Georges bataille o erotismo

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Antes de ser sacrificado, ele estava fechado na particularidade individual. Como disse na Introdução,1 sua existência é então descontínua. Mas esse ser, na morte, é reconduzido à continuidade do ser, à ausência de particularidade. Essa ação violenta — que priva a vítima de seu caráter limitado e lhe dá o ilimitado e o infinito que pertencem à esfera sagrada — é desejada em sua conseqüência maior. Ela é desejada como a ação daquele que desnuda a vítima que deseja e quer penetrar. O amante não desintegra menos a mulher amada que o sacrificador ao sangrar o homem ou o animal imolado. A mulher nas mãos daquele que a ataca é despossuida de seu ser. Ela perde, com seu pudor, esta firme barreira que separando-a do outro, tornava-a impenetrável: ela se abre bruscamente à violência do jogo sexual deflagrado nos órgãos da reprodução, à violência impessoal que, vinda de fora, a ultrapassa. Não se pode dizer que os antigos tinham possibilidade de fazer detalhadamente uma análise que só uma imensa familiaridade com a dialética tornou possível. Seria preciso saber conjugar uma infinidade de temas para poder apreender com precisão as semelhanças de duas experiências profundas. Os aspectos mais profundos não apareciam e o todo escapava à consciência. Mas a experiência interior da piedade no sacrifício e o despertar do erotismo podiam, por sorte, ser dadas à mesma pessoa. Nesse caso, era possível chegar a descobrir uma certa semelhança, quando não uma aproximação precisa. Essa possibilidade desapareceu no cristianismo, onde a piedade se distanciou de uma vontade de chegar ao secreto do ser pela violência.

A carne no sacrifício e no amor O que revelava a violência exterior do sacrifício era a violência interior do ser percebida à luz da efusão do sangue e da eclosão dos órgãos. O sangue, os órgãos cheios de vida não eram o que neles vê a anatomia: só uma experiência interior, não a ciência, poderia restituir o sentimento dos antigos. Podemos presumir que então aparecia a pletora dos órgãos cheios de sangue, a pletora impessoal da vida. Na morte do animal, seu ser individual, descontínuo, era sucedido pela continuidade orgânica da vida, que a refeição sagrada vincula à vida comunial da assistência. Um odor de bestialidade subsistia nessa deglutição ligada a uma explosão da vida carnal, e ao silêncio da morte. Não comemos mais que carnes preparadas, inanimadas, distantes do fervilhar orgânico original. O sacrifício ligava o fato de comer à verdade da vida revelada na morte. É geralmente próprio do sacrifício harmonizar a vida e a morte, dar à morte o jorro da vida, à vida o peso, a vertigem e a abertura da morte. É a vida misturada à morte, mas, no sacrifício, a morte é ao mesmo tempo signo de vida, abertura ao ilimitado. Hoje o sacrifício sai do campo de nossa experiência: devemos substituir a prática pela imaginação. Mas se o próprio sacrifício e sua significação religiosa nos escapam, não podemos ignorar a reação ligada aos elementos do espetáculo que ele oferecia: a náusea. Devemos imaginar no sacrifício uma superação da náusea. Mas, sem a transfiguração sagrada, seus aspectos tomados separadamente podem, em última instância, provocar a

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