países diferentes, por exemplo”. Treinamento Atualmente, não é mais necessário sair do país para aprender a operar a máquina. Desde 2009 oferecendo treinamento aos médicos, o Hospital Sírio-Libanês é o pioneiro nessa atividade. “O curso dura dois dias inteiros, e é fácil lidar com a máquina”, relata Mitre. Já são mais de 80 profissionais formados e capacitados para lidar com o robô no Brasil. A partir de 2011, o Hospital Alemão Oswaldo Cruz também oferecerá treinamento. “Estamos desenvolvendo uma especialização para médicos recém-formados e interessados em realizar um aperfeiçoamento em cirurgia robótica, na área de urologia”, afirma Passerotti.

Enquanto nos Estados Unidos e em alguns países europeus a cirurgia robótica já é usada em larga escala, no Brasil ainda se caminha em passos lentos. Além de ela não ter chegado ao Sistema Único de Saúde (SUS), o custo da operação é alto. Oferecida por apenas três hospitais no Brasil – Sírio-Libanês, Albert Einstein e Oswaldo Cruz –, a cirurgia feita por esse robô custa ao bolso do paciente um valor cerca de 20% mais alto do que o de uma operação comum. “Custa cerca de R$ 8 mil. Mas as vantagens desse tipo de intervenção compensam o gasto”, defende Mitre. “O robô custa, hoje, para o hospital, em torno de US$ 1,8 milhão. E são mais US$ 200 mil gastos anualmente para a manutenção.” Além das dificuldades encontradas para a popularização da prática no país, existem as dificuldades enfrentadas pelos cirurgiões: “A primeira é realizar o curso, e a segunda é conseguir pacientes para manter seu treinamento. Outro obstáculo para alguns cirurgiões é a aceitação de um ‘supervisor’ para a cirurgia quando se tem mais experiência em outras técnicas”, conta Passerotti. “Mas acredito que, no futuro, estas técnicas robóticas tendem a evoluir ainda mais e devem ganhar grande espaço no tratamento dos pacientes. Elas devem chegar, no Brasil, a níveis próximos aos dos Estados Unidos, onde quase 85% das cirurgias de próstata são realizadas com a técnica robótica. Mas isso deve demorar mais tempo, devido ao seu custo”, finaliza o cirurgião. Da redação

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PROFISSIONAIS DE DESTAQUE PROFISSIONAIS DE DESTAQUE

Entrevista: Ben Hur Ferraz Neto

Especialista renomado na área de transplante de fígado analisa a situação da doação de órgãos e elogia o setor de transplantes brasileiros

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os 48 anos, com mais de 20 anos de carreira e mais de 2.000 cirurgias no currículo, o paulista Ben Hur Ferraz Neto é um dos grandes nomes na área de transplante de fígado, chefe do Programa de Transplantes do Hospital Albert Einstein e presidente da Associação Brasileira de Transplante (ABTO). “Não me lembro se tive vontade de ser outra coisa senão médico. Tive uma tia avó e um tio avô médicos que me influenciaram muito. Eles eram dedicados ao trabalho e à forma como tratavam os clientes”, conta o cirurgião. Em entrevista exclusiva, Dr. Ben Hur fala um pouco sobre sua carreira, responde a polêmicas questões e analisa a área de transplantes no país. MedAtual: Quando surgiu o interesse pela área de transplante? Ben Hur: Entrei na faculdade em 1982, e já no meu primeiro ano tive um grande interesse por cirurgia. Na época, comecei a acompanhar de perto um cirurgião, inclusive nos finais

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de semana. Foi uma experiência tão interessante que tentei cursar a disciplina de cirurgia fora do currículo médico. Foi quando conheci o professor Willian Saad, que se mostrou muito solícito. No segundo ano de faculdade, comecei a ajudá-lo a organizar reuniões científicas na disciplina de cirurgia. Na época, ele comentava que queria fazer transplante de fígado, que era uma coisa nova. Fiquei interessado e, como acadêmico, passei a trabalhar na área de cirurgia de fígado e na de transplantes. Fiz residência em Cirurgia, depois em Aparelho Digestivo, e resolvi fazer meu mestrado, em 1991, em transplante. Por fim, entre 1993 e 1995, resolvi ir para a Inglaterra, onde fiz meu doutorado na área de Transplante de Fígado. MedAtual: Como o senhor vê o setor de transplantes no Brasil, atualmente? Ben Hur: Acho que temos um exemplo de saúde pública nesta área. Aqui, conseguimos mostrar que é possível reali-


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zar transplantes de forma justa, independente do nível social, político e econômico de cada indivíduo. Mas isso só passou a acontecer depois de 1997, quando foi criado o Sistema Nacional de Transplante. Antes, era uma bagunça. Agora, temos listas únicas, regras, critérios e leis que são claras, conhecidas e discutidas no dia-a-dia. Elas fizeram que o sistema brasileiro de transplantes se transformasse em algo sério e transparente, em que as pessoas sabem em que posição da lista estão e que não há a possibilidade de ninguém passar na sua frente. Neste aspecto, estamos muito evoluídos. Por outro lado, temos ainda uma questão crucial, que é o número de doadores no país, que, apesar de vir crescendo nos últimos anos, ainda não é o bastante. Para ter uma ideia, em 1997 tínhamos três doadores por milhão de habitantes; hoje, temos dez. É um crescimento grande, mas, se analisarmos o estado de São Paulo, por exemplo, são 22 doadores por milhão de pessoas. Então, existe um potencial enorme de crescimento neste país, mas ainda temos poucos doadores em relação ao número de pessoas que necessitam de transplante. E isso é um problema. Outra dificuldade é que a distribuição dos centros de transplantes e de doação de órgãos ainda é muito heterogênea. As regiões Norte e Centro-Oeste, principalmente, são muito carentes em unidade de transplante, e, com exceção do Distrito Federal, praticamente não existe a doação de órgãos. A região Sul é a mais desenvolvida, e o Nordeste vem melhorando progressivamente. Existem exemplos pontuais de sucesso na questão da doação de órgãos, como Santa Catarina, São Paulo, Ceará, Distrito Federal e Espírito Santo.

Ben Hur: Em nenhum lugar do mundo isso aconteceria. Mas melhoraria muito. Hoje, a Secretaria de Estado de Saúde de cada Estado recebe provavelmente a metade da comunicação do número possível de mortes encefálicas. E, dessas, que ficamos sabendo, conseguimos aproveitar apenas 30%.

MedAtual: Em média, quantos transplantes são feitos por ano no Brasil? Ben Hur: São, aproximadamente, 8.900 transplantes de órgãos sólidos por ano, como rim, pâncreas, fígado, pulmão e coração. Órgãos não sólidos seriam tecidos, córnea, ossos e cartilagem, por exemplo. Para o transplante dos órgãos sólidos, o doador precisa estar com morte encefálica. Já os tecidos podem ser doados por quem teve parada cardíaca.

MedAtual: Quanto tempo, em média, uma pessoa aguarda na fila de espera para receber um órgão? Ben Hur: A fila é grande. Existem entre 40 e 50 mil pessoas aguardando por um transplante. Dessas, entre 15 e 20 mil esperam por um rim, seis mil aguardam um fígado, entre 200 e 300 precisam de um coração, e cerca de 500 aguardam por um pâncreas. A fila de córnea já poderia ter sido extinta no Brasil, porque ela é doada depois da parada cardíaca, em todo tipo de morte. Em São Paulo, por exemplo, com a evolução dos últimos anos, não temos mais filas. Hoje, se você precisar de transplante de córnea, levará no máximo duas semanas para ser feito.

MedAtual: E os transplantes feitos com o doador ainda vivo? Ben Hur: São, principalmente, de rim e de fígado. Mas só ocorre o transplante entre vivos porque não há doadores já falecidos em número suficiente. Isso é ruim, mas provavelmente nunca atingiremos um número suficiente para que não tenhamos mais a necessidade de doadores vivos. MedAtual: Se todas as pessoas doassem seus órgãos depois da morte encefálica, teríamos órgãos suficientes? Existe tanto óbito por morte encefálica, a ponto de suprir a necessidade do sistema?

MedAtual: Por quê? Ben Hur: Por vários motivos. Cerca de 30 a 40% das famílias se recusam a doar o órgão do ente falecido. Aproximadamente 25% dos pacientes têm parada cardíaca durante o processo de diagnóstico da morte encefálica até a retirada do órgão. Esse processo inclui entrevista com a família, espera da decisão dela, obtenção da doação, e depois ainda temos de marcar com as equipes médicas e o centro cirúrgico, acertar os receptores e, finalmente, fazer a operação. Isso leva, em média, entre 24 e 36 horas. Nesse período, um quarto desses ex-pacientes, atualmente falecidos, que são mantidos com o coração batendo à custa de medicação e de aparelhos com o único objetivo de doar seus órgãos, tem parada cardíaca. Nesses casos, perdem-se os órgãos. Então, estamos muito aquém do que poderíamos fazer. O bom é que, nos últimos dez anos, temos melhorado progressivamente. E acredito que estamos no caminho certo. O Programa Nacional de Transplante é extremamente transparente e muito promissor do ponto de vista de crescimento. Hoje, 90% dos transplantes de órgãos feitos no Brasil são subsidiados pelo SUS.

MedAtual: Para o senhor, as faculdades preparam os estudantes de medicina para lidar com todo o processo envolvido em um transplante? Ben Hur: Infelizmente, não. São duas faculdades de medicina no país que têm o curso formal de transplante. Mas, normalmente, as disciplinas do transplante de órgãos ou de doação de órgãos não fazem parte do currículo médico. Temos discutido bastante isso.

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MedAtual: A Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos adotou políticas que fizeram aumentar o número de doadores? Ben Hur: Há anos, a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos vem obtendo uma atuação muito significativa na evolução dos transplantes. Atualmente, temos feito ações educacionais específicas na área da saúde, formando pessoas especializadas em todas as áreas de transplantes e na capitação dos órgãos. Temos feito isso em várias instituições, universidades e hospitais privados, como o Einstein (Hospital Albert Einstein). Existe uma tendência em formar profissionais pelo sistema, inclusive na captação de órgãos. São pessoas que podem realmente oferecer a essas famílias, no momento de dor da morte de um familiar, todo o suporte, e dar a elas as respostas necessárias. MedAtual: O senhor lida com pacientes em estados quase terminais, alguns com câncer ou cirrose. Acredita que existam pessoas que não devam receber um novo órgão? Ben Hur: Há pessoas que teriam uma contraindicação em receber um órgão novo, talvez porque tenham uma doença com uma evolução tal, e que o resultado do transplante pode ser muito ruim. Temos de olhar com responsabilidade esses assuntos. O bem mais caro e mais escasso de toda a cadeia é o próprio órgão. Então, temos de criar critérios para que os pacientes possam ser transplantados. Basicamente, esses critérios são internacionais e determinam se aquele paciente vai morrer ou vai ter uma qualidade de vida muito ruim sem o transplante, por isso, se for transplantado, terá uma chance de viver e de voltar a ter uma vida normal. Claro que existem situações especiais e específicas que podem ser discutíveis, mas basicamente é isso. O ideal é pegarmos alguém que tenha uma qualidade de vida muito ruim e que tenha uma chance muito pequena de viver e, quando oferecemos o transplante, darmos a ela uma chance enorme de voltar a ter uma vida normal. Essa é a filosofia básica para que ela seja compreendida por quem não é médico de transplante. Não faz sentido eu usar um órgão escasso, seja ele qual for, em alguém que esteja com uma doença muito grave e com enorme chance de morrer mesmo com o transplante. Seria uma utilização inadequada do órgão. MedAtual: Gostaria que o senhor comentasse sobre os limites do médico. Entre poder e não poder curar. Ben Hur: Acho que, em primeiro lugar, todo médico que se sente Deus não deveria atuar em medicina. Em minha opinião, algumas coisas são importantíssimas. A primeira delas é que bom-senso é fundamental na prática médica. Se ele acha que é capaz de tudo, pode colocar o paciente sob um risco enorme, porque ele passa a não ter limite. O limite deve ser encarado a partir de sua experiência, de seu conhecimento, de sua for-

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mação. Não devemos ter vergonha de dizer “não sei” nem de pedir a opinião de um colega. Temos de ser absolutamente claros com os familiares do doente. E este tem o direito de saber o que tem, por pior que seja a notícia. Lógico que existem formas adequadas de dizer ao doente o que ele tem. Mas os médicos têm de ser treinados nessa relação médico-paciente. Acho que essa é uma das principais dificuldades que existem hoje. MedAtual: Em uma recente entrevista, o senhor disse ser defensor de uma espécie de “caixa-preta” na sala de cirurgia. Gostaria que comentasse como seria isso. Ben Hur: Acho que tudo que pode ser feito para trazer segurança ao paciente deve ser, pelo menos, discutido. Se ele souber de tudo o que vai ser feito, todos os riscos que corre e se houver alguma coisa que possa ampliar sua segurança no procedimento, poderá ser positivo tanto para ele quanto para o médico. Se tivéssemos na cirurgia os mesmos moldes de segurança que temos em um avião, isso seria interessante. Eu gostaria de ter muito uma caixa-preta na minha sala de cirurgia. Algo que filmasse tudo o que pudesse me ajudar e identificar se houve problemas no processo, se alguma coisa surpreendeu naquele tratamento etc. MedAtual: Para aprimorar a técnica? Ben Hur: Dá até para aprimorar a técnica de segurança. Por isso, usei o exemplo da caixa-preta, que é o que acontece no avião. Se não houver problemas, ninguém abrirá a caixapreta, mas se ocorrer algo inesperado veremos o que aconteceu e tentaremos evitar que aconteça novamente. MedAtual: O senhor tem receio, mesmo com todos os anos de profissão, de lidar com o “desconhecido”, dessa possibilidade de as coisas darem errado? Ben Hur: Não lido com o desconhecido. Na verdade, pelo contrário, lido com o conhecido. Me preparei para fazer o que faço no dia-a-dia, tenho conhecimento, não faço nada que eu não me tenha preparado para fazer. Lógico que estar despreparado para situações surpreendentes faz parte das atividades que exerço. Mas, nesses casos, você sabe encarar as dificuldades. O médico nunca vai se conformar com as coisas que acontecem e que acabam levando o paciente à morte. No entanto, temos de ter o bom-senso de entender que existe um limite para o tratamento, que, algumas vezes, é melhor dizer para o doente que o melhor tratamento é não fazer nada. E essa talvez seja uma das maiores limitações do médico hoje. Ele está sempre disposto a fazer alguma coisa, e se essa “alguma coisa” não trouxer um benefício real ao paciente, ele não estará fazendo o adequado. Ele deve ter bom-senso e conhecimento suficientes, até porque ele não pode falar que não tem nada para fazer e tem, não é? Da redação


hospitais hospitais

Exemplo de tratamento à criança no Brasil Atendendo o conceito de “Children’s Hospital”, o Hospital Infantil Sabará amplia seu espaço físico e torna-se referência no Brasil

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r ao hospital pode não ter nada de legal, ainda mais quando se é criança. Cientes disso, hospitais infantis procuram deixar essa experiência menos traumática. Um grande exemplo é o Hospital Infantil Sabará. Preocupado em oferecer um tratamento de excelência, inaugurou em 2010 sua mais nova instalação, que conta com ambiente totalmente elaborado para receber o paciente infantil. “Temos que cuidar da criança e pensar na satisfação dos pais dela. Porque eles têm que estar envolvidos no tratamento”, explica o pediatra José Luiz Setúbal, presidente do hospital. Além da estrutura física, o hospital também se preocupa com sua equipe. Os profissionais são treinados para

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executar atividades recreativas que facilitam a compreensão do paciente e de seus pais, auxiliando no diagnóstico e no tratamento. “Enfermeiros e auxiliares utilizam bonecos para explicar e simular os procedimentos, por exemplo”, conta Fátima Rodrigues, pediatra do Sabará. A equipe é especializada no diagnóstico e no tratamento de doenças desde recém-nascidos e até adolescentes. “Criança é diferente de adulto. Ela precisa de cuidados e necessidades específicas, desde recém-nascida até seus 18 anos. Normalmente, ela leva mais tempo nos procedimentos. Melhora rapidamente, mas, se for o caso, piora na mesma velocidade”, explica Setúbal.


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Infraestrutura

O lúdico no tratamento

Atualmente instalado em um prédio de 17 andares, na cidade de São Paulo, e com uma equipe composta por 355 médicos e 340 funcionários, além de infraestrutura com 104 leitos, 28 leitos de UTI e 7 salas cirúrgicas, o Hospital Infantil Sabará, que recebeu R$ 90 milhões em investimentos, deixa seu perfil inicial de pronto-socorro infantil para se tornar um centro pediátrico de alta qualidade, incorporando, em definitivo, o conceito de “Children’s Hospital”, já comum nos Estados Unidos e na Europa, e que oferece, em um único lugar, todo tipo de tratamento na área de pediatria. A partir de agora, estão previstas 6.000 cirurgias por ano em áreas como cardiologia, ortopedia, neurocirurgia, neurologia, urologia, oncologia, nefrocirurgia e cirurgias ortopédica e otorrinolaringológica. E a expectativa é que o número de pacientes atendidos no pronto-socorro salte dos antigos 90 mil para 160 mil anuais. O atual centro cirúrgico possui suporte tecnológico avançado, realizando até transplantes – aparelhos, como ressonância magnética e ultrassom são calibrados exclusivamente para o diagnóstico infantil –, e processos exigidos pelas instituições certificadoras internacionais. Uma das salas cirúrgicas, inclusive, é equipada para transmitir operações via internet para qualquer lugar do mundo.

Serviços que trazem uma decoração lúdica, brinquedotecas e atividades recreativas, além de importantes, são cada vez mais frequentes. O projeto do Sabará ainda mescla elementos artísticos e didáticos, tudo para que a criança esqueça que está em um ambiente hospitalar. “Ela fantasia muito. Até a roupa branca do médico pode gerar medo”, explica o pediatra. Para divertir os pacientes entre um procedimento e outro, as instalações contam com brinquedos, personagens interativos, salas de jogos e espaços com área verde. “Além de propiciar conforto durante a permanência do paciente, o ambiente lúdico ajuda a atenuar as situações de estresse e ansiedade, sempre presentes durante uma internação”, afirma Fátima.

Um ambiente onde a criança se sinta acolhida interfere positivamente, facilitando sua recuperação

Aparelho de tomografia computadorizada simulando uma nave espacial descontrai as crianças que farão exame

O hospital é setorizado em alas separadas por andar para prever o controle da infecção hospitalar. Além disso, as escadas rolantes e as rampas dão agilidade e vazão aos funcionários no dia-a-dia. Foram utilizados modernos conceitos, como o de retrofit, que tem por objetivo revitalizar um edifício aproveitando a estrutura já existente. Na adaptação, foram usadas alternativas sustentáveis, como o uso da iluminação e ventilação natural. “Existem muitos estudos e pesquisas que mostram que um ambiente bem elaborado melhora a condição da criança, principalmente reduzindo o tempo de permanência no hospital”, diz Setúbal.

O hospital Sabará corresponde às expectativas dos pequenos. De olho na preferência da garotada, na época da execução do projeto, foi feito um concurso, para que as crianças pudessem escolher, por meio de votação, a artista que ilustraria as paredes do edifício. A ilustradora Cecília Esteves, a escolhida, passou por um período de estudo do ambiente, incógnita na sala de espera do antigo hospital. Cada andar ganhou um tema inspirado em regiões do mundo. “Tem personagens e é como se contasse uma história. A criança pode interagir”, encanta-se Setúbal. Nas paredes, há mapas, textos e curiosidades de inúmeros países, criados pela autora de livros didáticos Aloma Fernandes de Carvalho. “Cada unidade tem um tema para tornar o local agradável”, conta o presidente da casa. “Temos também a África, os polos, a floresta amazônica...”. No térreo, há uma homenagem ao Brasil. Com um jogo de espelho d’água, as crianças podem passar o tempo em um barquinho interativo enquanto esperam atendimento.

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“Temos a brinquedoteca, com jogos e diversões específicas para as idades. As cores e a luz de cada andar foram pensadas para necessidades especiais. Mais vibrantes, por exemplo, quando precisamos de atenção, e menos, quando pode ser relaxante”, conta Setúbal. “Até a mobília é diferente. A cama, por exemplo, é de hospital, mas a cabeceira é como as que temos em casa.” No sétimo andar, há um solário com brinquedos gigantes, como escorregador em forma de elefante, balança em formato de zebra, além do jardim. O hospital ainda tem cafeteria e estacionamento. “Para as crianças que ficam mais tempo no hospital ou que precisam vir com frequência, como no caso das que fazem tratamento oncológico, conseguimos diminuir o nível de estresse, o que favorece a recuperação”, enfatiza o presidente. “Quando estabilizarmos dessas últimas mudanças, queremos colocar em prática projetos junto dos contadores de histórias, por exemplo, ou de fazer um cartão-postal para que as crianças possam enviar aos amigos da escola, fazer um bóton de coragem como um prêmio para quando elas forem fazer procedimentos como tirar sangue...”, revela Setúbal, cheio de planos.

pontuação pela Comissão Nacional de Acreditação (AMB) e altas taxas de satisfação. Permite, assim, a integração dos alunos, através do chat, com professores das principais faculdades de São Paulo, a maioria deles também exercendo suas atividades no Hospital Infantil Sabará (www.condutaspediatricas.com.br).

José Luiz Setubal, presidente do hospital

Sabará em números Estrutura 104 leitos 28 leitos de UTI 7 salas cirúrgicas 355 médicos 340 funcionários Mensalmente 10.000 atendimentos no pronto-socorro 100 cirurgias 10.900 exames de diagnóstico 450 internações

Espaço ecumênico do Hospital. O ambiente adequado à criança faz com que ela se sinta mais segura e protegida

Ensino e pesquisa Em 2010, o hospital transforma-se em uma fundação com o objetivo de manifestar sua responsabilidade social através do incentivo ao ensino e à pesquisa em pediatria. Também em 2010 foi lançado o Manual de Urgências e Emergências em Pediatria do Hospital Infantil Sabará, o primeiro livro de uma série que a instituição pretende publicar, para o aprimoramento do profissional que atua nas diversas áreas de assistência à saúde da criança e do adolescente. Além disso, vários cursos e simpósios estão sendo organizados pelo Centro de Ensino e Pesquisa do Hospital Infantil Sabará, promovendo a atualização dos profissionais médicos e de outras áreas. Um dos cursos de maior sucesso é realizado pela internet, contando com mais de 500 inscritos anualmente, com

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Por que é referência na área? Estrutura: conta com brinquedoteca com jogos e diversões para idades específicas. Há computadores para os mais velhos e jogos de montar para os mais novos, por exemplo. Também há cafeterias, salões exclusivos para os pacientes e seus pais e área de lazer externa. Alimentação: os alimentos são colocados de forma lúdica no prato. E, eventualmente, são feitos pratos especiais, como na época da Copa, em que era servida a comida típica de cada país. Prédio: iluminação, cores nas paredes e mobiliários planejados de acordo com as necessidades de cada ambiente. Desenhos, mapas e textos na parede enfocam o lúdico e o didático. Tratamento: equipe formada por profissionais com habilidades especiais, preparada para lidar com crianças e adolescentes. Da redação


direitos do médico direitos do médico

A saúde, o trabalho e a carga horária do médico residente Do aprendizado à condição de subemprego: como as longas jornadas de trabalho alteram a saúde do residente

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Residência Médica, como programa de treinamento avançado de médicos recém-formados, foi inicialmente instituída no final do século XIX. Na época, grandes centros médicos da Inglaterra e dos Estados Unidos da América (EUA) deparavam com uma dificuldade de adequação do ensino médico diante da crescente geração de conhecimento nas principais áreas da medicina. Os primeiros programas de Residência Médica foram institucionalizados por volta da década de 1920, nos EUA e na Inglaterra. No Brasil, a regularização sob forma de lei veio em 1977, embora alguns programas tenham surgido poucas décadas antes dessa data. Tal regularização foi instituída pelo Decreto 80.281/77, que definiu a atividade do médico residente como “modalidade de ensino de pós-graduação, destinada a médicos, sob a forma de cursos de especialização, caracterizada por treinamento em serviço, funcionando sob a responsabilidade de instituições de saúde, universitárias ou não, sob a orientação de profissionais médicos de elevada qualificação ética e profissional”. Mais tarde, a Lei Federal nº 6.932, de 7 de julho de 1981, tornou necessários o credenciamento dessas instituições na Comissão Nacional de Residência Médica e a submissão dos programas a um processo seletivo previamente

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aprovado pela mencionada comissão, ampliando ainda mais o espectro de aprendizado-ensino da Residência Médica. De fato, verificamos que a relação entre o residente e as instituições de saúde não poderia ser considerada de trabalho, eis que a própria legislação a define como sendo de aprendizado. Mas, na prática, sabe-se que há trabalho. E muito. Embora a Lei 6.932/81 estabeleça que “os programas de Residência Médica respeitarão o máximo de 60 horas semanais, nelas incluídas um máximo de 24 horas de plantão”, e que “o médico residente fará jus a um dia de folga semanal”, o que se observa na prática é uma carga horária que chega a atingir 100 horas semanais, distribuídas em turnos de até 48 horas ininterruptas, nas quais o residente intercala atividades de enfermaria, centro cirúrgico, pronto-socorro e eventuais preparos de aulas e casos para apresentações. Vale lembrar que, perante a legislação civil, os residentes são responsáveis por indenizações, como os médicos que lhes orientam: em julgamento (publicado no Diário Oficial da União de 18/03/2002), o Superior Tribunal de Justiça decidiu que o médico residente, mesmo que apenas se encontre dentro da sala na qual ocorreu o dano que levou o paciente a óbito, é por ele responsável, na medida de sua culpabilidade – inclusive por


DIREITOS DO MÉDICO

omissão –, competindo ao residente demonstrar o grau de participação no evento morte. Não obstante, o ambiente de trabalho do residente é repleto de situações limítrofes e fatores estressores, identificados na literatura médica como pacientes terminais, óbitos frequentes, dores crônicas, quantidade de pacientes sob a responsabilidade de cada residente, aviso de óbito a familiares, pacientes hostis e não aderentes ao tratamento, competição entre os colegas, fadiga crônica, privação de sono, ausência de atividades de lazer e de convívio com familiares. Todos esses fatores levam à chamada “síndrome do stress do residente”, descrita originalmente em 1981 pelo psiquiatra americano Gary Small, da Universidade da Califórnia, como House Office Stress Syndrome, cujas características são: distúrbios cognitivos episódicos, raiva crônica, discórdia familiar, cinismo, uso abusivo de drogas, depressão, ideação e tentativas reais de suicídio. Estudo realizado no Núcleo de Assistência e Pesquisa em Residência Médica (Napreme), vinculado ao Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo, corrobora a existência da síndrome: entre 233 residentes de várias áreas, 11,4% dos entrevistados referiram algum tipo de ideação suicida e 3,4% já haviam conduzido alguma forma de tentativa; 43,3% sofriam de algum distúrbio do sono e 19,4% foram diagnosticados com depressão. De maneira semelhante, a literatura americana aponta uma prevalência de depressão entre os residentes do primeiro ano de até 30%, enquanto nos residentes de 2º e 3º anos a prevalência estimada é de 22 e 10%, respectivamente. A Associação Americana de Medicina considera o residente como “categoria de risco para distúrbios emocionais”. Tais dados, além de obviamente contraproducentes para quem se dispõe ao aprendizado e ensino de uma especialidade, alertam para a emergência do adoecimento de um grupo populacional importante na sociedade, merecedor de campanhas públicas de saúde e de melhorias diversas. Porém, por se tratar de um grupo proporcionalmente restrito dentro da estrutura populacional brasileira, os médicos residentes têm conseguido poucos resultados em suas reivindicações. Sua bolsa, fixada por lei, é de R$ 1.916,45, o que, segundo cálculos da Associação dos Médicos Residentes do Estado de São Paulo, equivale a R$ 6,00 a hora. Em agosto de 2010, uma paralisação nacional da classe reivindicou ajuste de 38,7% na bolsa recebida, bem como a fixação de uma data-base anual para o reajuste desse auxílio, o pagamento de 13º salário e o simples cumprimento da carga horária máxima de 60 horas semanais, previsto na lei. Em resposta, o Ministério da Educação prometeu, mediante a Portaria Interministerial nº 2.352, de 16 de agosto de 2010, o reajuste de 20% da bolsa a partir do orçamento de 2011, sem atentar ao fato de que a inflação acumulada entre janeiro de 2007 – data do último reajuste – e agosto de 2010, medida pelo IGP-M da Funda-

ção Getúlio Vargas, foi de 24,03%. De maneira contraditória, as fontes pagadoras sustentaram que não se poderia avançar nessas reivindicações trabalhistas por serem os residentes estudantes de pós-graduação, esquecendo-se de que esses alunos recolhem INSS e Imposto de Renda da mesma forma que um trabalhador comum. Cabe ressaltar, ainda, que, juridicamente, a validade desse reajuste depende da aprovação pela Câmara e pelo Senado de projeto de lei federal que altere a Lei 6.932/81, bem como da sanção da própria Presidente da República, posto que não há qualquer vinculação da Portaria aos efeitos práticos na alteração legislativa. Apesar do movimento ativo de muitas associações de médicos residentes em todo o Brasil, as melhorias no setor parecem possíveis somente a partir da boa vontade de poucos. Tramitam no Senado Federal três projetos de lei a respeito da regulamentação da atividade dos médicos residentes: PL 7.328/2010, de autoria do Deputado Federal Vilson Covatti (PP-RS), que prevê o pagamento de auxílio alimentação e moradia, no valor de 10 a 30% do valor da bolsa, o PL 6.146/2009, que assegura o 13º aos médicos residentes e o PL 7.055/2010, que assegura licença gestante de 180 dias, estes dois últimos de autoria do Deputado Federal Arlindo Chinaglia Jr. Tais projetos tramitam sem prioridade para votação e podem ter sua evolução acompanhada pelo site www.camara.gov.br. Tanto os projetos de lei quanto as concessões do Ministério da Educação se mostram acanhados diante da realidade e das reivindicações dos residentes. Embora a discussão acerca da relação entre o residente e a instituição de saúde esteja no centro de qualquer argumentação, a integridade física e mental destes médicos deve colocar qualquer outra discussão em plano secundário. O que se observa é o prejuízo incontestável da saúde de quem deveria estar aprendendo a cuidar, justamente, da saúde dos outros. Em algum momento, entre a criação dos programas no início do século passado e os dias atuais, a Residência Médica passou do aprendizado avançado na área médica para a condição de subemprego, totalmente insalubre e prejudicial à saúde do residente. Se considerarmos que a atividade médica lida com o maior bem que o ser humano possui – a vida –, o respeito à dignidade da pessoa humana e o resguardo ao exercício do direito social de acesso à saúde deveriam ser assegurados pelo Estado, que não pode fornecer tais condições de “aprendizado” aos médicos residentes. Laísa de Moura Advogada, especialista em Responsabilidade Civil pela Fundação Getúlio Vargas (GVLaw) e mestranda em Direito Civil pela PUC-SP. Leandro Faustino Residente em Cirurgia Geral pela Escola Paulista de Medicina (UNIFESP).

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A importância da doação de medula óssea Apesar de o país contar com mais de 1,6 milhão de doadores voluntários inscritos, as chances de encontrar um doador não aparentado são de aproximadamente um em 100 mil

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transplante de medula óssea, hoje mais corretamente chamado de transplante de células-tronco hematopoiéticas, é um procedimento no qual se visa à correção de um defeito quantitativo ou qualitativo da medula óssea (o tecido formador de todos os elementos figurados do sangue) através da infusão de células progenitoras hematopoiéticas. A primeira tentativa de realização desse procedimento data de 1939, e, desde então, muito se avançou nessa área da medicina, passando o transplante a ser aceito como uma modalidade curativa para as mais diversas doenças malignas (como leucemias, linfomas e tumores sólidos) até doenças benignas (como anemia falciforme, talassemias e doença de Gaucher). Apesar da ampla variedade de indicações, o transplante de medula óssea esbarra em um sério problema: a falta de doadores aparentados, ideal fonte de células-tronco, devido a maior chance de compatibilidade entre pessoas da mesma família.

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Essa compatibilidade é avaliada por meio da investigação dos chamados antígenos de histocompatibilidade principal (conhecidos com a sigla HLA). Assim, pela análise dos HLAs dos irmãos e demais parentes com o HLA do paciente, averigua-se a presença ou não de compatibilidade. Porém, pela extrema variabilidade de tipos de HLA – mesmo dentro de uma única família – e segundo as leis de herança genética, a chance de um paciente ter um irmão compatível é de somente 25 a 30%. Desta forma, quando um paciente necessita de transplante de medula óssea e não possui doadores aparentados, inicia-se a busca ativa de doadores não aparentados através dos chamados bancos de doadores de medula óssea, no Brasil chamado de Registro Brasileiro de Doadores de Medula Óssea (ou simplesmente REDOME). Criado em 2000 e sediado no Instituto Nacional de Câncer no Rio de Janeiro (INCA), o REDOME tem crescido ex-


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pressivamente nos últimos anos. Segundo dados do INCA, em 2000, contabilizavam-se apenas 12 mil inscritos, perfazendo apenas 10% de doadores brasileiros dentre os transplantes de células-tronco não aparentados realizados; hoje esse número ultrapassa a marca de 1,6 milhão de doadores inscritos, tendo o percentual subido para 70%. Assim, o Brasil já é o terceiro maior banco de dados do gênero do mundo, ficando atrás apenas dos EUA e da Alemanha. Este enorme crescimento no registro de doadores se deveu não somente a programas governamentais de conscientização e motivação à doação, mas também ao expressivo aumento de investimentos públicos e privados no setor. Todo o processo dentro do REDOME é totalmente informatizado. Os dados dos doadores são cadastrados no sistema informatizado central no INCA com cruzamento de informações junto ao Registro Brasileiro de Receptores de Medula Óssea (ou REREME), onde estão os tipos de HLA dos candidatos a transplante de medula óssea no Brasil. Caso haja compatibilidade entre doador e receptor nos respectivos registros, o doador é acionado e realizará a coleta de suas células-tronco hematopoiéticas no centro transplantador mais próximo de seu domicílio, onde uma equipe médica já aguarda o material coletado para transporte até onde ocorrerá o transplante. Hoje, no Brasil, são 42 centros para transplantes entre familiares e oito para transplantes com doadores não aparentados. Apesar de todo o incremento no número de doadores e efetivo esforço público e privado, as chances de encontrar um doador não aparentado se mantêm baixas (variando em torno de 1 em 100.000). Logo, quanto mais doadores cadastrados, maior a probabilidade de um paciente alcançar a cura através de um transplante de medula óssea não aparentado. Faça a sua parte: cadastre-se no hemocentro mais próximo e seja um doador de medula óssea!

Quem pode se cadastrar como doador voluntário? O candidato a doador deve ter entre 18 e 55 anos e estar em boas condições de saúde. Como se cadastrar? Basta procurar o hemocentro de sua cidade, levando documento oficial com foto. Lá, será realizada pequena entrevista para esclarecimento de dúvidas e avaliação do candidato, procedendo-se a seguir à coleta de amostra de sangue (cerca de 10mL). Nessa amostra, por análises moleculares, vê-se o tipo de HLA do doador. Como é feita a coleta de células-tronco? Há várias maneiras de realizar a coleta de célulastronco para transplante; na grande maioria dos casos, procede-se à coleta por acesso periférico (ou seja, numa veia de bom calibre nos membros superiores do doador) ou, caso na ausência destas, através da implantação de um cateter em veias mais profundas (principalmente em região inguinal); entretanto, em alguns casos e dependendo da doença de base do receptor, pode-se realizar esta coleta em ambiente cirúrgico, sob anestesia geral, requerendo usualmente 24 horas de internação. Mais informações em www.doemedula.com

Marcos Laercio, hematologista, com paciente recém-transplantada, no Amazonas

Quanto mais doadores voluntários estiverem cadastrados, maiores as chances de encontrar um doador não aparentado compatível

Marcos Laercio Pontes Reis Hematologista Especialista em Transplante de Medula Óssea.

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DROGAS X MÉDICOS Curador ferido

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ilho de Apolo, deus da saúde, Asclépio foi tirado do ventre de sua mãe no momento em que ela se encontrava na pira funerária. Por sua vitória sobre a morte, tornou-se o deus da medicina. No entanto, o que poucas pessoas sabem é que foi o centauro Quirón que lhe ensinou tudo o que sabia sobre a arte médica. Paradoxalmente, este, que dominava os poderes curativos de diversas ervas conseguindo curar qualquer doença, tinha, na verdade, uma ferida incurável, causada por uma flecha envenenada que o atingiu enquanto tentava salvar outro centauro. Eis o mito que assombra parte dos profissionais de saúde: o curador que não consegue se curar.

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Assim como na mitologia grega, diversos profissionais, para fugirem do estresse do dia-a-dia, embarcam em um caminho perigoso e difícil de voltar. O uso de drogas por médicos e residentes ainda é um tabu na sociedade como um todo, o que dificulta o tratamento dos usuários. Em 1903, o JAMA (Journal of the American Medical Association) já apontava a necessidade de estudar os aspectos psíquicos dos médicos. Segundo o editorial, os profissionais de saúde, para escaparem de seus problemas, desenvolviam uma série de mecanismos, como o uso de drogas, mudanças comportamentais, até, finalmente, chegarem ao suicídio. Cem anos depois, um novo artigo homônimo mostrou


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que nada tinha sido feito para aliviar os problemas médicos desde então, e que o nível de dependência química havia evoluído a altos níveis em relação à população. Assim como o antigo provérbio, “Médico, cura-te a ti mesmo” (Lucas 4:23), a realidade traz como dissonância dois fatores: para conquistar a cura, é necessário acreditar que se está doente e que apenas um profissional capacitado é capaz de lhe ajudar. Essa é uma das maiores dificuldades médicas. “Infelizmente, alguns médicos são prepotentes, acham que podem tudo e não buscam ajuda porque acreditam que estão sob controle”, afirma Daniel Cordeiro, psiquiatra da Unidade Pública de Tratamento de Dependência

de Drogas do Estado de São Paulo. “Um médico costuma procurar ajuda não quando percebe que está viciado em algum medicamento ou droga, mas porque, provavelmente, a ´casa caiu´”, complementa Alessandra Diehl, médica psiquiatra, coordenadora da enfermaria de dependentes químicos da UNIFESP. “Geralmente, alguém descobriu o problema ou o próprio médico não conseguiu realizar algum procedimento. Nesses casos, quando ele chega até nós, já está, infelizmente, em um estágio muito grave”, explica a especialista. De acordo com Cordeiro, uma colega de profissão, paciente de Alessandra, tomava anfetamina havia 15 anos e só parou porque estava entrando em estado psicótico. “Ela teve várias oportunidades de procurar ajuda, mas só buscou porque estava ouvindo vozes”, afirma. Casos de automedicação e autoprescrição são comuns. Segundo recente estudo publicado na revista da Associação Médica Brasileira, feita por Hamer Alves, pesquisador da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (UNIAD), do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP, e professor responsável pelo Curso de Especialização em Dependência Química via Internet, a substância mais consumida é o álcool associado às drogas (36,8%). Das pessoas estudadas, 34,3% declararam usar apenas álcool, e 28,3%, somente drogas. Foram coletados dados de 198 médicos em tratamento ambulatorial por dependência química, por meio de um questionário. A maioria dos indivíduos eram homens (87,8%), casados (60,1%) e com idade média de 39,4 anos. Destes, 66% já tinham sido internados devido ao uso de álcool e/ou drogas. Ainda segundo a pesquisa, as especialidades que detêm mais usuários são Clínica Médica, Anestesiologia e Cirurgia. O estudo também mostrou que o usuário leva cerca de um 3,7 anos entre a identificação do problema e a procura do tratamento. Entre os pesquisados, 30,3% buscaram terapia de forma voluntária. Quase um terço dos deles teve problemas no casamento, sofreram com o desemprego, se envolveram em acidentes automobilísticos e tiveram problemas profissionais, alguns, inclusive, junto aos Conselhos Regionais de Medicina. “Levando em conta a pressão e o estresse no trabalho médico, é como se o profissional usasse a droga como uma forma de compensação”, afirma Cordeiro. Muitas vezes, as pessoas ao redor veem o problema, mas preferem se omitir acreditando estar fazendo bem ao colega. “Observamos, em diversas ocasiões, que um médico não quer falar do outro porque isso pode soar como denúncia”, diz Alessandra. “E ele também não quer ser responsável caso o colega perca o emprego ou tenha problemas com o Conselho Regional de Medicina. Então, prefere ficar em silêncio, ainda que saiba do problema.” A família também pode dificultar o processo de tratamento. “A um paciente, residente do primeiro ano de Anestesia, foi prescrita internação. Seu pai, porém, não o deixou ser internado, pois, com isso, perderia a residência”, conta

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Cordeiro. “Eles não querem encarar o problema. Sua mãe o encontrou convulsionando no banheiro de casa, e ainda assim decidiram não interná-lo”, revolta-se. Segundo ambos os médicos, o uso de drogas comumente chega a um determinado estágio que se torna um ciclo vicioso. “Acontece muitas vezes de, por exemplo, o médico querer parar de beber para não fazer uma cirurgia embriagado, mas se não beber, suas mãos tremem...”, conta Cordeiro. “Já tive um paciente, pediatra, que chegou a confessar não ter se lembrado do que prescreveu aos seus pacientes”. As drogas mais usadas ainda são as de prescrição médica, no entanto há casos de maconha, cocaína e crack. “Podemos ver que o uso de crack está se alastrando na população. E, claro, os médicos não ficam de fora...”, afirma Alessandra. “Temos o caso de uma médica em tratamento que estava, inclusive, em situação de rua. E ela só veio buscar ajuda porque foi estuprada e levou uma surra de um traficante. Essa é uma condição extrema, por exemplo.”

dona ou os benzodiazepínicos, em que a parada pode ser feita gradualmente”, afirma a psiquiatra. “Há saídas, e é possível o médico voltar a ter uma vida normal, mas o vício deve ser tratado como uma doença crônica, progressiva e fatal.”

Profilaxia É importante alertar sobre o uso de drogas desde quando o estudante entra na faculdade de medicina. Pesquisa publicada na revista Addictive Behaviors, em 2008, revelou que, entre os estudantes, o álcool é a substância mais usada. Cerca de 80% dos homens e 72,5% das mulheres declararam o consumo. Entre os primeiros anos acadêmicos, há um crescimento no uso de maconha entre os rapazes, já as mulheres acabam, nos últimos anos, fazendo mais uso de tranquilizantes (de 3,4% no primeiro ano para 11,4% no quarto ano). “É um absurdo que futuros médicos usem drogas logo na entrada da faculdade”, diz Cordeiro. “No trote, por exemplo, há vários casos de excessos. Temos de alertar desde essa época sobre os riscos e os cuidados que todos devem ter. É necessário combater o uso de drogas em todos os cursos, principalmente nos que envolvem futuros profissionais de saúde.” Tratamento Criada em 2002, a Rede Estadual de Apoio a Médicos Dependentes Químicos é uma parceria entre o CREMESP e a UNIFESP. Nela, os médicos usuários de álcool e drogas têm à disposição atendimento 24 horas, todos os dias da semana. Após o contato por telefone, os médicos são encaminhados à Rede de Apoio, com uma equipe de psiquiatras voluntários, e posteriormente passam por uma avaliação e são encaminhados para tratamento realizado por um dos colegas que compõe a rede. A família também recebe apoio psicoterápico e orientações. Tudo é feito de forma sigilosa. Assim como nos grupos de Alcoólicos Anônimos, a primeira providência tomada contra o uso de drogas é a abstinência por parte dos pacientes. “O médico deve suspender imediatamente o uso, com exceção de algumas substâncias como a meta-

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A droga pode servir como uma espécie de compensação diante da pressão e do estresse vivido

Sugestão de leitura “Dependência Química: Prevenção, Tratamento e Políticas Públicas”, de Alessandra Diehl, Daniel Cruz Cordeiro e Ronaldo Laranjeira e colaboradores. Editora ARTMED, 2011 Curso Especialização em Dependência Química, na UNIFESP Site:http://www.virtual.unifesp.br/home/card. php?obj=15 E-mail: contato.proad@virtual.epm.br Telefone: (11) 5576-4521 / (11) 5576-4561/ (11) 55745659 / (11) 5574-0158 Contatos Rede de Apoio ao Médico Dependente Químico Tel: (11) 5579-5643 E-mail: apoiomedico@psiquiatria.epm.br Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas - UNIAD Tel.: (11) 5575-1708 Site: www.uniad.org.br Nos outros estados, procure clínicas de reabilitação, unidades de Centro de Atenção Psicossocial para Tratamento de Usuários de Álcool e outras Drogas (CAPS ad) e grupos de ajuda mútua, como os Narcóticos e os Alcoólicos Anônimos. Da redação


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Qualificação para o salvamento Falta de reconhecimento da especialidade impede a abertura da Residência em Medicina de Emergência

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m 2010, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) reprovou 68% dos formandos de Medicina na fase final. Foi o pior resultado, nesta etapa, em seis anos de prova. Ainda que a participação dos estudantes seja voluntária, sendo que apenas 533 formandos participaram da primeira fase dos cerca de 2.600 que se formam anualmente, o resultado é preocupante. Para realizar a segunda fase, o estudante deveria acertar 60% da primeira prova. O baixo nível de acerto em Ciências Básicas (54,14% de acertos), Saúde Pública/Epidemiologia (54,78%) e Clínica Médica (56,77%), mostra que, além da formação médica

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deficiente, os novos profissionais não estão preparados para a emergência, porta de entrada do médico na profissão. Segundo o documento oficial do Cremesp, “questões que tiveram baixo índice de acertos podem revelar a falta de conhecimento dos participantes na solução de eventos frequentes no cotidiano da prática médica”. E continua: “Muitos daqueles que participaram da primeira fase do Exame do Cremesp de 2010 desconhecem o diagnóstico ou o tratamento adequado de problemas de saúde comuns e de doenças como sífilis, hanseníase e tuberculose.” Cientes do resultado insatisfatório e preocupados com a qualidade do atendimento nas unidades de emergên-


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Reconhecimento no exterior O primeiro programa de Residência Médica em Medicina de Emergência nos Estados Unidos foi implantado em 1970, na University of Cincinatti. Já em 1972, foi publicado o Journal of the American College of Emergency Physicians (Jacep), atual Annals of Emergency Medicine, principal periódico sobre o assunto. Finalmente em setembro de 1979, a Medicina de Emergência passou a ser considerada uma especialidade médica pelo American Board of Medical Specialties e pela American Medical Association (AMA). Esse mesmo caminho ocorreu no Reino Unido, Austrália, Coreia do Sul, China, Canadá, México, Peru, África do Sul e em tantos e tantos países, de todos os continentes. Na maioria dos países em desenvolvimento, os pacientes graves são atendidos em ambulâncias terceirizadas e por médicos recém-formados. Vistos como funcionários temporários, além de conviverem com a superlotação dos hospitais, há equipamentos ruins e, muitas vezes, os residentes são vítimas de péssimas relações trabalhistas. “O que acontece no Brasil, é que o indivíduo está fazendo residência em outra área, mas quer ganhar um dinheirinho extra, então ele vai trabalhar na emergência, ou, por exemplo, um rapaz formado há 15 anos, mas quer comprar um apartamento”, revela Martins. “Hoje, a área é vista como um “ganha-pão” para o médico que quer receber alguma remuneração extra. Mas você deixaria, por exemplo, um pediatra operar a sua cabeça?”, questiona. “Uma pessoa que vai trabalhar na emergência tem que ter uma excelente formação médica. Deve ser tão bem formado quanto alguém que opera uma cabeça ou um coração.” Luta nacional

cia, um grupo de médicos criou a Associação Brasileira de Medicina de Emergência (Abramede), um órgão que mesmo sem o reconhecimento oficial no país, luta para que a Medicina de Emergência se torne uma especialidade no Brasil. “Estamos atrasados 50 anos!”, crava Herlon Saraiva Martins, médico assistente do Pronto-Socorro do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), autor de vários livros de Medicina de Emergência. “Nos Estados Unidos, a luta pelo reconhecimento aconteceu nas décadas de 1950 e 1960 e a especialidade foi reconhecida na década de 1970”, afirma.

A falta de reconhecimento da especialidade pelos órgãos nacionais reguladores impede que universidades públicas e hospitais escola abram Residências Médicas de Medicina de Emergência. A Faculdade de Medicina da USP foi pioneira no Brasil na criação de uma disciplina voltada para as emergências, desde 1992. Por sua vez, a primeira residência em Medicina de Emergência no país foi criada em Porto Alegre, no ano de 1996. No Hospital de Pronto-Socorro de Porto Alegre, atualmente, 18 residentes passam por três anos de formação. Os estágios são emergências adulta, pediátrica e obstétrica; rotinas de enfermaria (Medicina Interna); Cardiologia; UTIs (clínica adulta, trauma, queimados e pediátrica); atendimento a politraumatizados; sala de ferimentos leves; trauma/ ortopedia e pré-hospitalar. No ano de 2008 foi criada a residência de emergência em Fortaleza-CE. “Mesmo a residência não sendo reconhecida pelos órgãos reguladores, nesses locais, esses médicos que fazem a residência de emergência

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são considerados “elite” na área. Todos os hospitais públicos e privados brigam para contratá-los e eles são reconhecidos e valorizados em suas cidades”, explica Martins.

O emergencista deve ter excelente formação médica para lidar com procedimentos e tratamentos complexos

“Para que a especialidade seja efetivamente reconhecida, ela precisa das aprovações da Associação Médica Brasileira, do Conselho Federal de Medicina e da Comissão Nacional de Residência Médica. Infelizmente, essas instituições já estão adiando esse debate há 15 anos”, afirma Martins. “Um médico formado na década de 1960 poderia atuar em várias áreas. Era uma época em que você lia alguns livros e pronto. Mas hoje, com o avanço e o nível de complexidade médica, é impossível aprender assim certas coisas. Após a obtenção do título de médico, o médico deve obrigatoriamente fazer mais três ou quatro anos de especialização. O volume de conhecimento aumentou tanto, que hoje temos que ter, no mínimo, dez anos de estudo”, explica. A Abramede foi fundada no ano de 2007 e já conta com mais de 3.000 associados, tem representantes no Canadá, Estados Unidos, Europa, Austrália e América Latina e ganhou o respeito e o apoio irrestrito de todas as associações e sociedades de emergência do mundo, inclusive da International Federation for Emergency Medicine (IFEM).

Planos futuros Nos EUA e na Europa, um médico, para poder trabalhar com Emergências Médicas, tem que fazer entre três e cinco anos de residência e especialização. “No Brasil, um médico que vai para o exterior fazer especialização na área e volta ao país, acaba no mesmo patamar de um recém-formado”, afirma Martins. Estar constantemente atualizado é um dos requisitos primordiais para quem vai trabalhar na área. “Anualmente, são publicados milhões de artigos científicos. Teríamos que ler centenas deles por dia para nos manter atualizados, o que é inviável”, afirma o emergencista. “Por outro lado, a cada cinco anos, em média, muda quase todo o arsenal de remédio. Surgem novos procedimentos, novos tratamentos, tudo cada vez mais complexo. Então temos que estar sempre atentos. E o que temos a fazer é nos qualificar da melhor forma possível para atender bem os pacientes. Só assim conseguiremos salvar vidas”, finaliza. Fontes: G1, Associação Brasileira de Medicina de Emergência (Abramede), Conselho Regional de Medicina (Cremesp)

Da redação

A qualificação e a atenção são fundamentais na tarefa de salvar vidas

III Congresso Brasileiro de Medicina de Emergência Local: Hospital das Clínicas da FMUSP e laboratório de Habilidades e Simulação da Faculdade de Medicina da USP, em São Paulo (SP). Pré-congresso: 12 e 13 de setembro de 2011 Congresso: 14 a 17 de setembro de 2011 Programação: os palestrantes são convidados dos mais renomados hospitais do Brasil e do exterior. As palestras terão tradução simultânea. Mais informações: www.cobraem.com.br

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MERCADO DE TRABALHO MERCADO DE TRABALHO Otorrinolaringologia - Diversidade de procedimentos marca a especialidade

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esde os tempos mais remotos, a anatomia da região da cabeça e do pescoço já intrigava a humanidade. Tratamentos da região nasal, garganta e ouvido – alguns, inclusive, exóticos –, eram praticados antes do século XIX por médicos gregos, bizantinos e hindus. A partir de então, com o avanço do conhecimento anatômico, além de descobertas de fisiologia e patologia do ouvido, diversas inovações e tratamentos adequados foram desenvolvidos. Foi quando surgiu a otorrinolaringologia, uma das mais completas especialidades médicas. Com características clínicas e cirúrgicas, sua área de atuação abrange ouvido, nariz, seios da face, faringe, laringe, cabeça e pescoço. “O curso da especialização dura três anos. Com ele, o médico se torna um otorrinolaringologista geral”, conta Agrício Nubiato Crespo, membro do conselho fiscal da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cervicofacial (ABORL – CCF) e otorrinolaringologista desde 1988. “Como é natural que algumas pessoas acabem gostando mais de uma área de estudo, depois de formadas, há a possibilidade do que chamamos de ‘fellowship’, mais um ano de subespecialização, que pode ser em otologia, rinologia, laringologia ou otorrinopediatria, como se fosse uma verticalização do conhecimento.” Segundo o censo da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia, havia no Brasil, em 2009, 2.904 médicos da especialidade. Por ano, formam-se, em média, 250 novos profissionais. Inclusive, na prova de certificação realizada no dia 10 de dezembro de 2010, pela ABORL, foram 273 inscritos. Para obter o título de especialista, é necessário que o candidato apresente na associação cópias do certificado de conclusão e aprovação na residência ou especialização na área, da certidão ético-profissional emitida pelo Conselho Regional de Medicina (CRM), da carteira profissional definitiva emitida pelo CRM, além de currículo e requerimento conforme pedido no edital. Após reunir a documentação, o candidato deve realizar uma prova aplicada pela associação anualmente. “É uma das especialidades mais procuradas. A relação candidato/vaga é alta”, afirma Crespo. “Isso é ótimo, porque nos assegura de que teremos no futuro uma geração de excelentes profissionais”.

Mercado Amplo, o mercado de trabalho para o otorrinolaringologista engloba cada vez mais novos campos de atuação. “Entre as várias áreas que estão se formando, estão a cirurgia da face, craniomaxilofacial, cabeça e pescoço”, relata o membro do conselho da ABORL-CCF. “Isso é importante para a nova geração, porque mostra que há novos campos a serem conquistados.” Além de atender nas redes pública e privada de saúde, o profissional pode atuar na área acadêmica dedicando-se a pesquisas. “Temos um corpo de pesquisadores com muita garra no Brasil. Quando não dependemos da tecnologia dos grandes laboratórios, conseguimos excelentes resultados”, afirma Crespo. “Ainda não se compara ao conhecimento gerado nos Estados Unidos, mas, em relação à Ásia, não estamos mal”. No Brasil, a otorrinolaringologia é também conhecida como uma das carreiras de maiores ganhos dentro da medicina. “Por conta da variedade de procedimentos, é uma especialidade bem remunerada”, afirma Eric Thuler, especialista da Academia Brasileira de Otorrinolaringologia. “Conheço muitos otorrinos pelo Brasil, e não sei de um que esteja em situação financeira difícil. No geral, há muitos pacientes, consultas e procedimentos cirúrgicos”, diz Crespo. Residentes A escolha desta especialidade está diretamente vinculada às afinidades do candidato. “O principal fator que me levou a escolher essa especialidade foi a diversidade do campo de trabalho, em que posso realizar atendimentos clínicos, exames complementares e cirurgias em qualquer faixa etária”, afirma Thuler, que, além de manter um consultório privado, faz cirurgias nos hospitais Albert Einstein, Sírio-Libanês e Samaritano, todos em São Paulo. Para quem pensa em ser otorrinolaringologista, segundo Thuler, ser detalhista e atencioso é uma característica primordial, pois a atuação será em áreas delicadas e repletas de estruturas nobres. Também é importante gostar de lidar com crianças, já que elas podem representar até 50% dos seus pacientes. Outras características gerais são a facilidade em lidar com as pessoas, capacidades de organização e observação, além da disponibilidade permanente para o estudo. Da redação

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MULTIDISCIPLINAR MULTIDISCIPLINAR

Fisioterapia e Medicina em um mesmo objetivo: a cura Tratamento multidisciplinar garante maior eficácia na recuperação dos pacientes

C

ada vez mais inseridos no ambiente hospitalar, principalmente nas Unidades de Terapia Intensiva, os profissionais de fisioterapia têm comprovado a eficácia de uma equipe multidisciplinar na recuperação dos pacientes. Distanciando-se do senso comum de que servem apenas para a reabilitação de funções do organismo, recentes pesquisas mostram que a atuação do fisioterapeuta junto ao paciente pode diminuir o tempo de internação, reabilitar o indivíduo ao cotidiano e promover a melhoria de sua qualidade de vida após o período hospitalar. Segundo estudos realizados por Clarice Tanaka, professora do Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina da USP, as sessões de fisioterapia reduzem em até 40% o tempo de permanência do paciente internado na UTI, desde que haja o acompanhamento sem interrupções nas 24 horas do dia. No Brasil, embora tenham existido profissionais técnicos especialistas em movimentos do corpo, a profissão de fisioterapeuta é recente. Em 1929, o médico Waldo Rolim de Moraes instalou o serviço de fisioterapia do Instituto Radium Arnaldo Vieira para atender aos pacientes da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Posteriormente, organizou o serviço de fisioterapia do Hospital das Clínicas de São Paulo.

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O Decreto-Lei nº 938, de 13 de outubro de 1969, determinou que o fisioterapeuta é o profissional da área de saúde a quem compete executar métodos e técnicas fisioterápicas, com a finalidade de restaurar, desenvolver e conservar a capacidade física do paciente. “O fisioterapeuta tem como objetivo preservar, desenvolver ou restaurar a integridade de órgãos, sistemas ou funções do corpo”, afirma Ronaldo Hiroshi Hioki, fisioterapeuta especialista em RPG. “Como processo terapêutico, o profissional utiliza conhecimentos e recursos próprios, com base nas condições psicofísicossocial, promovendo, aperfeiçoando e adaptando a pessoa a uma melhoria da qualidade de vida.” Fisioterapia respiratória Segundo regulamentação da AMIB (Associação de Medicina Intensiva Brasileira), um dos quesitos mínimos necessários para o funcionamento de uma UTI é um profissional de fisioterapia para cada dez leitos, revezando entre os turnos matutino, vespertino e noturno, perfazendo um total de 18 horas. Nos hospitais, sua principal área de atuação é na fisioterapia respiratória. Em expansão, foi essa especialidade que permitiu a entrada do fisioterapeuta nas UTIs. “A partir do momento em


multidisciplinar

que mostramos que temos conhecimentos científicos dos sistemas cardiorrespiratório, neurológico e locomotor, conquistamos espaço dentro dos centros de saúde públicos e privados”, diz Ademilson Pedroza Lago, especialista em fisioterapia respiratória e em UTI. Ainda segundo ele, é função do médico realizar a avaliação e o diagnóstico e indicar os medicamentos necessários para o tratamento. E é ele, também, quem prescreve a fisioterapia como um recurso de atuação direta junto ao paciente, com o objetivo de melhorar o tratamento com exercícios e manobras. “Quando temos um paciente muito grave, com risco de vida, ele é entubado e colocado na ventilação mecânica. Nesses casos, nós, junto com o médico, ajustamos os parâmetros da máquina para adequála à oxigenação desse paciente”, explica o profissional. Quando internado, o paciente fica na UTI restrito ao leito. Nessa situação, o pulmão tende a entrar em colapso. Além disso, por ser o hospital um ambiente contaminado, o indivíduo torna-se suscetível a infecções no sistema respiratório, como a broncopneumonia e a pneumonia. “Através da realização de manobras de higiene brônquicas, a tendência é diminuir o risco de contrair essas infecções”, afirma Lago. O fisioterapeuta que atua nas UTIs também é responsável por ajudar o paciente a conseguir mobilizar a secreção pulmonar que naturalmente tende a se acumular nessas situações. Para isso, ele realiza mudanças de decúbito e manobras de drenagem postural. Assim, com a força da ação da gravidade, consegue-se direcionar o muco pulmonar para a saída por esse tubo. “Além disso, fazemos a tapotagem e a vibrocompressão, que têm por objetivo melhorar a capacidade pulmonar. Assim melhoro a capacidade funcional ventilatória, previno infecções e facilito o desmame da ventilação mecânica”, explica o fisioterapeuta.

Exercícios específicos auxiliam no trabalho de reabilitação dos pacientes

Outras especialidades fisioterápicas Não só a fisioterapia respiratória é aplicada nos hospitais. “Tendemos a priorizar a respiração, mas atendemos de forma global”, afirma Lago. Também são aplicadas técnicas de cinesioterapia, que aliam as atividades pulmonares a exercícios com o aparelho locomotor: “Dessa forma, mobilizo o paciente mais precocemente para ele voltar a ter equilíbrio, sentar e andar, por exemplo”. Com o cardiopata, são realizados exercícios específicos para reabilitação cardíaca, além da fisioterapia respiratória. “Como o paciente tem uma redução na sua capacidade de realizar exercícios, o fisioterapeuta acompanha o processo de reabilitação moldando o coração do indivíduo e preparando-o para as necessidades que ele terá no decorrer da vida”, explica Lago. Nesse caso, gradualmente, as manobras praticadas ajudam o paciente a sentar e andar pelo quarto, por exemplo, até que ele ganhe capacidade cardíaca e esteja apto novamente a demais atividades. Em casos neurológicos, além da fisioterapia respiratória, tem início um trabalho de reabilitação com exercícios específicos. Segundo o fisioterapeuta, espera-se que o paciente tenha uma sequela, e, quanto mais cedo aplicar a fisioterapia, a tendência é conseguir uma recuperação mais precoce. O profissional de fisioterapia também atua juntamente às pessoas com fraturas ou que passaram por cirurgia ortopédica. “Além da fisioterapia respiratória, fazemos exercícios com o objetivo de reabilitar o sistema musculoesquelético molestado com ganho de força e conseguir uma habilitação mais precoce”, explica Lago. Depois do período hospitalar, o paciente deve manter sua consulta com o fisioterapeuta até a alta. “Sem a assistência fisioterapêutica, ele pode ficar com sequelas motoras que podem comprometer a sua atividade e qualidade de vida”, afirma Hioki. “Alguns médicos ainda são céticos em relação à importância da fisioterapia. No entanto, se houvesse um melhor diálogo entre os profissionais da saúde, a recuperação teria uma resposta melhor e mais rápida.”

A atuação do fisioterapeuta pode diminuir o tempo de internação e melhorar a qualidade de vida do paciente

Da redação

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ACONTECE ACONTECE

Dilma e o futuro da saúde no país V

encedora de uma das mais acirradas disputas eleitorais das últimas décadas, Dilma Rousseff, sem nunca antes ter ocupado um cargo eletivo, é a primeira mulher presidente do Brasil. Seu plano de governo pretende ser uma continuação do trabalho de Lula. “Saberei consolidar e avançar a sua obra”, afirmou em seu primeiro discurso. Ainda que tenha planos para a saúde, nos próximos quatro anos o foco da presidente serão os setores de infraestrutura e de educação. Na área da saúde, hoje o país conta com o SUS (Sistema Único de Saúde). Entre seus programas internos, estão o HumanizaSUS (Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS), de 2003, que junto das secretarias e órgãos do Ministério da Saúde, implementa práticas de humanização nas ações junto à sociedade, oferecendo cursos e oficinas aos profissionais de saúde; e o QualiSUS, que busca a qualidade no atendimento do sistema, por meio de ações como o envio de novos equipamentos e a reforma das instalações dos hospitais. As propostas do governo de Dilma são voltadas à população, com ampliação de programas já existentes. “Depois de aumentar o valor do repasse para estados e municípios, vamos completar a estrutura do SUS”, afirmou no último debate antes do segundo turno. Para desafogar os prontos-socorros dos hospitais, Dilma pretende entregar 500 novas UPAs (Unidades de Pronto Atendimento) 24 horas. “Se uma pessoa teve um ataque cardíaco, e não houver um hospital perto, ela pode chegar lá para o primeiro atendimento”, explica. Atualmente, o Brasil conta com 398 UPAs. “O pessoal do Rio de Janeiro, pioneiro na implantação das UPAs, calcula que o grau de resolutividade está acima de 90%”, afirma. Para atingir a meta, o novo governo deverá injetar uma soma de até R$ 2,8 bilhões*. Também estão previstas as construções de policlínicas para o atendimento de pessoas que necessitem de consultas especializadas no interior. “Hoje, as pessoas ficam anos na fila para esperar uma consulta ou um exame especializado”, conta a presidente. “As UPAs já resolvem em parte esse problema, porque elas fazem, nas emergências, exames de sangue e todos os relacionados ao sistema cardíaco”. Também está prevista a ampliação do número de ambulâncias do SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência).

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Dilma pretende, ainda, universalizar o tratamento de hipertensão e diabetes, fornecendo de graça os medicamentos que hoje são subsidiados em 90%. Os gastos na área virão do crescimento natural do país. “Sem aumentar nem um milímetro o imposto”, sustentou a presidente que, em declaração, afirmou que pretende investir no setor os primeiros ganhos financeiros que o país conquistar com o seu crescimento. Entre os programas para os quais pretende dar mais atenção, estão o Farmácia Popular, criado para ampliar o acesso da população aos medicamentos com venda de remédio a preço de custo; o Brasil Sorridente, que busca melhorar a saúde bucal da sociedade; e o Saúde da Família, que atua na prevenção de doenças, realizando trabalhos educativos em escolas, creches e nas próprias casas. A novidade fica por conta da criação da chamada “Rede Cegonha”. “Temos que melhorar as condições de atendimento à gestante e à mãe durante todo o processo até o parto, e também no neonatal”, explica Dilma. “Temos a Clínica da Mulher, que faz a prevenção e o acompanhamento da mulher, dois níveis de maternidades, um de alto risco e um de baixo risco, e a UTI neonatal. Junto disso, ainda teremos o SAMU Cegonha e o SAMU Bebê.” Em 2009, por conta de um linfoma, Dilma passou por sessões de quimioterapia e de radioterapia. Curada, resolveu incluir, em seu plano de governo, cuidados no tratamento do câncer. “O tratamento em seu estágio inicial alcança um nível de sucesso extraordinário e diminui a quantidade de remédio e a pressão sobre a rede (pública de saúde)”, disse em coletiva. No dia 1º de dezembro do ano passado, Dilma se reuniu com sua equipe de transição e especialistas, para debaterem sobre a saúde no país. Anunciado no dia 20 do mesmo mês, o médico infectologista Alexandre Padilha (PT) foi confirmado como o novo ministro da saúde. Entre os seus desafios está o de disponibilizar recursos orçamentários para a área. Atualmente, o gasto público com saúde é menor que o privado. Disponibilizando recursos, espera-se que possa ser ampliado o acesso da população a diagnósticos e a consultas especializadas. *Fonte: Band

Da redação


medicin @ medicin @

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Aplicativos para celulares e para computador Desde que tomou conta do cotidiano das pessoas, a tecnologia é cada vez mais utilizada pelos médicos. E por que não recorrer aos celulares? Uma série de aplicativos úteis (e alguns inúteis) está à disposição, alguns gratuitamente. Confira!

Úteis Medicamentos de A a Z (US$ 24,99 – cerca de R$ 40,98) Apresenta de forma simples e objetiva os principais medicamentos utilizados na prática clínica. Contém informações como preços, nomes comerciais e genéricos, posologia e receituários de mais de 500 remédios. Também é possível criar a sua lista de favoritos. (Apple Store)

Genéricos BR (gratuito) Guia de medicamentos que faz buscas em equivalentes genéricos a partir de um princípio ativo. Acesso ao bulário da Anvisa, lista de fabricantes e fórmulas farmacêuticas. Também identifica medicamentos controlados e realiza consulta off-line da bula dos 130 genéricos mais populares no Brasil. (Apple Store)

Pesquisa CID (gratuito) Permite que médicos pesquisem informações de códigos e doenças de acordo com a Classificação Internacional de Doenças (CID-10). (Apple Store)

Vacinas (US$ 1,99 – cerca de R$ 3,26) Com informações de vacinas como BCG, hepatite B, DTP/DTPa, VOP/VIP, rotavírus, pneumocócicas, meningocócica C e influenza. No conteúdo, tópicos como eficácia, persistência da imunidade, profilaxia, conservação e contraindicações. Também é possível fazer consulta dos três principais calendários vacinais de crianças brasileiros (Ministério da Saúde, Sociedade Brasileira de Pediatria e Sociedade Brasileira de Imunizações). (Apple Store)

Netter’s Atlas of Human Anatomy (US$ 79,99 – cerca de R$ 131,18) Um dos melhores atlas de anatomia do mundo. Baseado no trabalho do Dr. Frank H. Netter, o aplicativo possui ilustrações coloridas e detalhadas que servem como fonte de consulta e permite aos usuários testar conhecimentos. Funciona com Wo uso de palavras-chaves. (Apple Store)

Medicine Central (US$ 159,95 – cerca de R$ 262,31) Ideal para médicos, estudantes de medicina e residentes, possui um índice detalhado com os principais pontos de um diagnóstico, além de informações sobre tratamentos e primeiros cuidados. Com mais de 700 doenças cadastradas. (Apple Store)

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medicin@

InfusionCalc (R$ 1,68) Permite colocar números como a dosagem do remédio (em kg), o volume de sangue (mL) e o peso do paciente (em kg). (Android Market)

PubMed Mobile (gratuito) Base com mais de 19 milhões de artigos e publicações científicas relacionadas à medicina. (Android Market)

Para computador Medsquare (gratuito) Pesquisadores do IME (Instituto de Matemática e Estatística), da USP, desenvolveram um programa de computador que utiliza imagens de ressonância magnética, ponderadas pela difusão da água, para produzir modelos tridimensionais da estrutura de tecidos e de órgãos humanos. O tecido recebe ondas de rádio de várias orientações e reflete informações sobre o meio. O software capta essas informações – a movimentação molecular da água – e cria o modelo tridimensional. Gratuito, o programa chamado MedSquare foi criado em parceria com pesquisadores norteamericanos. O software tem sido utilizado na visualização das condições cerebrais e das estruturas do miocárdio. Pode auxiliar os médicos a encontrar a exata localização de tumores e sua extensão, além das consequências anatômicas de eventuais transtornos, facilitando o diagnóstico e o tratamento. Para baixá-lo: http://medsquare.org.

Inúteis e sensacionais! 3D4Medical Images (gratuito) Imagine a foto da sífilis como papel de parede do celular! Com mais de 200 imagens médicas incríveis e de alta qualidade, este aplicativo permite, inclusive, o compartilhamento das fotos entre os amigos. Com a descrição de cada imagem.

Relax Ocean Waves (gratuito) Precisando relaxar depois de uma cansativa cirurgia? Este aplicativo revela imagens de lugares paradisíacos e permite ouvir o som ambiente. É para levantar qualquer astral. Promete também ser útil em casos de enfermidades mentais!

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Istethoscope (gratuito) Para não perder nem um minuto das batidas do seu coração. O app transforma o celular em um estetoscópio, basta encostá-lo próximo ao coração. Não indicado para quem usa marca-passo.

Antimosquito – Sonic Repeller (gratuito) Para apreciar a natureza livre de mosquitos, esse app emite um som de alta frequência que afasta os insetos. Inaudível para os humanos, só não dá para escutar uma “musiquinha” junto dele. Permite encontrar a frequência exata do som que inibe os mosquitos da região onde o usuário mora.

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Diagnose the disease game (gratuito) Um jogo que permite, em pouquíssimo tempo, testar seus conhecimentos diagnosticando a doença correta mostrada na tela. Com mais de cem doenças relacionadas. Em inglês.

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Para comprar: Apple Store: http://store.apple.com/br/ Android Market: www.android.com/market/ Da redação

(Apple Store)

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CASOS CLÍNICOS CASOS CLÍNICOS

Paciente com assimetria mamária e dextrocardia O

caso apresentado foi acompanhado no serviço de Pediatria de uma grande universidade da cidade de São Paulo, no início de 2010. Trata-se de um paciente do sexo feminino, de 11 anos, que, sem acompanhamento médico desde 7 anos de idade, já na puberdade, apresentava queixa de assimetria mamária e dores nas costas, procurando serviço de pediatria geral para avaliação do quadro. Em avaliação inicial, notam-se assimetria torácica e vício postural que, posteriormente, são atribuídos à tentativa da paciente de esconder as mamas assimétricas. Não é possível caracterizar, em exame físico, broto mamário à esquerda, ficando, ainda, evidente mamilo hipoplásico nesse mesmo lado. Associado aos achados, há deslocamento à direita das áreas de ausculta cardíaca, sugerindo dextrocardia.

Representação anatômica das manifestações clássicas da síndrome

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Inspeção mais atenta evidencia discreta assimetria de mãos, sendo a esquerda menor. Não há sindactilia, braquidactilia nem desvios fenotípicos. Seus dados antropométricos indicam eutrofia, e seu desenvolvimento neuropsicomotor é adequado. Para dar continuidade à investigação, são realizados tomografia de tórax e ecocardiograma. O primeiro evidencia agenesia do músculo peitoral maior esquerdo e dextrocardia, sem alteração de vértebras, costelas ou esterno. O último mostra dextrocardia com situs solitus, sem outras alterações. Aventa-se, dessa forma, a hipótese diagnóstica de síndrome de Poland. A paciente é encaminhada para avaliação da cirurgia plástica, que indica realização de simetrização

Tomografia computadorizada axial do tórax em paciente com achados clássicos da síndrome. (A) Ausência dos músculos peitorais maior e menor direitos. (B) Tecido subcutâneo e mamilo direito hipoplásicos. (C) Tecido mamário esquerdo normal


CASOS CLÍNICOS

mamária aos 16 anos. É orientado uso, nesse ínterim, de sutiãs com bojo e enchimento para maior conforto, além de exercícios físicos para melhora da postura. Como não há outros grandes comprometimentos, a paciente permanece apenas em acompanhamento ambulatorial. Quanto à hipótese de síndrome de Poland, esta foi mantida. Trata-se de condição congênita rara, caracterizada por ausência ou hipoplasia da musculatura torácica unilateral, associada à alteração do membro superior ipsilateral. Suas manifestações são variadas, podendo apresentar desde quadros de braquidactilia a micromielia. Pode-se atribuir, ainda, achado de anormalidades de costelas, vértebras e esterno, além de defeitos de fechamento da parede torácica. De prevalência variável (1:30.000 a 1:50.000), acomete mais indivíduos do sexo masculino (3:1). A causa ainda não foi estabelecida, porém a teoria mais aceita atribui esta a uma interrupção ou redução do suprimento sanguíneo que irriga o broto do membro superior adjacente à parede torácica, oriundo da artéria subclávia e seus ramos, ocorrendo no final da sexta semana da vida

Exemplo de assimetria mamária em paciente do sexo feminino portadora de síndrome de Poland

embrionária. Assim, estaria comprometida em diferentes graus a embriogênese torácica do membro adjacente. Intervenções cirúrgicas são indicadas nos seguintes casos: 1 - depressão unilateral da parede torácica e possibilidade de sua progressão; 2 - ausência de proteção adequada ao coração e pulmão; 3 - movimento paradoxal da parede torácica; 4 - aplasia ou hipoplasia da mama feminina; 5 - efeito cosmético pela falta do músculo peitoral maior e fossa axilar em pacientes do sexo masculino. A correção da sindactilia, por sua vez, deve ser realizada o mais cedo possível. Vale ressaltar a importância de um acompanhamento clínico criterioso, haja vista a associação da síndrome a alterações de desenvolvimento e alguns tumores (carcinoma da mama hipoplásica, leiossarcomas, câncer de pulmão, tumores cervicais, leucemia, linfoma não Hodgkin). Ana Carolina de Melo Cyrino Residente em Pediatria pela Escola Paulista de Medicina (UNIFESP).

Paciente do sexo feminino com amastia, atelia e ausência do músculo peitoral maior

Assimetria mamária Caracteriza-se pela diferença de tamanho, forma e situação de uma mama em relação a outra, podendo afetar toda a mama – incluindo aréola e mamilo, que podem ter apresentação diferente entre um e outro. A assimetria costuma se manifestar durante o desenvolvimento – puberdade. Apesar de a maioria das mulheres apresentar assimetria mamária devido ao desenvolvimento das mamas – que não acontece exatamente no mesmo tempo e velocidade –, até um certo grau as assimetrias são consideradas normais. No caso das assimetrias consideráveis, diversas técnicas podem ser aplicadas para equilibrar as diferenças: aumento ou redução de uma das mamas, técnicas para remodelagem etc, porém, a intervenção cirúrgica só deve ser feita quando já houver a maturidade corporal da menina. Durante a amamentação, a assimetria pode aparecer ou se acentuar, principalmente no caso de o bebê ter preferência por sugar alguma das mamas, por isso a alternância das mamas durante a amamentação deve ser observada. Homens também podem apresentar assimetria mamária, que geralmente é consequência da ginecomastia ou, mais raramente, pode advir de problemas congênitos (entre eles a síndrome de Poland). A correção cirúrgica é possível em ambos os casos.

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FATOS HISTÓRICOS FATOS HISTÓRICOS

Penicilina: os caminhos para a sua descoberta P

or muito tempo reconhecida como mero acaso, a descoberta da penicilina foi, na verdade, fruto de um processo de criação de novas tecnologias e de aperfeiçoamento daquelas já existentes. Passaram-se quase duas décadas até que pudesse ser utilizada em ampla escala, já durante a Segunda Guerra Mundial. Entretanto, não se pode negar a importância do microbiologista inglês Alexander Fleming, além de seus contemporâneos Florey e Chain, a despeito de relatos prévios da ação bactericida de alguns fungos. Joseph Lister – pai da antissepsia cirúrgica – observara em 1871 que o mofo encontrado numa amostra de urina (de uma paciente com cistite) inibira o crescimento bacteriano. Também seguiram essa linha de raciocínio, nos anos posteriores, John Tyndall, Louis Pasteur e Jules Joubert, além de Ernest Duchesne que, em 1897, escreveu seu doutorado sobre a interação entre E. coli e Penicillium glaucum. Fleming inicialmente teria observado, ao retornar de suas férias de verão em 1928, a presença de um halo no qual não havia crescimento bacteriano em uma de suas culturas de Staphylococcus aureus contaminada com mofo. Durante muitos anos, acreditou-se na versão de que esporos de Penicillium notatum haviam entrado pela janela de seu laboratório no St. Mary’s Hospital, agindo como bactericida. Contudo, o fato de o Penicillium notatum não ser encontrado no ar londrino e, principalmente, o estabelecimento do mecanismo de ação da penicilina nos levam a crer que Fleming possivelmente semeara uma cultura de S.

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aureus já contaminada pelo fungo, este proveniente de um laboratório de micologia existente no andar superior. De qualquer modo, essa observação o impressionou a ponto de imaginar que futuramente a droga pudesse ser utilizada em antissepsia. Por sua vez, vislumbrando o potencial terapêutico da droga, dois cientistas da Universidade de Oxford – Howard Florey e Ernst Chain – concentraram esforços para que a penicilina pudesse ser empregada no tratamento de seres humanos. Em 1929, ao conduzir estudo sobre antibacterianos naturais, ambos iniciaram a etapa mais difícil da descoberta da penicilina: a purificação do composto inicial e sua síntese em quantidades suficientes para estudos. No início dos anos 1940, após mais de uma década de esforços, laboratórios dos EUA já eram capazes de produzir antibiótico suficiente para o tratamento de 250 mil pessoas ao mês, causando grande impacto na Segunda Guerra Mundial. Em 1945, Fleming, Florey e Chain dividiram o prêmio Nobel de Medicina, nos mostrando que a descoberta da penicilina fora um conjunto de fatores, dentre os quais merecem destaque a metodologia científica, os conhecimentos em química, a dedicação excepcional desses indivíduos e, claro, a ajuda do acaso. Denize Borges Pedretti Residente em Clínica Médica pela Escola Paulista de Medicina (UNIFESP).


CULTURA CULTURA

S

e o cinema, assim como os meios de comunicação – em especial a televisão­–, reflete as transformações ocorridas na sociedade, espera-se que o modo como o médico é representado nas telas também tenha mudado. Contudo, em meio à multiplicação do número de séries médicas, em especial as de produção estadunidense (ER, House, Private Practice, Grey’s Anatomy, Scrubs etc.), discutem-se a sua influência sobre a população e os aspectos positivos ou negativos da imagem médica transmitida pelos protagonistas. As séries sobre o cotidiano médico são veiculadas desde a década de 1960, tendo início com o Kildare (1960-1965), protagonista de um número expressivo de filmes entre as décadas de 1930 e 1940. Há 50 anos, o personagem – um jovem médico recém-formado – já convivia com dilemas relacionados à ética médica, à relação médico-paciente e à impotência em lidar com a morte. Porém, em meio século o enredo ampliou-se para a vida fora da prática clínica, com inúmeros dramas paralelos e relacionamentos amorosos entre membros da equipe. Introduziu-se o tema sexualidade, e abriu-se espaço para que a rotina exaustiva e os erros fossem mostrados de forma mais próxima da realidade, proporcionando empatia com o público em geral. Outra mudança bastante evidente se deu na forma como os procedimentos médicos são mostrados. Desde ER (Plantão Médico, no Brasil), dá-se ênfase ao atendimento de urgências e emergências, com simulações de RCP (ressuscitação cardiopulmonar), além de procedimentos invasivos, como entubação e cirurgias. Estudos realizados nos EUA e no Canadá evidenciam que a população leiga que assiste com frequência a tais programas apresenta um índice de aprendizado em saúde quatro vezes maior. Em contrapar-

Medicina no cinema e na televisão tida, também há o relato de que apenas 30% dos procedimentos médicos exibidos estavam corretos. Em virtude dessa exposição constante do que seria o cotidiano médico, há divergência de opiniões sobre as séries médicas entre os verdadeiros profissionais, no que tange tanto à moral quanto à responsabilidade com a verossimilhança das condutas. A humanização do profissional pode ser apontada como um aspecto positivo. “Creio que as máscaras arquetípicas que envolvem a imagem mítica do médico estão caindo e, por isso, os filmes e as séries procuram mostrar que o médico é, acima de tudo, um ser humano”, afirma Diego Matias, formado pela Escola Paulista de Medicina. Outros contra-argumentam que as condutas sem embasamento teórico, em especial o número excessivo de exames de imagem, levam ao questionamento sobre procedimentos – não indicados – e criam falsas expectativas de melhora súbita ou cura. Mesmo com tantos prós e contras, é indiscutível o fascínio que essas obras exercem em ambos os grupos, leigos e profissionais. O Dr. House, com seus diagnósticos brilhantes e desvios de conduta, nos remete de certo modo à discussão milenar de que bem e mal podem estar presentes num mesmo indivíduo; tema popularizado em múltiplas refilmagens de O Médico e o Monstro (Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde), cujo livro homônimo foi escrito em 1886 por Robert Louis Stevenson. Portanto, fica evidente que há campo para ser explorado pela sétima arte por mais 100 anos e para a produção de, pelo menos, uma dúzia de séries médicas. Denize Borges Pedretti Residente em Clínica Médica pela Escola Paulista de Medicina (UNIFESP).

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CURIOSIDADES CURIOSIDADES

Tradições, costumes e mitos colocados à prova Por que os médicos usam roupas brancas? Desde os séculos V e VI a.C., os médicos têm o costume de usar vestimentas brancas. Herdado da Grécia Antiga, o costume de usar branco, além de indicar pureza espiritual, era mais confortável e refrescante por causa da alta temperatura da região. No final do século XIX, com as descobertas de Pasteur, que comprovou a possibilidade de contaminação através das mãos e das roupas, o uso do branco passou a ser adotado por facilitar a identificação de qualquer tipo de sujeira. No século XX, a tradição passou a ser discutida, e, em diversas partes do mundo, como no continente europeu e nos Estados Unidos, o uso do jaleco sobre roupas comuns ganhou adeptos. No Brasil, não há qualquer regulamentação que obrigue os médicos a usarem trajes brancos; a escolha é de acordo com a preferência de cada profissional. Fontes: Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), revistas Superinteressante e Mundo Estranho e Sociedade Brasileira de Urologia (SBU).

De onde surgiu o nome cesariana? Há duas versões encontradas na literatura sobre a denominação dessa cirurgia. Na primeira, mais difundida, o nome “cesariana” é derivado de Caio Júlio César, um dos doze césares do Império Romano, que teria nascido pela abertura do ventre de sua mãe, no ano 100 a.C. A segunda versão atribui o sobrenome César ao fato de Júlio ter nascido de uma cesariana, já que os romanos chamavam de caeseres quem era retirado com vida do útero materno por uma abertura na parede abdominal, após a morte da mãe. Porém, há inúmeras controvérsias em ambas as versões. O sobrenome Caesar (César) é anterior ao nascimento do imperador romano. Além de que, na época de Júlio, por motivos religiosos que não permitiam o sepultamento de mulheres grávidas, a abertura abdominal para a retirada do feto só era praticada no caso da morte da gestante. E, segundo diversos estudos históricos, Aurélia, mãe de Júlio, viveu anos depois do nascimento do seu filho, inclusive lhe dando irmãos.

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Sendo assim, a versão mais provável para a origem do nome cesariana é o verbo, em latim, caedo, caedici, caeso e cedere, que significa cortar, incisar. Fontes: revista Aventuras na História e artigo científico Que tem a ver Júlio César com a operação cesariana?, do professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás e membro da Sociedade Brasileira de História da Medicina, Joffre M. de Rezende.

John Kennedy – Quais eram as suas doenças? Símbolo de vigor e juventude, John Fitzgerald Kennedy, o mais famoso membro do clã Kennedy, assassinado em 1963, aos 46 anos, durante um desfile em carro aberto, foi alvo de diversos estudos após sua morte. Segundo o historiador Robert Dallek, ao contrário do que se pensava, o estado de saúde do antigo presidente era lamentável. Ele sofria de colite, colesterol alto, diarreia crônica, inflamação da próstata e da uretra – causada por uma doença venérea que nunca foi curada –, osteoporose e mal de Addison. Para amenizar as dores, os médicos lhe davam diversos remédios diários: esteroides, injeções à base de morfina, antiespasmódicos, penicilina, além de barbitúricos para fazê-lo dormir. Para suprir os efeitos causados pelo mal de Addison sobre seu apetite sexual, ele recebia doses de testosterona. E, para aguentar em pé longas cerimônias públicas, sua médica particular Janet Travell aplicava-lhe procaína nas costas. Em 1947 e em 1954, Kennedy chegou a receber a extrema-unção. Entre 1955 e 1957, foram nove internações interpretadas erroneamente pela imprensa, que atribuía seu sumiço às aventuras amorosas. Junto de seus assessores, o presidente escondeu muitas de suas doenças por questões políticas. Sua imagem saudável de esportista, aliada à sua popularidade, incomodava os adversários. Tanto que as causas de seu assassinato nunca foram esclarecidas. Fontes: revista Veja, entrevista com o historiador Robert Dallek publicada na revista The Atlantic (em inglês) e filme JFK - A Pergunta que Não Quer Calar (1991)

Da redação


VERDADES E MITOS VERDADES E MITOS

1 - Café melhora o desempenho intelectual e 4 - Beber um copo de vinho por dia faz bem. a capacidade de atenção. Verdade. Com exceção das pessoas portadoras de hepatoVerdade. O café não possui apenas cafeína, mas também potássio, zinco, ferro, magnésio e diversos outros minerais, além de substâncias antioxidantes. Ele apresenta ações sobre o sistema nervoso simpático, através da competição por receptores de adenosina, e consequentemente age como estimulante, aumentando a liberação de noradrenalina e a expressão de seus receptores. O consumo diário e moderado (equivalente a 400-500mg/dia) de café torna o cérebro mais atento e capaz de suas atividades intelectuais. Também diminui a incidência de apatia e depressão e estimula a memória, a atenção e a concentração, melhorando a atividade intelectual normal. Fábio Carvalho, Neurologista

2 - Anemia causa leucemia. Mito. É necessário deixar bem claro que existem várias causas de anemia, dentre elas a carência de ferro, as causas hereditárias e a leucemia. Logo, não é uma anemia que não foi tratada que vira uma leucemia, mas sim, desde o início, a anemia já era um sinal iminente do processo leucêmico. Assim, o importante é investigar as causas da anemia. Marcos Laércio Pontes Reis, Hematologista

3 - É possível um sonâmbulo andar e abrir portas ou janelas enquanto dorme. Verdade. Sim, isso é possível. O sonambulismo é mais

patias graves ou hipertrigliceridemia, o consumo moderado de vinho (300mL/dia para o homem e 150mL/dia para a mulher) é reconhecidamente um fator de prevenção da doença aterosclerótica coronariana. Isso se deve à presença, na bebida, dos compostos chamados polifenóis, que têm ação antioxidante, sendo o principal composto o resveratrol. De preferência, o vinho deve ser consumido juntamente com uma refeição. Éder Teixeira Cardoso, Endocrinologista

5 - Quem começa a doar sangue não pode parar nunca. Mito. A pessoa pode doar apenas uma vez e nunca mais voltar a doar, sem que isso traga qualquer problema ao seu organismo. O que geralmente acontece é o doador perceber que a doação é um ato tão benevolente e se sentir tão bem com isso que, após a primeira doação, não quer parar. Fernanda Maria Santos, Hematologista

6 - Anti-inflamatórios não esteroidais causam sangramento. Verdade. Os AINEs inibem a cicatrização normal do estômago e os mecanismos protetores das células. A úlcera ocorre em 10% dos usuários desses anti-inflamatórios, e o sangramento é duas vezes mais comum nessa população. Está relacionada diretamente ao tempo de uso desses medicamentos. Eduardo Bertolli, Cirurgião Geral

7 - É possível um doente sob anestesia geral se lembrar do que aconteceu durante a cirurgia.

comum em crianças, especialmente aquelas com enurese noturna, em que a performance motora varia muito. Entretanto, o mais usual é a criança se sentar na cama. Quando acontece de ela andar pela casa, é normal que acenda as luzes ou faça algum outro ato familiar. Quando isso ocorre, normalmente a pessoa está, inclusive, com os olhos abertos, apesar de estar dormindo. Pode até falar, mas não responde ao que lhe é perguntado, e, quando desperta, não se recorda do que fez.

paciente está em um plano anestésico superficial e completamente curarizado, ele não se lembrará de toda a cirurgia, mas poderá ter flashes e se lembrar de ter ouvido algo ou sentido alguma coisa. Já uma lembrança completa não deve ocorrer, uma vez que existem monitorização e parâmetros cardiocirculatórios bem definidos a serem seguidos.

Karolina Gouveia Cesar, Neurologista

Marcia Dreon, Anestesista

Mito. Entretanto, hoje é muito raro acontecer. Quando o

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CRÔNICA CRÔNICA

O bolo de fubá A

mbulatório de Psiquiatria de um dos maiores Hospitais-Escola de São Paulo. Residentes e internos reunidos em torno de um caso de depressão puerperal – um quadro depressivo pós-parto, que pode levar a mãe a rejeitar a criança ou até assassiná-la, se não tratado. Logo, um caso que mereceu todo cuidado e empenho da equipe cuidadora. Após algumas semanas de tratamento, a paciente recebeu alta totalmente recuperada, aceitando plenamente a sua condição de mãe e profundamente agradecida a toda a equipe que a tratou com tanto carinho. Óbvio que tal dedicação merecia recompensa. Então, imbuída de todo o amor que uma paciente pode nutrir por uma equipe médica, esta mãe retornou algum tempo depois com um vistoso bolo de fubá. Aqui vale um adendo – residentes e internos não recusam nada do que lhes é oferecido, primeiro porque o dinheiro é muito curto, segundo porque eles realmente não têm tempo de fazer uma refeição decente devido à correria peculiar a tal época da formação médica. Logo, um delivery de bolo de fubá era tão bem-vindo quanto o laptop da Barbie que minha filha pediu para o Papai Noel. Enfim, realizados os agradecimentos de praxe, procedeuse à degustação da guloseima, por mais suspeita que fosse a fonte fornecedora – lembremo-nos de que se trata de um ambulatório de Psiquiatria. Segundo relatos, não deu para quem quis. Um mês depois, a paciente voltou ao ambulatório para uma consulta de rotina. Procedeu-se, então, ao seguinte diálogo, que faço questão de transcrever na íntegra: – Boa tarde, Dona Sílvia. Tudo bem? – Tudo bom, doutor. E o senhor? – Graças a Deus, tudo em paz. Como vai a filhinha? – Cada vez mais linda, doutor. Uma princesa. Que tal, gostaram do bolo de fubá?

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– Puxa vida, é mesmo, ia me esquecendo, obrigado pelo bolo! Todos aqui comeram, estava de lamber os beiços! Sempre que a senhora vir, pode trazer um daqueles, que será muito bem-vindo. – Pode deixar, doutor. Só acho que os próximos não vão ficar tão bons quanto aquele, porque naquele eu coloquei um ingrediente especial, que fez toda a diferença. – É mesmo, dona Sílvia? E qual foi? – Eu usei o meu leite pra fazer o bolo! – ... – Não ficou uma delícia? Juro que em muitos momentos da minha vida quis ser uma bactéria hospitalar, para presenciar determinadas cenas, mas especificamente neste caso eu dava tudo para ver a cara dos residentes e internos diante de tal estapafúrdia afirmação. O que é muito pior, não havia absolutamente nada a ser feito – não adiantava nem vomitar, pois os dejetos referentes ao bolo já se encontravam no rio Tietê havia pelo menos 20 dias. Terminada a consulta (sabe Deus com que cabeça), o laboratório de análises clínicas do hospital recebeu um dos maiores afluxos de residentes e internos em um mesmo momento de sua história – pesquisa de HIV, hepatite B, C, tudo o que pode passar pela cabeça de alguém muito desesperado. Muitos ficaram deprimidos após esse acontecimento, alguns necessitando até de tratamento medicamentoso. Pelo menos eles já se encontravam no departamento adequado para ter tais problemas! Antonio Bomfim Marçal Avertano Rocha Cirurgião Torácico / Oncológico do Hospital Saúde da Mulher e Cirurgião Torácico do Hospital Ophyr Loyola Belém-PA


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