Simulação1

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Ensino de Hist贸ria: ontem e hoje


ISSN 2359-5973

Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.1, vol.1, jul/dez. 2014|1


ISSN 2359-5973

Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.1, vol.1, jul/dez. 2014|2


Equipe Editorial Benito Bisso Schmidt – IFCH/UFRGS Carla Beatriz Meinerz – FACED/UFRGS Jocelito Zalla – CAp/UFRGS Marcello Paniz Giacomoni – PPGEDU/UFRGS Nilton Mullet Pereira – FACED/UFRGS Sherol dos Santos – PROFHIST/UFRGS

Conselho Consultivo Alessander Mario Kerber - UFRGS Arnaldo Pinto Junior - UFES Aryana Aryana Lima Costa - UERN Carmem Zeli Vargas Gil - UFRGS Caroline Pacievitch - UFRGS Cristiani Bereta da Silva - UDESC Dolo Molina Galvañ - Facultat de Magisteri Universitat de València, Espanha Elison Antonio Paim - UFSC Eva Sanz Jara - Universidad de Alcalá, Espanha Fernando Seffner, UFRGS Francisco Egberto Melo - URCA Júlia Silveira Matos - FURG Leandro Antonio de Almeida - UFRB Lisiane Sias Manke, UFPel Luís Fernando da Silva Laroque UNIVATES Marcelo de Souza Magalhães - UNIRIO Maria Aparecida Bergamaschi - UFRGS Marilu Favarin Marin - UFRGS Natalia Pietra Méndez - UFRGS Paulo Eduardo Dias de Mello - UEPG Pedro Péres Herrero - Universidad de Alcalá, Espanha Saverio Lavorato Junior, UNINOVE

Revisão de língua portuguesa XXX

Design e Diagramação Bruna Petry Anele

Editoração Eletrônica Maiara Cemim

Referência da imagem de capa: xxxxxxxxx

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

FACULDADE DE EDUCAÇÃO Diretora: Simone Valdete dos Santos Vice-Diretora: Helena Dória Lucas de Oliveira

Reitor: Carlos Alexandre Netto Vice-Reitor: Rui Vicente Opperman

COLÉGIO DE APLICAÇÃO Diretora: Dirce Maria Fagundes Guimarães Vice-Diretor: Luiz Davi Mazzei

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS Diretora: Soraya Maria Vargas Cortes Vice-Diretora: Maria Izabel Saraiva Noll

Apoio desta edição xxxxxxxxxxxxx

Missão A Revista do Lhiste pretende-se um espaço para a comunicação de pesquisas e reflexões sobre a prática docente, os processos de aprendizagem, a construção de currículos em história, a formação de professores, a memória e a educação patrimonial e o ensino de história e a interdisciplinaridade, entre outros temas caros ao campo. Também visa à divulgação e registro de novas estratégias, metodologias e objetos, formando um banco de dados especializado em boas práticas pedagógicas de professores em formação inicial, nos estágios e no PIBID/História, assim como de professores da educação básica.

REVISTA DO LHISTE Revista do Laboratório de Ensino de História e Educação da UFRGS Colégio de Aplicação da UFRGS Avenida Bento Gonçalves, 9500 Prédio 43815 – Sala 210 CEP 91501-970 Bairro Agronomia – Porto Alegre – RS Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.1, vol.1, jul/dez. 2014|4


Índice 08

EDITORIAL DOSSIÊ Entre flores e espinhos: a construção do professor de História

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(formação, dialética e perspectivas) Eduardo Mognon Ferreira

Ensino Médio Integrado: possibilidades de interdisciplinaridade entre os conteúdos de História e as disciplinas de área técnica nos cursos ofertados no Campus Bento Gonçalves do Instituto Federal do Rio Grande do Sul Letícia Ferreira

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Discutindo o ensino de história mediado pelos museus:

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experiências docentes no Museu de Artes e Ofícios- BH Jezulino Lucio Mendes Braga

PAINEL Ensino de História e Interdisciplinaridade

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Benito Schmidt (org.), Jocelito Zalla e Viviane Gnecco

ARTIGO 22

Currículo e ensino de História: Diálogos sobre prática de ensino e o processo de formação de professores/as Jaqueline Zarbato Schmitt

RELATOS O PIBID História UFRN e a formação do professor reflexivo: experiências de aprendizagem para além das intervenções nas escolas Jefferson Pereira da Silva

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O tempo presente no ensino de história:

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uma experiência de produção audiovisual em EAD Valéria Oliveira

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Projeto História Local Porto Novo:

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um relato de experiência pedagógica sobre ensino de história local em escola pública de Santa Catarina Leandro Mayer

RESENHA Pelos caminhos do ensino de história Resenha de: Um caminho, muitas trilhas Amanda Gabriela Rocha e Caroline Pacievitch

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ENTREVISTA Valores republicanos e ensino de história: encontros com o professor Jean-Christophe Sanchez Caroline Pacievitch

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DIRETRIZES PARA AUTORES

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Editorial Com um pequeno dossiê sobre Ensino de História e Interdisciplinaridade, chega ao público o segundo número da Revista do Lhiste. As três contribuições sobre o tema trazem reflexões sobre práticas educativas específicas, mas que apontam para problemas compartilhados em nosso campo. No primeiro artigo, Letícia Ferreira examina algumas experiências do Instituto Federal do Rio Grande do Sul na integração da História a disciplinas técnicas. A seguir, Jezulino Braga analisa possibilidades de ensino através da narrativa visual do Museu de Artes e Ofícios de Belo Horizonte, espaço de memória e linguagem particulares, que exigem do professor uma abordagem atenta a outras áreas do conhecimento. No terceiro texto, Eduardo Ferreira e Samuel da Silva discutem a formação do professor de História, confrontando teoria e prática, em busca de novas didáticas para a sala de aula. Aproveitando o tema, apresentamos uma novidade: a seção Painel. A partir desta edição, publicaremos notas de profissionais convidados a respeito de assuntos “quentes” da área. São textos descritivos e/ou de opinião que, acreditamos, permitem construir um painel de pontos de vista variados. Organizada pelo professor Benito Schmidt, a seção traz contribuições de Valdei Araújo, Itamar Oliveira, Jocelito Zalla e Viviane Gnecco. Também publicamos neste número dois artigos na seção livre. Jaqueline Zarbato explora as interfaces entre currículo e práticas docentes no tocante à formação do professor de História. Mateus Meireles reflete sobre a temática Direitos Humanos no ensino da disciplina, recorrendo à sua experiência de estágio supervisionado. Na seção Relatos de Práticas, Jefferson da Silva fala do PIBID-História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e Leandro Mayer discute o Projeto História Local Porto Novo, desenvolvido em Itapiranga – Santa Catarina. Caroline Pacievitch e Amanda Oliveira ainda nos apresentam o livro Peabiru: um caminho, muitas trilhas, organizado pelas professoras Ernesta Zamboni, Maria de Fátima Sabino Dias e Silvia Finocchio, na seção Resenhas. Por fim, Pacievitch introduz um depoimento do professor Jean-Christophe Sanchez, do Lycée Pierre d’Aragon, em Muret (França), e da École Superieure du Professorat et de l’Éducation da Académie de Toulouse, na seção Entrevista. Com este número, também inauguramos a nova identidade visual da Revista do Lhiste e sua publicação paralela via ISSUU, plataforma que permite a visualização Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.1, vol.1, jul/dez. 2014|7


digital da revista conforme a estrutura e as características das edições impressas. Com isso, buscamos qualificar a experiência de leitura e ampliar a circulação dos textos publicados na Revista do Lhiste, acreditando ser papel do periódico estabelecer um espaço amplo de troca de ideias entre a universidade e a escola básica. Bons debates! Equipe Editorial

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Tecendo falas e problematizando olhares no cotidiano escolar: a compreensão dos alunos do ensino médio no estudo das religiões afro-brasileiras 1

Por Maria Perpétua Baptista Domingues e Flávia dos Santos Cota

Resumo

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Abstract

A proposta deste artigo é uma reflexão The purpose of this article is a reflection sobre a produção da identidade e da diferença about the production of identification and no âmbito escolar. A partir de duas temáticas, a difference in schools. From two seemingly história indígena escolar e a história da unconnected issues, school indigenous history educação inclusiva, refletindo sobre quais and the history of inclusive education, which we caminhos teóricos e metodológicos poderemos intend to, discuss theoretical and seguir para pensarmos a questão da alteridade e methodological paths we follow to think the as demandas democráticas do presente atreladas question of otherness and democratic demands a tal questão. Em consonância com as demandas of the present linked to this issue. Aligned with e lutas indígenas, autores da historiografia the demands and indigenous struggles, authors indígena e do ensino de história, trazem novos of Indian historiography and history teaching, olhares sobre o lugar dos índios na história do bring new perspectives about the place of Brasil, destacando também a educação especial Indigenous in Brazil's history. And this process com novas colaborações. E nesse processo de of inclusion of the right to education and respect inclusão, de direito a escolarização e respeito à for diversity will raise questions about the diversidade levantaremos questões sobre o process of integration / segregation of different processo de integração/segregação do aluno student reflecting on the need for structural diferente refletindo sobre a necessidade de changes in the educational and political fields. transformações estruturais no campo Keywords: Indigenous school history - Identity - Difference - Inclusion educacional e político. Palavras-chave: História indígena escolar - Identidade - Diferença Inclusão

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGE/UFRJ). Professora da rede estadual e da rede municipal de o do Rio de Janeiro. Membro do GECCEH - Grupo de Estudos Currículo, Cultura e Ensino de História do NEC/UFRJ, coordenado pela Professora Doutora Carmen Teresa Gabriel. E-mail: mp.domingues@yahoo.com.br 2 Professora Regente da Prefeitura da Cidade do RJ e Mestranda da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro na linha de pesquisa: Currículo e Linguagem. E-mail: flaviaflaf@hotmail.com

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Introdução Este artigo traz reflexões sobre o ensino da história indígena escolar e sobre a história da educação inclusiva, no sentido de promover um diálogo crítico entre a multiplicidade de sujeitos, tempos, lugares e culturas. A leitura crítica da nossa contemporaneidade nos impõe um grande desafio: superar uma tradição da modernidade que pretende instituir e dar legitimidade a identidades sociais hegemônicas. A ausência da história indígena nos currículos escolares ou sua apresentação de forma secundária, simultaneamente a questão da inclusão e o respeito à diversidade evidenciando as disputas políticas que essas escolhas representam. As construções dos currículos escolares enfrentam questionamentos a respeito de qual conhecimento deve ser ensinado e qual identidade se pretende construir, sem perder de vista o fato de que currículos escolares nunca estão desvinculados de relações sociais de poder e em paralelo, deparamo-nos com contextos que inserem, mas não incluem. A ideia de que as sociedades indígenas estariam destinadas ao desaparecimento por assimilação e aculturação sofre nos dias de hoje grandes críticas. Nessa perspectiva, as relações sociais de contato e os processos de mudanças culturais vivenciadas pelos grupos indígenas, ficariam reduzidos a relações de dominação impostas aos índios, tendo como consequência uma inevitável perda de suas identidades étnicas, tornando-se integrado à colonização, posto que incapazes de resistir ao domínio. Sobre este tema, o texto de Maria Regina Celestino de Almeida elucida: Importa reconhecer que os movimentos indígenas da atualidade evidenciam que falar português, participar de discussões políticas, reivindicar direitos através do sistema judiciário, enfim, participar intensamente da sociedade dos brancos e aprender seus mecanismos de funcionamento não significa deixar de ser índio e sim, a possibilidade de agir, sobreviver e defender seus direitos. São os próprios índios hoje que não nos permitem mais pensar em distinções rígidas entre índios e brancos. (ALMEIDA, 2010, p.20)

Entendida de forma essencializada, fixa e estável, a

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cultura dos povos indígenas, torna-se a-histórica, reforçando a contundente sentença de Varnhagen3 : tais povos na infância não há história: há só etnografia (VARNHAGEN, 1854, Apud BITTENCOURT, 2013, p.111). Assim o estudo dos chamados “povos primitivos”, muitas vezes, negligenciou os processos históricos que trouxeram mudanças, pois tal fato traria prejuízos culturais e a consequente extinção desses povos possuidores de uma cultura imutável e pura, visão esta contestada pelos estudos culturais. Aliados ou escravos, os índios eram vistos como submissos e aculturados. Em contrapartida, a Educação Especial com o termo Inclusão depara-se com o ideal de uma escola socializadora, criadora de oportunidades, mas que muitas vezes atua propagando preconceitos e excluindo diante de qualquer dificuldade. Segundo Mantoan (2006) vivemos uma crise de paradigmas, onde as diferenças culturais sociais, étnicas, religiosas, de gênero são cada vez mais destacadas. É necessário o estabelecimento de diálogos entre os diferentes lugares epistemológicos. Sendo assim, nessa relação de direitos e demandas, refletimos sobre o ensino da história indígena, este obrigatório na educação básica a partir da Lei 11.645/2008, que torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena em todas as escolas brasileiras, públicas e privadas, do Ensino Fundamental e Médio e sobre o aluno com necessidades educacionais especiais - NEE propondo a inclusão de todos. Na perspectiva multicultural o currículo desse espaço escolar, pode favorecer a formação do indivíduo partindo do princípio da valorização da diversidade e do reconhecimento das diferenças e produções culturais que regulem as ações sociais, pensando na atuação do mesmo na escola e também fora dela. Pedro Paulo Funari e Ana Piñon discorrem sobre a renovação ocorrida na educação fundamental e média no Brasil a partir dos anos 1990 dando destaque aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Percebe-se a partir daí a valorização da diversidade e pluralidade social e cultural, vistos como direito dos povos e indivíduos, patrimônio sociocultural e fator de fortalecimento da democracia (FUNARI & PIÑON, 2011). A temática indígena fica explicitada nos PCNs em 1997, estimulando a produção de materiais didáticos, “os livros didáticos de história são os que mais tratam dos temas indígenas na escola” (idem, 2011, p.99). Porém, visões cristalizadas e estereotipadas permanecem e são reproduzidas nas salas de aula. Mauro Cesar Coelho, em 3 Francisco Adolfo de Varnhagen, membro do IHGB e autor de História Geral do Brasil, publicado na década de 1850. No campo historiográfico, considerado o mais importante autor da história do Brasil no século XIX.

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artigo sobre representações indígenas nos livros didáticos do ensino fundamental, afirma “a participação indígena é restrita aos caracteres culturais, aspectos do folclore, alguns hábitos domésticos e práticas agrícolas” (COELHO, 2009, p.278). A Lei 11.645/2008 modificou a lei 10.639/2003, porém tal modificação não foi seguida por Diretrizes que regulamentem o ensino da História e Cultura Indígena, acrescida à prescrição legal de 2003. O documento curricular Plano Nacional de Implementação das 9 Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana reconhece tal ausência: Uma vez que a Lei 11645/08 ainda não recebeu a sistematização que foi objeto a Lei 10639/03, este Plano, sempre que couber, orienta os sistemas e as instituições a adotar os procedimentos adequados para sua implementação, visto que a Lei mais recente conjuga da mesma preocupação de combater o racismo, desta feita contra os indígenas, e afirmar os valores inestimáveis de sua contribuição, passada e presente, para a criação da nação brasileira (BRASIL, 2009)

Todavia, a Lei de 2008 pode ser considerada uma grande conquista para o reconhecimento social do negro e do indígena por abarcar uma série de importantes questões, retratando a importância do reconhecimento do negro e do índio como sujeitos históricos que lutaram pelos seus ideais e pelo seu papel na formação social brasileira: § 1º O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. (BRASIL, 2008.).

Identidade, diferença e demandas do presente (...) as pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza. (SANTOS, Boaventura de Sousa, 2003, p. 122) Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.1, vol.1, jul/dez. 2014|13


O debate sobre identidade aponta para os processos de criação de sentido pelos grupos e pelos indivíduos (STOER & MAGALHÃES, 2005, Apud CANDAU & MOREIRA, 2008, p.41). Portanto, a diferença não é algo natural. Ela se estabelece na relação com o outro, o “não diferente” (SILVA, 2011, p.87), que por sua vez não é absoluto. Entendemos hoje a diversidade como elemento central nas sociedades, que são heterogêneas, composta por diferentes grupos, que interagem e por vezes entram em conflito. As identidades são fluidas em constante mutação e interação umas com as outras e através destas que o indivíduo sai do biológico e torna-se social e evolui. Faz-se necessário refletir e problematizar os binarismos, as oposições duais, e simplistas quanto às relações de contato entre índios e colonizadores, deficientes e não 10 deficientes. Muitas vezes, esses se apresentam sob a polarização: índio aculturado e índio puro, deficiente e capaz, promovendo uma visão reducionista e equivocada da atuação dos mesmos nos processos históricos e sociais, negando possibilidades e oportunidades de desenvolvimento. Para a maioria dos brasileiros a história do Brasil tem início no ano de 1500. Amplamente utilizado para designar a ocupação europeia na América, o termo “descobrimento” revela o desconhecimento sobre as populações indígenas e sua história, da mesma maneira a ausência da concepção sobre a deficiência. O período anterior à referida data parece vago e irrelevante à história do nosso país. Seus primeiros habitantes não teriam passado; representariam um estado fossilizado ou primitivo do desenvolvimento humano. Da mesma forma inevitável o desaparecimento de suas formas culturais diferenciadas de viver em meio a um processo globalizante mundial, com tendência homogeneizadora. Vistos tradicionalmente em nossa história de forma secundarizada, agindo de acordo com os interesses dos colonizadores, vítimas incapazes de sobreviver à invasão europeia, aculturavam-se e assim perdiam seus espaços de representatividade. Desta forma os indígenas estariam condenados a desaparecer de nossa história. A origem da negligência desse importante tema por programas, livros didáticos e professores pode ser entendida pelas posturas de alguns intelectuais brasileiros no decorrer dos dois últimos séculos. Estudos sobre a colonialidade do saber histórico (ARAÚJO, 2013, p.270) apontam reflexões sobre o assunto. O poder colonial não se limitou à dominação econômica, política e militar, estendeu-se aos fundamentos epistemológicos, com pretensões universalizantes, que sustentaram seu modelo hegemônico de produção de conhecimentos. Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.1, vol.1, jul/dez. 2014|14


No Império brasileiro, os índios tupis foram instituídos como um dos pilares da nacionalidade, dentro do “mito das três raças” formadoras do povo brasileiro, porém sempre em referência a um índio já extinto. A alternativa à tutela era tornar-se integrados, assimilados a um todo maior: a nacionalidade brasileira. Progressivamente suas identidades foram negadas, invisibilizando assim esses povos na história. Em termos legais, os indígenas eram isentos, inimputáveis, não eram cidadãos, como o aluno com necessidades especiais, a anomalia assim considerada, era atribuída a castigos das divindades e incentivavam o assassinato. Mantoan (2006) explica essa lógica classificando a organização da educação marcada por uma visão determinista, mecanicista, reducionista, formalista, própria do pensamento moderno, que desconsidera o subjetivo, o afetivo e o criador. Nesse cenário exige-se a 11 extinção das categorizações e das oposições excludentes, articulando e flexibilizando com os pensamentos, as ações e os sentimentos do ser humano. Porém, os indígenas e os deficientes tornam-se cada vez mais presentes na arena política brasileira. Identidades diversas clamam ser reconhecidas, como condição de cidadania. Contrariando as previsões, a luta pela inclusão em uma dimensão ética, crítica e transformadora ganha força política. Os estudos acadêmicos sofrem a influência desse movimento, cresce a produção de conhecimentos apontando a escola com o desafio de ajustar-se para atender à diversidade. Cabe considerar, ainda que não está à altura da relevância do tema. Também no cenário de mudanças, meados do século XX é que a “educação dos deficientes” como era chamada, obteve destaque. De início, as perspectivas eram médicas, mais tarde tornam-se sociológica e curricular. Atualmente busca-se aceitação do outro, superando a visão tradicional e antropológica dos seres humanos ideais. O ensino inclusivo, foco desse trabalho, toma por base a visão sociológica de deficiência e diferença, reconhecendo que os espaços escolares precisam ser transformados para atender as necessidades individuais de todos os envolvidos. A inclusão não significa tornar todos iguais, mas respeitar as diferenças, utilizando-se de diversos métodos para responder as diferentes necessidades e níveis de desenvolvimento individuais. O discurso gira em torno da Educação Inclusiva, do fazer a diferença e respeitar a mesma, mas pensar na inclusão é inserir e dar condições a todos, afinal somos todos diferentes. Foram vários os movimentos existentes buscando a inserção do aluno com necessidades especiais e os índios. Muitas conquistas aconteceram como o documento da História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência (Brasília, 2010), com foco principal no Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.1, vol.1, jul/dez. 2014|15


direito humano, com a sociedade assegurando mais liberdade, igualdade e solidariedade o que envolve a eliminação de barreiras físicas, de atitude e de preconceito e todas que possam vir a impedir a igualdade de oportunidades, diante da singularidade de cada cidadão. No que se refere ao ensino e aprendizagem o destaque é atribuído à valorização da cultura do indivíduo, conferindo significado ao que lhe é proposto. Promovendo uma interrelação entre as diferentes identidades culturais com o objetivo de desenvolver uma educação crítica para a superação da desigualdade e exclusão social e do modelo monocultural e hegemônico de educação. Os estudos culturais nos trazem possibilidades de pesquisa e intervenções. E para pensar na prática das escolas é necessário considerar todo o material cultural produzido do lado de fora da sala de aula, influenciando no currículo e ao mesmo tempo ressignificando as nossas práticas dentro de uma perspectiva crítica e dialética. O ensino da disciplina de História mantém-se nos currículos das escolas brasileiras há mais de um século. A importância desse conjunto de saberes é socialmente reconhecida como necessária à formação de cidadãos. Ao ensino de história é atribuído um papel educativo, formativo, cultural, político, relacionado à construção da cidadania, num diálogo crítico entre a multiplicidade de sujeitos, tempos, lugares e culturas. O pensamento histórico deve, portanto, contribuir para a leitura da nossa contemporaneidade, desenvolver a cidadania e o pensamento crítico em perspectivas voltadas para a mudança e transformação social. Aos professores é designado um grande desafio: superar uma tradição que pretende instituir e dar legitimidade a identidades sociais únicas e hegemônicas, apagando diferenças. Tal superação implica em tornar acessível aos alunos o conhecimento sobre as diferentes sociedades e atores sociais, desconstruir discursos discriminatórios e dar aos estudantes uma compreensão de que somos constituídos como sujeitos na diversidade de experiências históricas com o “outro”. É importante ressaltar que a identidade envolve a multiplicidade de sentidos, é entendida como construção social, vinculada ao conjunto de relações que permeiam a vida cotidiana, onde novas bases se articulam entre o pessoal e o social na contemporaneidade. Mantoan (2006) defende que o direito à diferença desconstrói nas escolas do sistema atual de significação práticas excludentes, normativas e elitistas. E nessa perspectiva de inclusão e de importantes mudanças na escola e na sociedade, o documento descrito abaixo estabelece:

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O princípio norteador desse enquadramento da acção consiste em afirmar que as escolas devem se ajustar a todas as crianças, independentemente das suas condições físicas, intelectuais, linguísticas ou outras. Neste conceito terão de se incluir crianças com deficiência ou sobredotados, crianças de rua ou crianças que trabalham crianças de populações remotas ou nómadas, crianças de minorias linguísticas, étnicas ou culturais e crianças de áreas ou grupos desfavorecidos. (Declaração de Salamanca, 1994: II)

A articulação entre o individual e o social é essencial, pois a transformação da sociedade é fruto da ação do homem e do mundo natural sobre os objetos, implicando no seu 13 desenvolvimento. O que deixa em evidência as condições igualitárias e o direito de participação de todos e é na diversidade que podemos compreender a subjetividade. A identidade é totalidade, no que se refere ao conjunto de elementos biológicos, psicológicos e sociais. Percebemos na sociedade que os papéis são atribuídos aos indivíduos e assumidos pelos mesmos na medida em que se comportam do modo como a sociedade espera e que tudo o que difere dessa expectativa é excluído. A igualdade é expressa na história social do indivíduo e a diferença passa a ser entendida como constituinte da singularidade. As condições históricas do grupo social no qual está inserido é que caracterizará a história de vida do indivíduo. Dessa forma, a diferença é essencial para a tomada de consciência de si e ao mesmo tempo é inerente, pois o ser humano precisa utilizar o outro como referência para percebê-la, mas não com preconceito e discriminação. Pode-se notar que é no contexto histórico e social que o homem vive e que surgem as possibilidades, desafios e alternativas para a sua identificação. E nesse contexto encontram-se os indígenas e alunos com necessidades especiais buscando o mesmo direito, a fim de garantir o seu espaço e reconhecimento social, com participação, representação, reflexão e igualdade de oportunidades e solidariedade.

O desafio do diálogo intercultural Em relação à história indígena e do deficiente, denunciar a grande presença da cultura ocidental nos currículos escolares em prejuízo de muitas vozes que se calam, não é novidade. De forma isolada, novas propostas curriculares pouco colaborarão para recuperar tais Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.1, vol.1, jul/dez. 2014|17


ausências. Candau e Russo (2010) alertam quanto a polissemia da expressão educação intercultural e defendem uma interculturalidade crítica, posto que “ a perspectiva intercultural no âmbito educativo não pode ser reduzida a uma mera incorporação de alguns temas no currículo e no calendário escolar” ( CANDAU; RUSSO, 2010). Vera Candau, “propõe um multiculturalismo aberto e interativo, que acentua a interculturalidade” (CANDAU, 2009, p. 165). No ponto de vista da autora o multiculturalismo interativo ou interculturalidade, considera como fundamentais para as dinâmicas dos diferentes grupos sociais, os processos de hibridização cultural, onde as identidades são abertas e em constante mutação. A autora Catherine Walsh (2009) lança problematizações sobre o tema. Walsh admite que tanto no âmbito acadêmico quanto no político, a diversidade cultural tem ganhado centralidade e promovido reformas educativas e constitucionais que reconhecem o caráter plural das sociedades e introduzem políticas específicas para os grupos minoritários. Essa tendência, observada em toda a América Latina, é resultado de lutas dos movimentos sociais e carece de análise sob o contexto da colonialidade. Walsh (2009) argumenta que o reconhecimento da diversidade e das políticas públicas de inclusão é fruto de um projeto de reacomodação da hegemonia dentro dos preceitos do capitalismo global. Classificada como interculturalidade funcional, esse movimento se constitui num discurso neoliberal multiculturalista no qual a diferença é ressignificada e neutralizada na medida em que se incorpora à ordem nacional. Desta forma, a inclusão teria por objetivo reduzir os conflitos, se configurando numa nova estratégia de dominação e controle. Em contraposição a essa lógica, a autora defende a perspectiva da interculturalidade crítica. Essa concepção questiona os dispositivos do poder que mantém as desigualdades e propõe uma contra-hegemonia. Pensar na interculturalidade crítica como proposta de superação da subalternização dos sujeitos historicamente invisibilizados, parece uma aposta profícua, pois tal conceito: (...) se preocupa também com a exclusão, negação e subordinação ontológica e epistêmico-cognitiva dos grupos e sujeitos racializados; com as práticas – de desumanização e de subordinação de conhecimentos – que privilegiam alguns sobre outros, ‘naturalizando’ a diferença e ocultando as desigualdades em seu interior. (WALSH, 2009. p.23)

Segundo Vera Candau (2009) a perspectiva do Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.1, vol.1, jul/dez. 2014|18


multiculturalismo assimilacionista4, defende a universalização da educação sem questionar o caráter hegemônico do sistema educacional. Daí a necessidade na aposta do diálogo intercultural no sentido de promover à construção de um projeto educacional no qual as diferenças sejam integradas dialeticamente, dando centralidade a trama relacional entre sujeitos. O lançamento dos Parâmetros Curriculares Nacionais (1997) destaca que a pluralidade cultural, o multiculturalismo e a perspectiva intercultural atribuíram destaque especial para os indígenas e também para as pessoas com necessidades especiais, através de diversas propostas de inclusão, estimulando os movimentos de gêneros nos diferentes processos educacionais e sociais. A situação presente com a globalização da economia, da tecnologia e da comunicação aumenta as divergências entre grupos sociais de diferentes culturas, assim como os movimentos que valorizam os direitos humanos, renovando paradigmas científicos e metodológicos. Há um sentimento de busca de raízes e de afirmação das diferenças, como ressalta Mantoan (2006), o que acaba por contestar ainda mais a Modernidade. A proposta maior é relacionada à democracia, o respeito à diferença e o trabalho intercultural contribuindo com a pluralidade social e cultural. A educação é um direito, baseada no princípio de alteridade e dignidade, integrando as propostas metodológicas e articulando em rede as informações e os novos saberes. Neste discurso pode-se observar claramente a explicação das desigualdades sociais e dos processos de marginalização, segregação e exclusão de algumas classes, que valorizam o saber formal e desconsideram muitas vezes o saber popular. O eu colabora para a manutenção e difusão dos saberes, tornando cada vez mais necessária uma política de valorização das diferenças, legitimando a cultura de origem de cada indivíduo. Reafirmamos assim, que a inclusão e a exclusão envolvem um processo dialético, como refere Sawaia (2008): (...) a exclusão é um processo complexo e multifacetado, uma configuração de dimensões materiais, políticas, relacionais e subjetivas. É processo sútil e dialético, pois só existe em relação à inclusão como parte constitutiva dela. Não é uma coisa ou um estado, é processo que envolve o homem por inteiro e suas relações com os outros. (Sawaia, 2008, p.9)

4 Para esta autora, no multiculturalismo assimilacionista os grupos excluídos são incluídos na estrutura social dominante, sem qualquer alteração dessa estrutura, na medida em que assimilam a cultura dominante.

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A diversidade contempla a diferença no sentido que possibilita a criação, o questionamento de valores e princípios propostos para mediar o convívio entre a variedade de culturas que resulta no conceito proposto por Lopes (2007): Significa pensar a diferença dentro de um campo político, no qual as experiências culturais comunitárias e práticas sociais são colocadas como integrantes da produção dessas diferenças. A diferença não pode ser entendida como um estado indesejável ou impróprio. Ela inscreve-se na história e é produzida com ela. Sendo uma condição necessária para a própria ideia de inclusão, a diferença surge como possibilidade de resistência a políticas excludentes e a práticas classificatórias e hierárquicas. (LOPES, 2007, p.21)

No caso dos índios, foi a Constituição Federal de 1988, que assegurou o direito a uma educação escolar diferenciada, específica e intercultural. Além de ter a sua organização social como um direito garantido, valorizando os seus costumes, crenças, línguas e tradições. Foi dessa forma que os indígenas obtiveram o acesso a uma escola com suas características peculiares, buscando a valorização do conhecimento vigente em seu meio, mas que também tinha a preocupação em fornecer instrumentos para possibilitar a interação com outras sociedades. Através também da Constituição Federal do Brasil de 1988, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN-9394/96), do Decreto n°6571(17/09/2008) e das Diretrizes Nacionais da Educação, resolução n° 2001 os alunos com necessidades educacionais adquirem como princípios norteadores da educação inclusiva os direitos humanos, o conceito de cidadania fundamentado no reconhecimento das diferenças e o direito a participação ativa na sociedade. Entretanto, ainda é fundamental pensar em professores especializados, acessibilidade, montagem e funcionamento de um sistema de atenção particular às necessidades deste aluno, de sua família e comunidade. Essa demanda de recursos especiais ou essenciais para garantir a qualidade da educação, está atrelada a investimentos políticos, e econômicos, assim como a atual situação em que se encontram os indivíduos desse público alvo. Nessa direção, constata-se variadas concepções e propostas para identificar a relação entre os processos identitários socioculturais, que constituem as relações interculturais. A atenção desse estudo volta-se para os contextos intersticiais, numa perspectiva interdisciplinar no sentido de superar discursos hegemônicos e abrindo Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.1, vol.1, jul/dez. 2014|20


espaço para a expressão, o respeito às diferenças e o questionamento das próprias relações de poder.

Considerações finais Currículos escolares são produtos de escolhas teóricas e metodológicas, fruto de uma seleção. Os currículos nunca são neutros. Expressam disputas políticas, consensos, aproximações, esquecimentos, em permanente reconstrução. Na perspectiva de uma renovação paradigmática da história indígena escolar e da educação especial a aposta no diálogo intercultural crítico torna-se potencialmente profícuo por quebrar a lógica da dominação e do controle, apontando para as demandas democráticas do nosso presente. A escola tem um caráter formativo, um papel educativo, cultural, político, relacionado à construção da cidadania e das identidades, num diálogo crítico entre a multiplicidade dos sujeitos, tempos, lugares e culturas. O pensamento histórico deve, portanto, contribuir para a leitura da nossa contemporaneidade, assim como para a formação do professor. A proposta foi avançar na discussão relativa à inclusão/exclusão, superando os limites e desafios da educação brasileira, compreendendo seus efeitos e consequências para alunos, professores, instituições e sociedade. Para Mantoan (2006) a inclusão não se limita aos alunos com deficiência, mas a todos os demais, prevendo uma mudança de perspectiva educacional, que atenda a todos com qualidade, acolhendo, possibilitando o exercício da cidadania plena, global e que reconhece e valoriza as diferenças. A questão econômica também recebe destaque, pois historicamente percebemos falta de investimentos públicoestatal. Há ausência de apoios para o ensino comum, aliada a falta de uma perspectiva multicultural e interdisciplinar, além de pouco investimento na formação e valorização do professor. A educação escolar apesar de direito do cidadão é marcada pela desigualdade, diz-se inclusiva, mas é seletiva nos modos e meios de inserção. Revela-se contra o seu aprisionamento em uma dimensão apenas instrumental, assim constituindo uma preocupação não somente com o direito individual, mas também com o social do cidadão, criando condições e rompendo barreiras para tal. Buscamos uma escola que as diferenças se articulem e se componham de modo que as habilidades e competências de cada um sobressaiam. Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.1, vol.1, jul/dez. 2014|21


A história da educação brasileira mostra como os lugares de quem ensina e de quem aprende são identificados por meio das diferenças hierárquicas. Tornando mais evidente, quando o indivíduo é marcado pela diferença ou anormalidade. Existe uma necessidade da discussão ética e do diálogo, no sentido de ressignificar o conhecimento e redimensionar as perspectivas educacionais. Dessa forma, reconhecemos na escola de hoje, no contexto das políticas educacionais a predominância da cultura dominante, a urgência de novos paradigmas, preceitos, novas ferramentas e novas tecnologias educacionais, para lidar com as características diversas da população escolar. Escola é o espaço de acesso ao conhecimento, é o lugar que possibilita condições de desenvolvimento e o exercício da cidadania. É necessário pensar estratégias que reconheçam a diferença como valorativa e potencializadora de uma educação mais humana e menos excludente. Assim como, acreditar que é possível ensinar/trocar/interagir não só com os grupos homogêneos como com os 18 heterogêneos no mesmo espaço, que é para todos, através de uma aprendizagem contextualizada. Aprendemos com o professor, mas também com o outro e nos grupos, como também no contexto no qual pertence cada indivíduo, valorizando saberes e experiências de todos. Sendo assim, a educação é construída na relação tensa e intensa entre sujeitos, com suas respectivas identidades. Desenvolvemos desse modo, as aprendizagens das informações, dos valores, dos conceitos, mas, além disso, a aprendizagem dos contextos, nas quais atribuímos significados aos atos e relações e recriamos as mesmas. A propósito Freire (2005) evidencia: As pessoas se educam em relação, mediatizadas pelo mundo, ao mesmo tempo em que seus respectivos mundos culturais e sociais, se transformam, mediatizados pelas próprias pessoas em relação. (FREIRE, 2005, p. 79)

Repensar e ressignificar a concepção de educador deve ser uma prática, e através desta propor estímulos que ativem as diferenças entre os sujeitos em seu contexto histórico, cultural e social e na elaboração de sentidos. Formando sujeitos da melhor forma, para viver a vida em sua plenitude, atendendo as suas especificidades e respondendo às necessidades de cada um. A inclusão compreende a diferença na diferença e não na competitividade, prendendo-se aos direitos humanos, baseada na justiça social, em que a participação Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.1, vol.1, jul/dez. 2014|22


de todos deve ser garantida. Deixa de ser objeto político, na medida em que reflete a voz de um grupo que reclama por sua identificação sociocultural e que culmina em desigualdades e injustiças. Para finalizar, evidencio os processos educativos como oportunidades de desenvolvimento de identidades, através da autonomia, da consciência crítica, da relação de respeito à diversidade e reciprocidade com os outros sujeitos. Modificando contextos existentes e possibilitando a diferença na sala de aula e na sociedade contemporânea, onde tensões e inquietações perpassam por esse diálogo. Ambos com suas especificidades, marcados pelas forças de expressões e representações do mundo, de si e do outro.

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Descobrindo a África: uma experiência de ensino da história africana no estágio docente supervisionado Por Fernanda de Amorim Golembiewski

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Este relato se propõe a refletir sobre a prática de ensino de História da África no ensino médio, consolidando minha experiência na disciplina de Estágio de Docência em História II, realizado como atividade de ensino do Curso de Licenciatura em História da UFRGS. O estágio docente foi realizado em duas turmas de segundo ano, de uma escola pública estadual, localizada na cidade de Porto Alegre.

Introdução Minha proposta de trabalho para o estágio docente contemplou a História da África como temática central do planejamento das aulas. Essa proposta surgiu já em minha primeira experiência de estágio supervisionado, na disciplina de Estágio I – realizada no ensino fundamental – , a partir do direcionamento proposto nas aulas da disciplina, cujo foco principal foi o tema da “educação para a diversidade”. Nessa ocasião, a turma foi desafiada a destinar algum espaço nos planejamentos para esse tema, que deveria estar presente nas observações com a turma onde iríamos estagiar, e, posteriormente, deveria ser objeto de reflexão durante a prática docente – não só em termos de conteúdos que apontassem para a diversidade, mas em um âmbito maior, na busca pela construção de relações dentro da sala de aula que estivessem alinhadas a essa proposta. A partir desse desafio surge a minha vontade de experimentar o ensino de temas da História da África e da cultura afro-brasileira. Na segunda experiência de estágio docente defrontei-me novamente com a possibilidade de inserir essa temática em meu planejamento. Dessa forma, apresentarei nesse artigo algumas experiências que vivenciei durante minha prática docente, “descobrindo a África” em conjunto com os alunos para os quais busquei apresentá-la, ainda que apenas em alguns fragmentos. Buscarei abordar os desafios e as possibilidades que essa escolha proporcionou tanto para mim – enquanto professora estagiária – quanto para os alunos, a partir da 5 Graduanda do curso de Licenciatura em História da UFRGS. E-mail: fernanda.golembiewski@ufrgs.br

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análise e da reflexão que construí a partir dessa vivência em sala de aula.

A construção do planejamento e a aproximação com a história africana A tarefa de construção do planejamento foi pautada a partir de duas considerações. Primeiramente, a temática a ser escolhida foi pensada em acordo com a professora titular das turmas em que o estágio seria realizado posteriormente, durante o período de observações – que consiste na primeira etapa da prática docente na escola. Busquei incluir em meu planejamento temas que pudessem dar continuidade ao que já estava sendo trabalhado nas aulas de história daquelas turmas, o que correspondia ao período histórico da Idade Média. A professora sugeriu essa continuidade, me concedendo, no entanto, autonomia na seleção dos assuntos e dos enfoques que me interessassem. Em segundo lugar, havia uma vontade de abordar novamente temas relacionados à história africana, motivada pela minha experiência anterior de estágio docente. Partindo dessas considerações iniciais a minha proposta de planejamento foi composta por duas unidades principais. Na primeira delas, que intitulei - O que sabemos da África?- propus uma discussão inicial – para a qual foram destinadas as três primeiras aulas – acerca do ensino de História da África: afinal, de que forma ele está apresentado e contemplado na escola? Essa discussão consistiu em uma problematização a respeito da importância do ensino de História da África na escola e no questionamento sobre o motivo de conhecermos pouco – ou de maneira distorcida e estereotipada – a história desse continente. A visão que construímos socialmente sobre o continente africano normalmente o associa a imagens negativas e o caracteriza como um local em que existe somente pobreza, doenças e conflitos. A partir dessa constatação, considero que a abordagem das questões mencionadas anteriormente no espaço da sala de aula é, além de muito positiva, extremamente importante, sobretudo no ensino médio. Durante as aulas dedicadas à primeira unidade, os alunos construíram um debate de ideias enriquecedor, problematizando a maneira como o continente africano é retratado socialmente, na mídia ou nos livros didáticos, por exemplo. Relato aqui algumas percepções a respeito da Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.1, vol.1, jul/dez. 2014|28


recepção dos alunos às discussões propostas em aula. A partir de um questionário aplicado no primeiro dia de aula, que continha a pergunta “o que você conhece sobre a África e sua história?”, foi perceptível através das respostas dos alunos o desconhecimento que têm a respeito da história africana e a comum 147 associação que fazem desse continente a características negativas. Uma afirmação recorrente nas respostas é a ideia errônea de que a África se trata de um país – ideia que, em alguns casos, persistiu mesmo após várias discussões sobre o assunto6. O intuito da aplicação desse questionário – além de realizar um levantamento de informações que permitisse conhecer os alunos, como a sua idade ou o bairro onde moram – consistiu em avaliar de forma preliminar quais visões eles haviam construído sobre a África e subsidiar as discussões que seguiriam ao longo das aulas do estágio. Para a aula seguinte, preparei um material intitulado O que sabemos da África? que continha um poema – algumas estrofes compostas por rimas lúdicas, que questionavam o que sabemos sobre a história do continente africano –, e um box de informações apresentando trechos do texto da Lei 10.639/03. O poema escolhido, do qual selecionei um trecho – e reproduzo em parte na citação abaixo –, cumpriu o papel de possibilitar aos alunos uma reflexão inicial: “- O que sabemos da África?” boa pergunta foi feita porque a nossa visão sobre a África é muito estreita ou melhor, manipulada distorcida e deformada mas até agora “aceita”. A lei enfim determina que seja a África estudada. É justa, é necessária e também muito acertada. A visão colonialista, tão injusta e elitista tem de ser desmascarada.(...) Pois o que foi sugerido sobre a África em nossa mente foi a imagem assombrosa de um distante continente, terra de selvas sombrias, macacos, feras bravias, uma “pobre” e “longe” gente. 7

6 Vale ressaltar que, ainda em menor número, aparecem nas respostas referências à diversidade cultural do continente africano, à África como berço da humanidade e a presença de riquezas minerais – como o ouro – nesse território. 7 Retirado de: ALENCAR, Nezite. Afro-Brasil em Cordel. São Paulo: Paulus, 2007. p. 7-8.

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Após essa primeira discussão, cujo embasamento foi o material mencionado acima, os alunos – quando questionados – apontaram que a História da África não costuma ser estudada na escola, conforme regulamenta a lei e citaram a mídia como uma fonte que reproduz imagens negativas a respeito da África – dado que influenciava as suas percepções a respeito desse continente. O segundo recurso utilizado como subsídio para essa discussão foi o vídeo O perigo de uma história única – uma conferência enunciada pela escritora nigeriana Chimamanda Adichie8 –, que foi útil por apresentar o conceito de história única no que diz respeito ao que as pessoas conhecem sobre a África – que, segundo a autora, é uma “história de catástrofe”. Na segunda unidade do planejamento, nomeada Reinos Africanos, busquei estabelecer uma continuidade – em termos de períodos históricos – com as aulas que antecederam às do estágio. Nessa etapa foram estudadas as principais sociedades africanas, normalmente chamadas de reinos, que se desenvolveram no período anterior ao século XV. Para contemplar esse assunto, foram utilizados materiais didáticos de minha autoria – produzidos ao longo do estágio –, além do documentário Viajando pela África com Ibn Battuta9 , que aborda a perspectiva de um viajante que conhece o Império do Mali – uma das sociedades estudadas – e relata as suas experiências de viagem. A justificativa para a escolha da História da África como temática central do planejamento alicerçou-se a partir de duas motivações. Em primeiro lugar, a principal motivação é a busca pela construção de relações étnicoraciais que valorizem a diversidade dentro da sala de aula. Além disso, essa escolha fundamentou-se a partir da Lei 10.639/0310, buscando inseri-la efetivamente no cotidiano escolar. Busquei construir o planejamento de aulas dessa forma e a partir dessas premissas por entender que a construção de uma imagem positiva do continente africano, que desmistifique a ideia incompleta que temos a seu respeito, e que fuja daquela que relaciona os africanos quase exclusivamente à escravidão, pode ser aliada na construção de novas relações étnicoraciais dentro do ambiente escolar – em que sejam superadas relações baseadas em racismo e preconceito. Considerando o dado de que grande parte da população brasileira é afrodescendente, acredito numa abordagem que permita “positivar” a África atual também na construção da 8

TEDGlobal. The danger of single story (Traduzido como “O perigo de uma história única”). Disponível em: . Acesso em: 06 out. 2014.. MACEDO, J. R.. Viajando pela África com Ibn Battuta. Disponível em: . Acesso em: 28 jun. 2014 10 A Lei 10.639/03, promulgada em 09 de janeiro de 2003, regulamenta a obrigatoriedade do ensino da História da África, da cultura africana e afrobrasileira nos currículos das instituições escolares brasileiras. Disponível em: . Acesso em: 28 jun. 2014. 9

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cidadania. Segundo a autora Junia Sales Pereira (2011), a Lei 10.639/03 está atrelada a uma realidade de ampliação da cidadania e de enfrentamento do racismo. Nesse sentido, a possibilidade de levá-la para a sala de aula – inclusive comentando com os alunos sobre a sua existência – também serviu de embasamento e justificativa para a minha escolha. Nas palavras da autora, a edição da lei 10.639/03 ocorreu na esteira do complexo processo de democratização do país, marcado por reflexões a respeito de desigualdades históricas que contribuíram para negação de direitos a populações e a pessoas afrodescendentes. Seu conteúdo e transformações que dela decorrem vêm produzindo tensões entre a ampliação dos direitos de cidadania do país e a crescente compreensão da necessidade do enfrentamento do racismo, em suas diversas faces e diferentes esferas da vida social, sobretudo, no que toca a esta análise, no âmbito da escola. (PEREIRA, 2011, p. 148)

Além de levar a Lei 10.639/03 para a sala de aula, busquei torná-la objeto de discussão. Considero de grande importância a sua promulgação, pois coloca em questão a História da África – normalmente esquecida nos currículos escolares – e serve para problematizar uma prática de ensino de História que comumente está baseada em conceitos e narrativas eurocêntricas. Entendo que propor aos alunos a leitura da Lei 10.639 não trata apenas de analisar a lei pela lei, mas de mostrar a eles a existência de uma legislação vigente que assegura espaço nos planejamentos escolares para a História da África, resultante de demandas e lutas sociais, em um contexto histórico de implantação de ações afirmativas na Universidade e de combate ao racismo. Ainda sobre a relação do ensino de História da África e da superação do racismo, menciono a autora Nilma Lino Gomes (2005), que, ao apresentar o conceito de racismo, o define nos seguintes termos: por um lado, um comportamento, uma ação resultante da aversão, por vezes, do ódio, em relação a pessoas que possuem um pertencimento racial observável por meio de sinais, tais como, cor da pele, tipo do cabelo, etc. Ele é por outro lado um conjunto de ideias e imagens referente aos grupos humanos que acreditam na existência de raças superiores e inferiores. (GOMES, 2005, p. 52)

Além da definição apresentada pela autora, também é pertinente a este trabalho a sua discussão a respeito das formas de manifestação e de reprodução do racismo, que podem ser percebidas através de “atos discriminatórios cometidos por indivíduos contra outros indivíduos” (GOMES, 2005, p. 52) ou de práticas institucionais, em que o Estado atua direta ou indiretamente. Neste caso, Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.1, vol.1, jul/dez. 2014|31


o racismo manifesta-se nos livros didáticos tanto na presença de personagens negros com imagens deturpadas e estereotipadas quanto na ausência da história positiva do povo negro no Brasil. Manifestam-se também na mídia (propagandas, publicidade, novelas) a qual insiste em retratar os negros, e outros grupos étnico/raciais, que vivem uma história de exclusão, de maneira indevida e equivocada. (GOMES, 2005, p. 53)

Experiência no ensino de História da África: desafios e possibilidades A experiência docente traz consigo inúmeros desafios e possibilidades. Ao escolher a temática da História da África, como a central, em meu planejamento me deparei com novos desafios. Minha intenção consistiu em apresentar aos alunos fragmentos da história do continente africano, propondo a eles que descobrissem a África. No entanto, essa descoberta não estava limitada aos alunos. Para mim, enquanto professora estagiária, a História da África também era desconhecida em muitos aspectos, o que remete ao fato de, mesmo na Universidade, a discussão a respeito dessa temática ainda não estar consolidada. Além disso, é necessário ter o cuidado de não abordar a história africana em termos de conscientização ou supervalorização. A autora Junia Sales Pereira (2011) aponta para os desafios que nos remete a colocação da Lei 10.639/03 em prática. Em suas palavras, a prática dessa legislação remete-nos, na Universidade e nas escolas da Educação Básica, a desafios de natureza variada. Como garantir que o ensino de conteúdos históricos não se realize com base no suposto da mobilização de consciências? (Laville, 1999). Que relações entre prática da lei, políticas afirmativas e inclusão educacional? (Rocha, 2006). Ou, ainda, como superar a sedução do estudo da história da África calcado tanto na inferiorização quanto no hiper-dimensionamento de sua relevância? (Oliva, 2008, p. 33). Como favorecer a superação de limites antigos verificados no ensino de história, (presentes também em alguma medida na prática da Lei 10.639/03), como a essencialização de conceitos, a prática de mitificação de personagens, a idealização da herança e história africana, o atrelamento visceral do ensino de conteúdos históricos (este, o equívoco) à causa de políticas identitárias unívocas, o privilégio de datas e eventos em detrimento da abordagem de processos históricos e suas transformações? (Pereira, 2008). (PEREIRA, 2011, p. 149)

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Considero que as ferramentas utilizadas na abordagem dos conteúdos – ou seja, os materiais didáticos – têm o poder de cativar os alunos e chamar a sua atenção para o que está sendo trabalhado em aula. Nesse sentido, entendo que um bom material é um grande instrumento com o qual o professor pode contar e, por isso, procurei trabalhar no estágio docente a questão da autoria dos materiais didáticos. Ao longo do estágio, busquei construir materiais diversificados, que me auxiliassem na abordagem da história africana e fossem 151 interessantes para os alunos. Construir um material didático é um dos desafios da prática docente, sobretudo, porque se torna necessário sair da zona de conforto e do que estamos acostumados na rotina acadêmica, ou seja, textos longos e nem sempre dinâmicos. No meu entendimento, quando construímos textos voltados para jovens do ensino médio, a sua didática é uma característica fundamental – o que inclui a opção por textos mais acessíveis, a utilização de imagens, mapas, box de informações e curiosidades apresentados de maneira lúdica. Acredito na estética do material didático, por entender que um material bem organizado e bonito – por que não? – chama a atenção do aluno para o seu conteúdo e pode enriquecer as aulas de História. A autoria apresenta-se, dessa forma, como uma possibilidade a ser explorada. Relacionando a promulgação da lei, a produção de materiais didáticos que sirvam de subsídio para a sua aplicação nas escolas e a tarefa de construção do meu planejamento, ressalto que tive acesso a bons materiais bibliográficos para consulta sobre o tema. Destaco aqui o livro de autoria de José Rivair Macedo, História da África11 , que tem o intuito de ampliar o leque de materiais disponíveis sobre o tema. Segundo a sinopse do livro, o mesmo fornece “uma visão panorâmica, que respeita as diferenças e peculiaridades sociais, culturais e históricas que surgem da variedade de povos existentes no continente africano”. Na coletânea de artigo reunida em Tramando falas e olhares, compartilhando saberes, destaco o texto A África antes do século XV: os grandes reinos12, de Luiz Dario Teixeira Ribeiro e Manoel José Ávila da Silva, que aborda as sociedades africanas que se desenvolveram na África antes do século XV13. Avalio a minha experiência de estágio supervisionado de maneira positiva em vários aspectos. Em primeiro lugar, foi muito rico construir um trabalho 11

MACEDO, José Rivair. História da África. São Paulo: Editora Contexto, 2013. RIBEIRO, L. D. T.; SILVA, M. J. A. da; A África antes do século XV: os grandes reinos. In: SANTOS, J. A.; CAMISOLÃO, R. C.; LOPES, V. N. (org.). Tramando falas e olhares, compartilhando saberes: contribuições para uma educação anti-racista no cotidiano escolar. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008. p. 63-90. 13 Sem desconsiderar a existência de outros trabalhos publicados, destaco os dois textos já referidos em função de terem sido utilizados em meu estágio docente e abordarem as temáticas desenvolvidas durante essa experiência. 12

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conjunto com a professora titular das turmas em que estagiei. Ao apresentar-lhe o meu planejamento com a temática de História da África ela decidiu aderir a essa proposta e trabalhá-la com as demais turmas de segundo ano da escola. Dessa forma, a experiência de estágio contou com uma constante troca de ideias, possibilitada em grande parte pela ótima profissional com quem tive a oportunidade de estagiar e com quem aprendi muito. Influenciar, de alguma maneira, o trabalho com a história africana e atuar na aplicação da Lei 10.639/03 na escola foi muito gratificante. Essa troca me permitiu pensar o ambiente escolar como uma obra coletiva, que se compõe a partir de experiências partilhadas entre professores (PEREIRA, 2011). A experiência de trabalhar com a História da África fora enriquecedora e será inspiradora para a minha futura prática docente. Por último, destaco um momento marcante em minha experiência que ocorreu em uma das aulas destinadas aos Reinos Africanos. No material didático que elaborei constava uma referência ao livro História da África, já citado anteriormente. Ao mencionar a obra que foi utilizada para a preparação do material, mostrei a capa do livro aos alunos, explicando brevemente do que se tratava e quem era o seu autor. Minha intenção era salientar aos alunos que o conhecimento histórico não está distante deles, nem está pronto para o professor – ou seja, não é um dado –, que utiliza do exercício da pesquisa histórica e bibliográfica para construí-lo. Nesse momento, um aluno pediu para ver o livro. Após entregar o material em suas mãos percebi que ele estava anotando a referência. Então perguntei ao aluno se gostaria que eu o emprestasse a ele. Na semana seguinte ele me devolveu o livro afirmando que havia lido boa parte da obra e gostado da leitura. Na ficha de avaliação de estágio, o mesmo aluno afirmou que o material utilizado pela professora estagiária chamou muito a sua atenção. Esse fato me fez perceber que a minha proposta havia chegado aos alunos e que minha escolha em trabalhar com a temática da História da África estava acertada. Além disso, pude refletir sobre o quanto a troca, na relação entre professor e aluno, pode ser enriquecedora para as duas partes.

Considerações finais A experiência de levar para a sala de aula temas da história e da cultura africana traz consigo alguns desafios. Conforme mencionado ao longo texto, esses desafios se apresentam tanto ao professor – nesse caso, o estagiário – Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.1, vol.1, jul/dez. 2014|34


quanto aos alunos. Isso não quer dizer que outras propostas de conteúdos não tragam os seus desafios, no entanto, trabalhar com a África implica em descobrir um mundo de temas que nem sempre são familiares ao professor, já que mesmo na Universidade essa temática ainda está em processo de inserção no currículo acadêmico. Para o aluno o desafio está em deparar-se com uma história que ainda é pouco familiar ao meio escolar. Além disso, há de se cumprir a tarefa da desconstrução: desconstruir as 153 imagens socialmente construídas que muitos dos alunos carregam, de que a África é um continente marcado, sobretudo, pela pobreza, pela fome, por doenças e por conflitos políticos. Além de desafiadora, essa proposta mostrou-se enriquecedora em minha experiência de estágio docente. Percebi que a temática possibilitou a construção de debates interessantes e motivou a participação dos alunos em sala de aula. Na última aula, quando perguntei aos alunos a sua percepção sobre como foi estudar e discutir a história da África, obtive um retorno positivo da parte deles – especialmente, em uma das turmas. Nas palavras dos alunos, a proposta trouxe um conteúdo diferente e novo para as aulas de história e os fez pensar a África de maneira positiva – visão diferente da que tinham antes. Essas respostas me fizeram ter a certeza de que investir nesse caminho – do ensino de História da África – como meio de atuar na construção de relações étnico-raciais em prol da diversidade e da promoção da igualdade racial pode render experiências muito valiosas para a prática docente em História.

Referências Bibliográficas BRASIL. Lei 10.639/2003, de 09 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura AfroBrasileira", e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 28 jun. 2014. GOMES, N. L. Alguns termos e conceitos presente no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão. In: Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03. Brasília: SECAD/MEC, 2005. PEREIRA, Junia Sales. Diálogos sobre o exercício da docência – recepção das leis 10.639/03 e 11.645/08. Educ. Real., Porto Alegre, v. 36, n.1, p. 147-172, 2011. Disponível em: .

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SANTOS, J. A.; CAMISOLÃO, R. C.; LOPES, V. N. (org.). Tramando falas e olhares, compartilhando saberes: contribuições para uma educação anti-racista no cotidiano escolar. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008.

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Livro História da África MACEDO, José Rivair. História da África. São Paulo, Editora Contexto. 2014. Por Fábio Faturi

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e Rafael do Canto

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Passada mais de uma década de promulgação da lei 10.639/03 que obriga o ensino de história da África e dos africanos nas escolas brasileiras, ainda se encontram barreiras no processo de sua efetiva implantação. Uma destas barreiras é o ainda pequeno número de materiais para embasar os profissionais da educação, sejam eles do nível fundamental ou do médio – ou mesmo universitário – acerca das realidades históricas das sociedades do continente africano. Nesse contexto, o livro História da África do professor e pesquisador José Rivair Macedo, publicado em 2014, entra no círculo de obras obrigatórias para aqueles professores que buscam conhecer as sociedades africanas a partir de um viés que tem por objetivo encontrar uma África sujeito e não uma África objeto. A obra, que está dividida em sete capítulos, não segue uma perspectiva linear, cronológica respeitando, desta forma, a evolução própria daquele continente. Ela busca dar um panorama geral dos grandes grupos sociais existentes no continente, suas diversas relações com a Europa, a Ásia e dentro do próprio continente, além de tratar da questão da escravidão. Isto sem aprisionar a história tão vasta do continente apenas na questão do tráfico transatlântico de escravos, tema abordado com a devida profundidade no capítulo cinco. Seria uma pretensão pensar que em um livro de menos de duzentas páginas seja possível resumir a longa história do continente africano, desde o início do processo de hominização até os movimentos de descolonização que marcaram, atualmente, de forma profunda as nascentes nações africanas. Basta pensar na obra monumental da UNESCO, História Geral da África, produzida nos anos 1970 e 1980, mas que só recebeu tradução para a língua Portuguesa em 2010, a mesma possui oito volumes e quase 20.000 páginas e cuja análise possui um recorte temporal semelhante. A capacidade e a qualidade da síntese são, neste sentido, qualidades destacáveis do livro resenhado neste espaço. História da África serve como um ótimo guia para professores que buscam conhecer as diversas formas de 14 15

Mestrando em História - PPG História/UFRGS. E-mail: fabio.faturi@hotmail.com Mestrando em História - PPG História/UFRGS. E-mail: rafael_docanto@hotmail.com

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sociedades africanas ao longo da história de uma forma bastante atualizada em se tratando de pesquisas históricas. Apesar da obra não possuir notas de rodapé, que permitam ao leitor buscar o caminho reverso do texto, ao final de cada capítulo o autor buscou referenciar os livros mais indicados para pesquisas futuras. Além de elencar uma grande variedade de filmes, sites e diversas outras formas que permitam ao leitor não só reconstituir a pesquisa em que o livro se embasou como também iniciar sua própria pesquisa. Uma característica importante da obra é a presença, no corpo do texto, de pequenos trechos das diversas fontes pesquisadas pelo autor. São relatos de viagens e excertos de textos clássicos sobre o tema que se configuram como de leitura obrigatória para os professores que buscam, em sala de aula, apresentar uma “nova” África a seus alunos. O primeiro capítulo da obra intitulado Pré-história Africana parte de uma sucinta descrição do ambiente natural daquele continente (condições geológicas, climáticas, etc.) que servem para demonstrar a diversidade de ambientes e as dificuldades impostas às populações, que sejam africanas, quer sejam exploradores de outros continentes. Estes elementos são fundamentais para compor as respostas as perguntas: por que o homem surgiu na África? E, por que estes grupos saíram da África? A exposição desenvolvida pelo autor recupera elementos para demonstrar que mais do que o lugar do surgimento do homem, a África foi o espaço onde a humanidade se desenvolveu e assumiu características transmitidas e compartilhadas por todos os seres humanos do planeta. A análise desenvolvida neste capítulo se estende até a adoção, por parte dos grupos que habitavam aquele continente, da agricultura, da pecuária, substituindo a caça e a coleta. Mudanças que propiciaram o desenvolvimento de inovações tecnológicas, econômicas e sociais e abriram o caminho para subsequentes transformações, como a invenção da cerâmica e da metalurgia. O desenvolvimento destes domínios técnicos que explica o florescimento das primeiras civilizações africanas que serão analisadas nos capítulos posteriores. No capítulo da obra Os povos da Núbia e do Índico, o autor apresenta as maneiras pelas quais os povos do nordeste e do litoral oriental da África organizaram-se em torno dos grandes rios e oceanos. São sociedades, portanto, em constante interação com povos de diversos espaços geoculturais, contatos e trocas constantes entre o cristianismo e o islamismo. Inicialmente são abordadas as civilizações egípcias e a meroítica, esta última que é, aliás, “a mais antiga civilização negra da África” (p. 25), onde já se fazem presente diversos traços 183 originais das antigas sociedades africanas como, por exemplo, o papel diferencial da mulher na sociedade. Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.1, vol.1, jul/dez. 2014|39


Ainda neste espaço, analisa-se a emergência do estado de Axum e da Etiópia que adotaram o cristianismo e a difusão do islamismo na África, sobretudo na região do Sudão Oriental e nas cidades Suaíli. As últimas linhas do capítulo ocupam-se do Grande Zimbábue, complexo arquitetônico localizado onde atualmente situam-se Moçambique e Zimbábue, que se destaca “por sua dimensão, ostentação e complexidade” (p. 37) e concluindo, a presença europeia na região. No terceiro capítulo, O eixo transaariano, o autor ocupa-se de analisar as sociedades africanas que se organizaram para se adaptar ao deserto e à savana. Acompanhando, portanto, a evolução histórica destas populações que necessitaram tirar o máximo dos recursos disponíveis nestes ambientes que lhe ofereciam poucas condições para sobrevivência. De forma geral “esses grupos ocuparam deste a faixa litorânea do mar Mediterrâneo até os limites da floresta tropical” (p. 45-46). A análise parte da islamização do Magreb, percorrendo o desenvolvimento das sociedades no eixo das rotas do Saara, destacando a atuação dos tuaregues. O estado de Gana, “o mais antigo estado negro organizado com ampla área de dominação política e econômica” (p. 52), do antigo Mali, o Império Songai e os estados Hauçá são analisados, sintetizando a diversidade e a riqueza deste cenário histórico da África Subsaariana. No capítulo O mundo atlântico o autor recupera a experiência histórica deste espaço entre os séculos XVI e XIX, atentando para as mudanças estruturais e as transformações na organização social nas populações localizadas nas regiões banhadas pelo oceano Atlântico. Especialmente, a partir do contato destes povos africanos com mercadores e companhias comerciais da Europa. Contatos que são fundamentais, como demonstra o autor neste espaço, para compreender o processo de dominação europeia do continente. Destaca-se a exposição do autor a respeito da Confederação Achanti desenvolvida por ele neste capítulo. Um estado que se desenvolveu, onde atualmente localizam-se as repúblicas de Ghana e Togo, as quais se tornariam essencialmente militaristas. Assumiriam a organização administrativa em torno dos amans (estados “confederados”), cuja economia baseava-se na extração de ouro e no lucro advindo do tráfico de escravo que “eram negociados nos fortes do litoral e com os mercadores do Sudão oriental” (p. 79). Dentre os assuntos mais pertinentes em relação a história do continente africano encontra-se a questão da escravidão, sendo este o eixo para o desenvolvimento do quinto capítulo da obra, O tráfico de escravos. Citada como a maior causa da pobreza atual do continente por diversos autores, o tráfico internacional de escravos é Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.1, vol.1, jul/dez. 2014|40


tratado na obra em questão a partir de um ponto de vista que traça uma linha divisória bem determinada entre a escravidão endógena no continente africano e o tráfico internacional de escravos. A partir de análises de autores importantes acerca da escravidão africana como John Thornton ou Paul Lovejoy o autor apresenta as formas de como dava a redução ao cativeiro nas sociedades ancestrais africanas. Além disso, apresenta a forma como os cativos eram alocados nas sociedades africanas, onde apesar de sua condição nunca perdiam a identidade humana, o que irá ocorrer com o tráfico internacional. Essa diferenciação torna-se imprescindível no sentido de entender que não é correto afirmar que os africanos escravizavam africanos para vendê-los como escravos, pois não existia uma identidade coletiva continental. As identidades não ultrapassavam os limites da aldeia ou mesmo da linhagem. A partir dessa diferenciação o autor mergulha na realidade do tráfico internacional de escravos e seus diversos pontos de análise. As rotas de longo curso, desde as caravanas de mercadores árabe-muçulmanos e afromuçulmanos que cruzavam o deserto levando cativos, até as embarcações que cruzavam o Atlântico trazendo ao novo mundo os quase 10 milhões de escravizados. É nesse contexto onde os escravos tornam-se “peças” e deixam de ser humanos. “Tornando-se uma categoria social privada de todos os seus direitos e constituindose como a base do sistema de exploração econômica” (p.105). O autor analisa também os agentes que participam desse tráfico. Desde os primeiros momentos onde os “lançados” negociavam com as elites ou os principais dos reinos africanos no interior do continente, até o momento onde são constituídas as grandes redes de comércio, conectando diversos atores entre Europa, América e África. Na sequência é possível encontrar as moedas de troca, os valores correspondentes aos diferentes tipos de escravizados e como esse, que era um comércio subsidiário dentro das sociedades africanas, passa a tornar-se o principal meio de entrada de armas de fogo, bebidas alcoólicas desestruturando as pequenas sociedades tribais. Ao final desse capítulo o autor apresenta ao leitor uma ótima reflexão acerca da diáspora africana, suas diversas faces no novo mundo, seus graves problemas nas sociedades americanas e o rescaldo dessa, que foi a maior emigração da história da humanidade. O autor reflete também sobre a questão da abolição do tráfico de escravos e sua ligação direta com a Revolução industrial. No sexto capítulo A condição colonial é abordado o período entre os anos 1870 e 1960 onde praticamente todo o continente esteve submetido às nações europeias. Contudo as análises feitas pelo autor procuram salientar os pontos de desenvolvimento e adequação a que as Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.1, vol.1, jul/dez. 2014|41


sociedades africanas conseguiram moldar-se para sobreviver ao jugo europeu. Sem, é claro, demonstrar a situação político, econômico e social a que esses povos foram submetidos. Entretanto, essa forma de análise permite que se permita às sociedades africanas tornam-se agentes de seu destino e não apenas meros expectadores dentro do contexto a que foram submetidas. Dentre os pontos importantes analisados nesse capítulo está o da afirmação do Islã dentro das diversas sociedades africanas. Até hoje existe a discussão acerca de que, se foi a África que se Islamizou ou se foi o Islã que se africanizou. O autor apresenta as diversas faces do Islã e sua força dentro do continente. Assunto pouco discutido nas obras que se tem acesso no Brasil. Normalmente a África é vista como um continente de religiões exóticas ou mesmo ligado às religiões afrodescendentes, o que é um grande equívoco, tal é a envergadura do Islamismo nas diversas partes do continente africano. Além desse assunto o autor se propõe a refletir sobre um dos temas mais importantes, em se tratando de estudos africanos na atualidade, o diálogo entre a tradição e a modernidade. Autores como Hampaté Bá, Walter Rodney são utilizados como ferramenta para que se possa repensar a forma como devem ser tratados os estudos africanos. A condição do imperialismo e do colonialismo são temas fundamentais nesse capítulo que traçam um panorama histórico com análises bastante profundas, dada a dimensão da obra. Nessa perspectiva o autor apresenta a situação dos viajantes europeus como Mungo Park ou David Livingstone que adentraram o continente e foram olhos do império, travestidos de naturalistas ou expedicionários. Rivair apresenta os mecanismos de exploração utilizados pelos europeus em suas diferentes formas ao longo desse extenso período. A construção do racismo científico é outro tema explicado pelo autor e que muitas vezes passa despercebido em outras obras dessa magnitude. Por fim, a questão sui generis da África do Sul e seu Apartheid que adentrou o século XX quase o século XXI e mostrou ao mundo já globalizado a face mais violenta da discriminação. No capítulo que conclui a obra, intitulado Descolonização e o tempo presente, o autor busca apresentar um pouco da situação dos diversos países do continente e sua situação atual traçando uma linha histórica desde o final da segunda guerra mundial até a primavera árabe de 2011. Trabalho extremamente difícil em apenas um capítulo, mas que inicia com as bases do anticolonialismo. Os movimentos messiânicos que buscaram na ancestralidade africana raízes para suas lutas de libertação, a participação dos africanos na guerra junto aos brancos. Nesse contexto o autor apresenta ao leitor nomes importantes na constituição do movimento conhecido como Negritude: Franz Fanon, Aimé Cesaire, Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.1, vol.1, jul/dez. 2014|42


Leopold Senghor. A partir daí 186 iniciam-se as análises acerca da descolonização no contexto da Guerra Fria. Nesse momento cada uma das grandes potências busca trazer, da forma que fosse possível, as jovens nações africanas para seu campo de influência. De acordo com o autor, esses estados fragilizados e com pouca estrutura foram cooptados de diversas maneiras e naqueles em que não foi aceito o julgo foram apoiadas ditaduras, que muitas delas viraram o século XXI. Finalizando o trabalho, o autor ainda propõe uma pequena análise dos estados póscoloniais ao final do século XX, refletindo acerca das heranças coloniais e da cultura africana. Nesse ponto é possível identificar a importância de utilizar das análises acerca do continente que façam da África sujeito de história e não apenas expectador. Pois aqui é possível ver que apesar de hoje ser o continente mais pobre do planeta suas diversas faces estão encravadas por todos os outros lugares do mundo. Milhares de pequenas Áfricas, como diz o autor, sobrevivem culturalmente ao redor do mundo e através de uma leitura histórica bem aprimorada é possível enxergar uma história do continente africano que fuja dos estereótipos comuns. E que, ao mesmo tempo consegue-se analisar os profundos dilemas a que o continente tem de se deparar no século XXI.

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Sobre história e ensino: Entrevista com Marieta de Moraes Ferreira 16

Por Aryana Lima Costa e Jocelito Zalla

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Conhecida pelos seus trabalhos sobre elites políticas, historiografia e história intelectual, além do uso da metodologia da História Oral, Marieta de Moraes Ferreira tem pesquisado, nos últimos anos, a história do ensino superior de história no país, lançando, em 2013, seu livro A história como ofício: a constituição de um campo disciplinar. Também tem se dedicado ao ensino de história em nível de pós-graduação, coordenando o primeiro mestrado profissional nacional na área, o ProfHISTÓRIA. Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi pesquisadora e diretora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC), presidente da Associação Brasileira de História Oral (ABHO) e da International Oral History Association (IOHA), editora da revista Estudos Históricos e da Revista Brasileira de História. Atualmente, é coordenadora do programa de livros didáticos da FGV, membro do conselho editorial de diversas revistas nacionais e internacionais e Diretora Executiva da Editora FGV. Marieta Ferreira nos recebeu, no dia 15 de setembro de 2014, para uma conversa sobre ensino de história, em que nos fala de suas experiências docentes, novas áreas de atuação do profissional em história, possibilidades de encontro entre a pesquisa histórica e o ensino básico e, claro, sobre a implantação e os desafios do ProfHISTÓRIA.

Como foi a sua experiência enquanto professora de História, tanto em educação básica quanto no ensino superior? Marieta:

Na minha geração, quando a gente optava por estudar História, já era uma opção direcionada para ser professor. Porque era muito difícil pensar nessa ideia de pesquisa, de centros de pesquisa. Mesmo a pós-graduação ainda estava muito embrionária. Eu entrei na universidade em 1969, no auge da Ditadura Militar. Comecei a fazer a graduação na UFF, um curso em que a repressão tinha sido 16 Doutoranda em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora do Departamento de História da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Membro do Conselho Consultivo da Revista do LHISTE. 17 Doutorando em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Membro do Conselho Editorial da Revista do LHISTE.

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muito menor. Eu morava no Rio, mas achava que estudar no IFCS, herdeiro da antiga Faculdade Nacional de Filosofia18, era uma coisa meio descabida, porque todo mundo falava muito da repressão, do quadro muito dramático que vigorava lá. Então, fui para a UFF e a minha ideia era ser professora, como de fato eu acabei sendo. Assim que eu me formei, em 1974, fiz concurso para o Estado da Guanarabara, fui bem classificada e comecei a dar aula numa escola em Copacabana e depois numa escola no Leme. Dava aula para quinta, sexta, sétima, oitava séries. Mas tinha a dimensão de que eu queria continuar estudando. Ao mesmo tempo em que fiz concurso para o estado, também fiz concurso para o mestrado. O mestrado estava começando na UFF. Acho que a minha turma foi a terceira ou a segunda turma. Eu já tinha feito a graduação lá, fiz a prova e comecei a fazer o mestrado. Dava aula no colégio e também comecei a dar aula na Faculdade de Filosofia em Nova Friburgo, que era um pouco diferente, era uma faculdade com um nível de organização ainda muito simples. Quando eu cheguei, a professora que dava aula de História, dava aula de tudo: História Antiga, Moderna, Brasil. Eu cheguei para dar aula de História do Brasil e aí comecei também a sugerir outros colegas e a especializar as áreas, quem ia dar aula de Antiga, Idade Média, Brasil. Foi uma experiência para mim muito importante do ponto de vista docente. De dar aula na educação básica e dar aula numa universidade, mas que era uma universidade muito pequena, privada e ainda muito pouco estruturada, as cadeiras, as disciplinas; com um quadro muito pequeno de professores. Eu sempre gostei de dar aula, era uma atividade que me agradava muito. Eu fiquei uns três ou quatro anos trabalhando dessa maneira. Até que, um dia, uma colega minha de graduação na UFF me procurou e disse: “Tem um concurso para pesquisador na Casa de Rui Barbosa. Você não quer fazer? Acho que seria uma coisa legal, a gente tem um grupo legal, um grupo pequeno”. Fiz a prova, passei, e aí eu fiquei com quatro empregos. Tinha o estado, a Casa de Rui Barbosa, tinha a faculdade em Friburgo; quer dizer, três e mais o mestrado. Acabei optando por deixar o estado. Então, a minha experiência docente, nesse momento, na educação básica, terminou, porque a escola em que eu dava aula tinha todas as dificuldades que a gente sabe que existem, que já existiam naquela época, mesmo sendo uma escola da Zona Sul. Essa escola em que eu dava aula era em Copacabana, depois no Leme, mas tinha muitas dificuldades, a escola não tinha uma boa estrutura. E também, nesse meio tempo, teve a fusão do estado da 18 Faculdade Nacional de Filosofia, ou FNFi da Universidade do Brasil. Em 1965 a Universidade do Brasil foi transformada em Universidade Federal do Rio de Janeiro, pelo que a conhecemos até hoje. O curso de História pertence atualmente ao Instituto de História.

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Guanabara com o antigo estado do Rio, e isso gerou uma certa confusão nas carreiras, e a gente deixou de ser professor do estado da Guanabara, que tinha um salário melhor, para ser professor do novo estado do Rio. E aí eu deixei a carreira de professor da educação básica, mas continuei dando aula em Friburgo, que era uma coisa que eu adorava, porque eu trabalhava muito com aqueles professores do interior, porque Friburgo funcionava como uma faculdade que tinha gente assim, de Miracema, de Cantagalo. Vinha gente de vários municípios que ficavam no entorno de Friburgo. Entorno assim, duas horas, duas horas e meia, que as pessoas viajavam para ter aula. Foi uma experiência muito interessante para mim. Eu fiquei dando aula lá uns seis anos. Eu terminei o mestrado, ainda dava aula lá e trabalhava na Casa de Rui Barbosa. Nesse meio período, engravidei, tive a primeira filha, e ficou muito difícil de conciliar, ficar indo para Friburgo toda semana, aí eu deixei também a faculdade em Friburgo e fiquei só como pesquisadora na Casa de Rui Barbosa. Mas eu era sempre muito inquieta, já tinha terminado o mestrado, aí surgiu uma oportunidade de vir trabalhar no CPDOC. Disseram que estavam procurando um pesquisador; me candidatei, fiz uma entrevista, e passei a trabalhar no CPDOC. Nesse momento, eu deixei para trás a minha experiência docente, esse meu interesse, esse meu gosto por dar aula de História. Fiquei trabalhando vários anos só com pesquisa. Isso foi, acho, que até 1986. Mas eu sentia muita falta do ensino, porque acho que pesquisa é uma atividade muito boa, interessante, mas você fica muito isolada, você e sua pesquisa, mesmo que você integre um grupo, que você debata com o seu colega, a interação que você tem, eu acho muito restrita. Aí eu comecei a fazer o doutorado na UFF. A Bárbara Levy19, professora da pós da UFF e do curso de História do IFCS, sofreu um acidente e me chamou para dar aula no lugar dela. Era algo provisório, um conjunto de palestras no curso da pósgraduação. Eu entrei no IFCS para dar aula na pósgraduação. Eu fiquei muito nervosa com aquilo, mas ela disse: “Não, você tem todas as condições, pode ir sim”. De novo eu me reencontrei, eu pensei: “Eu gosto de dar aula! Não quero ficar mais só como pesquisadora”. No ano seguinte, teve um movimento também de renovação muito grande no IFCS, toda aquela crise da ditadura, tinha evidentemente a anistia, os professores já tinham voltado, maso IFCS ainda era um lugar que sofria muito as consequências daquele período da repressão, um período muito duro. Eles estavam também buscando novos 19 Maria Bárbara Levy, professora do Departamento de Economia da UFRJ.Produziu trabalhos especialmente na área de história econômica. Também deu aulas FGV, IBMEC, na graduação e pós em História da UFF e na pós em História da UFRJ. Para mais, conferir: http://www.ie.ufrj.br/images/pesquisa/publicacoes/rec/REC%206/REC_6.2_07_Maria_barbara_levy_historiador a_de_empresas_no_brasil.pdf

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professores, primeiramente para algumas vagas de professor-visitante. Eu lembro que naquela época entramos, mais ou menos juntos, eu, Manoel Salgado20 e Manolo Florentino21, praticamente no mesmo ano, como visitantes. E no ano seguinte abriu o concurso. Aí realmente eu me inscrevi para fazer o concurso e fiquei efetiva na universidade. Comecei a dar aula lá em 1986 e fiz o concurso em 1988. Foi muito bom, porque nesse período eu explorava diferentes atividades, dava aula de Brasil Império, Pensamento Social, História Econômica, Primeira República. A minha área de preferência, aí já estava fazendo doutorado, era a Primeira República, eu trabalhava com elites políticas no estado do Rio. Quando fiz o concurso, então, fixei meu interesse pelo ensino. Mas, nesse período em que entrei na universidade, a gente dava aula, o ensino era evidentemente a nossa atividade principal, mas eu acho que a consolidação dos programas de pós-graduação fez com que as licenciaturas ficassem muito secundarizadas, a gente na verdade dava aula, mas a gente estava sempre buscando desenvolver nos alunos a capacidade de pesquisa, buscava oferecer bolsas de iniciação científica, sempre preocupado não só com as nossas pesquisas, mas com as monografias dos nossos alunos. Quer dizer, era uma preocupação muito mais direcionada, digamos assim, para o bacharelado do que propriamente para a licenciatura. A licenciatura ficava muito num segundo plano. Eu acho que também embarquei um pouco nessa canoa, nessa tendência, embora eu sempre achasse que as disciplinas obrigatórias tinham que dar uma visão de conjunto para os alunos. Eu tinha muitos colegas, professores, que queriam às vezes dar um curso tão monográfico que restringia um pouco o aprendizado daquele aluno nosso que depois iria ser professor. Eu sempre achei que a gente deveria ter uma preocupação em fazer cursos mais de síntese, mais panorâmicos, de mais discussão historiográfica, que pudessem passar para os alunos a ideia de que a História construía diferentes interpretações. Depois que eu terminei meu doutorado, comecei a dar aula na pós-graduação também. Eu tive grande número de orientandos. Acho que já orientei cerca de sessenta teses e dissertações, fora as monografias. Nesse período eu exercia minha atividade docente e gostava muito disso. Mas eu não tinha propriamente uma preocupação com o ensino de história, com a licenciatura. Os nossos olhares ficavam muito mais direcionados para a pesquisa, para o bacharelado. Já passado um bom tempo, eu comecei a me ligar muito nessa 20 Manoel Luiz Salgado Guimarães, foi presidente da ANPUH e professor da UFRJ e UERJ. Produziu trabalhos principalmente na área de teoria e epistemologia da História e historiografia brasileira. Faleceu em 2010. 21 Manolo Garcia Florentino é professor da UFRJ e atual presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa. Produz principalmente na área de História da América e mais especificamente com a escravidão nas Américas, África e Brasil.

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discussão do ensino. Uma experiência que eu tive aqui na Fundação Getúlio Vargas foi produzir um livro didático, coordenar a produção de um livro didático, uma coisa difícil. Produzir um material didático é uma coisa de grande complexidade, que nos demandava um conhecimento realmente aprofundado e de maturidade para fazer um bom trabalho. Outro momento muito importante para a minha percepção do ensino de história, acho que aconteceu em 2008. Nessa época eu era vice-coordenadora do Programa de PósGraduação em História Social do antigo IFCS, agora Instituto de História, da UFRJ. Tinha um fórum de pós-graduação em Brasília. Na época, o coordenador do fórum era o Manoel Salgado, que era professor da UFRJ e uma pessoa com quem eu tinha grande afinidade de pensamento, de ponto de vista, e amizade também. Nesse fórum levantei a questão da importância de que os programas de pós-graduação valorizassem as atividades docentes na educação básica; que não dava mais para as agências só financiarem pesquisas justamente acadêmicas e não darem atenção, não valorizassem trabalhos que pudessem ser feitos pelos historiadores, como os materiais didáticos, como livros didáticos, como a própria atividade docente. E isso gerou uma polêmica, porque uma parte do público, composta por outros coordenadores, disse que isso não era uma questão da pós-graduação. A pós-graduação tinha que se envolver com pesquisa, a gente não tinha que se preocupar com a educação básica, esse era outro segmento. No nosso próprio programa de História Social, sempre que surgia essa discussão sobre a importância do ensino de História, isso era visto como uma coisa menor. A atividade docente sempre ficava secundarizada. Isso era uma coisa que já existia antes, mas que nesse momento se materializou com essas discussões. Quando eu levantei a questão no fórum, algumas pessoas apoiaram, mas a grande maioria achou que a pósgraduação não devia se ocupar disso. Mas aí o Manoel Salgado sugeriu que criássemos um grupo de trabalho na ANPUH e me convidou para a coordenação. Eu não me lembro mais de todas as pessoas que participavam, mas lembro da Keila Grinberg 22, da Regina Bustamente23 , da Surama Conde24 , e tinha também um professor lá do Rio Grande do Sul, José Rivair Macedo 25. A gente fez algumas reuniões e redigiu um documento, que o Manoel passou para a CAPES. É um documento pequeno, uma página, em que a gente sugeria que era uma tarefa da pós-graduação se ocupar da educação básica, com a formação de professores, que deveria haver uma melhor 22

Professora do Departamento de História da UNIRIO. Professora do Instituto de História da UFRJ 24 Professora do Departamento de História da UFRRJ. 25 Professor do Departamento de História da UFRGS. 23

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avaliação de trabalhos como materiais e livros didáticos, que também deveria se criar cursos que pudessem dar uma formação mais atualizada para os professores de educação básica, enfim, todos esses itens. Entregamos aquilo para a CAPES, o que não gerou maiores consequências inicialmente. Depois eles colocaram um item na avaliação chamado “inserção social”, que era exatamente uma forma de pontuação para aqueles programas que tivessem algum tipo de vinculação ou de contribuição para a educação básica. Mas era ainda uma coisa genérica.

Pensando nesse exemplo da CAPES: a gente tem uma configuração que exige do pesquisador certo distanciamento em relação ao objeto de estudo, mas, cada vez mais, as demandas sociais tem convocado o historiador a se posicionar, inclusive politicamente, frente a problemas atuais e a construir ações e produtos para além da academia. Como o ensino da história se articula com essas pressões da sociedade hoje? Marieta:

Sexta-feira passada, eu fui num seminário na UFF voltado para discutir a chamada História Pública. Agora criaram, trouxeram para o Brasil, essa denominação, que é conhecida nos Estados Unidos e que envolve justamente, nem tanto a questão do ensino, mas o uso do conhecimento histórico em museus, no turismo, em programas de televisão, enfim, várias atividades que a pessoa formada em História pode exercer além do magistério propriamente dito. Eu acho que essa conexão com a demanda social já foi vista com muita desconfiança. Fazer uma história de empresa, ou um projeto sob encomenda, a história de um município, montar uma exposição para prefeitura, montar algo que tivesse a ver com um centro de memória de uma instituição, isso tudo era sempre visto com muita desconfiança e gerava muitas críticas. Eu me lembro, inclusive, que na época em que eu era diretora do CPDOC, já fazia muitos desses trabalhos, e isso era muito criticado. Eu me lembro que a gente tinha um projeto com a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro - ALERJ -, fizemos vários livros de História Oral, a criação de uma exposição sobre a trajetória do estado do Rio, e isso gerava uma desconfiança, como se você estivesse fazendo um trabalho meio “abastardado”, vamos dizer assim, como se você estivesse vendendo a alma ao diabo. Hoje, acho que essa coisa é meio superada. Agora foi criada a Rede Brasileira de História Pública. Há uma série de pesquisadores envolvidos nisso e, cada vez mais, há uma legitimidade em se realizar diferentes trabalhos que usem o conhecimento histórico, em diferentes áreas. Não vejo nenhum problema nisso. Há muito tempo que me envolvo com isso e acho importante, se a gente pode ter um conhecimento e transferir, pode Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.1, vol.1, jul/dez. 2014|50


levar a um público mais amplo. O que acho 198 apenas, em relação às demandas sociais, é que a gente não pode ser ingênuo. Porque, muitas vezes, as empresas, os partidos, as associações, buscam o trabalho dos historiadores ou dos professores de história, dos profissionais de história, um pouco para legitimar os seus pontos de vista. Então tem lá uma empresa que quer fazer uma comemoração, e as comemorações são momentos especiais para esse tipo de coisa, ou um partido, ou a história de um determinado grupo, e aí você fica instado a produzir alguma coisa para atender àquela demanda. Muitas vezes, você tem restrições quanto ao que pode escrever, do que pode falar, e aí, acho que cabe, ao pesquisador, profissional de história, fazer essa avaliação, e não embarcar em coisas que você acha que não garantem aquilo que a gente chamaria de procedimentos básicos do nosso ofício de pesquisador e professor de história, em projetos com uma certa sedução pela memória. De chegar lá e escrever uma coisa ou dar uma aula ou fazer algum tipo de trabalho e aquelas pessoas estarem preocupadas em exaltar um determinado personagem ou destacar uma determinada ideia. Eu me lembro de uma experiência muito interessante. Numa época me chamaram inúmeras vezes para dar aula de história para equipes da Globo. Eu fiz várias aulas, mas uma me chamou a atenção, que foi sobre JK. Dei uma aula que eu daria normalmente, buscando ser didática, com muita imagem e texto, sobretudo, mas em que eu inclusive fazia uma discussão importante sobre a memória, sobre a preocupação de destacar uma certa faceta do Juscelino, esquecer outras. Efetivamente, um dos escritores lá da minissérie me disse “não, professora, mas isso aí é o seu papel, que é de professor de história, nós somos ficcionistas”. Eu fui lá e procurei transmitir uma visão de um profissional de história, seguindo aquelas diretrizes que a gente considera que dão sustentação ao nosso campo, que é a confrontação de fontes, que é a definição do lugar daquela fonte, daquele personagem, de forma que você possa confrontar aquelas informações para promover uma visão crítica daquele processo, daquele personagem, ou, pelo menos, para que aquele evento seja visto por diferentes ângulos e facetas. Mas às vezes é muito difícil. E as pessoas embarcam nisso. Às vezes não é nem porque as pessoas querem, mas elas acabam absorvidas. É um trabalho difícil de ser realizado. Mas eu não acho que a gente deva se afastar disso. Acho que devemos enfrentar o desafio e tentar fazer o melhor. Não dá para se encerrar numa torre de marfim, ficar só cuidando de sua pesquisa individual.

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Já ouvimos você falar sobre esses protocolos e regras do campo disciplinar da história como saberes sobre buscar informações, processar informações. Aí tem um 199 caminho para o ensino de História? Qual a relação entre o ensino da história e as regras do nosso campo? Marieta: Acho que o ensino de história na educação básica

tem discussões enormes, sobre o chamado conhecimento escolar da história, ensino da história escolar e o que é possível fazer, e a história como um instrumento para desenvolver valores morais e o compromisso com valores democráticos, enfim. Eu penso que sim, mas eu não saberia te responder isso, até porque eu não tenho essa experiência com crianças muito pequenas. Mas eu acho que com adolescentes, talvez seja possível transmitir essas ideias. Você que é professor de ensino básico pode me contradizer, porque falar é fácil, mas sei que fazer é difícil, às vezes, com a meninada lá, de treze, quatorze anos, agitando horrores. Não é uma tarefa fácil. De qualquer forma, eu vejo que a História Oral, por exemplo, pode ser muito útil na educação básica e, no entanto, ela é muito pouco usada. Ela é muito usada pelos pesquisadores acadêmicos, a pessoa que está estudando a ditadura militar, ou o sindicato, ou as elites políticas, enfim, as pessoas usam muito o trabalho com as entrevistas, usam os materiais, discutem o problema da memória. Agora, acho que na educação básica você pode trabalhar mostrando como é fazer uma entrevista com uma pessoa, preparar o estudante a fazer uma entrevista, pode ser com alguém da família dele, um vizinho, alguém das proximidades, e mostrar que existem maneiras diferentes de ver o mesmo episódio; discutir a ideia, não de verdade, mas de um conhecimento fidedigno, de um conhecimento mais confiável, que se sustenta mais, consegue reunir um conjunto de informações, fazer uma contraprova, vamos dizer assim. Tinha-se, há um tempo, uma grande preocupação de passar muitas informações para os alunos, um volume de informações muito grande, você tinha que saber tudo. Mas hoje, tudo o que você fala, imediatamente pode ser checado pelo aluno no Google. A informação é muito fácil de ser conseguida, e aí que é muito importante a gente fazer uma distinção entre informação e conhecimento. Informação tem de montão. A gente fala qualquer coisa, Revolução Francesa, por exemplo, o estudante vai entrar lá no Google e vê o verbete da Wikipedia, a informação não sei de onde, o blog não sei de quê, ou você fala sobre Napoleão Bonaparte, Renascimento, imediatamente ele é capaz de reunir informações da internet, mas ter acesso a essa informação não vai agregar maior valor. Isso é só um ponto de partida. Como é que ele vai lidar com essa informação é que eu Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.1, vol.1, jul/dez. 2014|52


acho que pode ser uma preocupação do ensino da história. Eu estava falando da História Oral, mas pode ser também a própria pesquisa na internet. Hoje tem tantos blogs de história, uma quantidade de informação, e tem coisas boas e 200 coisas muito ruins, muito erradas, muito mal escritas, muito confusas. Então, é importante sempre procurar mostrar que existem pontos de vista e que o conhecimento histórico é um conhecimento construído. Inclusive entre os alunos da universidade. Você pega um aluno do primeiro período, ele acha que a história é um conhecimento dado, existe e é assim. Ele não percebe que aquilo ali foi objeto de uma seleção, objeto de alguma escolha, alguns fatos foram lembrados, outros não foram, e que por isso você tem, às vezes, interpretações diferentes. É difícil, mas acho que a gente deve tentar. Talvez o professor tenha que lidar com um programa grande, e tenha que fazer prova do ENEM, tenha que atender aos sistemas de ensino que cobram um cronograma apertado, mas talvez em algumas unidades do curso seja possível fazer algum trabalho nessa direção. Eu vejo um pouco assim, mas não me arvoro em achar que eu tenho a chave, que eu tenha a resposta para isso, porque não é uma atividade fácil, ser professor, e ser professor da educação básica, é uma tarefa extremamente desafiadora. E as pessoas, diferentemente do que se pensa, deveriam ter muita competência para poder dar conta desse desafio, de transmitir um tipo de conhecimento, um tipo de informação. E muitas vezes as pessoas acham que ensinar é uma coisa banal. Outro dia fui a uma reunião, com vários conselheiros da secretaria de educação, e lá as pessoas diziam assim: “não, qualquer pessoa pode dar aula de história, porque basta contar uma história, quem nunca quis contar uma história?” A ideia de ensino de história é, para o público mais amplo, muitas vezes, de um simplismo muito grande. As pessoas não se dão conta do quê envolve isso. Comecei a discutir, disse: “olha, depende do que você entende por ensino de história. Se você acha que ensino de história é transmitir uma historinha, concordo com você, qualquer pessoa pode fazer isso”. E é engraçado, não é à toa que até hoje a gente não conseguiu ter a regulamentação da profissão do historiador. Você consegue regulamentar as profissões mais diversas, cuidador de idosos, sommelier, turismólogo, mototaxista, todo mundo consegue aprovar uma lei para regulamentar uma profissão. O campo da história não consegue fazer, vide o que se passou agora, a direção da ANPUH batalhando para se fazer a regulamentação por dois anos, sem conseguir, porque no fundo, a história é um bem e um mal. É um campo de conhecimento que atrai a atenção de muita gente. Basta ver que hoje tem uma quantidade de filmes, de vídeos, de literatura, ficção, novela, enfim, tem uma diversidade de produtos que falam do passado. Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.1, vol.1, jul/dez. 2014|53


Também não acho que a gente deve ser dono do passado. O passado pode ser acessado por muitos campos do conhecimento. Mas o conhecimento do profissional de história não é reconhecido e todas as pessoas acham que sabem de história, que tem a última palavra.

Um dos pareceres contrários ao projeto de lei, se não me engano, dizia que não haveria prejuízo ao ofício do historiador se outras pessoas também fizessem história. Esse é um dos motivos dele ser contrário. Marieta:

A gente não pode achar que só quem pode escrever sobre história são as pessoas que tem a formação específica. Agora, ter o título e a possibilidade de lecionar, de trabalhar num arquivo, de trabalhar num museu, de prestar concurso, isso acho sim que deve ser para as pessoas que têm formação específica. Se tiver uma pessoa que quer escrever um livro de história, tudo bem. Você tem o ficcionista que quer fazer uma ficção tomando personagens históricos, bacana, legal, eu até gosto muito. Romance histórico é um barato.

Então, para terminar, a gente queria fazer uma pergunta sobre o ProfHistória, um tema quente. A gente queria saber se já houve algum tipo de avaliação. Sabemos que está no início, mas gostaríamos de saber se já foi possível fazer algum tipo de balanço, os desafios que precisam ser equacionados nos próximos editais. O que esse início já indicou? Marieta:

Antes de falar do futuro, vou falar do passado. Dentro daquela linha de raciocínio que eu estava desenvolvendo, da dificuldade da comunidade acadêmica de atribuir importância à educação básica, de perceber que o ensino de história é um campo importante, que tem que receber contribuições das pessoas que estão na universidade. Não que eles tenham a resposta, mas eles podem dar algum tipo de contribuição, mas essa ideia encontra resistências. A própria estruturação do mestrado profissional encontrou resistência, mesmo dentro dos programas dessas universidades que aderiram ao ProfHistória. Em muitas universidades disseram: “eu não quero entrar no ProfHistória porque vai atrapalhar minha carreira de historiador. Eu vou desviar minha atenção”. Eu não acho que todo mundo deva participar, mas muita gente achava que um programa de pós-graduação não deveria, digamos, estimular, apoiar que parte do seu corpo docente fosse se engajar no ProfHistória. Sua concretização é uma coisa muito importante nessa direção, de legitimar diante da pós-graduação, diante da comunidade acadêmica, a Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.1, vol.1, jul/dez. 2014|54


questão do ensino. E acho que a CAPES teve um papel muito 202 importante na criação desse programa de mestrados profissionais, mas também de dar o recurso pra isso, dar as bolsas para os professores, de estimular a criação de novos programas. Aquele modesto documento que a gente fez lá em 2008, talvez não tenha surtido esse efeito todo, mas, de alguma maneira, aqueles pontos que a gente levantou estão sendo agora atendidos, estão sendo objetos dessas novas políticas e desse estímulo para que efetivamente se possa dar uma relevância muito grande ao ensino de história. É uma formação voltada a professores da educação básica, com uma preocupação que não é de atualização, porque cursos de atualização de conteúdos, isso a gente já teve milhares, há muito tempo já se faz. Eu já participei de muitos, aqui no Rio e em outros estados, em que a gente era chamado para participar da atualização do ensino de história contemporânea do Brasil ou da história moderna, ou antiguidade. Isso nunca deixou de existir, e ainda acho importante. Mas o interessante desse mestrado profissional é que ele está preocupado em discutir com os professores e ouvir também as questões que os professores têm de como se constrói o conhecimento histórico; essa questão que você colocou, como o protocolo do conhecimento histórico pode ser levado, pode ser trabalhado na educação básica. Eu não tenho a resposta. Eu dei aqui algumas ideias. Mas acho que no fundo, essa é a grande questão do mestrado profissional do ensino de história e que a aproximação desse tema, aproximação no sentido de equacionar, buscar respostas pra isso, acho que é um trabalho que vai ter resultado. Você perguntou qual a avaliação. O que a gente espera é abrir o diálogo entre a experiência dos professores que estão na educação básica, colocando a mão na massa, trabalhando com as crianças, com os jovens, e a gente que está propondo outro tipo de reflexão, sobre a construção do conhecimento histórico, sobre o uso das fontes, sobre a ideia de como você lida com a demanda social, porque acho que esse ponto afeta o conhecimento na universidade, ele afeta o conhecimento desse bacharel que vai trabalhar numa agência de turismo, num museu, mas acho que afeta muito o professor na sala de aula, quando ele vai discutir os 50 anos da ditadura, quando ele vai discutir os 60 anos da morte do Vargas, enfim, uma grande quantidade de assuntos que aparecem todos os dias e que acho que o professor tem que tratar. Nesse sentido, a chamada história do tempo presente se torna muito importante na educação básica, se torna um tema que o professor lida o tempo todo. Como você trata a questão do tempo? Como trata a questão do conhecimento histórico? Por que, muitas vezes, na ideia de se aproximar os conteúdos criam-se anacronismos absurdos? De você pegar questões e temas de hoje e vê-los no passado, como era a “reforma agrária” Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.1, vol.1, jul/dez. 2014|55


em Roma, por exemplo. Não acho que os professores universitários têm as respostas, mas é um desafio. E do ponto de vista do 203 futuro, por enquanto o grande desafio que estamos enfrentando é operacional, como lidar com os recursos, como é que a gente define melhor também o que vai ser a dissertação desses alunos, como é que você articula essa rede e acompanha seu funcionamento, com 12 universidades, cerca de 95 professores e 140 alunos que entraram na primeira turma, como é que se opera com isso. Porque uma coisa é o projeto inicial, que é muito interessante, suas linhas de pesquisa, mas em toda reunião que a gente faz, que o Conselho Acadêmico Nacional faz, ou nas reuniões dos coordenadores dos grupos, sempre surge uma quantidade de questões, de problemas, de desafios que a gente não tinha previsto. Então, essa primeira turma está trazendo um aprendizado muito grande, e ainda mais para nós, que estamos na condição de coordenadores e administradores desse projeto. E, agora, sinto muito um engajamento, uma animação muito grande dos professores da educação básica, nossos alunos. Acho que isso é um sintoma de que as coisas podem dar certo. Outro desafio é o grande número de novas universidades que querem aderir ao ProfHistória, e a gente tem que pensar sobre como administrar isso.

Em nome da Revista do Lhiste, queremos agradecer muito pela conversa, pela oportunidade de discutir questões tão importantes, de lhe ouvir e conhecer sua experiência. Marieta:

Também agradeço a oportunidade de conversar com vocês e trocar essas ideias.

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