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Xarifa

Resistente ao tempo

Xarifa já cruzou o Atlântico várias vezes; transportou cargas na Segunda Guerra Mundial e foi até cenário para uma série de televisão

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Um dos maiores desafios que um estaleiro de refit pode enfrentar é trazer um iate vintage com todos os sistemas e confortos de uma embarcação moderna. Há também outros obstáculos: o que pode ter sido padrão há 100 anos agora não atende mais o regulamento internacional. Este reequipamento pode ser um longo caminho para os designers do estaleiro, mas o refit soberbo de Xarifa comprova que esse processo pode, sim, ser feito com sucesso.

Esse veleiro de três mastros foi construída em 1927 pelo famoso estaleiro britânico J. Samuel White, em Cowe, na Ilha Wight. Em - bora White fosse mais conhecido por seus barcos a vapor, Xarifa foi construída com o mesmo alto padrão das embarcações famosas do estaleiro. Fabricada em aço, ela é testemunha da qualidade de sua construção, que, mesmo depois de quase 90 anos, apenas 30% do aço do casco foi substituído.

Xarifa tem uma história interessante. Ela foi originalmente construída para o Franklin Morse Singer, da família da máquina de costura Singer. Em meados da década de 1930, sob propriedade do Barão Louis Empain, o barco cruzou várias vezes o Atlântico. Durante a Segun- da Guerra Mundial, Xarifa era usada para transporte de cargas de salmão da Islândia para o Reino Unido, ao longo de uma das rotas marítimas mais desafiadoras do mundo, devido ao clima extremo e, claro, os risco da guerra. Após a guerra, ao invés de voltar a ser um iate de lazer, o mastro foi removido e o barco servia como uma barcaça de carvão, trabalhando em Hamburgo, na Alemanha.

Adquirido pela famosa equipe pioneira subaquática Hans e Lottie Hass, em 1951, e rebatizado de Xarifa, o barco trabalhou em águas tropicais como base para uma série de televisão. Mais tarde, foi utilizado em uma expedição que refez a rota de Cristóvão Colombo e, para isso, foi necessário transformá-lo em um barquetine com velas quadradas no mastro principal. Embora tenha aparecido em filmes e passado nas mãos de muitos donos, Xarifa deteriorou lentamente até que o proprietário atual iniciasse em uma restauração completa, incluindo uma modernização para os padrões atuais.

Muitos barcos antigos carregam uma herança de corrida e, consequentemente, velocidade. Por outro lado, Xarifa foi projetada desde a quilha para ser um veleiro de cruzeiro, sem pretensões para competições. Essas características podem ser vistas em sua forma de casco, na boca larga, na quilha reta em um projeto relativamente raso, no volume interior, no generoso deck e em duas cabines de comando. Em algum momento na vida de Xarifa, as velas Gaff foram substituídas por velas Marconi para simplificar a assistência, e não por razões de performance. No entanto, esse “detalhe” não impediu que seu novo dono, um industrial espanhol, de competir a Régates Royales, em Cannes, um dos mais importantes eventos de corrida de iates clássicos. Este foi, praticamente, seu primeiro passeio depois do refit na Espanha. Enquanto os ventos não eram tão favoráveis, ela demonstrou ser um barco de estilo clássico, que pode oferecer muita elegância em um cruzeiro.

A incrível carreira de Xarifa é escrita junto dos mergulhadores Hans e Lottie Hass, em 1951 (topo). Os cartazes são da série de televisão que o barco trabalhou em águas tropicais

Quando a restauração começou, ninguém sabia a real extensão do trabalho. Xarifa foi levada para o pátio do estaleiro Metalships & Doca, localizado em Vigo, na Espanha, onde os mastros, cabos e interior foram removidos para investigar a causa de um vazamento na plataforma. A condição do casco de aço foi levada em consideração para a elaboração do plano de renovação. Um estudo sobre o convés revelou que obarco era constituído por várias camadas de madeira, uma sobre a outra, em uma tentativa de conter o vazamento. Com esta descoberta e as cabines de comando em más condições, foi fácil decidir se desfazer de tudo e abrir o barco.

O próximo desafio foi combinar as seções do casco velho com as modernas técnicas de soldagem, em que foi exigido um novo casco. Uma nova plataforma de aço solucionaria o problema de vazamento e sua espessura reduzida beneficiou o aumento da altura das acomodações. Para garantir a estanqueidade, os rebites foram soldados e todas as estruturas de aço foram jateadas antes da pintura de conservação ser aplicada. A Barracuda Yacht Design, de Madri, recebeu a tarefa de renovar o interior e colaborou com a esposa do proprietário e um design de interiores. A proposta era criar espaços que refletissem a idade e charme do projeto original, mas lembrando de incorporar toda a comodidade e conforto de um iate moderno. Painéis de mogno foram escolhidos graças a sua aparência tradicional, compondo o teto suportado por vigas falsas de madeira que cobriram a estrutura de aço.

A cabine do proprietário ocupa toda a largura do barco e fica localizado na popa, junto com duas cabines duplas de estilo similar. Mais à frente, duas cabines de hóspedes, cada uma equipada com duas camas e um beliche. Os alojamentos da tripulação, na proa, comportam até oito pessoas com beliches duplos. Uma suíte fica reservada ao capitão.

O salão à meia-nau é divido em duas áreas: uma sala de estar, próximo à porta, e uma sala de jantar, a boreste. Os móveis que compõem o ambiente, assim como a maior parte do barco, são feitos de madeira polida. O tronco do mastro principal, que fica no centro da sala, foi coberto de couro. Todas as comodidades da vida moderna, como ar condicionado, sistema de som e televisão, estão dispostos discretamente. Este é um casamento feliz entre o antigo e o novo, com a tradição refletida também nas vigias de bronze – em que a maioria é original.

As velas de Xarifa conferem linhas elegantes para obarco. Os três mastros foram construídos em aço e são mais altos do que os originais, para melhorar a performance da vela

Equilíbrio entre o antigo e o atual é o que dita a ambientação interna, como a teca envernizada e as janelas de bronze originais

A pequena copa, que serve como área de jantar, conecta-se com uma renovada cozinha, revestida em aço inoxidável e equipada com os mais modernos utensílios. O ambiente tem acesso direto à área da tripulação e refeitório.

No deck principal, na popa, o ambiente serve como uma sala de estar confortável, enquanto a frente está o centro de navegação. Ambos os espaços são novas construções com estrutura interna de aço revestido e teca envernizada para manter a integridade visual.

As janelas de bronze originais foram mantidas e o equilíbrio entre o antigo e o atual foi equilibrado de forma calorosa e agradável.

Xarifa, agora, possui três estações de comando, equipados com os mais recentes sistemas eletrônicos da linha Furuno – para navegação e comunicação- foram instalados. O leme original permanece na popa, com todos os seus detalhes, e uma bitácula de bronze (caixa com cobertura de vidro, onde está colocada a bússola da embarcação). Este leme controla a vela principal, embora a sua visão seja um pouco limitada dado o aumento da proa.

Os três mastros foram construídos com aço e são mais altos do que os originais, para melhorar a performance da vela. Eles são apoiados por suportes de aço inoxidável. O gurupés, apesar de ser feito em aço, é revestido de teca. A retranca foi mantida original, de madeira de pinho Oregon. A empresa North Sails entregou as novas velas na cor creme para garantir uma aparência mais tradicional e um balão de 600 m 2 com o logo do barco.

Todo o maquinário, localizado abaixo do deck inferior, onde fica a acomodação da tripulação, foi modernizado ou substituído. O motor a diesel Caterpillar 400BHP foi totalmente reformulado, mas ainda está ligado no hélice por uma barra de transmissão original de 24 metros. O propulsor de proa de 85kW melhora a capacidade de manobra. Todo o sistema pode ser monitorado eletronicamente pela sala de controle do motor, incluindo o ar condicionado. Os tanques de combustível, água e esgoto são todos novos. No Xarifa, é possível notar muitos toques que foram pensados especialmente para manter o ar clássico do iate. Cada prancha de nova teca Burma, no deck, é curvada para que siga a linha da borda. Os guinchos de bronze combinam com os cunhos originais, também do mesmo material. Entradas de ar em bronze permitem a circulação de ar mesmo quando a plataforma estiver inundada.

Nenhum detalhe foi esquecido. Por exemplo, os cabos elétricos que fornecem energia para a iluminação são cobertos por uma trança de corda e os blocos para os cabos são originais, com versões de madeira com o nome do iate registrado em uma pequena placa de bronze.

Depois que o casco foi preparado, várias camadas de enchimento foram aplicadas, onde cada uma foi lixada suavemente. Em alguns pontos, a carga é de 10 milímetros de espessura sob as tintas de acabamento Awlgrip. A operação foi realizada sob temperatura e umidade controladas, sem contar o auxílio de topógrafos monitorando todo o processo. A qualidade do

Com a pintura e a envernização finalizadas os mastros e o aparelhamento foram instalados de acordo com as regras RINA para iates comerciais. Um registro completo dos pesos removidos e adicionais foi mantido, a fim de controlar o deslocamento final do barco e, assim que todo o trabalho foi concluído, 22 toneladas de lastro foram adicionadas para restaurar a linha d’água e manter a estabilidade. Xarifa foi aprovado no teste de inclinação com louvor.

O estaleiro Metalships & Dock é especialista em reparos e refits de offshore, navios de petróleos e outras categorias. A empresa é parte do grupo Rodman, que também constrói barcos de pesca e iates de lazer. Muitas empresas locais e artesãos se envolveram no projeto de Xarifa, que levou cerca de um ano para ser concluído. E a restauração deste verdadeiro clássico dos mares para uma condição que

Comprimento total: 49.9 m

Linha d’água: 37 m

Boca: 8.55 m

Calado: 4.55 m

Deslocamento: 378 tonnes

Tonelagem bruta: 237 toneladas

Motorização:

Caterpillar 3406, 400bhp @ 1,800rpm

Velocidade (Máxima/ Cruzeiro): 9/7,5 nós

Autonomia: 1,500 milhas náuticas a 7.5 nós

Geradores: 2 x 112kW

Stamegna SM1450

Propulsor de proa: 85kW CMC BTM85EA

Tanque de combustível: 19,000 litros

Capacidade de água doce: 17,500 litros

Proprietário e convidados: 12

Tripulação: 9

Tender: 1 x Castoldi Jet 14

Construção: aço e madeira

Classificação: RINA

Refit naval

Architecture: CYPSA

Exterior Styling: J M Soper

Refit interior Design:

Barracuda Yacht Design

Builder/Year: J Samuel White & Co Ltd, Cowes, UK/1927

Refit Yard/Year:

Metalships & Dock, Vigo, Spain/2014