Georges bataille o erotismo

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Os ossos limpos não deixam mais os vivos sob a ameaça viscosa que domina o nojo. Eles põem fim à aproximação fundamental da morte e da decomposição de onde nasce a vida profusa. Mas num tempo mais próximo que o nosso das primeiras reações humanas, essa aproximação pareceu tão necessária que Aristóteles ainda dizia que certos animais, formados espontaneamente na terra ou na água, nasciam da putrefação.2 O poder de gerar a partir da podridão é uma crença ingênua que responde ao horror misturado com a atração em nós despertados. Essa crença está na base de uma idéia que herdamos da natureza, da natureza ruim, da natureza que envergonha: a corrupção resumia esse mundo do qual nos originamos e ao qual retornamos: nessa representação, o horror e a vergonha se ligavam ao mesmo tempo ao nosso nascimento e à nossa morte. Essas matérias móveis, fétidas e mornas, de aspecto terrível, onde a vida fermenta, essas matérias onde fervilham as larvas, os germes e os vermes, são a origem dessas reações decisivas a que chamamos náusea, aversão, repugnância. Para além da destruição futura que cairá totalmente sobre o ser que sou, que espera ser ainda, cujo sentido mesmo, antes de ser, é esperar ser (como se eu não fosse a presença que sou, mas o futuro que espero, que entretanto não sou), a morte anunciará meu retorno à purulência da vida. Assim posso pressentir — e viver na espera — essa purulência multiplicada que, por antecipação, celebra em mim o triunfo da náusea.

A náusea e a unidade de seu domínio Na morte de um outro, enquanto nós, que sobrevivemos, esperávamos que a vida daquele que está imóvel perto de nós se prolongasse, de repente, nossa espera dá em nada. Um cadáver não é nada, mas esse objeto, esse cadáver é marcado desde o início pelo signo nada. Para nós que sobrevivemos, esse cadáver, cuja decomposição próxima nos ameaça, não responde a nenhuma expectativa semelhante à que tínhamos desse homem estendido enquanto vivo, mas a um medo: assim esse objeto é menos que nada, pior que nada. Em estreita relação com essa visão, o medo, que é o fundamento do nojo, não é motivado por um perigo objetivo. A ameaça em questão não é objetivamente justificável. Não há razão para se ver no cadáver de um homem uma coisa diferente de um animal morto, um pedaço de caça, por exemplo. O distanciamento respeitoso que é provocado por uma decomposição avançada não tem ele próprio um sentido inevitável. Temos na mesma ordem de idéias um conjunto de comportamentos artificiais. O horror que temos aos cadáveres se parece com o que sentimos diante das dejeções alvinas de origem humana. Esta aproximação tem sua razão de ser, visto que temos um horror semelhante aos aspectos da sensualidade que qualificamos de obscenas. Os condutos sexuais evacuam dejeções; nós os qualificamos de "partes pudendas", e a eles associamos o orifício anal. Santo Agostinho insistia, não sem sofrimento, na obscenidade dos órgãos e da função de reprodução. "Inter faeces et urinam nascimur", dizia: "Nascemos entre fezes e urina". Nossas matérias fecais não são o objeto de um interdito formulado por regras sociais meticulosas, análogas às que atingiram o cadáver ou o sangue menstrual. Mas, no

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É assim que Aristóteles imaginava a "geração espontânea", em que ele ainda acreditava.

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