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MUSEU DO PROJETO

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NOTAS E EVENTOS

NOTAS E EVENTOS

AUTONOMIA E RAZÃO SOB O CÉU DA TOSCANA

DETALHAMENTO DAS SOLUÇÕES CONSTRUTIVAS ENCONTRADAS PELO ARQUITETO E ESCULTOR RENASCENTISTA ITALIANO FILIPPO BRUNELLESCHI PARA O PROJETO DA CÚPULA DA CATEDRAL DE SANTA MARIA DEL FIORE, EM FLORENÇA, ERGUIDA NO SÉCULO XV

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POR MONICA AGUIAR *

(*) Professora de estruturas no curso de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio e sócia do Escritório Justino Vieira & Monica

Aguiar Projetos Estruturais

Este texto é dedicado ao Prof. Augusto Carlos de Vasconcelos por ter me indicado os caminhos da História na engenharia e, sobretudo, por ter apontado Brunelleschi, na conversa que tivemos no ano de 2016, como a verdadeira origem de nossa profissão.

Amão do anjo que segura o punho de Abraão, no momento exato em que a faca toca a garganta de Isaac, materializa em bronze uma ação: o momento de interrupção do sacrifício. O tema proposto no concurso estabelecido em 1401, para a ornamentação das portas de bronze do Batistério em Florença, foi representado por Lorenzo Ghiberti e Filippo Brunelleschi de formas praticamente antagônicas. No trabalho de Ghiberti a representação traz latente a intenção, enquanto no de Brunelleschi o protagonismo da ação demonstra que o artista por trás dessa interpretação das Escrituras já não vê o seu tempo como seus contemporâneos. (Figura 1). No tempo de Brunelleschi, a literatura de Petrarca, Dante e Boccacio já havia resgatado o Homem para o centro de uma cultura em processo de secularização. Na cultura humanista do Renascimento prosperava uma classe burguesa atuante em todos os setores da vida econômica, social e política de Florença, berço de Brunelleschi. O vigor dessa cultura, impregnada pelo intercâmbio comercial com países do Oriente e do Ocidente, envolvida com a gramaticalização do vernáculo, com a tradução para o latim de antigos textos gregos eruditos e com a difusão da cultura clássica, é um fator preponderante em sua formação. O ambiente cultural e a origem familiar burguesa, porém, não são suficientes para justificar o que o diferencia de outros cidadãos florentinos, seus contemporâneos. A historiografia dialética de Giulio Carlo Argan situa Brunelleschi no contexto da ação histórica, e Brunelleschi, homem da cultura, artista consciente de sua ação histórica, era não somente um homem de ação como, sobretudo, um homem de engenho. Entre 1480 e 1482, Antonio di Tuccio Manetti escreveu a Novela do Grasso Entalhador – Vida de Filippo Brunelleschi. No livro, são inúmeras as vezes em que Manetti se refere a Brunelleschi como homem de engenho: E entenderás como ele foi um homem de grande intelecto e de grande virtude, e engenho além do comum [...] E porque ele parecia ter, como se diz, um maravilhoso engenho, era muito requisitado para dar conselhos de construção [...] E com o seu engenho, e com a prova e a experiência daquelas belas coisas [...] E não houve vez que viesse que, por sua fama de bom engenho e pela reputação que possuía[...]1 .

No contexto do Humanismo Renascentista, Brunelleschi se destacou não somente pela atuação no campo da arte, mas sobretudo no campo da técnica. O artista, segundo Argan, ultrapassou os limites do círculo da arte e expandiu os horizontes do conhecimento humano. Artista, arquiteto ou engenheiro, são papéis indistintos da personalidade de Brunelleschi, e o que se pretende enfatizar aqui é o papel desempenhado pela técnica em sua vida. Técnica que Argan afirma ter sido um dos fatores que determinariam a transformação da sociedade italiana no século XV; e Brunelleschi é o criador de uma nova técnica. A cúpula da igreja de Santa Maria del Fiori, que até os dias atuais instiga historiadores, arquitetos, engenheiros e mesmo os deslumbrados turistas que penetram no seu interior, tem ainda muitos mistérios a serem desvendados, uma vez que Brunelleschi não deixou muitos registros de seu projeto. Para Argan, o que diferencia a história da arte de outras histórias especiais é o fato da primeira ser feita na presença das obras, que permanecem no tempo e permitem sua reinterpretação. A cúpula impõe ao observador a concretude de sua presença instigante no espaço da cidade de Florença pela síntese entre o desafio técnico e o valor artístico ali materializado. Síntese que possibilita renovadas inter-

1 MANETTI, A. T. Vida de Filippo Brunelleschi. In: Novela do Grasso Entalhador. Vida de Filippo Brunelleschi. Introdução, tradução e notas: Patrícia D. Memeses. Campinas: Editora da Unicamp, 2013, p. 154, 160,173,185.

FIG. 1. – FORMELLAS PARA O CONCURSO DA PORTA DO BATISTÉRIO- FLORENÇA – À ESQUERDA, O TRABALHO DE BRUNELLESCHI. À DIREITA O TRABALHO DE GHIBERTI. – FONTE: HTTPS://IT.WIKIPEDIA.ORG/WIKI/CONCORSO_PER_LA_PORTA_NORD_DEL_BATTISTERO_DI_FIRENZE#/MEDIA/ FILE:BRUNELLESCHI,_SACRIFICIO_DI_ISACCO.JPG

pretações, que vêm se dando desde a sua construção, e é a figura de Brunelleschi, homem da Renascença Italiana, a chave para que se compreenda a ação histórica que se dá entre 1418 e 1436, período de desenvolvimento e implementação da técnica que possibilitou sua construção. Segundo Argan, a cultura de um período constrói-se com a arte, mas também com o pensamento filosófico, científico, político, religioso. A técnica é também uma expressão da cultura, que acaba por se revelar no ambiente construído. Para além da criação do objeto em si, os materiais utilizados na construção e a maneira como são arranjados, são parte da cultura de uma sociedade. Ao longo da história, os desafios impostos à construção sempre foram preocupação de quem esteve envolvido no processo, mesmo em épocas em que era fundamentado empiricamente. Karl-Eugen Kurrer menciona em seu livro The History of the Theory of Structures a paz de espírito que os engenheiros desejam obter ao almejarem o perfeito funcionamento de suas construções, de acordo com o planejamento. “Isso se aplica hoje e do mesmo modo também aos engenheiros de tempos Romanos, da Idade Média, da Renascença e do século XIX”2. Não seria diferente, portanto, com Brunelleschi. Em 1402, após o resultado do concurso para a reforma das portas do Batistério, no qual foi constatado um empate, Brunelleschi se recusou a dividir o trabalho com o

2 KURRER, K. E. The History of the Theory of

Structures: From arch analysis to computational mechanics. Berlin, 2008, p. 26. concorrente Ghiberti e partiu para Roma com o intuito de estudar suas ruínas. O que de fato pode ter acontecido naquelas viagens é que Brunelleschi, por meio de observações, estudos e medições pode ter resgatado para a sua prática como engenheiro as técnicas de construção que haviam sido perdidas no medievo, pela invasão cultural bárbara que, entre outras características, havia se materializado no ambiente construído da Toscana. Há documentos que comprovam a estadia de Brunelleschi em Roma nos anos de 1404, 1405, 1409, 1410, 1415 e 1417. Intensos estudos, medições e avaliações podem ter recuperado para a técnica construtiva de Brunelleschi as boas soluções que viu nas ruínas de Roma, onde estariam embrionárias, portanto, as ideias que desenvolveria para a construção da cúpula da catedral de Florença. Para Argan, essa seria uma batalha a ser decidida no campo da técnica. O problema havia se materializado no diâmetro do círculo no qual estava circunscrito o octógono que configurava o tambor sobre o qual seria construída a cúpula. Com o

passar do tempo e as sucessivas alterações que se deram no projeto original de Arnolfo di Cambio, projeto que orientou o início da construção em 1296, o vão da cúpula acabou por se agigantar de tal maneira que, na época de sua construção, na segunda década do século XV, não havia uma solução técnica conhecida que solucionasse o problema (Figura 2). Em 1417 os Operai, membros da Opera del Duomo, instituição laica fundada em 1296 para supervisionar a reconstrução e a manutenção da Catedral de Florença, convocaram Brunelleschi, já conhecido por sua fama de bom engenho, em busca de aconselhamento para os problemas FIG. 2. – IGREJA DE SANTA MARIA DEL FIORE, FLORENÇA. MODIFICAÇÕES DO PROJETO. – FONTE: HTTPS://EN.WIKIPEDIA.ORG

observados pelos mestres de obra, que já percebiam a impossibilidade da construção. Ocasião na qual, segundo Manetti, Brunelleschi não só corroborou as dificuldades observadas como mostrou outras, inerentes ao problema posto. Aqui é importante perceber a posição consultiva assumida por Brunelleschi, que inaugura a separação entre os profissionais de projeto e de canteiro, que passou a vigorar no campo da construção até os dias atuais. Segundo Manetti, Brunelleschi sugeriu a formação de um colégio de mestres, arquitetos, engenheiros e pedreiros, para discutir os problemas que a construção da cúpula suscitava. A solução de uma cúpula grande e dupla, consequentemente muito pesada, implicaria em um processo executivo fora dos padrões técnicos conhecidos, uma vez que a execução de um sistema de escoramento e travamento de cambotas provisórias, que servissem de fôrmas curvas durante a construção, seria impossível de realizar. Assim, concluiu-se que a construção da cúpula deveria ser feita sem escoramentos, ou seja, sua estrutura deveria ser autoportante durante a construção. Contrariando os Operai, que achavam que havia sido uma ingenuidade dos mestres do passado acreditar que uma obra daquela envergadura pudesse se realizar, Brunelleschi afirmava que seria possível sim, construir sem escoramento e cambotas. É notória a postura racional e confiante de Brunelleschi. Desde sua opção pelos estudos em Roma até sua atuação junto aos Operai, o que se percebe é um homem que fundamenta sua atuação em princípios normativos que orientam sua técnica, não mais a técnica do fazer e sim a do saber fazer. Sua formação passa pela experimentação e sistematização da perspectiva, que provavelmente não existia antes do século XV, e do conhecimento da geometria, fruto de sua amizade com o matemático Paolo dal Pozzo Toscanelli. Era conhecedor de mecânica já antes da sistematização desse conhecimento por Isaac Newton em 1687, com sua publicação Princípios Matemáticos de Filosofia Natural. Antes ainda de Galileu Galilei e seu trabalho de 1638, Diálogo Sobre Duas Novas Ciências, e mesmo de Leonardo da Vinci e suas anotações, em torno de 1500, conhecidas pelo título Codex Atlan-

ticus, que eclipsaram as fontes de grandes pensadores da fase Helenística da ciência, como Archimedes (aproximadamente 250 a.C.), Heron (aproximadamente 150 a.C.), e Ktesibios (aproximadamente 250 a.C.). Para Argan, a atitude de Brunelleschi é o resgate do Homem para uma nova condição de autonomia, que o liberta da submissão aos cânones medievais. Assim, Brunelleschi, essa personalidade instigada por desafios, homem ao mesmo tempo fomento e produto de uma cultura que se encontra em processo de secularização, no qual as instâncias do mundano se separam do divino, se coloca frente ao problema da cúpula como pura positividade: arquétipo do profissional da engenharia, seja do Renascimento Italiano ou mesmo da atualidade. Brunelleschi afirma a primazia da profissão do engenheiro em contraposição ao trabalho de artífices realizado no canteiro de obras, uma vez que separa o trabalho intelectual de projeto, a ser realizado solitariamente, do trabalho executivo a partir da obediência às instruções contidas no projeto, a ser realizado pelos operários no canteiro: experiência individual que se contrapõe à experiência coletiva, contexto que Argan considera um indício do individualismo que será uma das características do Renascimento. Essa postura individualista é apenas uma das rivalidades que Brunelleschi tem com Ghiberti, com quem vinha dividindo a responsabilidade da construção da cúpula devido ao resultado do concurso lançado pelos Operai em 1417, que, mais uma vez, resultou empatado entre os dois. Empate que significou um compartilhamento de responsabilidades considerado incômodo por Brunelleschi, que, por isso, tratou de arquitetar também um plano para afastar Ghiberti da empreitada. Brunelleschi não só mantinha seu projeto para a cúpula escondido de Ghiberti, como se afastava da obra em momentos cruciais, forçando o adversário a providenciar soluções que sabia serem insuficientes. Solicitado o seu retorno, Brunelleschi não só comprovava a ineficácia das soluções propostas por Ghiberti, como demonstrava seus talentos providenciando as correções necessárias. A difícil convivência acabou por gerar uma divisão oficial de atribuições, ficando para Ghiberti a execução da corrente que equilibraria as forças de tração na base da cúpula e para Brunelleschi o projeto dos andaimes e a construção. Segundo Manetti, Ghiberti repetiu, na execução da corrente, a experiência da construção da cúpula de San Giovanni, enquanto Brunelleschi inovava na construção dos andaimes. Ao perceber que a corrente, da forma como foi feita, não seria adequada para resistir aos esforços provenientes da construção da cúpula, Brunelleschi disseminou a insegurança da situação entre os Operai, que acabaram por retirar tal incumbência de Guiberti. A solução do problema estaria assim, unicamente, em suas próprias mãos. E o problema não era encontrar uma alternativa para o escoramento da cúpula durante sua construção, mas construir a cúpula sem o escoramento. Ao desviar seu pensamento do foco do que seria a solução inicial do problema para se concentrar em uma nova possibilidade de solução, Brunelleschi quebra o paradigma. A solução estaria na flor e na espinha de peixe. A primeira como metodologia construtiva e a segunda como técnica, como será visto adiante.

A necessidade de autossustentação da cúpula durante sua construção foi determinante não somente do processo executivo como também de sua forma final. Durante os períodos de estadia em Roma, Brunelleschi havia estudado os detalhes de cúpulas esféricas, também chamadas de cúpulas de rotação, como a do Panteon. Desde a Idade Média, entretanto, eram conhecidas as propriedades estabilizadoras dos arcos ogivais. O fato da cúpula de Santa Maria del Fiore se apoiar em base octogonal, e não circular, pode ter sido o fator de escolha da cúpula ogival. O perfil da cúpula, na realidade, se aproxima de uma curva catenária invertida, aquela formada por um fio preso pelas extremidades, solicitado apenas pela força da gravidade, e essa já é uma característica geométrica que reflete o preparo intelectual de Brunelleschi no campo da matemática e da geometria. Ao analisar a forma da cúpula, Argan procura investigar seus princípios de geração e propõe: Uma forma que resolva em si mesma todos os problemas de gravidade ou de estática, e que, portanto, seja concebida em conformidade com as grandes leis da natureza, não pode ser pensada como um objeto colocado num espaço determinado; deve se impor, ao contrário, como a própria representação do espaço3 . Aqui cabe uma contraposição ao argumento de Argan. Não parece fazer sentido a afirmação de que a cúpula não pudesse ser colocada em um espaço determinado, uma vez que não seria uma construção ex nihilo. O espaço estava determinado por sua concretude, materializado na base do tambor formada por um octógono irregular de diâmetro interno de 45m, construído a 55m de altura do chão. Esse era o problema que, até a chegada de Brunelleschi, ninguém fora capaz de resolver. Para a tecnologia construtiva da época essa conjuntura não parecia proporcionar a possibilidade de uma escolha formal. Ao mencionar que pela escolha do arco agudo Brunelleschi resolve o problema da cúpula, Argan parece atribuir-lhe uma intencionalidade formal que, muito provavelmente, não teria existido a priori. O problema, como o próprio Argan define mais adiante em seu texto, era muito mais funcional do que formal. Uma vez resolvida a questão do processo construtivo sem escoramento e fôrmas, pela escolha de uma estrutura autoportante para a qual uma determinada curvatura seria fundamental, a forma final seria, portanto, muito mais uma consequência do processo do que a manifestação de uma vontade estética pensada a priori. A forma ogival e sua altura parecem ser muito mais o resultado da necessária condição de estabilidade autoportante do que de sua relação com um pensamento estético voltado para sua morfologia. A escolha da solução técnica, no entanto, não deve ter se dado apenas empiricamente, até mesmo por tratar-se de um desafio sem precedentes. Não havia experiências anteriores a serem replicadas. É prudente recordar que Brunelleschi dominava bem a matemática da época, haja vista o conhecimento que desenvolveu sobre as técnicas da perspectiva, além de ter sido amigo de Paolo dal Pozzo Toscanelli, matemático que lhe ensinou a geometria. Medições recentes da cúpula verificaram a existência de princípios geométricos em sua composição, como, por exemplo, as proporções áureas advindas da sequência de Fibonaci, matemático italiano do século XIII. O conhecimento de geometria é um fator que

3 ARGAN, G. C. Brunelleschi. In: Clássico Anticlássico: O Renascimento de Brunelleschi a Bruegel. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 98.

parece ter sido fundamental para o processo construtivo idealizado para a cúpula. Partindo da condição necessária de auto equilíbrio durante a execução, Brunelleschi precisaria propor uma metodologia construtiva que não comprometesse a estabilidade da cúpula em quaisquer dos estágios em que ela se encontrasse, antes de atingir o anel final, sobre o qual seria construída a lanterna. Duas medidas adotadas por Brunelleschi parecem ter sido a chave para a solução desse problema. A primeira seria a construção da alvenaria com o travamento em “espinha de peixe”, cuja eficiência provém da descontinuidade dos planos de argamassa que solidarizam os blocos, impedindo que deslizem entre si. A segunda seria o processo de construção das alvenarias em forma de arco invertido, medida que garantiria a estabilidade do conjunto contra o tombamento, em função das propriedades de compressão desses arcos. Resta ainda especular sobre o processo construtivo em si, ou seja, como se materializaria no canteiro o que foi projetado a partir dos princípios geométricos pensados por Brunelleschi. Os procedimentos construtivos da cúpula têm sido objeto frequente de estudo e há algumas especulações a esse respeito. Para além da invenção e fabricação de máquinas auxiliares de construção, usadas no transporte tanto horizontal como vertical de materiais até o nível da base da cúpula, como a grua por exemplo, é possível que Brunelleschi tenha utilizado elementos de marcação ordinários e conhecidos dos operários na época da construção. A utilização de um ferramental ordinário associado a seus conhecimentos de geometria pode ter gerado uma técnica construtiva inovadora para a marcação das fiadas de alvenaria no local da construção. O procedimento construtivo pode ter se dado pela utilização de cordas presas a um desenho de arcos na base plana octogonal da cúpula. Arcos que, pela inclinação da corda que determina a altura das fiadas de alvenaria, seriam rebatidos nas oito superfícies curvas da cúpula em construção. Essa metodologia permitia que a curvatura dos arcos no plano da base resultasse invertida na superfície curva da alvenaria assentada como “espinha de peixe”, gerando os arcos de compressão responsáveis pela estabilidade do conjunto. Há inúmeras hipóteses formuladas para a compreensão do processo construtivo e muitas delas estão documentadas em vídeos nas plataformas digitais. Os arcos, desenhados na base plana octogonal, acabam formando uma imagem semelhante a uma flor, o que pode ser comprovado por um documento que restou da época. Documento que é, na realidade, um esquema gráfico para fundamentar uma crítica feita por Giovanni da Prato ao trabalho de Brunelleschi (Figura 3). Em um debate tornado público, Prato procurava comprovar o fracasso do método de Brunelleschi e o iminente colapso da estrutura do empreendimento em construção. No entanto, a autonomia e a racionalidade de Brunelleschi superaram o ceticismo de Prato e a cúpula foi finalmente construída (Figura 4). Para Argan, “a conjunção da cúpula, milagre técnico, com o classicismo recuperado, milagre histórico”, é justamente a conjunção entre a Florença moderna e a antiga Roma”4. A recuperação do classicismo aliado à técnica, que possibilitou a construção da cúpula, reconfigurou a cidade de Florença como centro da cultura humanista irradiada para toda a Toscana. A qualidade simbólica da cúpula, que Vasari considerava erguida “sobre os céus” de Florença, ultrapassou gerações. Manetti, no século XV, refere-se ao papel de Brunelleschi como “uma extraordinária obra de Deus”. A construção que Alberti, no mesmo século, qualifica como “milagre da inteligência humana” pode ser vista hoje, pelos olhos de Argan, como uma ação histórica que faz parte da construção do pensamento racional da humanidade, que atingiu seu ápice na era do Iluminismo três séculos depois. O humanismo renascentista promoveu, sobretudo, o resgate do homem para a autonomia de sua existência, e a construção da cúpula de Brunelleschi é a ação que representa esse resgate. Autonomia e razão materializadas sob o céu da Toscana.

FIG. 3 – DESENHO DO MÉTODO CONSTRUTIVO DA CÚPULA – FONTE: HTTPS://IT.WIKIPEDIA.ORG

4 ARGAN, G. C. O significado da cúpula. In:

Clássico Anticlássico: O Renascimento de Brunelleschi a Bruegel. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 138.

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