catalogo O trauma é brasileiro' de Castiel Vitorino Brasileiro

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Castiel Vitorino Brasileiro. Quarto de Cura #3. Instalação (96 m²), Vitória, 2019.


Castiel Vitorino Brasileiro. Série fotográfica Aglutinar e redistribuir. Fotografia digital. Vitória, 2019.


Agradeço à vida e ao gesto. É que enquanto consigo gestualizar, continuo viva. E a vida tem sido um gesto efêmero de modificação. Um gesto. Agradeço a Augusto Brasileiro, meu bisavô e meu pai. E agradeço ao meu avô Bininho Benedito Brasileiro, por nos apresentarem. Agradeço à Vovó Éda Élida, ao Renato Santos, à dona Doquinha, à Tia Mara e à Tia Tetê, à Néia, ao San’tônio, à Dona Penha. Agradeço ao fogo que me ensinou a pensar. Agradeço à Tia Nega. Agradeço à família Brasileiro que criou um quilombo na boca da mata da Fonte Grande. Agradeço à Fonte Grande. Agradeço ao meu amor, Jesus Rodrigo. Agradeço à lua crescente, ao vento da beira-mar, ao alecrim, ao hibisco e ao sol. Agradeço com meu suor, minha cauda e minha dúvida. Com minha vontade, com meu desentendimento, com minhas inseguranças. Agradeço com meu deboche, com minha travestilidade bixa, com minha bixalidade travesti. Agradeço com minha negritude. Agradeço com meu corpo e em meu tempo. Agradeço em meu tempo de cura. Agradeço.


Lembrar aquilo que esqueci enquanto subo e desço a Fonte Grande (Vitória/ES, BR). Criar um mapa das fontes da Fonte Grande. É uma experiência estética de imersão que se inicia em julho de 2018. É uma promessa que fiz pro meu avô, que descobri ser uma aposta que ele fez em mim. Subir e descer semanalmente a Fonte Grande durante o tempo que me for necessário viver.


RENATO SANTOS

A gente tem que pensar no que existe e no que não existe. Quando você fala “estou doente”, é porque você está sentindo falta de alguma coisa. Se você sente falta de alguma coisa, é porque você já teve essa coisa. Quando você teve essa coisa? Então qual é a cura prum corpo afrodescendente? Porque tudo é negado a ele nesse país. Qual é o processo de cura dele? Não é a matriz que o nega tudo. É uma outra matriz. Matriz mãe dele. Esse é o processo de cura do afrodescendente brasileiro. E, como o Brasil é uma África, fora da África é o processo de cura do Brasil.



Castiel Vitorino Brasileiro. Hibisco. Fotoperformance. Fotografia digital. Vitรณria, 2019.


Romaria dos testículos femininos O trauma é brasileiro Você tem aqué pra receber A agonia agora é deles A verdade caiu no chão e virou água


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Saímos do Bar da Zilda, caminhamos pela Rua Sete de Setembro, reunimo-nos em frente à Catedral Metropolitana de Vitória e, por fim, seguimos em direção à Galeria Homero Massena, onde organizamos juntas uma engira de bixa travesti. ­ astiel Vitorino Brasileiro, Napê Rocha, Felipe Lacerda, Matheus Sampaio, Rucka De Lacia e Roger C Ghil. Romaria dos Testículos Femininos. Cerca de 40 pessoas. Ação de 40 min. Vitória, 2019. Registros de Kevin Felipe Barboza.


Castiel Vitorino Brasileiro. Minha garganta dรณi, minha garganta pode doer? Fotoperformance. Fotografia digital. Vitรณria, 2019.


ARTE-FEITIÇARIA: POÉTICAS MACUMBEIRAS, ESTÉTICAS PERECÍVEIS, ESPÍRITOS PERENES OU A MANUTENÇÃO DA VIDA DEPENDE DA MALÍCIA NAPÊ ROCHA

É prática comum nas religiões de matriz africana que, antes de qualquer ação, fala ou rito, reverencie-se os ancestrais, os mais velhos. É uma maneira de lembrar, manter viva a memória dos ancestrais e, desse modo, torná-los contemporâneos, e também de pedir a permissão para que se iniciem os trabalhos. A reverência prestada aos mais velhos propicia a manutenção de uma coletividade histórica. Por isso, o exercício é sempre o de olhar para trás e para frente. Castiel Vitorino Brasileiro tem buscado em seu trabalho essa tradição ao resgatar os saberes das benzedeiras, rezadeiras e curandeiras pretas capixabas, que têm em seu ofício a manutenção do bem-estar e as práticas de cura por meio da integralidade entre corpo, mente e espírito. Desde 2015, Castiel desenvolve pesquisa sobre a epiderme e as marcas externas e internas produzidas a partir da ficção da raça. A pele, como marcador de diferenças, dá lugar a um terreno fértil para brotamentos diversos, arbustos ornamentais, flores multicores, espinhos e ervas daninhas. No entanto, o que vemos atualmente é um transbordamento propiciado pelos encontros das águas internas da artista que têm como partida suas experiências nos campos da Psicologia, da arte e da macumba. Suas preocupações são estéticas, políticas e, sobretudo, éticas. Correndo o risco de parecer redundante, esse trabalho só se torna possível mediante uma experiência encarnada e incorporada frente às questões que trata. Ele é resultado da criação de parcerias diversas, não no sentido dos acordos comerciais e trocas de serviços – todos necessários para colocar de pé uma exposição como esta –, mas na produção de encontros. Castiel Brasileiro mobiliza pessoas e entidades ao jogar com diversos planos da existência. Não há como desvincular seu trabalho de uma dimensão espiritual e, por isso, sua leitura pede certo tipo de transcendência. As somagramas propostas por Michael Keleman (1995) como metodologia clínica são um convite para uma investigação íntima de si, nas gestualidades e movimentações dos nossos corpos, nas vibrações, sensações e energias que produzimos nos estados de paragem ou de movimento. As somagramas aquareladas de Castiel nos possibilitam pensar o corpo como um lugar de escrita. A grafia-desenho1 parte do corpo e nele encontra sentido. Ao cartografar seus estados somáticos e reconfigurar seu corpo, que se modifica em seus encontros com as águas marítimas, a artista sugere o corpo como 1.  No texto Da grafia-desenho de Minha Mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita, a escritora Conceição Evaristo apresenta uma memória do seu primeiro contato com a escrita na infância. A partir da imagem de sua mãe grafando-desenhando um sol no chão de terra, sugere que a atividade de escrever demanda uma mobilização total do corpo.


Castiel Vitorino Brasileiro. Amuletos. Série escultórica A história tem me exigido crueldade. Cerâmica esmaltada, vidro, cobre e couro animal. Dimensões variadas (entre 7 cm a 13 cm). Vitória, 2018-19.

território, um microcosmo do espaço amplo, e por isso ele é sempre modulável. Propõe inventariar as sensações de modo a criar um corpo que é arquivo cujos fragmentos podem ser recuperados, revistos e postos à contemplação. Seus amuletos de guerra trazem as imagens de objetos utilitários manufaturados pelos povos originários de Brasil e África. O trato com as substâncias orgânicas e inorgânicas que compõem os artefatos reveste os amuletos de autonomia. Resultam de um trabalho de arte-feitiçaria que lhes confere vida2. Esses objetos consagrados, quando acoplados ao corpo, agem na corporeidade de quem o usa e, também, no espaço-entorno. Um amuleto serve para nos livrar de uma diversidade de males e carregos: os adoecimentos físicos, fraquezas, maus olhados, a violência do colonizador, as expectativas da cisgeneridade etc. Aos olhos de quem possa inflingir alguma violência, é um lembrete: Não mexe comigo, que eu não ando só. Os objetos jogam com as tensões entre passividade e agressividade, força e fragilidade, efemeridade e perenidade. Oferece uma amálgama de contradições que bailam, nem sempre amistosamente, nas encruzilhadas da vida. Castiel firma seu ponto no espaço expositivo reivindicando seu direito ao segredo e à fala. A boca como lugar de manutenção da violência colonial é também uma possibilidade de produção de autonomia. A fala surge como enunciação de liberdade e o segredo como estratégia de resistência. O jogo de negociações entre o verbo e o silêncio se dá na interioridade, daí a pergunta não é apenas “quem pode falar?”, mas “quem nos autoriza a falar?”, ou “sobre o que falar?”, ou “como falar?”, ou “para quem falar?”. 2.  Sobre as relações entre arte e feitiçaria, ver Bantos, Malês e Identidade Negra (LOPES, 2011).


Castiel Vitorino Brasileiro. Espadas. Série A história tem me exigido crueldade. Cerâmica esmaltada. Vitória, 2018. Suporte de ferro feito por Natan Dias.

O segredo é a inteligência africana que permite a manutenção da existência na violenta diáspora. O segredo é o que possibilita que a artista perfure as malhas que tentam imobilizar os artistas negros em lugares de silenciamento e invisibilidade. É a ginga e a mandinga, é o puro mistério, é a aproximação com a vida3. O segredo é a encruzilhada. A exposição O Trauma é Brasileiro é uma convocação. É um chamamento para adentrar o espaço de corpo-espírito e pés descalços. A sacralização do espaço contamina a galeria e rompe a assepsia da instituição que passa a abrigar múltiplas existências em seu interior. O gesto da artista fortalece o espaço, preenche-o de significados e sentidos, torna-o real. Castiel transforma a galeria em seu cazuá, que está pronto para servir de abrigo e, quem sabe, despertar processos íntimos e comunitários de cura.

Referências bibliográficas EVARISTO, Conceição. Da grafia-desenho de Minha Mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita. Depoimento apresentado na Mesa de Escritoras Afro-brasileiras; XI Seminário Nacional Mulher e Literatura/II Seminário Internacional Mulher e Literatura, Rio de Janeiro, 2005. Disponível em: <http://nossaescrevivencia.blogspot.com. br/2012/08/da-grafia-desenho-de-minha-mae-um-dos.html>. Acesso em: 26 abr. 2019. KELEMAN, Stanley. Corporificando a experiência: construindo uma vida pessoal. São Paulo: Summus, 1995. KILOMBA, Grada. A Máscara. Tradução DE JESUS, Jessica Oliveira. Cadernos de Literatura em Tradução, São Paulo: Universidade de São Paulo, n. 16, p. 171-180, 2016. LOPES, Nei. Bantos, Malês e Identidade Negra. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.

3.  Frase dita por Castiel Vitorino em um dos encontros formativos do curso Estéticas Macumbeiras na Clínica da Efemeridade em maio de 2019.


A ansiedade surge quando entramos no tempo da ocidentalidade. Quando nos permitimos ser refĂŠns da colonialidade.


Castiel Vitorino Brasileiro Sagrado feminino de merda. Série fotográfica. Fotografia digital. Vitória, 2019.


Castiel Vitorino Brasileiro. Quarto de Cura #3. Instalação (96 m²), Vitória, 2019.


O TRAUMA É BRASILEIRO  DIANE LIMA Como uma estratégia para refutar o olhar etnoantropológico que disseca o outro, o Fanon criou e nos deixou um método: a regra número um seria exprimir-se em primeira pessoa e a número dois, não se inspirar na anatomia, ao invés disso, preferir a clínica. Através de ambos os passos, o autor acreditava que a epistemologia e a descolonização estariam nascendo, gesto que repito agora nesse texto que não haveria de ser outro senão partindo de uma escrita encarnada nos afetos e que são os mesmos que miram com felicidade a permanência no tempo de um trabalho que vem sendo lapidado em consistência e que, como todo trabalho – na nossa concepção de trabalho – tem a ver tanto com a própria vitalidade da artista bem como, com a intencionalidade com que imanta as materialidades do mundo e, em sua ritualística, promove a comunicação entre os planos físico e espiritual. Nesse sentido que posso declarar que a minha trajetória de cura se encontra nas encruzilhadas do trabalho de Castiel, quando nos conhecemos quase como insistência do destino na edição de 2016 do AfroTranscendence, menos por coincidência e, talvez, mais por serendipidade – para homenagear Kehinde em Um Defeito de Cor, chamou-se Tempo de Cura. Por isso, ao invés de postular o acaso, prefiro acreditar como alguém dotada de fé no que me perguntou certa vez Tiganá Santana sobre “que frequência te frequenta?”, motivo pelo qual tanto me estremece ver nascer, depois de uma outra experiência recente que tivemos no Valongo Festival Internacional da Imagem, essa primeira exposição individual de Castiel Vitorino Brasileiro intitulada O Trauma é Brasileiro, que fica em exibição até o dia 24 de agosto na Galeria Homero Massena, em Vitória, no Espiríto Santo, e conta com curadoria de uma equipe composta por Napê Rocha, Felipe Lacerda e Renato Santos. Do Valongo, gostaria de frisar não somente a fundamental presença de Castiel no programa de residência do festival, quando dentro de um contêiner navegou nas raízes dos procedimentos entre a clínica, a macumbaria e a cura montando a instalação Como sobrevivo aqui (2018), como também enquanto essa presença condutora que se materializa como potencia de cura e fé na própria vida. Sobre esse depoimento que poderia ser mais longo, assento nas ruínas da memória dos nossos passos e nas palavras de chuva das águas dos cais do Valongo, quando fomos escala portuária e com a A história tem me exigido crueldade (2018) no pescoço, carreguei sua obra-amuleto como quem se prepara para a guerra. Na travessia dos nossos caminhos, seguimos recordando mutuamente dos gestos de cura que nos une e de todos os dizíveis tão invisíveis como aquilo que se pode ou não se pode ser.


CURA MUNDO IMPOSSÍVEL  MUSA MICHELLE MATTIUZZI

A cura, é um ciclo que não finda mas se transforma transborda. Gosto de pensar o diagrama da cura como o infinito, e tratá-lo como o número oito é imaginá-lo deitado transformando o seu diagrama em força e também falta de energia. um ciclo sem fim. A cura como havia imaginado na minha vida de socialização ocidental, se apresentou de várias formas, mas a minha incapacidade de ver o invisível me colocou em situações de contradição confusão mental loucura. morte espiritual. A cura me fez adoecer, pois o adoecimento, a letargia do corpo, são os principais sintomas, se você sintoniza esses processos ao infinito, a energia tende a ser outra, ela torna-se interminável. É com muita dificuldade que escrevo essa palavras. São palavras oração. Elaborar para o presente momento a cura, é entregar o mapa com as oitos forças


em forma de amuleto em direção ao caminho de ORUM. Por isso, deitando o oito e pensando a cura na curva do infinito ou então como o infinito, que é possível imaginar e ressurgir das cinzas. Esse pensamento me faz e refaz, a sensação que estou andando pelo caminho em busca da fé. Por favor, não confunda com a fé cristã com a fé pagã, são vivências distintas. É pela vivência preta. É pela comida, é pelo cheiro, é pela pele pelada. A fé profana desse corpo preto e impossível. A fé como energia telepática que move as forças invisíveis da cura. E o infinito é o seu diagrama. Quando escrevi sobre a fé me veio a imagem de Salvador, Pelourinho, eu caminhando com o rosto sangrando descalças… sangrando sentindo sentindo o cheiro do meu sangue era forte. Pois ali naquele solo o sangue preto jorra. foi ali naquele solo que encarei o AXÉ... sangrei. AXÉ palavra de origem IORUBÁ. Em Salvador IORUBÁ tem o corpo do sentido, a palavra AXÉ tomou meu corpo. Ali entendi o seu verdadeiro vestido. Hoje as palavras que são em IORUBÁ, que antes se limitava ao meu conhecimento o sentido do dicionário faz parte da minha memória de cura. AXÉ - SAUDADE - CURA um quarto de cura Escrever sobre um processo impossível e perceber que as palavras que limitavam o sentido do dicionário tomou forma e o meu corpo gordo também curou-se de alguns ocidentalismos.


AXÉ A primeira vez que consultei o IFÀ em Salvador foi no dia 12.03.2016 (a soma é 15) Foi porque no dia 7.3.2016 no apartamento 403 (soma é 7) essa coincidências de números 7 às 7 da noite. o fim do meu mundo em processo infinito de incidentes mas isso não vem ao caso o que importa dessas coincidências são os diagnosticos que nos apontam em direção à vida após a morte Quando precisamos mudar um ciclo a força do nosso caminho nos direciona para as cinzas se necessário. A minha falta de conhecimento, ou melhor, a minha inocência sobre um conhecimento aparece adentrar a esse processo artístico e terapêutico é estar consciente do processo. E se perder nas infinitas possibilidades de restaurar os saberes, o quarto de cura nesse momento é o desfazimento de uma profecia ocidental e o refazimento de uma memória ancestral que estava em brasa, viva. O quarto de cura como uma mandala, como um filtro, como um portal esconderijo, só será curado aqueles que se permitirem transicionar. pode fazer contra pode fazer à favor faz o que faz, é o que é.


O TRAUMA AGORA É DELES

Felipe Lacerda. Frame da série Anotações sobre o fim, 2019.


Os bolos de aniversario sempre foram feitos pela minha avó Julite. Produção e montagem: Castiel Vitorino Brasileiro, Tatiane Loureiro Brasileiro, Julite Loureiro Brasileiro, Larissa Brasileiro, Felipe Gomes. Castiel Vitorino Brasileiro. Celebrar para não esquecer. Ação. Durante abertura da exposição O Trauma é Brasileiro. Vitória, 2019


Se tudo está em tudo, então eu estou em meu avô Bininho e ele está em mim. A relação de reciprocidade e interpenetração entre nós dois não acaba com a morte de um de nós. A morte não é o fim desse contágio mútuo, pois a morte é um anúncio da vida, já que essas duas dimensões da existência são complementares. Com a morte do meu avô continuarei o tendo em mim e interferindo nele através da minha relação que estabelecerei com o mundo e com as vidas que partilhamos juntos. A absorção e incorporação da substância de vida de Benedito Brasileiro, continuará se presentificando em minha memória gestual, em qualidades sensoriais, em minha pele negra, em minha bioquímica, em minha vontade de cozinhar, em meu amor, em meu nome de batismo e nome de guerra, em meu sobrenome. Em meu sopro de vida. Em meu piscar de olhos. Em minha garganta. Em minha gargalhada. Em minha respiração.


Castiel Vitorino Brasileiro. Detalhes de obra Quarto de Cura #3. Vitรณria, 2019.


A CURA É BANTU  CASTIEL VITORINO BRASILEIRO Semana passada, completei 23 anos de existência carnal, terrena. E hoje acontece um eclipse solar na lua nova. Será que a lua e o sol se cansam enquanto dançam? E o que acontece nessa dança que me faz querer continuar nessa dança, que me faz querer continuar o giro do anti-horário? E como giro ou danço, se estou cansada? Enquanto estou cansada. Enquanto estou cansada, ainda me movimento, pois o cansaço é uma dança. É uma respiração. É a dança que o vento faz dentro de mim, durante minha meditação. Eu medito desde meus primeiros anos que assumi a guerra. Nunca precisei me assumir bixa travesti, pois meu corpo é autônomo da linguagem falada. Antes da linguagem, há a língua. O órgão. O corpo. Antes da linguagem verbalizada, acontece a gestual. Antes do convite ser aceito, meu corpo já dança com a lua e o sol. E o convite. Qual é esse convite? É o de entrar. Aqui eu proponho alguns convites. E não são a todos. E podem ser para alguns, que juntos fazem o todo. Esse todo é que venho criando. Um todo feito por poucos. Esse quilombo que tenho construído é diferente daquele que existia na Fonte Grande. E que existe. E que já existiu. É uma pergunta e uma constatação. Uma verdade. Ou uma origem que não descubro e sim crio enquanto visito e crio aquilombamentos na Fonte Grande. Enquanto danço lá em cima. E quando quero dançar na boca da mata. Dançar nessa boca, enquanto percebo e lembro no gesto que sou filha da lua crescente. 26/06/1996. Nasci semana passada e quando Renato me convidou para criar o Quarto de Cura em sua casa. E nasci enquanto morria. Porque eu morri enquanto lembrava minha existência de 500 ou 1000 anos. Quantos anos de fato tenho? Quero ter a idade de uma semente, e quero ser novamente plantada pelas minhas avós. Mas se ainda não sou, serei aquela que irá plantar um jardim para não precisar ir na farmácia. É assim que surge a Vila Rubim? É assim que eu me curo, indo na Vila Rubim. Dançando na Vila Rubim coreografias aprendidas enquanto desaprendo a colonialidade. É quando crio meus eclipses lunares e solares. Sim, crio-os sempre que choro ou descanso, mas não tenho chorado ou descansado muito. Faz alguns meses que não chove em meus olhos. E também faz alguns meses que meu músculo deseja o descanso. E é assim que faço a cura. Compreendendo-a, continuando viva. A cura é uma questão de tempo e os meses podem ser dias. Ou meia hora. Um amor de meia hora é um amor de marinheiro. Um marinheiro. Um amor de marinheiro é um amor de meia hora. Quanto tempo dura meia hora? Tô descobrindo. Estou virando sereia. Assim como já fui e sou planta. Corpo-flor. Sou planta, terra e mar. E se todo conhecimento tem uma origem, qual origem consigo criar com meu corpo cansado? É sempre quando consigo mergulhar na calunga sem me afogar. E como aprendi a nadar? Quando tive coragem para mergulhar e aprender.


CASTIEL VITORINO BRASILEIRO

Castiel Vitorino Brasileiro. Graduanda do 10º período do curso de Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo. Pesquisa e inventa relações em que corpos não-brancos se desprendem das amarradas da colonialidade. Desenvolve experiências estéticas macumbeiras na Clínica da Efemeridade. Idealizadora do projeto de imersão em processos criativos decoloniais Devorações. castielvitorinobrasileiro.com

castielvitorinob@gmail.com

Renato Santos. é bailarino e mestre da Banda de Congo Vira Mundo. Mestre em Pedagogia pela Universidade Federal do Espirito Santo, e professor de Educação Física. Dedica-se à valorização e reconhecimento das artes cênicas afro-brasileira no Espírito Santo. renato.santos.vix@hotmail.com

Napê Rocha é artista-educadora licenciada em Artes Visuais pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), mestranda em Estudos Críticos das Artes pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos das Artes (PPGCA) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Investiga práticas e poéticas de artistas negros. rocha.lndr@gmail.com

Diane Lima é curadora independente e pesquisadora. Mestra em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, seu trabalho concentra-se em experimentar práticas curatoriais multidisciplinares em perspectiva decolonial. dianelimabr@gmail.com

Musa Michelle Mattiuzzi é performer, diretora de cinema, escritora e pesquisadora. Seus trabalhos se apropriam do/e subvertem o lugar exótico atribuído ao corpo da mulher negra pelo imaginário cisnormativo branco, que o transforma numa espécie de aberração, entidade dividida entre o maravilhoso e o abjeto. musamattiuzzi@gmail.com

Felipe Lacerda é graduanda em Artes Visuais pela Universidade Federal do Espírito Santo. Elabora profecias e anunciações sobre o fim do cis-tema, com pesquisas que giram em torno de gênero, sexualidade e raça. felipelacerda02@gmail.com


Castiel Vitorino Brasileiro. Série Somagramas de quando encontro vocês. Aquarela. Tamanhos variados. 300 g/m². Vitória, 2019.


Castiel Vitorino Brasileiro. Quarto de Cura #3. Instalação (96 m²), Vitória, 2019.


CASTIEL VITORINO BRASILEIRO

GALERIA HOMERO MASSENA 11.JUN—24.AGO.2019

GOVERNO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO GOVERNADOR DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO JOSÉ RENATO CASAGRANDE VICE-GOVERNADORA DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO JACQUELINE MORAES SECRETÁRIO DE ESTADO DA CULTURA FABRÍCIO NORONHA SUBSECRETÁRIA DE ESTADO DA CULTURA CAROLINA RUAS PALOMARES SUBSECRETÁRIO DE ESTADO DE GESTÃO ADMINISTRATIVA PEDRO SOBRINO PORTO VIRGOLINO GALERIA HOMERO MASSENA COORDENAÇÃO DE ARTES VISUAIS NICOLAS SOARES MEDIAÇÃO ANTONIO CARLOS O. DA FONSECA, PRISCILA NUNES DIAS FUNCIONÁRIOS BIANCA ALVES BALBINO SANTOS, EVANI REZENDE DA SILVA, TÂNIA MARIA DE JESUS COSTA ESTAGIÁRIA ACERVO ANA LUIZA DIAS PIO DOS SANTOS MELLO O TRAUMA É BRASILEIRO / CASTIEL VITORINO BRASILEIRO PRODUÇÃO  FELIPE GOMES EDUCATIVO KIUSAM DE OLIVEIRA DESIGN GRÁFICO  MONOMOTOR MONTAGEM  GUSTAVO DE OLIVEIRA, EDMUNDO SOUZA JR ASSESSORIA DE IMPRENSA PAULO GOIS ILUMINADOR  NATAN DIAS VIDEOMAKER ROGER GHILL FOTÓGRAFO KEVIN FELIPE BARBOZA EQUIPE CURATORIAL  FELIPE LACERDA, NAPÊ ROCHA, RENATO SANTOS TEXTOS DO CATÁLOGO DIANE LIMA, MUSA MICHELLE MATTIUZZI, NAPÊ ROCHA, FELIPE LACERDA E RENATO SANTOS APOIO NA PRODUÇÃO DE OBRAS RODRIGO JESUS REVISOR TEXTUAL LUÍS FELIPE DOS SANTOS NASCIMENTO


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