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Ansiedade

— Bom dia, doutor. Para gente nem perder tempo, pode ir logo me receitando um remédio para controlar a ansiedade — apertou a mão do psicólogo e sentou-se à sua frente. As mãos inquietas não se decidiam entre descansar em seu colo ou apoiar-se nos braços da cadeira.

— Bom dia... Roberto, certo? — disse o psicólogo, ajustando os óculos no rosto e conferindo seus papéis. — Já que é a primeira vez que nos encontramos, que tal você me contar um pouco sobre a sua vida?

— Doutor, é ansiedade. É canseira, é agitação, é preocupação. Não tenho mais o que dizer. É tudo isso e muito mais. Agora me dê logo um remédio para isso passar porque eu fico tenso só de tentar lhe descrever essas coisas — já estava meio esbaforido com essa pequena explicação.

O psicólogo deixou os papéis de lado e observou seu paciente agitado como se para ele tempo não fosse problema. Cinquenta minutos

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de consulta seriam mais que suficientes para começar a conhecer aquela figura. E se não fossem? Bem, sempre havia um novo dia para dar prosseguimento à sua investigação.

— Roberto, talvez você não saiba, mas não posso receitar medicamentos. Além disso, é um tanto precipitado se adiantar ao tratamento sem termos um diagnóstico prévio — explicou com sua voz arrastada. Psicólogos se deparavam muito com esse tipo de comportamento, pacientes afobados que só queriam uma cura antes de sequer descobrir qual era o mal.

— Olhe doutor, eu conheço gente que se trata há anos e ainda não saiu do lugar. Não tenho dinheiro para passar a vida pagando por consultas. Se não tiver como me passar remédio, então eu vou embora — se pôs de pé, já indo em direção à saída.

— Fica ao seu critério. No entanto, ainda temos cerca de quarenta minutos de sessão para conversar, se você quiser — disse, olhando por cima dos óculos, os cotovelos apoiados na mesa e as mãos unidas pelas pontas dos dedos indicadores. Uma pose típica de homens que sabem que estão no controle da situação.

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Prevendo que sua sugestão seria acatada pelo paciente, o psicólogo apontou em direção à cadeira, para que ele voltasse a se sentar. Roberto pensou por dois segundos e concluiu que já que não tinha planejado estar em nenhum outro lugar naquele momento, ficaria por ali mesmo até o tempo da consulta terminar. Só para, pelo menos, fazer valer o dinheiro que gastara.

— Vamos começar pelo básico. Conte-me como é sua rotina, quem são as pessoas com quem você se relaciona, como é o seu trabalho... Então você vai avançando e me contando que sentimentos ruins são esses que você tem, como eles afetam sua vida e por que eles fazem você se sentir essa pessoa tão especial.

— É o que, doutor? — Estava assimilando tudo e até meneando a cabeça, até ouvir a última palavra, que o pegou desprevenido. Quem disse que ele se achava uma pessoa especial?

— Ah, não entendeu? — continuou o psicólogo, com um sorriso sarcástico despontando nos lábios. — Ora, não foi pra isso que você veio até aqui? Para fazer drama no

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meu consultório? Começar com um teatrinho antes da consulta e me fazer “implorar” para tê-lo como paciente? Como se você fosse algum tipo de celebridade... Ora, faça-me o favor — descruzou as mãos e balançou a cabeça em negativa. — Já estou cansado desses tipos que me fazem ouvir um monte de baboseiras só esperando que no fim eu dê um nome bonito pra sua “doença”. Você sequer está doente? Ou está esperando que a sua canalhice seja justificada por algum “transtorno misterioso”? Para da próxima vez que você for um babaca, poder dizer “Calma minha gente, eu sofro de uma doencinha mental, tenham paciência comigo...” — o psicólogo havia migrado da mais ampla paciência para o retrato do mais completo deboche em poucos segundos. Roberto foi se encolhendo na cadeira querendo desaparecer. Não estava acreditando que pagara para ser humilhado daquele jeito. Nunca mais se submeteria a algo assim. ***

— E é isso o que acha que vai acontecer, Ro-

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berto? — Minha esposa me encarava com uma xícara de café na mão e uma sobrancelha arqueada, enquanto eu terminava meu relato hipotético.

— Isso Lídia, é o que acontece com quem vai a um consultório sem ser chamado — disse, unindo as sobrancelhas. Eu estava sentado de braços cruzados em minha poltrona vermelha favorita, tentando acalmar meus ânimos.

— Minha nossa, lembre-me de nunca me consultar com esse tal psicólogo da sua imaginação. Acho que nem em filme alguém conseguiria ser tão bruto assim — a observação se converteu em uma gargalhada. Lídia nunca media esforços para fazer pouco dos meus sentimentos.

— Certo, Lídia. Mesmo assim, saiba que eu estou decidido a não passar por esse vexame. Na verdade, só de lhe contar essa experiência que eu provavelmente teria, mas felizmente não terei, já me sinto até mais calmo. Acho que foi só um surto. Já vi que não preciso e nem quero pisar num consultório. Terapia não é para mim.

— Querido, — Lídia se abaixou e pegou

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minha mão enquanto deixava a xícara de café de lado. — Apesar de não poder deixar de achar engraçado tudo o que você disse, eu levo o seu problema muito a sério. Se você quiser conversar, eu estou aqui e não vou rir de você — seu olhar era profundo e reconfortante. Esse não era o comportamento que eu esperava. Será que ela estava finalmente tentando me entender?

***

Mas não, está tudo errado, ela nunca falaria nada isso! Lídia não quer saber o que eu penso, nem me dizer o que ela pensa. Ela não me diz nada, mas eu sei. Eu me vejo em seus olhos, todos os dias, sendo julgado e massacrado pelas coisas que já fiz e por coisas que nem sonhei fazer.

Ela me cobra em silêncio e, por isso, me deixa cada vez mais aflito. Por que ela não desembucha de uma vez? Por que me tortura desse jeito?

— Roberto, você está bem? — Lídia me despertou de meus pensamentos com um olhar

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interrogativo e desconfiado. Terminara de tomar banho e estava vindo pra cama dormir —

Por que você está sentado aí na cama com a testa toda franzida desse jeito? Está preocupado com alguma coisa?

— Nada não — respondi.

De que adiantaria conversar? Ela nunca entenderia.

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O paciente

— Senha 1.

— Finalmente! — exclamou e dirigiu-se à atendente para entregar-lhe sua senha.

— Pode entrar, senhor. O consultório é por aquela porta.

Chegara cedo, antes que muitos ali sequer tivessem acordado, por isso, ser atendido era como receber uma doce recompensa pelos seus esforços. Enquanto caminhava até a porta, olhares furiosos atravessavam suas costas. Não pôde deixar de pensar que Deus ajuda a quem cedo madruga. Um belo ditado para quem está com a sensação de dever cumprido após passar por montanhas de formulários, rios de assinaturas e atendentes ácidas com seus mecânicos “senhor”, “sim, senhor”, “assine aqui senhor”, “por aqui senhor”.

Passou pela porta que levava ao consultório e, para sua surpresa, tratava-se de uma nova sala de espera. Um senhor de meia idade trabalhava em seus papéis por trás de uma mesa solitária. Ótimo, mais um atendente.

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— Com licença, acho que estou na sala errada. Disseram-me que eu já seria atendido.

— Não há engano algum, senhor. — disse o atendente sem levantar os olhos de seus papéis. — Logo, logo o senhor será atendido. — Hum, certo.

Aquele homem tinha traços comuns, tão simples que se o trocassem por outro quando desse as costas nem perceberia. Há pessoas que são assim, não se fixam em nossas mentes à primeira vista e ao tentar resgatá-las da memória a imagem vem embaçada. Rostos sem contornos.

Sentou-se numa das poltronas disponíveis.

Poltronas, pensou. Era um luxo que não existia na sala anterior. Na verdade, a sala como um todo, proporcionava mais conforto não só para as costas, mas para a vista, com murais muito bonitos nas paredes retratando famílias felizes. Em geral, havia três pessoas de uma mesma família em cada foto, algumas vezes, quatro. Provavelmente famílias que tiveram algum integrante curado pelo doutor. Ele deve ser mesmo muito bom. Sentiu-se um VIP naquela saleta, afinal, ela era como ele imaginava que um con-

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sultório deveria ser.

Faltava-lhe uma coisa, porém: revistas para ler ou talvez uma televisão para assistir. Sem isso, começou a sentir a passagem do tempo e uma pitada de desconforto foi surgindo. Era hora de refrescar a memória do atendente.

— Com licença. Pensei que o doutor já me atenderia agora. Ainda vai demorar muito? Já estou esperando há bastante tempo.

— Pode até ser, mas o senhor não é o único que espera — respondeu o atendente para sua total surpresa, pois não esperava ser tratado com tamanha grosseria.

— Como assim? Está louco? Estou esperando há não sei quanto tempo e você ainda se acha no direito de me tratar dessa forma? Onde está seu superior?

— Não há necessidade disso, senhor — disse, ainda sem sequer levantar a vista de seus papéis — Vai levar o tempo que tiver de levar. O senhor não precisa fazer nada, apenas esperar.

— Será possível? Nem uma previsão? Dez, vinte minutos? Uma hora? — lembrou-se que não trouxera relógio e não encontrou nenhum

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na sala. Bela tática para manter as pessoas alienadas.

— Senhor, tenha calma. Como eu disse, apenas espere. Será muito em breve a partir de agora — o atendente perdera um pouco da passividade inicial. Algumas vezes acontecia isso, um ou outro que chegava lá era nervosinho demais e odiava esperar. Havia casos em que tentavam se precipitar para a sala do doutor antes dele autorizar. Alguns conseguiam...

— Ok, você venceu, se não tem jeito eu vou esperar. A propósito, você sabe se tem alguma lanchonete no prédio? Não me lembro de ter tomado café da manhã, pois saí com muita pressa para... Vir aqui.

— Não, o senhor não pode sair em hipótese alguma — o atendente levantou a vista e o encarou, como que tomando ciência de sua presença. — Se o senhor sair agora não poderá mais voltar e devo dizer que é meu trabalho impedir que isso aconteça. Havia um tom de ameaça naquelas últimas palavras. Ele não podia sair? E se quisesse remarcar a consulta?

— Não há como remarcar a consulta.

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— O que? Mas eu não disse... — não sabia se tinha mesmo pensado alto ou se seus pensamentos é que tinham sido ouvidos. Olhou para o chão envergonhado, mas não sabia o porquê. Ao levantar a vista, viu o atendente com o olhar fixo nele. Depois de tanto tempo ainda não conseguia decorar aquele rosto ainda sem contorno em sua memória.

— Mas e se eu precisar ir embora? Tenho outras coisas a fazer.

— Neste momento, seu único assunto é aqui.

— Não, mas... Eu pensei melhor, talvez não seja um bom dia, afinal. — As palavras saíam de sua boca, movidas por um desespero que crescia à medida que passava mais tempo naquela sala, sozinho e sem testemunhas, apenas com aquela pessoa que parecia ter perdido a paciência. Sentia que corria perigo e que precisava sair, fugir, apenas isso.

Foi então que percebeu que a porta por onde havia entrado não estava mais lá. Ou melhor, havia apenas uma porta à sua frente, idêntica a que ele havia passado, porém estava do outro lado da sala. Do local de onde vinha, viu ape-

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nas a parede, intacta.

— Meu Deus, o que é isso?! — estava em pé e olhava da porta misteriosa à sua frente para o atendente, procurando explicações com o olhar.

— Senhor, talvez seja demais pedir isso, no entanto, peço que tenha bastante calma agora. Se o senhor se agitar demais será pior — agora ele já estava de pé, atrás de sua mesa transbordando de papéis. Não era hora de reparar nessas coisas, mas notou que a roupa do atendente era branca, um traje típico de enfermeiros, e imaginou como seria se ela fosse maculada de vermelho. Não, não podia pensar nisso. Não ia acontecer nada. A garganta apertou, sentiu vontade de chorar. Nunca havia chorado na vida e o choro, pelo visto, iria vir nos seus últimos momentos. Tinha certeza de que era o fim. Seria morto e ninguém iria impedir.

— Senhor — disse o atendente, vindo em sua direção. As mãos pra trás, longe de sua vista —, preciso que fique o mais calmo possível e me responda algo antes de partir. O que ele carregava nas mãos? O choro ia vir com certeza. Nunca havia chorado na vida.

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— Sim... — foi tudo o que conseguiu dizer. — Ao menos se lembra do motivo para ter vindo aqui?

Em branco. Era como estava o seu cérebro.

Talvez por conta da tensão. Realmente não fazia ideia de qual era o seu problema, a ponto de precisar chegar tão cedo e ser o primeiro da fila. O que ele tinha? Seria muito grave? Quem sabia sobre isso? Sua família, talvez? Mas que família?

— O que está acontecendo? — perguntou, mas já não via mais o atendente por perto. Ouviu apenas sua voz como um eco distante dizendo:

— O doutor vai lhe ver agora.

Olhou ao redor e viu os murais derretendo, as poltronas afundando numa gosma espessa, as paredes vibrando, enquanto um líquido, que podia muito bem ser água, inundava a sala numa velocidade incrível.

Ia se afogar. A sala parecia tão pequena. Buscou alguma saída a fim de evitar o inevitável e percebeu que a porta misteriosa permanecia no mesmo lugar. Nadou o mais forte que pôde com a água cobrindo o peito, até que con-

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seguiu alcançá-la. Já debaixo d’água tentou abri-la. Empurrou uma, duas, três vezes, mas estava emperrada. Ia tentar outra vez quando percebeu que alguém a havia puxado pelo outro lado. Agora ela estava aberta, mas ao tentar atravessá-la parecia haver uma parede invisível que o impedia de sair. Ia se afogar. A garganta apertou novamente, desta vez, pela falta de oxigênio.

A sala se agitou ainda mais. Comprimiu-se e expandiu-se diversas vezes até conseguir expeli-lo pela porta.

Conseguiu por fim, ver o doutor. Ele lhe esperava do outro lado e havia um sorriso sereno em seu rosto. Pelo visto, ele o ajudara a sair e agora o segurava em seus braços. Então, ouviu sua voz, carregada de emoção, dizer: — É um menino!

Foi então que finalmente chorou. Pela primeira vez na vida.

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