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Caio Fernando Abreu

Pedras de Calcutรก


Sumário

Reportagem interior por José Castello . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 Parte I Mergulho I . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 Holocausto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 Joãozinho & Mariazinha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24 Até oito, a minha polpa macia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30 Rubrica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34 Divagações de uma marquesa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40 O inimigo secreto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45 Paris não é uma festa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49 Sim, ele deve ter um ascendente em Peixes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55 Zoológico blues . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60 Parte II Mergulho II . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69 Caçada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70 Aconteceu na Praça XV . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74 Gerânios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81 Recuerdos de Ypacaraí . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86 Garopaba mon amour . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95 Uma história de borboletas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102 O poço . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111 A verdadeira estória/história de Sally Can Dance (and The Kids) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 116 Pedras de Calcutá . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129


Hoje me acordei pensando em uma pedra numa rua de Calcutá. Numa determinada pedra em certa rua de Calcutá. Solta. Sozinha. Quem repara nela? Só eu, que nunca fui lá, Só eu, deste lado do mundo, te mando agora este pensamento... Minha pedra de Calcutá! Mário Quintana, trecho de Diário


PARTE I

Tudo é divisão. Esquizofrenia. Drama. Luiz Carlos Maciel


MERGULHO I

O primeiro aviso foi um barulhinho, de manhã bem cedo, quando ele se curvava para cuspir água e pasta de dentes na pia. Pensou que fosse o jato de água da torneira aberta e não ligou muito: sempre esquecia portas, janelas e torneiras abertas pelas casas e banheiros por onde andava. Então fechou a torneira para ouvir, como todos os dias, o silêncio meio azulado das manhãs, com os periquitos cantando na varanda e os rumores diluídos dos automóveis, poucos ainda. Mas o barulhinho continuava. Fonte escorrendo: água clara de cântaros, bilhas, grutas e ele achou bonito e lembrou (um pouco só, porque não havia tempo) remotos passeios, infâncias, encantos, namoradas. Quando se curvou para amarrar o cordão do sapato é que percebeu que o barulhinho vinha do chão e, mais atentamente curvado, exatamente de dentro do próprio pé esquerdo. Tornou a não ligar muito; achou até bonito poder sacudir de quando em vez o pé para ouvir o barulhinho trazendo marés, memórias. Quando foi amarrar o cordão do sapato do pé direito, voltou a ouvir o mesmo barulhinho e sorriu para as obturações refletidas no espelho: dois pés, duas fontes, duas alegrias. Ao abotoar as calças, sentiu o umbigo saltar exatamente como uma concha empurrada por uma onda mais forte e, logo 17


C a i o

F e r n a n d o

A b r e u

após, o mesmo barulhinho, agora mais nítido, mais alto. Sentou na privada e acendeu um cigarro, pensando na feijoada do dia anterior. Antes de dar a primeira tragada, passou a mão pelo pescoço, prevenindo a áspera barba a ser feita, e o pomo-de-adão deu um salto, umbigo, concha, como se engolisse ar em seco, e não engolia nada, apenas esperava, o cigarro parado no ar. Ergueu-se para olhar a própria cara no espelho, as calças caídas sobre os sapatos desamarrados, e abriu a boca libertando uma espécie de arroto. Foi então que a água começou a jorrar boca afora. Primeiro em gotas, depois em fluxos mais fortes, ondas, marés, até que um quase maremoto o arrastou para fora do banheiro. Espantado, tentou segurar-se no corrimão da escada, chegou a estender os dedos, mas não havia dedos, só água se derramando degraus abaixo, atravessando o corredor, o escritório, a pequena sala de samambaias desmaiadas. Antes de atingir o patamar de entrada ele ainda pensou que seria bom, agora, não ser mais regato, nem fonte, nem lago, mas rio farto, caminhando em direção à rua, talvez ao mar. Mas quando as ondas mais fortes rebentaram a porta de entrada para inundar o jardim, ele se contraiu, se distendeu e cessou, inteiro e vazio. Não passava de uma gota na imensa massa de água, que descia das outras casas inundando as ruas.

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