Irineu

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Fazer um retiro de silêncio não é para toda a gente, estar ali dias a fio dedicado ao espírito, centrado em si mesmo, mas ao mesmo tempo ligado ao mundo através de fios finos e invisíveis que ligam todas as partículas entre si e dão sentido à vida. No centro, o indivíduo e dentro dele Deus. É preciso ter a capacidade de calar as vozes que nos conduzem como se fôssemos às cegas e depois ter coragem de levantar um pouco a venda e contemplar a luz, Deus. Beber essa luz é estar com Deus, a partir daí, qualquer resolução ou decisão que se tome é firmada em bases estáveis porque sai da própria seiva da vida. O grupo de noviços que estava em retiro preparava-se para tomar uma decisão para toda a vida: fazer os votos de consagração numa Ordem Religiosa. O Irineu precisava de passar por esta experiencia de encontro com ele próprio e com Deus, mas não era nada fácil, tendo em conta o seu feitio, era uma pessoa de acção e parar não era coisa fácil. Gostava de fazer, mas agora percebia que a decisão que tinha pela frente era demasiado importante para ser tomada de ânimo leve. Começava agora os Exercícios Espirituais de um mês, numa casa dos Jesuítas, perto de Madrid. Ele e mais 8 colegas de caminhada estavam a poucos dias de dizer “sim” no altar, não a uma mulher, mas a uma vocação que os prenderia para o resto da vida. Irineu tomaria convictamente a decisão de seguir as pegadas do Santo aventureiro S. João de Deus, dali a alguns dias e havia muita coisa a preparar, mas agora o importante era discernir bem a decisão que se preparava para tomar. Ele sentia dentro dele uma vontade enorme de fazer o bem e de optar por um estilo de vida no qual ele acreditava e que passava por estar disponível para servir, principalmente os mais fragilizados da sociedade, pessoas com doença e deficiência mental. Por outro lado, lembrava-se da família que precisava dele -e de tantos sacrifícios que a mãe fizera para o criar-, da liberdade que era não ter preceitos a seguir, de outros estilos de vida que podia seguir e não deixava de ponderar como seria de tomasse uma decisão diferente.


E assim foram passando os 30 dias de retiro naquela casa religiosa, rodeada de natureza, com quartos confortáveis e refeições a horas certas. O formador comentava algumas leituras e dava pistas de oração 3 vezes por dia, eles se quisessem podiam conversar meia hora com ele e o resto do tempo era passado em introspecção na capela, no quarto ou mesmo pela quinta circundante. Para ele, tornava-se difícil concentrar-se na oração o tempo todo, muitas vezes deixava-se visitar por pensamentos soltos como pássaros a voar livres na sua cabeça, pensava nos convites que era preciso fazer e na viagem de regresso a Lisboa. Imaginava os cânticos que cantariam na celebração e como tratariam da comida. A paz e a doçura que a oração lhe trazia dava-lhe alento e mostrava-lhe que estava no caminho certo, porém, rapidamente o jovem se distraía a pensar que ele teria tesourado de maneira diferente as roseiras do jardim. Uma manhã, decidiu subir a uma árvore e ficar ali bem integrado na vegetação, como se ele próprio fosse um ramo da árvore da vida. E ia-se lembrando do caminho que fez até chegar àquele dia, as pessoas que já tinham passado pela sua vida, as que tinham ficado. Veio-lhe à cabeça a sua família, a sua mãe que estaria nervosa por ter um filho consagrado, ela que também desejara em algum momento da sua vida ser freira. Apesar de ele ser o primeiro membro da família a enveredar pela vida religiosa, já a sua avó fora criada num convento. Depois, a sua mãe tinha decidido seguir a vida religiosa, decisão muito firme até ter conhecido José Basílio. E dos 9 filhos que tiveram, só o Irineu é que puxou para as coisas da Igreja. E ele perguntava-se se tivesse conhecido também uma rapariga nesta fase se persistiria na sua vocação. Eram dúvidas que iam e vinham, algumas inquietavam-no, outras estavam bem resolvidas dentro dele e a opção pelo voto de castidade era uma dessas. Depois, havia ainda os votos de pobreza, de hospitalidade e de obediência, este último era talvez o que mais o preocupava. Seria capaz de acolher com respeito e aceitação decisões superiores com as quais poderia não concordar? Ele conhecia-se muito bem, sabia que sempre fora pioneiro, sempre fora ele a estar à frente dos seus caminhos, tinha a liberdade tatuada nas veias, afinal de contas, nascera numa montanha onde os horizontes eram muito limpos.


Mas estava disposto a tentar, algo lá bem no fundo lhe dizia que o caminho seria por ali. Queria ser Irmão de S. João de Deus, servindo e amando. A sua decisão estava tomada e consagrar-se-ia daí a uns dias em Lisboa. Este era um caminho que vinha já muito de trás, desde os tempos de criança, quando se fascinava a observar os rituais da Igreja, absorvendo com muita atenção todos os gestos do padre e de uma freira durante a missa. Muito em breve, seria ele próprio acólito e ajudaria a dar solenidade ao acto eucarístico. Ele nascera na Madeira, mais precisamente em Serra de Água, uma localidade tão bonita como rebelde, esculpida a bastante altitude, desafiando a natureza. Embora ele tivesse sido o penúltimo de 9 irmãos, não deixou de sentir as agruras da vida pobre e simples do campo. A comida não abundava em casa, mas também não passavam fome porque a sua mãe era muito trabalhadora e criativa, arranjando sempre forma de providenciar o bem-estar da família. Ele habituou-se a ajudar os pais desde pequeno, ia para o campo e fazia um pouco de tudo, desde acartar molhos de lenha até guardar cabras, ovelhas e vacas ou apanhar erva para os alimentar. Mas o que o apaixonava mesmo na natureza eram os jardins, adorava perceber a forma como as plantas cresciam, quais as condições ideais para que desabrochassem e como é que as espécies interagiam umas com as outras. E como a natureza naquela terra era prodigiosa, era um regalo dedicar-se às plantas que facilmente cresciam e encantavam toda a gente. Às vezes, ele achava que foi nesses momentos que aprendeu a falar com Deus, a contemplá-lo na simplicidade e na exuberância que as flores carregavam e que facilmente cativavam o seu coração desformatado de criança. Mas ele fazia um pouco de tudo, ajudava também a sua mãe nas lidas domésticas e aprendeu cedo que não há nenhuma tarefa que não se possa fazer quando se tem vontade. Se as nossas roldanas estiverem engatadas umas nas outras e se recebermos a energia certa, a máquina vai funcionar e o Irineu ligava-se à sua mãe e restante família e, com a força de vontade que o caracterizava, fazia com que qualquer tarefa lhe parecesse fácil. Fazia a cantar e cantava a brincar. Era dinâmico e por isso sobrava-lhe muitas vezes tempo para ir ajudar os


vizinhos sempre que estes precisavam dele. Passavam as tardes de domingo a visitar os doentes da sua aldeia. Desde muito pequeno que costumava fugir de casa de seus pais para ir até a Igreja. Às vezes, a sua mãe preocupada por não saber dele e depois ia encontrá-lo na igreja ou em casa de um vizinho a falar sobre coisas de Deus. Além disso, era uma criança normal como outra qualquer de uma terra simples e pobre, passando o tempo a brincar com coisas simples que apanhava como pinhas e pedras, devido à ausência de instrumentos ou brinquedos que outros teriam em abundância. Fez os estudos primários na sua aldeia e depois o chamado ensino preparatório numa tele-escola. Havia, contudo, um motivo que nessa altura o fazia correr sem parar e irse esconder bem longe da aldeia nalgum canto não farejado pelos outros. Era como se tivesse chocalhos dentro dele que o faziam enlouquecer quando corria e o faziam correr mais para se livrar daquele sufoco que era assistir à irracionalidade que o álcool encorajava nas pessoas da aldeia, principalmente quando via o seu pai a agir contra tudo o que lhe ensinara. Ele era novo e não compreendia porque é que os homens que o ensinavam desde pequeno a agir com dignidade e com honra depois faziam exactamente o contrário e eram mentiras andantes. Muito menos era capaz de compreender o que os fazia beber mais e mais para caírem sempre no mesmo poço onde se conspurcavam e de onde chapinhavam tanto sofrimento aos que os amavam. Talvez venha dessa experiência a exigência que o Irineu tinha relativamente à limpeza e à arrumação. Se não conseguia controlar a lama com que os outros gostavam de se untar, pelo menos haveria de ser ele um corpo fresco, perfumado e bem arranjado. Aos poucos, começou a assumir responsabilidades na paróquia, chegando a ser chefe do grupo de acólitos. Foi catequista durante alguns anos, ensinando aos mais pequenos os ensinamentos que aprendera de outros modelos de vida cristã desde novo. Muitas vezes, se questionava se ser sacerdote não seria o seu caminho. Essa hipótese surgia na sua vida como um riacho que nascia na serra, pois aproximava-o da origem e fazia-o aspirar a pureza da montanha. Sentia-se sempre limpo e purificado quando tratava das coisas da Igreja e essa sensação fazia-o sentir-se em


casa. Foi fazendo a catequese e, no fim, sentindo que lhe faltava algo mais, criou um grupo de jovens, dinamizando e motivando muitos colegas e amigos da aldeia para participarem. Era um líder nato e os outros reconheciam-lhe autoridade. Organizavam actividades da igreja, mas não só: conversavam e debatiam temas, ensaiavam músicas, faziam caminhadas, entre muitas outras coisas. Muita gente ia ao grupo só para conviver ou mesmo para namorar, afinal de contas não havia muita coisa para fazer na aldeia, mas mesmo assim o Irineu não desistia e continuava com os seus propósitos firmes. Até que chegou o dia que mudou a sua vida para sempre. Era um dia muito claro e quente de Verão, o oceano estava muito azul e plano visto lá do alto, do sítio onde ficava a casa do Trapiche, como era conhecida. Ali viviam centenas de pessoas com doença mental e ele, juntamente com outros jovens do seu grupo, chegara ali para fazer um campo de férias de 1 semana, vivendo de perto o serviço e o amor àqueles doentes. O formador, Padre Nuno, sabia falar aos jovens, tinha o dom de os ouvir enquanto eles interagiam uns com os outros e lia as suas dúvidas, sonhos e inquietações só na sombra de um olhar. A experiência foi tão marcante que desde logo lançou no jovem Irineu a semente vocacional. Cada dia era uma descoberta, no início foi difícil ultrapassar a repulsa e o nojo que alguns doentes causavam, tinham um aspecto estranho, babavam-se, andavam a arrastar os pés e olhavam sem ver. Mas depois daquele choque inicial a descoberta da relação foi fenomenal. Percebeu que o que une as pessoas é a entrega gratuita, a presença de corpo inteiro e aqueles senhores eram tão simples e bons que ele podia ser ele próprio diante deles. Foi com eles que ele aprendeu que mais importante do que fazer coisas, e ele estava habituado a ser uma pessoa de acção, era ser genuinamente ele próprio e estar ali a partilhar a vida como ela era, aceitando cada pessoa com todas as suas limitações e potencialidades. Muito mais haveria para recordar dessa experiência, desde os serões infindáveis com os colegas, em que era difícil controlar a vontade de urinar de tanto rir, até aos momentos mais serenos de paragem e oração, mas o que ficou mesmo foi um intenso desejo neste jovem de dedicar a sua vida a uma causa em favor dos outros.


E de tal maneira a questão vocacional o inquietava que ele tinha dificuldade em se concentrar nas tarefas simples do seu dia, esquecia-se de regar as plantas e acontecia-lhe até ir à mercearia da aldeia e ao chegar não se lembrar do que ia fazer. A sua cabeça andava longe, o seu coração aproximava-se cada vez mais daquelas pessoas simples que lhe tinham mostrado um caminho novo na montanha da vida. A sua vida não mudou muito, mas tudo ganhou um novo sentido, continuava a visitar alguns doentes da aldeia aos Domingos à tarde, mas agora fazia-o com outro entusiasmo, deliciava-se a ouvir as suas histórias e percebia que elas o ajudavam tanto como ele a elas. Após a tomada de decisão de ingressar na Ordem Hospitaleira de S. João de Deus, foi convidado a partir para Fátima onde iria fazer uma experiencia de pré–postulando. Ali esteve dois anos, aprendendo a viver em comunidade, com pessoas muito diferentes dele e da sua família, e a partilhar com os hóspedes da casa o sentido da hospitalidade. Foi durante esse período que cumpriu o serviço militar em Tomar, uma experiência desafiante da qual soube tirar proveito para se preparar para a vida religiosa. Com o seu rigor e espírito de trabalho, sendo sempre o primeiro a chegar, rapidamente conquistou as simpatias do Tenente-Coronel e com a sua boa-disposição foi cativando os colegas, que começaram a ver nele alguém com quem podiam conversar e aconselhar-se. Às vezes, é nos sítios mais inusitados que encontramos tesouros, nas circunstâncias mais difíceis que descobrimos orientações de futuro e paz de espírito e das pessoas mais repulsivas que recebemos amizade. A vida carrega em si um manancial de potencialidades e a tropa acabou por se revelar na vida deste rapaz um período de aprendizagens que ficaram para a vida. Às quartas-feiras, iam sempre comer sopa da pedra que o Tenente fazia questão de pagar. De vez em quando, os soldados iam beber cervejas e relaxar um bocado e era quase sempre nessas ocasiões de maior descontracção que algum deles se aproximava e começava a deitar cá para fora histórias de namoradas que nunca estavam satisfeitas, de mães que só se queixavam e nunca viam nada de bom, de irmãos com problemas de droga… ele ouvia de tudo um pouco. Não podia fazer muito, mas parecia que, só pelo simples facto de ouvir, já os aliviava e eles ficavam mais leves.


Ele é que raramente se abria com alguém, não tinha conseguido ainda vomitar como os seus colegas histórias do passado que de tão enferrujadas se tinham soldado nas suas entranhas. Aprendera na infância que o medo que vivia em casa não se partilhava com ninguém e por isso continuava a guardar para si tudo o que lhe acontecia. Quem lhe dera ter o à-vontade dos colegas, talvez se bebesse tanta cerveja como eles as coisas saíssem mais naturalmente, mas o álcool era o autor dos fantasmas que ele queria exorcizar e não queria nada com ele. Depois do postulantado, seguiu então com o seu colega Alberto para Palência, em Espanha, onde juntamente com mais 19 candidatos começaram a sua preparação para abraçar a vida religiosa. Na verdade, só 4 desses noviços chegaram ao fim da caminhada, mas ele persistiu, sentiase chamado àquela vida. O Noviciado foi um tempo fértil, mais estável porque as saudades da família já eram menores. Foi muito importante durante este período o acompanhamento que teve com um psiquiatra, só nessa altura ele se libertou do grande peso que se obrigava a carregar e que o tornava muitas vezes intempestivo e explosivo, sem que ele conseguisse controlar. Essa ajuda médica possibilitou-lhe encontrar-se com a sua história, começar a ter consciência da parte de si que estava mineralizada e assumi-la aos poucos, libertando-se desse incómodo, não sem dor, mas com grande alívio, como quem expele uma pedra de um rim. E aqui está ele agora, neste momento decisivo, prestes a terminar a sua experiência em Espanha e a regressar a Portugal, prestes a ver a sua família e os seus amigos e a assumir perante todos a vida que escolheu. Não é fácil tomar uma decisão destas, mas no caso dele parece que tudo fluiu naturalmente, como se simplesmente se tivesse deixado conduzir pela corrente que o trouxera até aqui. E daqui, deste momento preciso no meio de um retiro e deste local concreto em cima de uma árvore, ele antevia tanta coisa. A sua profissão simples que seria uma ocasião de grande festa, onde reencontraria a sua mãe, o pai, os irmãos e tantos amigos. Estaria com tantos Irmãos da Ordem que se alegravam com a sua entrada e integraria uma comunidade. A primeira comunidade de que faria parte seria constituída por Irmãos


jovens, pouco mais velhos que ele, com quem seria fácil estabelecer relações e viver o sentido de partilha de vida. Nessa altura, estudaria, fazendo os 3 anos do Ensino Secundário num só ano. Estudar nunca tinha sido uma prioridade na sua vida, não se sentiria identificado com teorias, preferia a prática, no entanto, quando estava motivado para fazer uma coisa, focalizava ali toda a sua energia e conseguia chegar onde queria. Assim, faria o exame de acesso ao Ensino Superior e entraria no Instituto de Ciências Educativas de Odivelas no curso de Animação Cultural. Seria só mais um aluno que se confundia com qualquer outro, mas quando pomos em marcha aquilo que nós somos nunca seremos só mais um porque somos uma individualidade. Ele seria já o Irmão Irineu e teria então a responsabilidade de estar de maneira diferente no mundo, transportando consigo um sótão inteiro de humanidade recebida de herança. Ao fim desses 5 anos de estudos, faria então a sua consagração definitiva: a Profissão Solene. Seria um momento muito emotivo, partilhado com tantos amigos e familiares, com muitos jovens que acreditam na hospitalidade a cantar e a animar o dia. Seria um daqueles dias sem nome mas que nunca mais se esquecem por se entranharem na pele e fazerem de nós quem somos. O desafio seguinte seria estimulante: com uma equipa de jardineiros reabilitar e reconstruir todos os jardins na grande Casa de Saúde do Telhal. Ele sentir-se-ia como peixe na água, exigiria muito, trabalharia muito mais, mas seria algo que lhe daria muito prazer. Aproveitaria para conviver e ensinar os doentes muito do que sabia e veria os frutos do seu trabalho a cada dia, não só na natureza, mas sobretudo nas amizades que iria construindo. O verdadeiro desafio viria depois ao lhe ser confiada uma missão na Casa de Saúde S. Miguel, nos Açores. A Comunidade de Irmãos com quem viveria seria muito diferente da que ele integrara ao regressar a Lisboa, depois de professar, eram pessoas com mais idade, com outras limitações físicas e com quem era mais difícil estabelecer afinidades. A solidão viria às vezes de mansinho, de pantufas, bater à porta do seu quarto à noite e então ele viajaria para outra ilha, onde tinha deixado a sua infância, e as saudades apertariam. Por seu lado, a Casa de Saúde tinha alguns


problemas com as instalações, haveria muita coisa para fazer e ele não pararia. Os seus dias seriam uma correria, concertando coisas, ajudando a dar refeições aos doentes, tratando do jardim, orientando as actividades de animação dos doentes, dando conselhos na secretaria. Andaria tão atarefado que muitas vezes adormeceria de cansaço e nem ouviria a persistente solidão, mas ela não desistiria. Até que ele começaria a ter consciência das suas dificuldades e a aprender a viver com elas, dando mais de si na comunidade e estabelecendo relações com Irmãos, Colaboradores e doentes que o iriam ajudando a encontrar caminhos de volta a si mesmo. E como a vida nunca pára de nos surpreender, também haverá de chegar o dia em que lhe seja pedida uma tarefa de grande responsabilidade, ser Superior de uma Comunidade, ele que é o elemento mais novo da instituição! Saberia estar à altura de tal cargo? Teria pouco mais de 30 anos, a sua experiência de vida não seria assim tanta, mas as situações que enfrentara até então mostrar-lhe-iam que por mais pedregosos que sejam os caminhos, é sempre possível percorrê-los. Se fosse preciso, haveria de se treinar muito bem, encontrar sapatos adequados, enganarse algumas vezes, ter de voltar atrás, mas haveria de chegar e, se não chegasse, assumi-lo-ia. Os anos em Lisboa seriam de responsabilidades mais administrativas, de apoio e de suporte aos seus Irmãos e a quem ali era hospedado. O seu toque pessoal passaria por trabalhar de modo a que a Casa fosse acolhedora e as pessoas se sentissem bem recebidas. Seria uma hospitalidade directa e literal. Também passaria algum tempo com os idosos e doentes que residiam na Residência S. João de Ávila e trabalharia na Direcção da Residência em prole dos mesmos. O serviço não tomaria agora a forma que teve nos tempos pós-noviciado em que servia directamente os idosos da Residência e vivia uma relação muito gratificante com eles. As exigências agora seriam outras e ele teria de experimentar a humildade de servir na retaguarda. O seu coração não terá sossegado ainda, haverá sempre pesadelos a meio da noite e visitas inesperadas. Haverá golpes que não espera e ele próprio cometerá erros de que se arrependerá. Mais uma vez, terá que descobrir


novas formas de recomeçar, de reaprender, de servir, melhorando-se a si próprio para poder melhorar o mundo. E tudo isso que aconteceu e que sucederá ainda que sentido poderá ter? Pode perguntar-se ele, em cima da árvore. Lembra-se então de um homem que não tinha nada, nem sequer um país que pudesse chamar de seu, que chega ao ponto de cair num hospício numa altura em que o tratamento passava por ser espancado e mal-tratado e deixa-se surpreender de novo pela forma como esse homem, João, João que só podia ser de Deus, consegue fazer tanto bem. João apanhou doentes na rua e improvisou-lhes hospitais, auxiliou pobres e crianças, deu conselho a quem andava perdido. João inovou, não teve medo, não pensou nas consequências. E a consequência foi a própria vida. Uma vida curta, mas cheia de sentido, cheia de Deus, daí ter ficado conhecido como S. João de Deus. O Irineu pensou na sua vida e lembrando-se deste homem que o apaixonara percebeu o quanto era pequeno ainda e pôs-se a caminho. Saltou da árvore para a vida com uma certeza no peito: queria ser hospitaleiro!


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