UM PERSONAGEM LITERAL, DE CORPO E ESCRITURA23 Claudia Mascarenhas24 Meus dedos escrevem em outras latitudes, e o ar que respira através do meu caderno e lhe vira as páginas sem que eu perceba, quando caio no sono, de maneira que o sujeito cai longe do verbo e o objeto aterrissa em algum outro lugar no vazio, não é o ar desta penúltima morada, ainda bem (BECKETT, 1988)
“Logo enfim vou estar morto apesar de tudo. Talvez mês que vem. Vai ser abril ou maio. O ano ainda é uma criança, mil sinaizinhos me dizem. Quem sabe esteja errado, quem sabe consigo chegar até o dia da Festa de São João Batista ou até mesmo ao quatorze de julho, festa da liberdade. Qual o quê, sou bem capaz de durar até a transfiguração, me conheço bem, ou até a Assunção. Mas não acredito, não acho que estou errado em dizer que essas festas vão ter que passar sem mim, este ano. Tive essa sensação, faz tempo que venho tendo e acredito nela. Mas em que difere daquelas que fazem de mim gato e sapato desde que me conheço por gente? Não, esse é o tipo de armadilha em que não caio mais, meu desejo de pitoresco passou. Podia morrer hoje, quisesse, apenas fazendo um pequeno esforço, se eu pudesse querer, se eu pudesse fazer um esforço. Nas não me custa nada me deixar morrer, quietinho, sem precipitar as coisas”25. Ao começar seu escrito Malone é tomado por um projeto de “morrer-vivo”. Seu ato de escrever é efeito. Porém, o que lhe causa efeitos? O que se passa na função do seu escrito? Será letra de um corpo inerte? Fazer-se escrito? O que sua escritura26 sustenta? Deitado na cama. Ele escreve. Compõe sua morte. Enreda personagens. Supõe sua vida. Discorre sobre seus pertences. Existem neste espaço objetos que são seus cúmplices, ou melhor, compartilham entre si dos mesmos sabores. Enquanto são inscritos em folhas de papel vão fazendo margem ao vazio que a folha objetiviza. A existência se dá no espaço do que é escrito. São: toco de lápis, caderno,
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Essa primeira parte do texto inédito, foi escrita em outubro de 1989, numa apresentação no Espaço Moebius de psicanálise, Salvador/BA. 24 Psicóloga, psicanalista, membro do Espaço Moebius de Psicanálise (BA), doutora em psicologia clínica (USP), mestre em filosofia (Unicamp). Diretora clínica do Instituto Viva Infância, membro do MPASP (Movimento Autismo e Saúde Pública), vice-presidente no Brasil CIPPA (Coordination Internacional de Psychanalystes et Psychotherapeutes qui Travaillent avec L'autisme) 25 Beckett, S. Malone morre. São Paulo: brasilience. 1986. 26 Escritura, écriture, scuptûra: inscrição de caracteres e o que está traçado. Texto, linha, escrita. Combinação se signos sem significação previa. Código pessoal, estilo, obra, maneira de escrever, composição.
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