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André Luís Soares - Guarapari/ES
BRASILEIROS
André Luís Soares - Guarapari/ES
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Não bastou viver em harmonia, na medida exata da felicidade... a dose perfeita, o equilíbrio, jamais bastaria. Num dia de marés turvas vieram as naus, os homens maus e seus presentes do hemisfério norte... a morte, os ratos, a tortura, a usura criminosa, com a covardia própria dos velejadores da Sagres doenças, canhões, bacamartes... estampidos de assustar trovão.
Disseram ter errado a rota sei lá para onde. Só sei que, em suas tontas andanças, escravizaram a América e a África. Malditas bússolas enferrujadas... ironia torpe, destino de águas, vieram na maré alta para nos roubar a paz. Criaturas puras que éramos [nuas e selvagens] quando nos demos conta, já era tarde: os olhos secos dos que só veem lucro já nos viam xucros imprestáveis.
Cantiga de grilo em noite eterna, eles vieram mais e mais sedentos. Não lhes bastou o pau-brasil, o ouro, o couro... queriam a costa, o interior, o rio, o mangue... o sangue, os ancestrais, pais, mães, filhos e filhas... o sul da América repartido em Tordesilhas. E no que não lhes servimos de escravos – e no que não nos rendemos passivos serviçais –fomos quase extintos, como cupins.
Logo nós... apenas homens nus,
mulheres dóceis e anjos curumins. Nós, os donos de todas as terras, agora estrangeiros não bem-vindos em nossa própria pátria. Índios... assim chamados, com asco reforçado, como se índio fosse praga.
Desapropriados com a anuência de leis que nem reconhecemos. Tudo com as bênçãos das Missões e Bandeiras. Presente luso-hispânico... [ibérico] na próspera carnificina de além-mar. Justo nós, que andávamos despidos entre as feras, conhecemos o medo, nos enredos do invasor, que a cada dia nos restringe a um chão menor.
Matam-nos ainda hoje sem remorso... a desculpa, como sempre... é do progresso! Com sucesso, esmagam nossa cultura, apagam nossos idiomas puros e os deuses aos quais somos fiéis; desprezam os métodos de nossa lavoura onde não há excesso, nem lixo que manche o sempre. Outrora, esta terra era mais do que sonhamos; agora... é somente chão que encolhe sob os pés.
Desconsolado... questiono tudo que entendo ser divino: – Tupã, Xangô, Alá, Buda, Jesus, Minerva... quantos índios mais morrerão nessa reserva? Aymoré, Anambé... Apiaká, Apurinã, Apinayé... Atroari, Arara... Asurini, Araweté... Ashaninka, Bororó, Canoeiro... Caiapó, Guajajara. Caeté, Carijó... Enawenê-Nawê, Fulni-ô... Juruna, Jarawara... Kaapor, Kayapó... Kambivá, Krahô, Kanela... Kuikuro, Nambikwara.
Em nossa imperfeição rupestre
aprendemos a aquietar o espírito; pouco querendo ter, se quase tudo temos, nada sonhando ser que já há muito não sejamos. Nosso consumo dá-se a céu aberto, pela fartura indômita de igarapés e matas... tabas, lendas, cipós, folhas, bambus, venenos, sol, lua, noite, dia, pedra, chuva, cataratas.
No entanto, cinco séculos se passaram e ainda mendigamos território tal fôssemos errantes – nós, os donos de tudo! Jogados de acampamento em acampamento, quando calha a sorte de gostarmos de um lugar surge, então, um minério, nova jazida, outra madeira, novos balaios de razão para nos enxotar. Doenças, canhões, caminhões, carabinas, posseiros, traficantes, grileiros, tratores, garimpos, fronteiras... tudo ao redor nos oprime. Se nos ferem... mera consequência! Se revidamos... é crime! Nada há que nos redima o pecado original de ter nascido aqui primeiro, e viver sem destruir... do interior ao litoral.
Resta-nos a fé nas mudanças que virão por força da natureza: a água que seca, a floresta que míngua, o chão brocado sem minério, inútil ao plantio, o descompasso das estações... excessos de calor e frio. Não que assim o desejássemos. Nossa fé somente encontra abrigo no óbvio: a paciência da Mãe-Terra tem limites. Diante da ganância insana, a escassez é boa escola. No eco límpido desse anúncio, pássaros revoam. Eis o tempo, sem mais tempo para atrasos – Quiçá já seja hoje.
Eis que chega o tempo, implacável e lisonjeiro, em que nossos irmãos nos chamem apenas... brasileiros!
Emocionado... rogo a tudo que entendo ser divino: – Tupã, Xangô, Alá, Buda, Jesus, Minerva... bênçãos infinitas a todos os filhos dessas terras: Guarani, Kadiwéu... Kariri-xocó, Matis, Matipu... Zo’é, Goitacá... Pareci, Pataxó... Suruí, Makuxi, Pankaru... Parakatejê, Karajá... Tamoyo, Tremembé... Kalapalo, Juma, Xucuru... Xavante, Xetá... Ticuna, Tiriyó... Terena, Yanomami, Palikur... Mongoió, Kamayurá...