Castelo de Ansiães - 5000 anos de História

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Castelo de Ansiães 5000 Anos de História

António Luis Pereira Isabel Alexandra Justo Lopes

1ª edição

Centro Interpretativo do Castelo de Ansiães Município de Carrazeda de Ansiães 2008


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Castelo de Ansiães: 5000 anos de História

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Ficha Técnica

Título: Castelo de Ansiães (5000 anos de História) Concepção gráfica e paginação: António Luis Pereira Textos: Luis Pereira, Isabel Justo Lopes Fotos: Luis Pereira, Isabel Justo Lopes Fotografias Aéreas: Foto Engenho Execução Gráfica: Corlito / Setúbal © Centro Interpretativo do Castelo de Ansiães Câmara Municipal de Carrazeda de Ansiães 1ª edição, 1000 exemplares ISBN: 978-972-95129-7-1 Depósito Legal:285630/08


Castelo de Ansiães: 5000 anos de História

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Nota de Abertura

Temos hoje por adquirido que, sem conhecer a sua história, qualquer organização, comunidade ou povo, dificilmente poderá trilhar, com passos seguros, os caminhos do futuro. Reconhecendo esta verdade insofismável, sempre foi nosso propósito evidenciar toda a riqueza arqueológica do concelho de Carrazeda de Ansiães, tornando assim essa descoberta acessível a todos nós e a quem nos visita. O orgulho e o respeito que os carrazedenses demonstram pela sua história estão certamente alicerçados no testemunho que nos foi dado pelos nossos antepassados. O Castelo de Ansiães, pela sua imponência, simboliza a valentia, a perseverança e a capacidade de trabalho que foi transmitida de geração em geração e que nos poderá ajudar a superar, paulatinamente, todos os desafios que se nos deparam. Está assim justificado o nosso empenho na investigação de tudo o que a história milenar do Castelo de Ansiães tem para nos oferecer. Finalmente, não posso deixar de transmitir uma palavra de apreço ao Dr. Luís Pereira e à Dr.ª Alexandra Justo Lopes que, com a sua dedicação e com a qualidade do seu trabalho, criaram uma obra que certamente nos ajudará a descobrir muitas verdades acerca da antiga vila de Ansiães, até agora escondidas pelo tempo.

O Presidente da Câmara Municipal Eugénio Rodrigo Cardoso de Castro



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Indíce Introdução

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Um sítio com 5.000 anos de História

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O urbanismo da antiga Vila Medieval

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Os templos românicos de Ansiães

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O espaço dos mortos: uma paleodemografia em construção

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As estelas discóides de Ansiães

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Roteiro de Visita

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Bibliografia de referência

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Introdução

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nsiães é terra muito antiga. Uma ancianidade com 5.000 anos de história. A Vila Medieval de Ansiães localiza-se na freguesia de Lavandeira, concelho de Carrazeda de Ansiães, Distrito de Bragança. A ocupação deste sítio, sucessivamente adaptada às características topográficas do local (um morro granítico que reúne excelentes condições naturais de defesa), passou por várias vicissitudes, até culminar num processo de apogeu que marcou a história medieval desta localidade. O estado de ruína em que actualmente se encontra todo o reduto amuralhado, resultou de um processo de abandono iniciado no séc. XVI e definitivamente concluído em 1734, altura em que os Paços do Concelho foram transladados para Carrazeda, actual sede administrativa desta circunscrição territorial encaixada entre os rios Tua e Douro. Nos finais do séc. XVII o Pe. Carvalho da Costa descrevia já o aglomerado como "huma limitada aldeã habitada de alguns lavradores, porque as familias nobres, ou pela aspereza do sítio, frio em demasia, falto de agua & de todos os frutos, ou por outras causas se espalhàrão a viver nos lugares do seu termo, & só se conserva a casa da camara aonde fazem as audiencias”. A monumentalidade do local certifica o seu antigo prestígio dentro da região transmontana, onde ao longo de séculos se instituiu como importante espaço concelhio, cioso das suas liberdades, direitos, deveres e garantias. O Castelo e Vila Amuralhada de Ansiães foi cabeça de território de uma terra de antagonismos. De antagonismos geológicos, de antagonismos climáticos e de antagonismos agrícolas. O actual concelho de Carrazeda de Ansiães, tal como no passado, estende-se entre os rios Tua e Douro, faceando a Sudeste com Torre de Moncorvo e a Norte e Nordeste com Vila Flor. A sua configuração geográfica obedece quase que integralmente a um desenho criado a partir de meados do séc. XI, altura em que foi definida pela primeira vez a circunscrição territorial do seu termo medieval. Os rios Douro e Tua, respectivamente a Sul e Oeste, constituíram desde sempre os limites de uma área de acentuada descontinuidade natural, que se revela em curto espaço pela paisagem, pelo clima e por uma alternância geológica. Aqui, o afloramento xistento do Vale do Douro é interrompido pelo granito do planalto de Ansiães, criando-se uma mancha de cantaria que se dirige para a margem meridional deste rio, no sentido de S. Salvador do Mundo (S. João da Pesqueira), dando origem ao Cachão da Valeira.


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Socalcos no Vale do Douro

Num diminuto espaço geográfico identificam-se vectores ecológicos que integram entidades de ordenamento físico completamente diferentes, e "de Foz Tua, no centro do Douro, sobe-se em meia hora para as alturas de Carrazeda de Ansiães; em 15 quilómetros uma diferença de altitude de 800 metros. Parece estarmos a muitas léguas do ponto de partida! Na extensão aproximadamente de 17 quilómetros de Norte a Sul e de treze de Leste a Oeste, estende-se um planalto, coroado de morros graníticos, varrido dos ventos, frio. O castanheiro, a árvore florestal.característica das terras mais setentrionais, ressurge aqui, a pequena distância donde só o zambujeiro ou o azinho cresciam. Desapareceram a vinha, a oliveira, a laranjeira e a perder de vista são terras magras de centeio, campos de batatais e lameiros. É um verdadeiro encrave de terra fria no Alto Douro." O planalto e o vale, a ribeira e a montanha. Um termo: duas terras. Assim se poderá definir o território onde ao longo de séculos se foi estratificando a história do Monumento Nacional que aqui lhe vamos apresentar. Seja bem-vindo!

Rio Douro


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Um sítio com 5.000 anos de História

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om uma implantação geográfica que lhe confere excelentes condições naturais de defesa, o Castelo de Ansiães revela-se com uma história milenar, cujo início se fixa por volta do IIIº milénio A.C. Desde esse período que as características geomorfológicas do sítio em muito terão contribuído para uma ocupação sucessiva deste morro granítico. Escavações arqueológicas têm demonstrado que a ocupação do local se iniciou há cerca de 5000 ano atrás, durante a fase pré-histórica denominada de Calcolítico. Desde essa altura que as sucessivas fases ocupacionais são testemunhadas por interessantes vestígios materiais reveladores de uma longa diacronia que abarca a Idade do Bronze, a Idade do Ferro e toda a fase de romanização do território transmontano. Ao que tudo indica a área do Castelo de Ansiães foi submetida a um intenso processo de romanização, estendendo-se os vestígios materiais dessa ocupação por uma vasta área que se desenvolve ao longo do sopé norte e nordeste do promontório granítico. O templo de São João Baptista será implantado numa zona onde perdura um conjunto de estruturas de vincada tipologia romana, sobretudo muretes e interfaces de muretes que na sua quase totalidade foram destruídos pela necessidade de implantação da necrópole exterior situada a norte do templo medieval. O habitat que habitualmente é designado na bibliografia como povoado romano de Selores, nada mais é do que o prolongamento de um conjunto de vestígios de cronologia romana que se dispersam por um espaço situado entre a igreja de S. João Baptista da Vila Amuralhada de Ansiães e a vertente Norte e Nordeste que constitui o amplo campo abrigado e fértil que se estende próximo da aldeia de Materiais Pré-Históricos Selores. Os vestígios detectados ao longo desta extensa área


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dão continuidade a um núcleo inicial que se desenvolve na vinha contígua ao templo de S. João Baptista. Os indícios materiais filiados num horizonte cronológico concomitante com a fase de romanização deste território, constituem-se aqui por uma grande quantidade de fragmentos de tegula, imbrices, tijolo, terra sigillata hispânica, cerâmica de utilização comum, uma fíbula, pesos de tear e alguma pedra aparelhada. Leite de Vasconcelos refere ainda o aparecimento de uma ara e de um tesouro de denários republicanos e imperiais que surgiram numa "vinha situada ao pé do Castelo dos Mouros, arredores de Celouros". O povoado romano de Selores constitui o prolongamento do núcleo inicial do assentamento que desde o IIIº milénio A.C se instalou no monte do Castelo de Ansiães, dando-se assim continuidade à longa diacronia da ocupação de todo este espaço, cujo epicentro nunca Cerâmicas Pré-Históricas deixou de ser o morro que mais tarde, durante a Idade Média, veio a dar origem à vila medieval. Esta vocação para a defesa natural adquire particular importância durante o processo da Reconquista Cristã. Nesta altura Ansiães obtém a sua primeira carta de foral. O documento outorgado em meados do séc. XI pelo rei leonês Fernando Magno, constitui um dos mais antigos forais do espaço geográfico definido pelas actuais

Igreja de S. João Baptista


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fronteiras do território português. Durante a fase alti-medieval, o local possuía já uma longa e reminiscente herança cultural, factor decisivo para se estruturar como centro fulcral na zona fronteiriça do rio Douro. Os séculos XII, XIII, XIV e XV, definem um período exponencial de crescimento deste reduto amuralhado. Afonso Henriques em 1160; Sancho I em 1198; Afonso II em 1219 e finalmente D. Manuel I em 1510 reconhecem e promulgam forais à Vila amuralhada de Ansiães. A confirmação do foral inclui ainda a primeira delimPeso de tear romano itação do termo de Ansiães que compreendia um espaço geográfico situado “ per littore Dorio de cabeza de requeixo usque in fraga de azaiam et per portela de mauro usque in cima de ualle de torno cum suas teleiras usque in cruce de freisinel”. Esta delimitação deixa implícita a confrontação a oeste com Linhares que pela mesma altura de Ansiães terá também recebido Carta de Foral de Fernando Magno. No entanto, esta segunda circunscrição territorial sofre um processo de decadência crescente e no reinado de D. Sancho II acaba por integrar o termo de Ansiães. Este primeiro alargamento territorial revela uma consolidação progressiva da importância urbana que a vila teve ao longo de toda a Idade Média. Mas será na Baixa Idade Média que Ansiães se impõe estrategicamente numa região fulcral do expansionismo cristão, adquirindo assim um estatuto urbano que atinge o seu apogeu durante os séculos XIII e XIV. A vila impõe-se progressivamente como a cabeça de um território que abrange um espaço diversificado de recursos e onde vão proliferando pequenos aglomerados e casais agrícolas. Será nesse contexto que em 1277 o rei D. Afonso III lhe concede Carta de Feira. Esta realizava-se a meio de cada mês e tinha a duração de um dia completo. A prerrogativa deste monarca atesta, de certa forma, a pujança e a dinâmica de crescimento que durante a Baixa Idade Média Ansiães detêm na região de Trás-os-Montes, sendo a sua feira, a par da de Bragança, um dos locais transmontanos onde o comércio estava instituído por diploma régio. Quase um século mais tarde, em 1372 o rei D. Fernando, “dou a sua terra dAnciaães do almoxarifado da Torre de Meencorvo a Joham Rodriguez Porto Carreiro em pagamento de sua conthia” Este episódio parece inaugurar uma nova fase da história ansianense. A doação à família Porto Carreiro constituiu uma medida administrativa inserida numa conjuntura económica, social, política e militar bastante adversa. Mesmo assim, o povo de Ansiães revela-se pacífico e exclusivamente norteado em prol do interesse nacional. Os problemas só surgem quando João Rodrigues Porto Carreiro assume uma posição cada vez mais procastelhana, posição essa que vem a revelar integralmente durante a crise de 1383-85. A política seguida por este senhor vai-se incompatibilizar com as aspirações e interesses do velho concelho, e como consequência a população revolta-se, escorraça-o e posterior


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mente impõe-lhe uma derrota em Vilarinho da Castanheira. Banidos os Porto Carreiro, o povo de Ansiães ganha prestígio aos olhos da nova dinastia. E quando D. João I chega ao poder, a localidade impõe-se mais uma vez como um dos principais centros “urbanos” na região transmontana. Datam deste período um conjunto de doações e privilégios. Logo em 1384 são doadas “pera sempre aos homens boõs e concelho dAnciaães” as terras que foram de João Rodrigues Porto Carreiro. Esta doação incluía todos os bens móveis ou de raiz, bem como quintas e casais que o dito senhor possuísse dentro da vila e no seu termo, “ os quaees elle perdeo por seer com elrrej de Castella em deserviço destes regnos e senhor”. Simultaneamente Vilarinho da Castanheira é dada por termo a Ansiães, passando a partir de 12 de Junho de 1384 a enquadrar a sua jurisdição administrativa. A posição assumida pelo povo ansianense durante a crise de sucessão, ao tomar “ voz por Portugal”, Pichel medieval em detrimento de outros concelhos e senhores que na mesma altura se “bandearam” com Castela, foi determinante para construir aos olhos do novo monarca uma forte referência de apoio à sua causa na região de Trás-os-Montes. Por esse motivo e durante o seu reinado sucederam-se privilégios outorgados como nítidos actos de reconhecimento. Assim, em 1384 um diploma régio obriga os habitantes de Freixiel, Abreiro e Murça a concorrer para o levantamento dos muros e torres de Ansiães. Ao que se sabe, a dita vila estava cercada na maior parte por muros constituídos por pedra miúda, e são os homens bons do concelho que na altura se dirigem ao monarca para reclamarem um sistema defensivo mais monumental e condizente com o prestígio que a localidade gozava na região. Por isso, esses mesmos homens bons a quiseram fortalecer com pedra de canto talhado e torres, embora para tal não possuíssem “ ajuda de nenhua parte salvo as meas terças das egrejas da dita villa.” Estas limitações orçamentais levaram a que o monarca da nova dinastia desse por adua os lugares de Freixiel, Murça e Abreiro, a fim de com os seus peões participarem na ajuda das obras e trabalhos relacionados com a construção do novo sistema de amuralhamento. Além da prestação da adua ou anúduva, os moradores dos referidos lugares estavam obrigados ao pagamento de um imposto em dinheiro, devendo este ser tributado em função dos “bees que cada huu ouver de guisa que sejam todos igualados como devem com os da dita villa dAnciaães”. Infere-se daqui que o carácter monumental do sistema defensivo que ainda hoje possui a antiga vila foi projectado e construído já muito próximo dos finais do séc. XIV. Antes desta data o local deveria apresentar um aspecto mais modesto com muralhas mais


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Muralha Medieval (Séc. XIV)

simples e sucessivamente adaptadas às exigências defensivas que os diferentes períodos cronológicos e respectivas ocupações foram exigindo. Em 11 de Outubro de 1386 D. João I confirma ao concelho todos os privilégios, foros e liberdades, ao mesmo tempo que isenta os moradores da vila e do termo do pagamento de portagens e costumagens. Em 1422 e em aparente contradição com o anteriormente legislado, D. João doa “de juro e herdade a Vasco Pires de Sampaio com todos os direitos, rendas, foros e portagens, as vilas de Anciães, villarinho da Castanheira, villa Flor, Torre de Moncorvo e Mós lugares acastellados com todos seus termos.” Esta doação permitiu que o controlo efectivo da vila passasse para uma nova família, a família Sampaio, que pelo menos durante os séculos XV e XVI manteve Ansiães em seu domínio por intermédio de um conjunto de confirmações régias que permitiram que vários dos seus membros se sucedessem na posse da sua jurisdição. O processo dinâmico que conduziu à monumentalidade de Ansiães testemunha o seu antigo prestígio dentro da região transmontana, onde ao longo de toda a Idade Média se instituiu como um importante espaço concelhio. A dimensão e imponência desta antiga vila permitem adivinhar áureos momentos do seu secular desenvolvimento. Contudo, os finais do séc. XV, e particularmente o séc. XVI, marcam o início de uma transformação demográfica traduzida numa perda cada vez mais acentuada da importância urbana do reduto Porta de S. Salvador amuralhado, em função do desenvolvimento de outras


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localidades que constituíam o ter ritório concelhio. É cer to que em 1443 o rei D. Afonso V atribui aos besteiros de Ansiães grandes privilégios e isenções, e que em 1510 o rei D. Manuel I lhe outorga novo foral. Todavia, uma tendência de carácter depressivo atingira já o local, e em 1527 algumas aldeias que constituíam o município contavam com uma população superior à de Ansiães. Nas centúrias seguintes este movimento acabou por se agudizar, culminando na transferência dos Paços do Concelhos para Carrazeda, acto que ocorreu em 1734 pelo facto de no antigo reduto residir um número bastante reduzido de pessoas, dando-se assim início ao abandono de um local que foi ininterruptamente ocupado ao longo de 5.000 anos.

Castelo de Ansiães - Vista da igreja de S. Salvador


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Vista aérea da malha urbana do Castelo de Ansiães

Pormenor da muralha


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O urbanismo da antiga Vila Medieval

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nsiães ostenta uma monumental estrutura defensiva formada por dupla muralha de alvenaria granítica. O sistema defensivo organiza dois espaços que se adaptam às características morfológicas de um morro que se ergue na parte terminal sul do planalto carrazedense, numa zona de interface entre o altiplano e os vales encaixados dos rios Douro e Tua. Na cota mais elevada desse morro organiza-se uma primeira plataforma de configuração aproximadamente oval, que é definida a partir do traçado de uma pequena muralha que se reforça por cinco torreões quadrangulares. A sudeste abre-se a porta de S. Salvador que permite o acesso directo ao interior deste recinto através de um caminho que liga directamente à torre de menagem. Esta porta, com arco de volta perfeita e uma moldura formada por aduelas, é flanqueada por dois dos torreões que integram o complexo estrutural desta primeira muralha, constituindo o único ponto de acesso ao interior do reduto onde se centra a “infra-estrutura” vital do povoado, como é o caso de uma profunda cisterna com grande capacidade para o

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Legenda: 1 - Igreja de S. João Baptista 2 - Igreja de S. Salvador 3 - Capela de Stª Maria 4 - Porta de S. Francisco 5 - Porta de S. João Baptista 6 - Porta da Vila 7 - Porta de Fonte Vedra 8 - Porta de S. Salvador 9 - Postigo da Traição 10 - Torre de Menagem 11 - Anexos da Torre de Menagem 12 - Cisterna

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armazenamento de água. No topo superior voltado a norte, urbana um conjunto de vestígios ainda Planta da estruturação da vila amuralhada de Ansiães


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Vista aérea da organização urbana da Vila Medieval de Ansiães

bem preservados testemunham a presença da torre de menagem e dos anexos habitacionais a ela associados. Aqui abre-se uma pequena porta de arco ogival denomina de postigo da traição. A partir do levantamento topográfico que foi efectuado a este perímetro, podem ainda ser observados alguns vestígios de alinhamentos que fazem supor a presença de antigos edifícios. Tendo em consideração a reduzida dimensão deste primeiro espaço amuralhado, e sobretudo a concentração de um elevado número de torreões, poder-se-á pensar

Organização estrutural de um bairro na Vila Amuralhada de Ansiâes


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esta área como uma espécie de último reduto, concebido e projectado em torno de uma funcionalidade exclusivamente militar. A vila propriamente dita estruturava-se ao longo das pendentes e plataformas que se desenvolvem imediatamente abaixo desse primeiro terraço, formando uma segunda plataforma onde se concentravam as zonas habitacional e produtiva do aglomerado. É também cingida por uma muralha de pedra de cantaria lavrada e esquadriada que cerca o povoado pelos sectores ocidental, sul, oriental e norte. Esta segunda muralha, com uma extensão superior a 600 metros e apenas três torres quadrangulares, arranca do sector ocidental, junto de um torreão que integra a primeira cerca, desenvolve-se com um traçado algo sinuoso no sentido oriental, segue posteriormente em direcção a norte e vem ligar-se, já no sector ocidental, ao pano norte da muralha da plataforma superior, dando origem a um espaço interno de grande dimensão mas com um perímetro bastante irregular. Desta planta geral emerge uma organização urbana assente em dois eixos estruturantes que acompanham a rota dos pontos cardiais. Um primeiro eixo de ligação interna arranca a norte, junto da porta de S. Francisco e dirige-se para sul, culminando na porta de Fonte de Vedra. O segundo, parte da Porta da Vila, a oriente, e vem culminar no outro extremo ocidental, junto da porta de São João Baptista. A partir destes fulcros estruturantes partem depois pequenas ruas, vielas e arruamentos que organizam o intrincado da malha urbana.

Vista aérea da igreja de S. Salvador


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Nesta organização espacial, ressalta em posição destacada a igreja de S. Salvador que se ergue imponentemente na zona mais alta da área habitacional. O templo é rodeado por um largo que integra a antiga necrópole medieval, conforme foi apurado a partir de escavações arqueológicas realizadas no local. Descendo no sentido da porta de S. Francisco, imediatamente a seguir à igreja de S. Salvador, sobre o lado direito do caminho empedrado, vamos deparar com as ruínas de

Porta de S. Francisco


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Pormenor do tímpano da igreja de S. Salvador

uma estrutura de grandes dimensões, talvez a mais imponente de toda a malha urbana e que tem vindo a ser interpretada como um edifício público ou um edifício senhorial. Foi também nesta área que detectamos o conjunto mais imbricado de alicerces e de derrubes, o que, de certo modo, testemunha um dos espaços mais densamente ocupado de todo o povoado. A tentativa de avaliar a estruturação urbana de Ansiães está sempre reduzida a um claro exercício de interpretação subjectiva. Só uma gigantesca tarefa de trabalhos susceptível de levar à remoção de todos os derrubes ainda presente no perímetro amuralhado permitiria uma clara e mais completa percepção da sua planta urbana.


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Os templos românicos de Ansiães

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planta da igreja de S. Salvador de Ansiães obedece a dois cor pos principais: nave e capela-mor. A grande originalidade deste templo reside na combinação de um leque bastante variado de elementos decorativos que reflectem a influência de correntes estéticas diversificadas. Do seu programa iconográfico, o que distinguea igreja de S. Salvador de Ansiães de todos dos outros templos existentes na região transmontana é o seu portal principal que se abre ostensivamente na fachada voltada a ocidente. A grande originalidade deste portal reside fundamentalmente no tímpano "Pantocrator", cuja iconografia e complexidade iconológica de "Cristo em Majestade" revela um dos mais completos exemplares do românico português . O Pantocrator de Ansiães é uma das quatro figurações que surgem em território nacional, projectando-se num tímpano esculpido num fino relevo onde se expõe a perspectiva teofânica manifestada por Cristo em majestade rodeado de quatro seres que integram o tetramorfo. A figura divina encontra-se sentada com a mão esquerda segurando um livro sobre a perna esquerda e a mão direita levantada em forma de ângulo recto. Sobre o seu lado direito surge a representação de um anjo, S. Portal frontal da igreja de S. Salvador Mateus, sobre o lado esquerdo a águia, representando S. João, e na parte inferior possíveis representações de um boi e de um leão que correspondem, respectivamente, aos símbolos dos evangelistas S. Lucas e S. Marcos. No mesmo portal, ladeiam o tímpano um conjunto de arquivoltas com uma decoração historiada que representam "cenas" do apostolado. De um modo geral evidencia-se aqui uma complexidade formal também bastante diversa e, em alguns casos, difícil de interpretar. Entre o tímpano e a primeira arquivolta decorada entremeia-se uma outra com aduelas despojadas de qualquer representação. Só no segundo arco, no primeiro toro sobre o lado norte, se inicia a narrativa, começando-se


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por expor a representação de duas figuras em que dois homens se reclinam um sobre o outro, podendo ser interpretado como as representações de Cristo e de S. João Baptista. O reportório alastra-se para a aduela terminal do lado oposto, seguindo-se por ordem sequencial a figura de S. Pedro e um conjunto de outras representações humanas de difícil caracterização. A composição termina na última aduela do lado sul onde se esculpiu, numa escala consideravelmente maior, a figura de um personagem enigmático que encosta contra o peito uma tábua de formato quadrangular. A terceira arquivolta provoca uma ruptura no conjunto historiado do portal, surgindo decorada com imagens de contornos triangulares que exprimem cabeças com rudes expressões. Esta tendência de cariz mais geometrizante estende-se por todo o espaço do arco, gerando um reportório estilizado e repetitivo. Na arquivolta seguinte aflora novamente a temática humana, desfilando uma panóplia de seres em que se destaca com maior precisão a figura de um homem segurando uma espada e uma cabeça humana coroada de farta cabeleira. Todo o conjunto assenta em capitéis profusamente decorados por motivos pouco habituais na plástica medieval, o que contrasta, a nível compositivo, com as restantes figurações. No capitel que mais próximo está da porta de entrada do lado norte figura um dragão, a que se segue a representação de um leão que depõe a pata em cima de uma cabeça humana, seguindo-se dois outros capitéis com um emaranhado de formas de difícil descodificação. Ainda sobre o lado norte e ao nível do conjunto dos quatro capitéis uma imposta exibe uma decoração tipicamente geométrica baseada nos frequentes motivos de corações invertidos. No conjunto oposto deve ser salientado o recurso a motivos mais vegetalistas e também geometrizantes onde assumem primordial importância as designadas volutas. Já no interior e a ladear o portal principal surge a figura do leão, que aqui desempenha uma função fundamentalmente apotropaica . Na frontaria Norte abrem-se duas janelas “frestadas” e uma porta que permite o acesso à nave do templo. Trata-se de um portal simples e despojado de elementos decorativos muito elaborados. Duas impostas sustentam um arco de volta perfeita de aduelas lisas que abraça um tímpano onde se inserta uma cruz vazada. A encimar o pano granítico duas janelas com fresta completam o esquema decorativo desta fachada. A janela mais oriental compõe-se por duas colunas encimadas por capitéis onde se apoia uma arco aduelado de volta perfeita. Os elementos decorativos mais proeminentes nesta janela residem na representação de um emaranhado se símios, facto que permite estabelecer algumas analogias cronológicas com a igreja românica de Rates, e no capitel oposto, a representação de uma sereia masculina de dupla

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cauda. A janela mais ocidental exibe dois capitéis decorados com volutas. Na parede Sul, o panorama decorativo altera-se significativamente, surgindo um portal com um intrincado formal mais elaborado e diversificado. Aqui um arco de volta perfeita forma uma arquivolta densamente decorada por “beakheads”, a que se segue duas impostas com um formalismo estético geometrizado pela repetição de corações invertidos. Esse geometrismo de contornos vegetalistas continua presente nos dois capiteis que ladeiam a porta com arco cairelado. No extremo oriental, já no pano granítico da capela-mor, abre-se Portada da fachada Sul uma arca tumular com arco solium, o que sugere ser uma obra posterior à primeira construção do templo. Poder-se-á tratar, dadas as características tipológicas do arco quebrado de estilo gótico, de uma obra efectuada aquando da primeira acção de restauro levada a cabo no ano de 1442. No interior, o arco triunfal que divide a capela-mor do corpo principal do edifício revela-se igualmente enriquecido com um conjunto de elementos que fazem recurso a motivos decorativos geométricos, evidenciando algumas influências do românico bracarense. Aqui, a um arco de volta perfeita, ligeiramente ultrapassado e com aduelas sem decoração, segue-se uma arquivolta abundantemente decorada por motivos geométricos triangulares que são interpolados por círculos. Esta arquivolta vem rematar sobre duas impostas que mais uma vez fazem recurso a uma decoração baseada em corações invertidos. Os capitéis constituem-se por dois excelentes exemplares com decoração em palmetas que encontram uma ascendência estilística directa na Sé de Braga.

Cachorro fachada Norte


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Arco triunfal da igreja de S. Salvador


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pobreza ou a quase ausência de elementos decorativos e as suas linhas com ar exageradamente “arcaico”, de contornos manifestamente ingénuos, são as características que em termos latos poderão definir o templo de S. João Baptista. A escassez de motivos decorativos e de elementos arquitectónicos referenciais capazes de constituírem um factor de comparação estilística, transformam a datação desta igreja numa tarefa quase impossível. A mais antiga referência documental para o templo de S. João Baptista dão-na como já existente no reinado de D. Pedro , embora os dados arqueológicos exumados recentemente permitam recuar a sua cronologia para um período bastante mais antigo. Considerando os aspectos gerais desses dados, poder-se-á inferir as seguintes conclusões: o interior do templo foi ocupado por uma necrópole onde se testemunham enterramentos que abrangem uma longa sequência ocupacional, interrompida por volta do século XV, XVI, altura em que o edifício é sujeito aobras concomitantes com uma fase de remodelação. Posteriormente a esta fase a igreja continua a ser utilizada como espaço cemiterial até muito provavelmente ao século XVII e XVIII. Os resultados arqueológicos obtidos permitem expor já uma primeira interpretação sintética. Efectivamente, conclui-se que existem três momentos cronologicamente bem diferenciados de enterramentos no interior deste templo. O primeiro e mais recente é expresso por sepulturas simples escavadas em terra que serão sempre posteriores à fase


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Igreja de São João Baptista

de remodelação aqui ocorrida nos finais do séc. XV; um outro, intermédio, é corroborado por sepulturas escavadas directamente no saibro com uma configuração antropomórfica onde, num dos casos, foi recolhido da mão direita do indivíduo aí sepultado um dinheiro que permite a sua datação relativa para a primeira metade do séc. XIII, e uma fase mais antiga que está representada por uma sepultura escavada no afloramento granítico cujos contornos evidenciam características peculiares, surgindo com uma tipologia claramente antropomórfica e com uma particularidade sem paralelo conhecido em Portugal, como é o caso de um pequeno “nicho” escavado na sua parte superior direita, muito próximo da cabeceira, que continha os indícios orgânicos de aí ter sido colocado um recipiente de vidro. Todos estes elementos deixam entrever a possibilidade da recomposição de algumas das peças dispersas da história desta igreja, apesar de para muitas das interrogações colocadas ainda não terem sido encontradas respostas suficientemente cabais. Será conveniente frisar que a igreja de S. João Baptista se implantou numa área extra muros adjacente ao espaço urbano de Ansiães, precisamente no local onde se desenvolveu a antiga ocupação romana. Aliás, a sua necrópole exterior é responsável pela destruição da maior parte dos níveis arqueológicos articulados com esse período cronológico, e o espólio recolhido na necrópole do seu interior mistura também, e não raras vezes, alguns materiais dessa ocupação. Os resultados da investigação arqueológica aqui efectuada dão como adquirida


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Arco triunfal da igreja de S達o Jo達o Baptista


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uma cronologia bastante antiga para a fundação da igreja de S. João Baptista, classificando-a como uma construção de raiz préromânica com sucessivas adaptações e restauros durante a Baixa Idade Média. Do conjunto arquitectónico que caracteriza a igreja de S. João Baptista, o elemento que mais evidencia estranheza é, sem dúvida, a ausência de um portal frontal voltado a ocidente, ao contrário do que acontece na maioria das igrejas românicas portuguesas. Efectivamente, o pano granítico voltado a oeste apresenta-se liso, sem qualquer abertura ou elemento decorativo de significância ou realce. As portas de acesso ao interior rasgam-se nas paredes norte e ul e exibem uma Porta sul da igreja de são joão Baptista modesta plástica. Ambos os portais ostentam tímpanos com uma fraca exuberância decorativa em que os elementos mais significativos dizem respeito a um riscado no tímpano da porta sul e a um entrelaçado simples que envolve o tímpano da porta norte. O templo encontrava-se associado a uma necrópole de sepulturas escavadas na rocha, abertas directamente no substrato granítico que aflora à superfície do sector norte. Trata-se de um conjunto bastante restrito de exemplares, uma vez que grande parte dessa necrópole foi destruída. As três estruturas sobreviventes apresentam um talhe bem elaborado que definem uma tipologia antropomórfica escavada num único bloco granítico. Todas possuem a orientação oeste-este, coincidente com o alinhamento dos muros da igreja.

Sepulturas rupestres


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O espaço dos mortos: Uma paleodemografia em construção

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intervenção arqueológica na Vila Medieval de Ansiães teve como objectivo de fundo o estudo da antiga população medieval. O projecto foi concebido de forma a serem fomentadas várias colaborações em domínios cujas especialidades se tornam indispensáveis num processo de investigação arqueológica. Em colaboração com especialistas nos domínios da Paleobiologia e da Arqueometalurgia, bem como o recurso às ciências exactas onde assentam os métodos de análises químicas, procurou-se conhecer os processos de formação e transição das diversas realidades, com especial destaque para os contextos Baixo - Medievais ( séc. XI a XV), período que correspondeu a uma ascensão e posterior declínio da importância urbana desta vila medieval. O estabelecimento desta estratégia de actuação ficou condicionado pelo cruzamento de abordagens e aproximações metodológicas marcadas pela interdisciplinaridade e pela definição de técnicas de investigação baseadas na Arqueologia e na Investigação Arquivística. O processo de investigação acabou por levar ao levantamento de algumas características paleodemográficas e paleopatológicas desta população medieval.

Aspecto geral da intervenção arqueológica


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Com esse propósito definiram-se atempadamente áreas prioritárias de actuação onde foi exercido todo o trabalho de pesquisa. As igrejas de S. João Baptista e de S. Salvador foram o alvo prio-ritário deste processo que pretendeu definir um quadro relativo de aproximação à estimativa da mortalidade diferencial, à esperança média de vida, à proporção entre os sexos, às características físicas, assim como à extracção de dados sobre as patologias mais frequentes desta antiga população. A totalidade do material osteológico até ao momento recolhido e analisado permitiu inferir o quadro geral das principais características demográficas da população medieval de Ansiães.

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Enterramento medieval

Os elementos arqueológicos recolhidos permitiram constatar a existência de uma grande variedade tipológica de enterramentos, embora a prática mais comum seja constituída por enterramentos abertos directamente na terra e sem a presença de qualquer tipo de estrutura delimitativa . Este tipo de estruturas coexiste com outras definidas total ou parcialmente por pedras avulsas, com sepulturas escavadas no saibro e com sepulturas abertas na rocha. O ritual de enterramento também não difere muito dos registados em outros locais estudados. O morto seria inumado em decúbito dorsal, com a face voltada para nascente, envolto por um sudário, como se depreende da ausência de espólio relacionado com o vestuário. A posição de inumação mais usual é com os antebraços colocados paralelamente um ao outro, sobre a zona do tórax, existindo também casos, ainda que mais raros, em que os antebraços se encontravam posicionados lateralmente ao corpo. Relativamente aos membros inferiores encontram-se de uma forma quase constante dispostos alongadamente. As únicas excepções dizem respeito a alguns indivíduos que aparecem com o membros inferiores cruzados. Com os dados disponíveis, e devido sobretudo à ausência de elementos comparativos, será um pouco difícil conjecturar sobre as razões para esta ocorrência. No entanto, poder-se-á considerar que a falta de espaço pode ter sido factor determinante para que o indivíduo tivesse sido inumado nessa posição. Outra hipótese que se pode colocar diz respeito a um qualquer ritual, apenas observado nas necrópoles de Ansiães. Efectivamente, os indivíduos detectados nesta posição dispõem os pés da mesma maneira como os pés de Cristo foram posicionados na cruz, na altura em que foi crucificado. Do ritual de enterramento faz ainda parte a deposição do óbolo a Caronte. Nestes casos, os numismas encontravam-se posicionados junto à pélvis, devendo ter sido colocados por altura da inumação na mão dos indivíduos. Na necrópole de S. João foi ainda identificado um caso em que existe uma nítida


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associação de uma peça de carácter votivo com um sepulcro antropomórfico escavado na rocha. Aqui foi propositadamente escavado um pequeno nicho de forma semicircular, no lado direito da sepultura e logo abaixo da zona do encaixe dos ombros, com o propósito de depositar um pequeno recipiente de vidro. Este tipo de associações são interpretadas como um acto que testemunha a perduração dos costumes pagãos que se encontravam amplamente enraizados entre as populações cristãs mas que tendem a diminuir ao longo da Idade Média. Se se tentar encontrar uma relação entre os sexos, verifica-se que as amostrasestudadas revelaram uma grande equidade entre homens e mulheres. A nível da mortalidade infantil/juvenil apenas foram detectados vários indivíduos de sexo indeterminado, o que em termos percentuais aponta para uma elevada morta-

Vista aérea da igreja e necrópoles de S. João Baptista

lidade infantil/juvenil. Os jovens e as crianças são enterrados no mesmo espaço cemiterial dos adultos, não se registando qualquer distinção. A nível das estaturas, verificou-se que as alturas médias variam entre 153, 64 cm e 158, 20 cm, havendo algumas situações em que estes valores são largamente ultrapassados, chegando a atingir, em alguns casos isolados, os 170 cm. Nos vestígios osteológicos que constituíram as amostras laboratoriais foram diagnosticadas patologias relacionadas com stress traumático, artroses, entesopatias, fracturas, traumas antemortem, hipertose porótica e cibra orbitalia - provocas pela ocorrência de anemias -, osteocondrose e craniostenoses, lesões póroticas e sinusites. A perda de dentes antemortem é uma constante e resulta de uma deficiente higiene oral e de uma alimentação rica em carbohidratos. No parâmetro da esperança média de vida verificou-se que muito rara-


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mente os indivíduos que constituíram a nossa amostra ultrapassaram a idade de 40 anos. A nível do ritual de enterramento verifica-se o comummente observados em outros casos detectados na região. Os indivíduos são inumados com sudário, sem qualquer espólio, com os membros inferiores alongados em disposição paralela, os membros superiores dispostos em forma simétrica, e de cabeça voltada para nascente.

Registo gráfico dos enterramentos

Enterramentos medievais


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As esteleas discóides de Ansiães (pedras perenes que falam de vidas finitas)

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esde o séc. XVI que a estela parece despertar a curiosidade de alguns estudiosos preocupados na decifração do seu significado e funcionalidade, mas será apenas em 1920 que surge o primeiro grande trabalho de síntese referente ao tema. O seu autor, Eugeniusz Frankowski, expõe em “ Estelas discoideas de la Península Ibérica” uma visão teórica suportada num processo de análise comparativa que culmina na defesa do conceito de que a estela discóide resultou de uma estilização crescente da representação humana, estilização essa que assentou numa evolução formal resultante de um figurativismo mais realista e antigo que cadenciadamente foi evoluindo até uma crescente abstracção geométrica. Surgia assim a corrente Antropomorfista e o conceito geral de que a estela discóide nada mais é do que a representação estilizada do morto. O círculo manifesta-se desde a Pré -História como uma forma que resulta da necessidade do ser humano em organizar e circunscrever o espaço. Por isso o círculo surge de forma continuada em todas as culturas e nos mais diversificados espaços geográficos. Tem-se atribuído à circularidade da estela discóide um significado astral, ou a súmula de um processo crescente que culmina numa estilização absoluta do antropomorfismo que este monumento pretende representar. A discussão sobre a origem circular da estela medieval está envolta em alguma polémica, sendo várias as correntes que explicam de modo diverso os seus antecendes históricos. O que não parece deixar dúvidas é que a estela possui inerente a si própria uma funcionalidade que está em estrita articulação com o espaço. Ou seja, a estela discóide imbuí-se sempre de uma relação funcional que articula o espaço com as grafias que possui. Essa vertente funcional assenta na razão que explica a sua presença em determinado local. Assim sendo, a estela é colocada para assinalar o sítio exacto onde se encontra a sepultada de determinada pessoa ou determinada família, sendo colocada sempre à cabeceira dos enterramentos que integ ravam as necrópoles; ser ve para assinalar


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o local onde determinada pessoa perdeu a vida; é utilizada como estação de via sacra, para indicar um lugar sagrado, etc. Ora esta característica funcional parece servir, acima de tudo, para ter consciência de um espaço, de um espaço que se ganha depois da perda material do corpo. As estelas aparecem-nos geralmente com um conjunto de representações, funcionando como o suporte material ideal de uma linguagem simbólica. Antes de mais ela apresenta-se como um documento ou elemento material que permite caracterizar a preocupação do homem perante a ideia da morte. A interpretação da simbologia não é uma tarefa fácil para quem estuda as problemáticas culturais a partir da estela discóide. Se é certo que no sentido mais imediatamente perceptível a estela pretende perpetuar e gravar num suporte durável e visível a memória de uma realidade vivida - identificando muitas vezes o defunto a partir das suas ferramentas de trabalho ou, menos frequentemente, a partir da gravação da sua própria imagem -, também é certo que na maior parte das vezes a estela dá preferencialmente ênfase a um discurso mais oculto, assente no campo das formas abstractas, exprimido códigos e leituras através de motivos vegetalistas, estrelares e geometrizantes onde predominam cruzes, círculos, quadrados, etc. O cruciforme, por exemplo, é um dos motivos mais representados na plástica contida na estela discoidal, estando directamente articulado com uma leitura que estabelece, logo à partida, uma relação com dois mundos distintos: o mundo terreno, da vida, do trabalho e do pecado, e o mundo celeste e paradisíaco, a outra vida: a vida da eterna felicidade. A cruz, na sua representação mais simplificada, é formada pela intercepção perpendicular de duas linhas, sendo por essa forma interpretada como a árvore da vida paradisíaca, um “Eixo do Mundo” , no conceito cristão que nos é dado pela iconografia medieval. A cruz conjuga dois contrários: o positivo, representado pelo traço vertical, e o negativo, representado pelo traço horizontal. No fundo representa uma antítese entre dois mundos que se opõem. De um lado o mundo da realidade profana, do outro o universo da realidade transcendental. Desde os tempos mais primitivos que a cruz é utilizada como símbolo religioso, sendo posteriormente apropriada pelo cristianismo, transformando-se no símbolo principal da morte de Jesus Cristo, já que também foi na cruz onde Cristo padeceu, fale-

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ceu e donde foi retirado para depois ressuscitar. Mas este símbolo cristão não ficou incólume na representação das escatologias, ele foi sendo sucessivamente estilizado, surgindo ao longo dos tempos com diferentes tipologias. É sobretudo com o advento da igreja católica que vai surgir uma maior profusão tipológica do motivo cruciforme, devendo ser salientadas, devido à maior constância da sua representação, a Cruz Latina, a Cruz Grega, a Cruz Patada e a Cruz de Malta. Todas estas representações nada mais são, ou nada mais exprimem, do que significados simbólicos que, no essencial, revelam aspectos antropológicos relacionados com a atitude que o homem, durante o período medieval, tinha perante a morte. É, por assim dizer, uma tentativa consciente, de âmbito cultural, para anular o anonimato instalado sobre essa pessoa após a finitude do seu corpo, após o desaparecimento físico desse corpo. Através da estela o homem projecta a sua permanência na vida terrena, erguendo um “marco” que fala sobre si através de uma linguagem expressa em símbolos. E só muito raramente esse homem medievo projecta ou tenta projectar neste suporte de pedra uma representação realista da sua imagem. No fundo, a estela é aquele “marco” que fala de alguém através de códigos, mas sobretudo fala-nos da angústia da morte, da angústia do homem medievo pelo enfrentar do desconhecido, dessa passagem a uma “nova vida” que está para além da morte. Será pois esta angústia perante o vazio que antecede o acto intencional de perpetuação da memória de alguém no mundo terreno. Abordar o campo da simbologia contida na estela discóide tem que necessariamente passar, segundo alguns autores, por um exaustivo trabalho de análise dos conteúdos simbólicos expressos pelo Românico e pelo Gótico. A Idade Média é um período de símbolos, constituindo os mesmos a chave da teologia, da filosofia, da mística e até da própria poesia. Neste período, a produção do pensamento tem como principal ordem orientadora o simbolismo, porque o simbolismo organiza o caos, expondo a tessitura e a ordenação das “coisas”; de todas aquelas “coisas” que só são passíveis de se expressarem e de serem compreendidas através de analogias. Como nos ensinam os Historiadores da Arte, o Românico e o Gótico repousam sobre símbolos, sobre significados que se transmitem por significantes materiais e formas de representação artística através das quais se veicula um conjunto de mensagens morais e espirituais. A simbólica da estela discóide parece também incorpo-


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rar este discurso expositivo, tão popularmente difundido durante a Idade Média e principalmente durante o simbolismo cristão ocidental que eclodiu entre os séculos XI e XV. Evidentemente que por detrás destes “discursos gráficos” se encontram contextos sociais e culturais específicos onde, como se sabe, o analfabetismo era uma realidade comum a quase toda a população. Em face do desconhecimento dos signos linguísticos, o homem medieval adopta um “alfabeto” expresso em decorações, formas que, no fundo, não deixam de ser representações artísticas, representações que permitem a leitura de mensagens no seio de uma população analfabeta. A adopção dessa linguagem gráfica assenta, por outro lado, numa ancestralidade cultural que muitas vezes recua até à Pré-História. Desde os tempos primitivos que é recorrente a representação de formas estrelares. O sol é comummente interpretado com um significado divino; é o símbolo da vida, o símbolo da luz e da inteligência divina. Existem mesmo autores que interpretam a cruz radial e a cruz gamada com um significado especificamente solar. Já a circunferência e o círculo são interpretados como a unidade interna da matéria, significando a harmonia universal. Ora, a estela discóide nada mais é do que um círculo assente num pé, tendo este apenas a funcionalidade prática de a fixar no solo. Alguns autores concebem que a imediata percepção da forma da estela se poderá relacionar com o significado simbólico do círculo, exprimindo um modelo de pensamento e concepção do espaço presente em todos os povos. O círculo, na cultura cristã, está relacionado com a abóbada celeste e com a terra; é o símbolo da eternidade porque não tem princípio nem fim . No círculo tudo converge para um centro, para uma força geradora, para Deus. Outra das figurações geométricas que surgem também com alguma frequência é o triângulo. O triângulo é constituído por uma base horizontal e por um vértice superior. No pensamento cristão o triângulo simboliza a trindade, ou seja, a doutrina cristã que concebe um Deus único a partir de três “pessoas” distintas, “o Pai, o Filho e o Espírito Santo”. O quadrado identificou-se desde muito cedo com os quatro pontos cardiais em que se organizava a terra. Assim o significa do simbólico do quadrado é frequentemente associado ao mundo palpável, ao mundo material, terreno, visível, vivido. Os exemplares que integram a colecção de estelas provenientes das igrejas de S. Salvador e de S. João Baptista do Castelo

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de Ansiães não foram encontrados em contexto arqueológico. Todos os exemplares surgiram de entre a imensa massa de derrubes ou foram recolhidas aleatoriamente, à medida que iam sendo encontradas no abandono a que o tempo as reduziu. A pouco e pouco foram sendo acumuladas dentro do templo de S. Salvador, chegando até aos nossos dias em bom estado de conservação. O granito foi a matéria-prima utilizada em exclusivo para moldar as estelas discóides de Ansiães. Nele foram esculpidas cruzes, sobretudo cruzes. Da análise que realizamos aos anversos e aos reversos divisámos que é a cruz de tipo patada que está presente em esmagadora maioria. Ao todo contabilizaram-se 27 Cruzes Patadas, 4 Cruzes Gregas, 4 Cruzes Latinas, apenas uma rosácea com roda de seis raios curvos e 5 quadrifólios de temática vegetalista. Esta predominância da temática da cruz é uma realidade cujo significado aponta para razões de ordem religiosa, cultural e mental, num povo onde o cristianismo se encontrava profundamente enraizado.

Quadrifólio

Cruz Patada

Cruz Grega

Rosácea

Cruz Latina

Esquema gráfico da tipologia das estelas


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Roteiro da Visita

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Legenda: 1 - Igreja de S. João Baptista 2 - Igreja de S. Salvador 3 - Capela de Stª Maria 4 - Porta de S. Francisco 5 - Porta de S. João Baptista 6 - Porta da Vila 7 - Porta de Fonte Vedra 8 - Porta de S. Salvador 9 - Postigo da Traição 10 - Torre de Menagem 11 - Anexos da Torre de Menagem 12 - Cisterna


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