I - VI Concurso Literário Azambuja

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Rede de Bibliotecas do Município de Azambuja

I CONCURSO LITERÁRIO

2007/2008


I CONCURSO LITERÁRIO

O MUNDO AO CONTRÁRIO Inês Dias Marques

1º Escalão/Conto


O MUNDO AO CONTRÁRIO Hoje fui almoçar a casa da minha avó e como o almoço ainda estava demorado, decidi ir explorar o sótão; estava desarrumado e com algumas teias de aranhas. O sótão era grande, com três divisões que pareciam quartos de dormir. Eu entrei num dos quartos e encostado à parede estava um espelho enorme e muito brilhante. Decidi aproximar-me, achei que o espelho tinha algo de errado; reflectia a minha imagem é certo, mas ao contrário, como se estivesse a fazer o pino. Mirei o espelho de alto a baixo e de repente comecei a sentir um vento forte que parecia querer puxar-me para dentro do espelho e eu fui-me deixando ir até que entrei dentro dele. Parecia que tinha entrado na cidade “de pernas para o ar”. Era tudo ao contrário. As crianças trabalhavam e os adultos estudavam. O dinheiro andava por todo o lado. Até voava! Todas as pessoas viviam felizes. Mas em vez de receberem dinheiro pelo seu trabalho, eram eles que pagavam aos patrões. Outra coisa extraordinária era que os carros trabalhavam a dióxido de carbono mas em vez de o libertarem para a atmosfera até o retiravam de lá. O ar era muito mais limpo e puro. Não havia poluição. Abundavam os espaços verdes e todas as pessoas pareciam felizes (até que houve um problema). Entrei num restaurante e comi, apesar da comida ser um pouco esquisita. Quando o empregado me entregou a conta, trazia também dinheiro! Eu paguei-lhe mas ele não aceitou. E disse em seguida: - O dinheiro é para si, eu é que tenho de lhe pagar. Eu insisti e dei-lhe o dinheiro de novo. Ele já furioso gritou enervado. - A menina vai ter que ser presa! Está a infringir uma das leis desta cidade! Chamou os seguranças e eles levaram-me e prenderam-me. Quando chegámos à prisão disseram: - Como o seu crime não foi dos mais graves vai ficar aqui durante algumas horas. E pense no que fez!!! Abriram-me uma porta cinzenta que dizia “prisão”. Quando entrei, nem queria acreditar, estava num lugar fantástico! Ao fundo via-se o mar e até lá estendia-se um imenso areal. À direita encontravam-se uns enormes rochedos. Pelo areal estavam espalhadas várias mesas com comida muito saborosa. Passei o meu tempo na prisão, se é que se pode chamar-se assim, muito bem. Diverti-me bastante! Ao acabar o meu tempo de reclusa, os guardas vieram buscar-me. Quando me senti livre, a primeira coisa que fiz foi procurar o espelho para voltar a casa. Encontrei-o

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depois de muito andar. Quando regressei a casa já andava a mãe e a avó à minha procura. Desci rapidamente e expliquei-lhes que tinha estado no sótão a brincar, nem tinha dado pela hora do almoço. Claro que não lhes contei do espelho se não elas não iriam acreditar porque, sinceramente, nem eu acreditava no sucedido. No outro dia regressei ao sótão, para meu espanto o espelho já não estava lá, será que tudo isto não passou de um sonho?

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I CONCURSO LITERÁRIO

UMA LIÇÃO Rui Emanuel da Costa Gomes

1º Escalão/Poesia 6


UMA LIÇÃO Nela vivi, nela cresci, Na terra onde eu nasci. Quero ser homem a valer Sem medo de nada ter, Com ela sempre dentro de mim. Vejo vales e montanhas, Grandes árvores, sem vida, Que o vento e a chuva, Deixaram despidas. Mas sem perderem a esperança, Ergueram-se, porque… Quem espera sempre alcança. E assim pensaram, Em tempos de muita aflição. Seus ramos secos cansados, De forte vento aguentar, Pensaram que morreriam, Na terra que as criou. Então sentiram o queimar do sol, Novas folhas a quererem rebentar, Seus braços brilhavam com lindas flores. A Primavera chegou! E de novo a alegria voltou! É um exemplo de vida, E com ele aprendi uma lição: Deve-se viver de cabeça erguida E pés firmes no chão!...

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I CONCURSO LITERÁRIO

O CADEIRÃO Marisa Helena Martins Garanhel

2º Escalão/Conto


O CADEIRÃO Sob a luz da velha lâmpada e do seu piscar quase hipnótico encontrava-se um cadeirão vermelho e gasto, aquecido pelo calor da lareira. O seu tecido vermelho vivo com um estampado quase imperceptível, há muito escolhido, vigiava a penumbra da sala agora ligeiramente morna. Uma brisa suave escapava pela porta recentemente aberta e tocava ao de leve os livros poeirentos da estante, cuja madeira gemia com o peso da idade. A “casa das Mil Ruínas”, assim se chamava a soberba construção que hospedava o agoirento cadeirão, mansão de gerações e segredos; não guardados, mas revelados num ruído apenas contemplado por paredes e ouvidos maliciosos. O chão da antiga casa rangia com o esforço das tábuas, tão jovens quanto os seus companheiros presentes naquela casa decadente, numa melodia incomodativa que ecoava pelo silêncio da noite. Luís Valquar, autor de tal canção, avista a sua garrafa de whisky preferida, agora meio cheia. Enche um dos copos ali presentes até ao risco e, na sua mão direita, agita suavemente a bebida, num transe pensativo, focando o seu olhar nos diferentes reflexos dourados provenientes do conteúdo do seu copo. Olhando, mas não vendo. Os seus pensamentos interligavam-se com as suas memórias, algumas indesejadas mas sempre presentes, num rodopio confuso que lhe franze o sobrolho. Cai-lhe um pingo na mão. Acorda. Sua. Engole em seco. Limpava o suor com a manga do casaco, desapertava a gravata e suspirava. Bebia mais um pouco de seu copo e olhava o relógio de pulso. Oito e quarenta. Estava quase. O escuro da noite deixava-o irrequieto. Toldava-lhe a mente, algo que nem a bebida fazia. O brilho da lua, vencido pelos candeeiros, era quase indistinguível no claro soalho da divisão. Suspira. Oito e quarenta e dois. Desvia os olhos e fita o imponente cadeirão, dando um passo nervoso e incerto na sua direcção. Depois outro e mais outro até atingir o seu objectivo. Estica os dedos da mão esquerda e, quase confuso, num toque ligeiro e rápido, sente a áspera textura. Maravilhado, admira a sensação da sua pele na relíquia. A porta bate na parede, ficando escancarada. O barulho de tal violência assusta-o. Recolhe a sua mão e deixa cair o copo, que se estilhaça no chão, espalhando o Whisky na alcatifa. Olha sobressaltado para o criador de tal ruído. António Almiral. Criminoso conhecido e procurado pelo país. Olha de novo para o relógio. Oito e cinquenta. Chegou cedo. António, ofegante na ombreira da porta, avançava agora, cauteloso, na direcção de Luís, parando apenas a três passos deste. Os seus olhos brilhavam, de malícia, contemplando o espectáculo à sua frente;

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Luís, agora visivelmente nervoso e a tremer, afastava-se um passo do cadeirão. - Sei por que razão me chamaste. – disse-lhe António, numa voz segura – Pensavas que, ao atrair-me aqui, dizendo que tens provas do crime contra a Lucrécia, me tornavas numa das tuas “experiências”? Eu, como tu, sei a história desse cadeirão. Sei, que se me tivesse sentado, como tu planeavas, teria sido forçado a confessar os meus crimes. Onde escondeste o gravador, Luís? - Capitão Valquar, António. Vim para te prender e sim, confesso que era o meu objectivo. Quanto ao gravador, não é necessário. Irás ver. Este cadeirão é desde há muito o meu único e necessário instrumento. Infelizmente ninguém sabe as suas origens, mas tal não é necessário. Estás exactamente onde preciso que estejas. Luís tinha razão. António tinha caído na sua armadilha e a qualquer momento seria preso. Sabia que ao ouvir o nome de Lucrécia, António não hesitaria em intervir, condenando-se. O cadeirão, esse misterioso objecto confessador de crimes, era já desde o início de sua carreira o seu instrumento mais precioso. Qualquer pessoa que nele se sentasse, sendo culpada, estava condenada a admitir os seus feitos. Oito e cinquenta e dois. A qualquer instante conseguiria uma confissão, e António seria preso, levando com ele para “A Cadeira” da prisão as crueldades do crime de Lucrécia. Não tardavam os reforços que tinha chamado. - A minha mulher, Luís. Morta a tiro. - Só te podes culpar a ti. É devido à tua existência que a dela foi encurtada. A única pessoa que te amava. Uma mulher decente, de valores. Que encontres paz depois desta vida, sabendo o que fizeste. - Não mintas! – berrou António, ocultando assim o som distante de passos nas escadas. A luz amarelada da rua, chegava agora com um tom vermelho e azul. – A minha mulher era tudo para mim! Tu sabias disso! Por isso a mataste! - Foste tu! – apontou Luís frenético, para António. – Tu premiste o gatilho, tu sentenciaste a sua morte! - Não, Luís. Foste tu. – respondeu-lhe António, numa calma quase sobrenatural, avançando na sua direcção. – Eu sei. Eu estava lá. Luís recuou, assustado, e tropeçou. Em sintonia com a chegada de polícias da sua própria estação, chamados para prender António, Luís sentou-se. Nove Horas.

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I CONCURSO LITERÁRIO

FELICIDADE Marta Alexandra Rodrigues Martins

2º Escalão/Crónica 12


FELICIDADE A nossa maior ambição e, para muitos, o objetivo das suas vidas é alcançar a plena felicidade. Mas será que essa felicidade tem de ser eterna para nos sentirmos completos? Não poderá a felicidade ser efémera e ser experimentada numa fracção de segundo? A noção de felicidade varia ao longo dos anos. Para uma criança a felicidade é ter muitos brinquedos, é poder correr na relva com os seus amiguinhos, enquanto que, já numa fase adulta, a felicidade só é alcançada quando existe uma harmonia entre o bem-estar espiritual, emocional, físico e económico. Como seres racionais fomos habituados a desejar sempre mais do que já temos, o que muitas vezes leva a que não aproveitemos os momentos, as pessoas que se cruzam no nosso caminho e a felicidade que nos trazem ou que nos trouxeram. Para alguns, a felicidade que sentem a andar de barco, a ir a um bom concerto, a beber um bom vinho, a rir com os amigos basta para se sentirem realizadas, para outras nem é preciso tanto. Vejamos o caso das crianças que no Gana são vendidas, pelos próprios pais, a pescadores, tornando-se escravos. Para estas, um simples abraço, um simples carinho fá-las sentir no topo do Mundo, fá-las sentir que têm um porto de abrigo onde a felicidade irá sempre encher o seu coração já muito angustiado. Talvez por ainda não terem sofrido tão intensamente como elas ou por não terem maturidade suficiente, muitos não se apercebem de que, de um momento para o outro, o que têm como certo se evapora e que a felicidade que tanto perseguem já foi vivenciada em inúmeros momentos, só que, devido às vicissitudes da vida, nunca conseguiu nem conseguirá manter-se para sempre.

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MIL José Manuel Jesus Adelino

2º Escalão/Poesia


MIL Mil momentos, mil sensações Mil pensamentos, mil sentimentos, Mil olhares, mil visões, Mil imaginações… …de mil cores, de mil tintas, Numa pintura linda que só nós percebemos … Mil folhas num livro nosso, Só nosso… e que se vai Multiplicar em tantos outros… Mil sorrisos lindos e Irrepetíveis que me mostras Num dia…Mil sensações que Me preenchem num único Segundo que estou contigo! Mil é muito…é um Número grande e cheio! Mas é tão pequeno quando penso em todos os momentos que acredito que ainda vamos passar juntos! Tantas noites a ver as mesmas estrelas, a saborear a mesma lua e a viver os mesmos sonhos…

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I CONCURSO LITERÁRIO

ALFABETO Maria João Faria Rafael Veríssimo

3º Escalão/Conto 16


ALFABETO No conservatório enamorei-me de um cantor lírico. Uma paixão ardente e solitária de aluna para professor. Prestava-se bem aos papéis de baixo buffo e estou em crer que me apaixonei durante a sua representação como Dr. Dulcamara, em L’elisir d’amore, de Donizetti; foi um afecto deliberado e consciente, porque as suas personagens me faziam rir. Certa tarde, por alturas do Natal, combinámos um primeiro encontro proibido, à porta da Companhia Nacional de Música. Na ansiedade do encontro perfeito, apresentei-me à porta da loja com meia hora de antecedência. No alto dos sapatos de verniz que surripiara à minha irmã mais velha e ao carmim subtil dos lábios, dificilmente acusaria os meus dezassete anos. Passara-se meia hora desde a hora combinada e na minha cabeça passavam mil razões para o que o poderia ter retido. O tempo arrefecera rapidamente, os transeuntes que passavam na volta dos seus afazeres olhavam-me com estranheza e o meu professor tardava em aparecer. Da tarde depressa desceu a noite e as primeiras gotas de chuva enfurecidas pelo vento, num repente despovoaram a cidade. Recolhi ao refúgio da loja, envergonhada, com a alma e os pés extenuados. Lá dentro, o aconchego do calorífero provocou-me um arrepio, procedido de um galope desenfreado no peito: era a melodia que vertia das paredes que ressoava em uníssono com um trovão lá fora. Não pude esperar para escutar mais aqueles dedos artesãos a correrem com lábia os botões de um acordeão, corria em mim a urgência de o ouvir tocar no privado de uma das cabinas aquela melodia ora doce, ora amargurada, acompanhada de uma respiração vagarosa que me fizera apaixonar de verdade para a vida inteira. Não tive nem tempo de olhar para o nome da capa quando o empregado me entregou o disco, que me foi arrancado das mãos pelo meu encontro. - Anda, deixa lá essa porcaria – irrompeu sem aviso. De imediato saímos da loja, em corrida até ao Nicola, para num instante dispensar a minha paixão colegial à sua sorte, sem qualquer réstia de escrúpulo. Os sapatos de verniz voltaram discretamente à caixa e à caricia do papel de seda e quando os voltei a usar volvidos alguns anos, herdados como hábito nas famílias numerosas, importavam a memória da melodia de galope e de trovão. Namorisquei escandalosamente ao som da música furiosa dos Beatles e voltei a apaixonar-me em excesso com a cumplicidade dos franceses escritores de canções. Tive admiradores que me deixavam bilhetes em livros, debaixo de pedras no jardim; outro mais descarados, nas areias de Verão. Conheci rapazes tímidos que me acompanhavam ao cinema sem arriscarem um beijo, rapazes houve que se aventuravam demais. Preferi sempre os homens em detrimento dos rapazes. O primeiro amante era casado. Os homens

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casavam cedo e tinham pressa em constituir prole. O meu primeiro homem não tinha filhos e falava uma língua que eu não entendia. Estava de passagem. Havia os homens galanteadores que metiam conversa em locais públicos, como nos eléctricos. Certo homem na casa dos seus cinquenta anos, determinava-se a fitar-me com singularidade de todas as vezes que nos cruzávamos na Rua da Escola Politécnica, onde morávamos. Sobretudo não chegamos a usar a palavra, nem sob a forma simpática de um cumprimento, estou convicta de que nenhum de nós a saberia usar particularmente um com o outro. Chegámos a cruzar ternos olhares na Versailles, onde as mulheres da família tomavam chá a seguir à missa domingueira. De todas as vezes me sorriu com a firmeza do amor, tenho a certeza. Partimos, avisados em segredo da mobilização do meu irmão Xavier para África; dois dias antes da missiva chegar, já nos encontrávamos a salvo na Bélgica. Prosseguimos os estudos, prosseguimos a vida num país livre – novidade viciante; até ao dia que meu irmão Xavier resolveu viajar até Lisboa para matar saudades (não serão elas que nos matam aos poucos?...) da noiva e mesmo antes de chegar a tocar nos seus lábios, viu-se embarcado no primeiro navio para Nacala. A família regressou em peso, com excepção dos meus três outros irmãos, quase homens. O amor que impunemente denunciou Xavier, vivia afinal, enredado nas teias da PIDE e desapareceu de repente como se não tivera existido. Deixou de ter morada, família, profissão. Havia um primeiro andar na Rua do Século, onde supostamente morava – nas cartas constava o remetente. O telegrama chegou em meados de Agosto de 69. Minha mãe, prostrada de desgosto e dor, encarregou-nos, minha irmã e eu de sermos as portadoras da triste notícia. O golpe foi maior quando fomos informados que naquela morada não podia ter constado ninguém com o nome dela, nem a sua fisionomia física ou social. Mais tarde, já em democracia, soubemos que ela teria sido um contacto da PIDE nos Correios que aplicavam os seus recursos para trair famílias inteiras em prole dos seus próprios benefícios. Meu querido irmão, um pacifista teimoso – perseguido pela obstinação, cujo corpo nunca tivemos oportunidade de recuperar, apodreceu algures, no Pântano de Malambuage, em Moçambique – numa missão com nome de navio, Zeta. Voltei a juntar-me a meus irmãos, em Louvin. Numas férias quentes, fugi com um grupo de estudantes ingleses para Paris e vivi com um pintor holandês durante dois anos. Passávamos os dias juntos, porque ele fazia cenários para o Teatro Châtelet de Paris e eu fazia coros. Numa qualquer manhã, acordei com música. Um som feliz, íntimo. Olhei em volta e estava sozinha. Corri para o gira-discos, descalça, nua. Mesmo antes de me aperceber que tinha sido abandonada, reconheci com o mesmo frenesim de outros tempos, o meu primeiro amor, o mesmo homem cujos dedos me fizeram desprezar a paixão pelo professor do conservatório! Levantei a casa inteira à procura da capa daquele vinil, sem efeito. Só depois tomei consciência de que ele me tinha deixado, sem aviso prévio, sem bilhete de despedida. Porém, tinha-me deixado aquele presente adiado, só para mim. E as mãos que me entonteciam juntamente com aquela respiração tranquila tinham enfim um nome. O músico, quem eu supus estrangeiro desde o início, tinha nome português.

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Pensei na despedida carinhosa do holandês e na terna coincidência daquela melodia aparecer novamente em ocasiões da minha vida que tendenciosamente deveriam ser de paragem e perda. Mas impugnando a tendência da situação, de todas as vezes que aconteceu, amei, desejei com desespero aquela respiração. Durante muito tempo, talvez anos até, percorri todas as discotecas de Paris, garimpei os subúrbios à procura daquele nome. Desconhecido. Regressei a Lisboa ainda nesse ano 80, em vésperas de Natal. Aterrámos debaixo de uma torrente. Não havia táxis disponíveis. Apanhei um autocarro e depois outro. Galguei os passeios, subi escadas, atravessei a Baixa a correr, chapinhando os pés nos charcos gelados (excogitei se os meus pobres sapatos de verniz iriam aguentar)…Parei sob a chuva, na entrada, para me certificar de que a discoteca era a mesma. Transpus a porta devagar; lá dentro o mesmo calorífero a gás, o mesmo empregado agora de gravata, atrás da caixa registadora, a transpirar promoção. Já não foi ele que veio solícito atender-me, mas um rapaz de cabelo comprido. Ao pronunciar o nome dele, sem indolência, como se ele estivesse todos estes anos ali à minha espera e fosse este o encontro mais inquieto, a imagem que o rapaz me colocou entre as mãos deixou-me desabrigada à tempestade que me fustigou. O homem da fotografia parecia caminhar vindo do mar, com água pelo joelhos, vestido com fato completo e sobretudo, distinto, abraçando com paixão um atado descomunal de flores brancas, como se os seus braços fossem uma fortaleza. Muda, paguei o álbum, protegi-o com o braço e a gabardina e saí debaixo do temporal. A figura que me fitava como se me quisesse oferecer flores era o gentil homem que extraviava o meu olhar até se perder no seu, ao descer a Rua da Escola Politécnica. Subi ao miradouro de S. Pedro, calcorreei a mesma Rua onde nos previmos um ao outro tantas e tantas vezes, ele com aquele afecto, a claridade que não procurei nos outros porque até àquele instante ainda não sabia que era isso que eu reivindicava. Só por isso. Fiquei à espera de o rever, sabendo de antemão de que era ele sempre que me surpreendia. Deixei-me imobilizar pela chuva e por tudo o resto, pelo rasto da via láctea que era a minha vida até ali; as viagens, as fugas, os homens que se ludibriavam nos lençóis sem que isso me causasse pesar. Deitei-me por muito menos de um olhar, às vezes com uma vontade avara de sexo. A sua música repetia-se em mim, alienada do resto. Sentei-me no jardim do Príncipe Real para quando ele descesse a rua me pudesse ver. Apertava a voracidade de o abraçar e tocar-lhe as pálpebras com a polpa dos dedos, de descer o meu rosto pelo dele até morrer na sua boca. Nada fora mais urgente. Senti que alguém me tocava os cabelos curtos, dedos quentes. Foi como um sopro fugaz: não era ninguém. Lisboa era um dilúvio. Ele não passou. Tentei na manhã seguinte, afinal um músico também deve ter hábitos, pensei. Podia ter-se mudado, talvez andasse em digressão…À tarde também não veio. Desci ao Chiado e pedi o último disco dele. O rapaz que me tinha reconhecido da tarde anterior, lembrou-me que já mo tinha vendido. - Sim, mas o disco que me vendeu ontem data de 1976… Ele não gravou nada entretanto? - Esse foi mesmo o último disco. Tem estado ausente? - Sim…

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- Ah! Desconhece então que ele morreu? Voltei à loja para comprar o mesmo vinil e depois dessa vez, voltei outra e outra vez, há alguns anos voltei lá para adquirir a mesma versão em formato de CD; tenho uma biblioteca devidamente organizada que me tem ajudado a descobrir o homem do acordeão. Uma vez, logo no início de ter descoberto que o amava morto mais de qualquer outro homem vivo, descobri uma frase de agradecimento, quase imperceptivel, no seu terceiro disco: “Não te posso falar quando toda a música que um homem pode inventar mora em ti, em ti. E eu não sei pronunciar palavras como casa, mesa; mas tu, eu sei que tu e apenas tu escutas a palavra pássaro, mar, transbordar, vertigem no alfabeto do meu olhar. Espero-te do outro lado da rua, como quem vem da Escola. Tens chegado atrasada!... E eu tenho pressa dos teus passos, amor. - À menina da Versailles”. Sem querer, penso que criei uma lenda; diz-se que aparecem flores brancas, braçados de flores iguais, que todos os meses lhe cobrem a campa, sem que ninguém saiba quem as coloca lá. Surgem em dias diferentes, a horas incertas. Durante algum tempo, os jornais começaram a inventar histórias tão inverosímeis que acabaram por desistir. Dizem na televisão que faz dez anos que morreu e que lhe vão prestar homenagem; convidaram para o efeito o filho e nomes sonantes da cultura. A opinião é unânime, um ser humano e músico díspar. A exmulher diz que a incapacidade de lidar com o seu entusiasmo e com a sua distração, acabou com o curto casamento; ouço-a falar contrariada, com a sensação da incapacidade da delicadeza. Alguém coloca a questão sobre quem seria a menina da Versailles; fantasiam sem resposta e eu concluo que ele é que me fez lenda. Eu continuo a acreditar eternamente em tudo o que me fez e faz feliz, nos olhares que ainda estão à minha espera ao descer a rua, nos sorrisos do meu amante distante que não quer partir…ou que eu não deixo. Reclamo a mim mesma a imperfeição de ter receado as palavras quando a maior parte das vezes apetecia-me dizer-te coisas como: diz-me um segredo; bom dia; essas calças ficam-te bem; vamos passear à chuva? Gosto do teu cabelo grisalho… Reclamo as palavras que o teu alfabeto não teve tempo para me ensinar. Chamo pela voz sem que seja a do teu acordeão, pelas amarras dos teus braços de pedra na fotografia. Reconhecer-te-ia em qualquer lado, numa constelação com um nome grego, num cirro de uma nuvem, numa pedra se tivesse alma. Continuo a reconhecer-te por aí, quando por exemplo, o vento brinca em redemoinhos com as folhas e me obriga a segui-lo até debaixo da buganvília do miradouro, onde me costumavas esperar. E por instantes fico ali a fazer-te companhia, até que me lembro que foste tu que vieste ver-me passar…Já aprendi a falar contigo, vês?... Senti que alguém me tocava os cabelos curtos, dedos quentes. Foi como um sopro fugaz. Dedos cálidos, dedos a galope, voz grave de tango, melodia silenciosa no meu rosto. Fôlego em pousio. Alfabeto descodificado. Eras finalmente tu, amor.

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I CONCURSO LITERÁRIO

(IN)CONFIDÊNCIAS Maria Manuela dos Reis Monteiro Duarte

3º Escalão/Poesia 22


(IN)CONFIDÊNCIAS Não sei que pense, que faça, que diga. É sempre este abismo que me atrai para a multidão E me leva a procurar-me no olhar dos outros.

Amanheceu E as palavras ganham outra dimensão Só os medos e os anseios não. Há em mim uma mágoa Não sei de quê Não sei de quem. É um tormento que me consome Uma falta, uma ausência Do que nunca tive Mas foi meu, Tão intensamente meu… Que dói perder

O que me angustia É esta espera, Esta expectativa Em que me encontro à espera do dia em que já não serei Doem-me as palavras Que caem no papel.

A unir-nos há as palavras Livros por ler, Os sonhos por viver, Os desejos por realizar.

É assim que eu sinto A dor dos outros! Apetece-me chorar, Deixar escorrer os gritos que tenho calados Os medos e as incertezas Do que sei e do que fica por saber.

A separar-nos Tu e eu! Pedem-me um poema… Encontro-o na água fresca das fontes, No restolhar da palha seca dos caminhos, Nas pedras quentes do chão, No bafo que se solta da terra e me envolve Ei-lo Em todo o seu esplendor A insinuar-se de mansinho!

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Rede de Bibliotecas do Município de Azambuja

II CONCURSO LITERÁRIO

2008/2009


II CONCURSO LITERÁRIO

OS OBJECTIVOS Beatriz Batalha Ananias Mota

1º Escalão/Conto 26 26


OS OBJECTIVOS Numa sala de aula havia um relógio, muitas mesas, muitas cadeiras, um professor e muitos alunos. No meio de tantas mesas e cadeiras existia uma mesa e uma cadeira em especial. Elas não gostavam uma da outra, porque a cadeira era mais ousada que a mesa, isto porque a mesa era um bocado pequenina (a mesa tinha ciúmes). Um dia o professor pôs um aluno de castigo, e resolveu que tinha de o pôr naquela cadeira e naquela mesa. Só que como elas não gostavam uma da outra, faziam de tudo para não ficarem juntas. Foi então que na língua delas combinaram que quando fosse intervalo iam resolver as coisas. Tocou para intervalo. E elas confrontaram-se, chegando a um acordo que era o seguinte: a cadeira tinha de se colocar debaixo da mesa em 15 minutos. As duas foram para o canto da sala, chamaram o relógio para contar o tempo e em…um, dois, três… começou! A cadeira a “atacar” e a mesa a “defender” e o relógio tic-tac, tic-tac…E a cadeira continuava a “lutar”, a “lutar”… Faltavam 5 minutos para o fim e a cadeira ainda não tinha conseguido enfiar-se lá em baixo! Eis que no meio daquela “luta” aparece o professor e fica chocado! Não acreditava naquilo que tinha acabado de ver. Ele chegou a pensar que estava a ver coisas, esfregou os olhos, e quando os abriu já estava tudo normal. Olha para a cadeira e ela já estava debaixo da mesa. Quem terá ganho?...

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II CONCURSO LITERÁRIO

PENUMBRA DA ALMA Cláudia Abranches Melo

1º Escalão/Poesia


PENUMBRA DA ALMA Num canto escondido, Num caderno rasgado, Um relato vivido, De um poema amargurado! De um amor esquecido, De um tempo perdido, Um momento assombrado! Uma alma vencida, Uma esperança escondida, Por detrás da memória! Uma paixão sem vitória, Na penúria da história, Vagueia devaneada! Vagabunda, arruinada, Esta loucura sem fim, Que apesar de desprezada, Ainda permanece em mim! Inúteis são as cartas, Que escrevi sem destino, Percorrendo o caminho, De uma vida sem sentido Mais inútil é escrever, Sem saber para onde partiste, Não sabendo o que dizer, Nem, se a minha falta sentiste. São retratos da ruína, Que restou do meu coração, Que matou essa menina, Que morria de paixão!

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II CONCURSO LITERÁRIO

UM ANJO CHAMADO PEDRO Joana Rocha Cabrita Marques Lopes

2º Escalão/Conto


UM ANJO CHAMADO PEDRO Dia 1 Abri os olhos, o despertador estava de novo a tocar. Seria mais um dia que aí vinha – o primeiro dia de aulas. Continuei, nos segundos seguintes, deitado na cama, como se aquele despertador não tivesse tocado para mim. Mas não consegui, os meus irmãos deram um pulo na cama e começaram logo a correr pela casa, abriram todas as portas à procura de preguiçosos, como eu, que ainda estavam a dormir. A manhã mal tinha começado, já aquelas duas melgas não paravam um segundo. É a consequência de se pedir irmãos aos nossos pais. Eles estavam muitíssimo ansiosos pelo início das aulas. Pois claro, iam para o primeiro ano de um longo caminho de estudos. Eu, como já estava no décimo ano, pouco me importava o primeiro dia de aulas. Eram todos iguais, tanto no décimo como qualquer outro ano. Mas tive de me levantar, já não podia com o “abre e fecha a porta” dos meus manos. O Francisco, o gémeo mais calminho, só falava na mochila nova, no estojo novo, nos livros novos e em coisas que eu já estava farto de ver. O Guilherme, o outro gémeo, não se conseguia calar com a quantidade de brinquedos que ia levar para a escola, para fazer inveja aos seus novos colegas. Quem conseguia “sobreviver” numa manhã como esta? Só queria comer as minhas torradas, bastante queimadas devido ao facto de torradeira já ter caído ao chão muitas vezes, mas nem isso conseguia. O Gui e o Kiko queriam fazer delas alvo de brincadeira, atirando pequenas bolas de papel lá para dentro delas, acabando as minhas torradas com uma mistura de pasta de papel e de manteiga. Nada agradável, posso dizer. Rapidamente desisti do pequeno almoço, preferia comer qualquer coisa na escola. Levantei-me da cadeira e, ainda sonolento, tropecei no Faísca. O cão não poderia estar em pior lugar, parecia que tinha acordado numa sexta-feira treze. Mas não, até vos posso dizer que me dei ao trabalho de olhar para o calendário, era 14 de Setembro, não havia nenhuma sexta-feira treze por perto. Peguei na mala da escola, que apesar de tudo era nova e da minha cor preferida – branco. Corri para a porta, fingindo estar muito atrasado, mas não estava, simplesmente queria-me livrar do raspanete da minha mãe por não ter comido as torradas. Mal saí de casa, abrandei o passo, pois o sono não me deixava andar rápido. Os meus pés rastejavam no chão e resmungava para mim mesmo o porquê da minha existência. Cheguei à escola, já ia cerca de vinte minutos atrasado, devido ao meu andar ou rastejar, melhor dizendo. Pouco importava. Não fui à primeira aula, assim dormia mais uns minutos no banco de jardim. Foi o que fiz. Acordei com o toque de saída. Aquele burburinho de passos a correr pelas escadas e cadeiras a arrastar faziam-me relembrar que aquilo era mesmo uma escola e que tinha de voltar a estudar. Disse cá para os meus botões: “Que seca!”. De repente, vi a Matilde ao longe. O meu coração começou a bater a mil à hora. Ela é a rapariga mais

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gira da escola, mas adivinhem! Tem namorado. Por acaso é só o meu melhor amigo, o Gonçalo. Aquele marmelo tinha de me roubar a única terrestre da qual conseguia gostar. A culpa também seria um pouco minha, nunca lhe disse o quanto gostava dela. O problema é que não conseguia parar de olhar para ela. Tanto a Matilde como o Gonçalo não se deram ao trabalho de me vir cumprimentar e fui até ao bar. Aproveitei para ver um pouco de televisão, que é coisa que não fazia há muito tempo. Nestes últimos meses só se ouvia falar dos mutantes que invadiram a Terra e que estão a ser capturados e aprisionados. Não entendo esta gente, nós simplesmente queríamos um sítio para morar e viver as nossas vidas em paz. Mas os terrestres são demasiado centrados em si para perceberem que outros seres têm sentimentos, vontade de ser feliz e de viver uma vida calma. Basta sermos diferentes, para sermos logo excluídos e perseguidos. Ainda bem que nunca me encontraram a mim e à minha família. Não quero que me aprisionem como fizeram com o meu primo Frederico e ao meu tio Eduardo. Os pobres coitados não conseguiram escapar. Tentei pensar noutro assunto. Cada vez que pensava na vida de um mutante, lembrava-me de como era feliz enquanto morei em Etatum – Planeta dos mutantes. Podia ir a voar para a escola enquanto o Gonçalo ia a correr com ultra velocidade e acabávamos a ver quem chegava mais rápido. Era fantástico mas agora nem podemos demonstrar os nossos poderes, nem me consigo divertir com o Gonçalo. A vida corre-me mesmo mal. Deixei de pensar no passado e fui andando para as aulas. O Gonçalo e a Matilde passaram todo o tempo a olhar um para o outro. Não aguentei vê-los juntos e faltei à última aula. Fui para casa. Lá, pude deixar nascer as minhas asas que muitas alegrias me deram. Estava farto de ter de as cortar a sangue frio todas as noites. Tinha saudades de as ver. Passei o resto do dia a pensar em como poderia voltar para Etatum e esquecer a Matilde. Mas acabei por adormecer enrolado nas minhas asas brancas, cobertas de lindas e finas penas e só consegui acordar para escrever isto. Dia 2 Acordei com um grito da minha mãe. Assustado, levantei-me logo da cama, com medo, porque tinha acabado de sonhar com os caçadores de mutantes que me tinham levado mais a minha família. Quando cheguei à sala, estava ela de volta da televisão, perguntei-lhe logo o que se passava. O meu pai vira-se para mim com um ar muito sério e diz que encontrou uma solução para todos os nossos problemas. Passou-me logo pela cabeça que o meu pai me iria dizer que voltaríamos para Etatum, mas não. Ele disse que os terrestres tinham inventado uma vacina para quebrar todos os poderes dos mutantes e que nunca mais tinha de cortar as minhas asas para sair à rua. As lágrimas começaram-me a cair rosto abaixo, não queria perder a última recordação que tinha de Etatum. A minha mãe deu-me um abraço e disse que não havia outra hipótese e que se não fosse assim, os terrestres levavam-nos. O meu pai saiu logo a correr de casa e foi buscar vacinas para todos. Eu não sai do meu quarto, não queria nem pensar no terror que seria a minha vida sem as minhas asas. Não faço a menor ideia de como a minha mãe con-

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seguirá agarrar todos os meus irmãos sem o seu corpo elástico e o meu pai ser polícia e apanhar todos os ladrões sem a sua ultra visão. E o que será dos meus irmãozinhos sem se poderem transformar em gelo e fogo? Agora até passei a sentir saudades de quando os meus irmãos congelavam ou queimavam as pontas das minhas asas. Ouvi a porta a bater, o meu pai tinha chegado. Não lhe consegui dizer uma única palavra. Ele percebeu que eu não estava bem e não me obrigou a falar. Deixou-me a vacina na mesa de cabeceira e disse-me: “Quando te sentires preparado tens de a tomar”. Depois, ele e a minha mãe foram dá-las aos meus irmãos. O ambiente tornou-se muito tenso. Os meus irmãos só gritavam e os meus pais choravam. Eu não consegui aguentar mais. Tinha de tomar rapidamente uma decisão acerca daquela vacina e assim foi. Abri a janela do meu quarto, sem medo do meu décimo quarto andar, saltei e voei como já não voava hà muitos anos. A vacina ficou no meu bolso das calças, não sei bem com que intenção, mas decidi levá-la. Não sei qual foi a reacção dos meus pais quando descobriram que fugi, mas pouco posso fazer por isso. Fugi e não volto mais. Dia 3 Depois de ontem ter voado muito até encontrar um bom local para dormir, descansei o dia todo. Hoje sim, tenho mais tempo para te contar o que fiz. Pode-se dizer que acordei no terraço de um prédio de vinte e dois andares. Assim nunca ninguém me encontraria. Encontrei comida num armazém de distribuição, de produtos alimentares, e não pude resistir a comer qualquer coisa. Logo aí, comecei a ter saudades das minhas torradas queimadas, com manteiga e pasta de papel feita com o leite e guardanapos dos meus irmãos. Mas consegui sobreviver, até agora. Depois, achei que os meus pais deveriam estar a sofrer muito e escrevi-lhes uma carta a prometer a vingança da nossa raça. Deixei a carta na varanda sem que eles me vissem. Depois voei até à praia, precisava de ver o mar. Quando lá cheguei pude observar as ondas que me acalmaram muito. O brilho do sol que incidia nas ondas do mar lembrava-me o olhar dela. A brisa marinha lembrava-me o seu suave corpo. Enquanto isso pensava: “Será que ela gostaria de mim se soubesse que sou um anjo mutante?!” Pouco provável. Então decidi ir visitar a Matilde. Ela estava com o Gonçalo. A cara dele não era a melhor. Estava triste, provavelmente já teria levado a vacina, pensei eu na altura. Ele viu-me ao longe e chamou-me. A Matilde não percebeu o que se passava. O Gonçalo perguntou-me que estava eu a fazer. Claro que percebi a admiração dele. Voar não é coisa que se faça neste planeta, a não ser naquelas máquinas com asas de aço a que os terrestres chamam aviões. Eu disse-lhe que preparava a vingança da nossa raça e perguntei-lhe se ele tinha tomado a vacina de que por aí se falava. Ele, para meu espanto, disse-me que não e que, tal como eu, não teve coragem de o fazer. A Matilde, entre nós, olhava-nos com uma cara de constrição. Entende-se porquê. Acabou de saber que namora com um mutante e é colega de outro. Mas o Gonçalo, não se apercebendo da frustração dela, continuava a explicar-me o quanto estava revoltado com a vacina e o que pretendia fazer. Decidi

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chamar-lhe a atenção. Achei que a Matilde merecia uma explicação da parte dele. Toquei-lhe no braço e fiz-lhe sinal de que me ia embora, virando costas, abrindo asas e voando. Enquanto voava, só pensava na promessa que fiz aos meus pais de vingar a nossa raça e tenho de o conseguir fazer. Quero voltar para Etatum e ser de novo livre, mas como é que um mutante de 15 anos, como eu, conseguirá lutar contra 6 bilhões de terrestres? Ainda não sei, mas vou descobrir. Dia 4 Hoje não pude deixar de pensar na minha promessa ao Gonçalo, sabia que ia precisar de um plano genial, mas não me ocorria nada que aparentasse funcionar. Pensei em procurar o cientista que criou a vacina e obrigá-lo a inverter tudo o que fez, também pensei em destruir o planeta e em situações mortíferas relacionadas. Mas nada disto me pareceu funcionar. À noite fui ver a Matilde, não conseguia dormir se a não visse. Voei até ao prédio dela e sem que ninguém se apercebesse da minha presença, pendurei-me na sua varanda. Ela já dormia e a sua postura gracejadora e chistosa deixava-me imobilizado, os seus cabelos morenos e lisos estendidos sobre os seus lençóis deixavam-na muito serena, o seu rosto singelo, puro e cristalino estavam num repouso que me atenuava, tal como o seu corpo, que eu imaginava debaixo dos lençóis como o mais macio, belo e formoso com o qual algum dia poderia sonhar. Já era tarde e a minha presença perto dela fazia-me sonhar demasiado alto, até onde não podia. A minha consciência lembrava-me que ela era a namorada do meu melhor amigo. Deixei escorrer umas lágrimas pelo meu rosto e voei. Saí dali, não aguentava mais estar a sonhar com a Matilde, sentia que estava a trair o Gonçalo. Dia 5 Estes últimos dias têm sido complicados, mas hoje foi o melhor dia da minha vida. Sim, é isso. A Matilde finalmente percebeu o que sinto por ela e, como podes imaginar, este amor é correspondido. Vou-te contar o que se passou. Esta manhã, quando acordei e depois de ter conseguido tomar um pequeno-almoço minimamente agradável, fui à sua procura. Sobrevoei todos os sítios onde ela poderia estar e fui encontrá-la na praia. Não poderia encontrá-la em melhor sítio. Estava tudo nas condições perfeitas para falar com ela. Ao início hesitei muito, não sabia o que o Gonçalo lhe tinha dito sobre os mutantes e como o namoro deles tinha ficado depois daquele maldito deparo. Mas não resisti, ela estava ali com um aspecto abatido e triste que me deixava doente. Por isso, aproximei-me. Sem que ela me visse perguntei: “porque estás assim, Matilde?”. Ela levantou-se da areia onde estava sentada e virou-se. Mal deparou comigo assustou-se. Sei que não sou o ser mais normal neste planeta, mas a reacção dela deixou-me abatido. Tentou disfarçar, olhando para o chão e respondendo: “Nada Pedro, não é nada”. Quando disse o meu nome, o meu coração ia saltando. A rapariga mais bonita que já vi sabia o nome de um mero mu-

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tante. “Sabes o meu nome?!” – perguntei eu, com um enorme sorriso. Ela olhou finalmente para mim e aproximou-se. As suas mãos macias percorreram a minha cara permanecendo no fim apoiadas nos meus ombros e disse: “Claro que sei.”. Não sabia o que dizer nem fazer. A conversa parecia de tolos, mas eu estava intensamente contente. Decidi então abrir as asas e para minha admiração, ela não se assustou. Enrolámo-nos nelas e lá dentro, sem dizer mais nenhuma palavra, a situação aqueceu. Não tinha nada para lhe dizer, pois apesar de tudo o que estávamos a fazer parecer errado, o meu amor falou mais alto e a vontade de a beijar subiu-me à cabeça. De repente, comecei a ouvir barulhos. Eram sirenes da polícia, muitas sirenes. Assustei-me! Os altofalantes anunciavam-me, mandando-me não me mexer. Parei, percebi que a polícia tinha descoberto a minha presença. A Matilde, assustada, perguntou-me o que fazer e eu decidi uma vez na vida ser realmente corajoso, pegar nela e voar para o mais longe dali. A polícia não teve hipótese de me apanhar. Levei-a para casa. Disse-lhe que voltaria e que seríamos felizes. Era a segunda promessa que fazia num espaço de tempo muito curto, mas pouco me importava, tinha sido o dia mais feliz da minha vida. Agora, já no topo do prédio onde tenho dormido, descrevo o melhor dia da minha vida com um enorme sorriso. Dia 6 Esta manhã acordei com uma zaragata enorme de militares à volta do prédio. Pelo que me tenho apercebido, nos últimos tempos, sou o último mutante livre neste planeta, sim, até o Gonçalo tomou a vacina. Mas eu não a ia tomar, nem que disso dependesse a minha morte. Então voei rapidamente dali. Queria ir ter com a Matilde, precisávamos de falar e não era nem a polícia nem os militares que me iam impedir. Abri as minhas asas e levantei voo. Já lá muito no alto comecei a sentir-me seguro da mira dos militares, até que… (no momento não sabia o que se tinha passado) dei uma queda de muitos metros e aterrei na floresta. Olhei para a minha asa e vi que ela tinha sido atingida por uma bala. “Foram os terrestres.” – tive tempo de dizer antes de desmaiar. Dia 7 Os meus olhos verdes abriram-se e nada viram. Estava rodeado de paredes brancas. As minhas asas, juntamente aos meus braços e pernas, estavam amarradas a uma cama. Naquele momento, certezas não havia, mas parecia que estava numa clínica ou algo parecido. Não me conseguia mexer, então comecei a gritar. “Ajudem-me! Que se passa aqui?” Ninguém me ouvia até que, de repente, apareceu alguém de bata branca com uma vacina na mão. Percebi logo que tinha sido apanhado e que desta não ia escapar. O médico preparava-se para me fazer tomar a vacina, quando apareceu outro médico a dizer para ele parar. A situação tornou-se estranha, só os ouvia a discutir e o outro médico a dizer que tinha planos para mim. Os dois olharam para mim e sorriram um para o outro. Senti-me um rato de laboratório. Mandaram-me acalmar e disseram-me que tudo ia correr bem. Lá fora, ouvia pela janela alguém a discutir. A voz era-me familiar mas não me conseguia levantar para ir ver. Comecei a mover-me para me desprender, mas nada. Nem um milímetro. Até que alguém entrou

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no quarto onde estava. Virei a cara para disfarçar o facto de me estar a tentar libertar. Mas essa pessoa, com uma voz fina e delicada, disse: “Pedro, Mal soube que estavas aqui, não aguentei ficar parada, tenho de te ajudar”. Os meus olhos arregalaram-se e eu soltei da minha cara um enorme sorriso. Virei a cara e vi-a. Era ela. Ela estava ali, ao pé de mim quando mais precisei. “Porque vieste, Matilde?” – perguntei. “Para te salvar, ou achas que os anjos só salvam e que não podem ser salvos?” – respondeu-me ela. Os nossos olhares não se largaram nos instantes seguintes. Até que ela se aproximou de mim e me beijou. Se pudesse, o tempo para mim parava ali, mas não parou. Começaram a entrar médicos e levaram-me à força toda. Ela gritava e pedia ajuda e eles só diziam que era um monstro muito perigoso. Nesse momento a minha força deve ter aumentado para o dobro e consegui quebrar as argolas de aço que me prendiam à cama. Tinha nascido em mim o verdadeiro poder de um anjo mutante. Agarrei nela e saltei pela janela partindo vidros e tudo o que se encontrou à minha frente. Comecei a voar, até que tive uma ideia. Deixei-a em terra segura e voltei para a clínica. Queria aproveitar a força com que estava para descobrir uma cura para os mutantes que tomaram a vacina e libertar todos os outros que estavam presos por eles. Quando lá cheguei, todos os médicos me observavam com medo. Senti-me grande, afinal era apenas um mutante, posso até dizer-te que em Etatum a minha força era muito inferior à de qualquer soldado do nosso rei. Enquanto pensava nisto, lembrei-me logo do meu rei – D. Edvarde, perguntei por ele aos médicos. Um deles foi-me buscar as fichas médicas de todos os mutantes que ali estavam. Enquanto esperava por eles, sentia-me a visitar um jardim zoológico de mutantes. A raiva subia-me ainda mais à cabeça, mas rapidamente me deram as fichas de todos os mutantes com os seus nomes e respectivos números atribuídos pelos médicos. Lá constava também o número do quarto onde eles estavam e, assim, corri pelos corredores, libertando cada um deles. Aqueles corredores eram altíssimos, de dimensões soberbas, mal conseguia acreditar que os terrestres tinham construído isto só para os enjaularem. Enquanto libertava o meu povo, cheguei à porta do meu rei e quando a ia a abrir, oiço o tio Eduardo. “Não vale a pena, El-rei D. Edvarde faleceu, ele não aguentou estar preso aqui, pois como sabes, o seu poder ligado à força do sol impunha certas limitações ás quais ver o mesmo, coisa que no quarto onde ele estava não podia, pelo infeliz facto de não ter janelas”. As lágrimas escorriam-me da cara, do que seria do meu povo, mas sei que ele se orgulharia muito de mim se libertasse todos os que ficaram presos, como ele, e assim continuei. Depois de todos libertados, procurei a cura. Mas nada de cura. Pelo que os terrestres me disseram, não havia cura, era completamente impossível reverter o que estava feito. Aceitei a justificação dele e voei juntamente com os outros mutantes que correram e voaram a meu lado. Já não via muitos deles há muito tempo e fiquei bastante feliz de os ver. Rapidamente conseguimos via rádio comunicar com os poucos mutantes que se encontravam em Etatum e fazê-los enviarem naves para nos vir buscar. Os mutantes e os ex-mutantes (aqueles que tomaram as vacinas) iam voltar todos para Etatum, mas eu… Eu não sabia onde ficar. Só conseguia pensar na Matilde e no facto de nunca mais a ver se voltasse, mas por outro lado, Etatum era a minha terra natal. Enquanto pensava, o Sr. Carlos – o maior sábio de todos os mutantes – aproximou-se de mim e disse-me que um novo rei tinha de ser eleito em Etatum e que todos os mutantes me elegeriam a mim. A minha reacção foi logo de dizer que não, que não poderia nem ser rei, nem ir para Etatum. O sábio olhou-me de cabeça baixa e disse que a decisão seria sempre minha e que eu saberia ao certo o que era mais importante. No meio dessa conversa vi a Matilde ao longe, voei até ela e disse-lhe que tinha de partir. As mãos dela agarraram-se à minha camisola e ela começou a chorar. Não sabia que lhe dizer, porque eu não queria ir. Ficámos ali agarrados um ao outro durante horas, até que as naves chegaram e os mutantes começaram todos a aterrar. Eu agarrei nela e elevei-nos um pouco do chão. Fi-la olhar para todos aqueles mutantes e disse-lhe: “Os mutantes, que tu ali vês são o meu povo, eles esperam que eu os lidere”. Depois virei-a para mim, olhei-a nos seus olhos

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molhados e castanhos e disse. “Agora a pessoa que vês, sou eu, um simples mutante apaixonado pela mais bela terrestre, por favor ajuda-me a decidir.” Ela agarrou-se a mim, beijou-me e disse: “Pensei em pedir-te que ficasses comigo, mas de modo nenhum quero ser egoísta, pensei em ir contigo, mas esta é a minha vida e este é o meu planeta. O nosso amor nunca há-de desaparecer e quem sabe um dia nos voltaremos a ver. Quero que vás com o teu povo e que te tornes o melhor rei que Etatum alguma vez teve.” Sequei-lhe as lágrimas que ainda lhe caiam, pousei-a no chão e entrei na nave. Sentei-me no chão, enquanto todos à minha volta festejavam. O meu pai e a minha mãe corriam atrás dos meus irmãos que jogavam à bola dentro da nave. Tudo parecia estar a voltar ao normal, menos eu. Olhei para as minhas asas e percebi que elas não eram o mais importante. Pus a mão no bolso e tirei de lá a vacina, aquela que o meu pai me comprou há seis dias atrás. Abri a porta da nave e saltei em direcção à Terra. Lá aterrei e tomei a vacina. As minhas asas desapareceram e fui procurar a Matilde que estava a chorar na praia, na nossa praia. Naquela onde o nosso amor nasceu. Fui a correr ter com ela a gritar pelo seu nome. “Matilde, Matilde, eu amo-te”. Ela virou-se de repente. Eu esperava que ela corresse para mim, mas não correu. Ela permaneceu intacta virada para mim na areia. Nessa altura, parei de correr, aproveitei para observar o seu lindo vestido branco, os seus cabelos castanhos e todo o seu corpo lindo. Enquanto eu estava ali pasmado a olhar para a mais linda rapariga deste miserável planeta e a pensar no nosso futuro, em que estaríamos casados com os nossos filhos e os nossos empregos, ela aproximou-se de mim. Já perto de mim perguntou o que acontecera às minhas asas. Eu disse-lhe: “Tomei a decisão de ficar contigo. Para isso tive de tomar a maldita vacina, se não doutra forma aqui na terra não seria aceite.” “Mas eu disse-te para ires, porque não obedeces-te?” – gritou-me ela. “Pensei que quisesses ficar comigo meu amor.” – questionei-a eu já de rosto desolado. A cara dela, já seca, sem lágrimas, mostrou uma atitude zangada e eu só perguntava a mim próprio o que se passava. De repente apareceu o Gonçalo, que me deu uma palmada nas costas e um abraço de seguida. “Já tinha saudades tuas, pensava que tinhas ido na nave.” – disse ele. Não conseguia tirar os olhos dela, não percebia o que ali se passava. “Também eu achava que tinhas ido.” – Disse-lhe eu, olhando rapidamente. “Não, não poderia deixar o meu amor aqui, o nosso amor é muito especial, acreditas que nos conhecemos nesta praia?” – respondeu-me ele agarrando a Matilde com muita força. Dos meus olhos começaram a escorrer mais lágrimas que nunca, corri o mais rápido que pude dali, não queria ver nem perceber o que se passava. Voltei para o topo do prédio onde tenho dormido, e lá pensei muito. Era a primeira vez que ali estava sem as minhas asas, agora não passava de um simples terrestre, como os outros 6 biliões que por aí andavam. Eu não queria ser um terrestre sem a Matilde. Percebi, por muito que me custasse, que ela era falsa, que só estava comigo por eu ser um mutante anjo e que agora que eu não tinha as minhas asas tinha perdido todo o encanto. Enquanto pensava nisto aproximava-me da esquina do prédio, no mais alto dos andares dos arredores. Cá em baixo via a noite de simples cidades terrestres, pessoas nas compras, a beberem o seu café, alguns ladrões e muitos carros que seguiam em diversas direcções. De seguida, olhei o meu horizonte, queria voar, com asas ou sem asas precisava de voar, por isso atirei-me.

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II CONCURSO LITERÁRIO

MARGENS DO TEJO Beatriz Pedro Ventura

2º Escalão/Crónica 38


MARGENS DO TEJO Num já longo passeio de domingo à tarde pela Baixa lisboeta, descobri numa montra de uma livraria algo que supostamente faria a população mundial muito mais feliz – a Fórmula da Felicidade. Deixoume pensativa. Será que a felicidade eterna está à distância de um livro e ainda ninguém deu por isso? Será que aquelas pessoas que desperdiçam a sua vida com pena delas próprias não sabem da existência dele? Será que quem escreveu esta fórmula é realmente feliz? Vejo a vida como um livro de histórias para crianças. Um livro de fantasia. Um romance. Um livro onde tudo é reduzido à escala de pequenas palavras, pequenas imagens, pequenos momentos. Uma nova página. Um novo dia. Um incessante recomeço. Podemos começar um livro com “Era uma vez”, ou simplesmente com um “olá” ao Mundo. Podemos descrever alguma coisa ou, melhor ainda, podemos esquecer as futilidades e cingirmo-nos ao essencial da vida. Podemos preencher preciosas folhas de papel a tentar escrever um final perfeito, ou então podemos representar a realidade o mais fielmente possível. Podemos querer. Podemos tentar. Podemos conseguir. Podemos falhar. Podemos recomeçar do zero. Podemos desesperadamente tentar saber o desfecho. Saber o que acontece a seguir. Tudo parece tão fácil como virar duas ou três páginas e ler. Podemos viver uma vida com o intuito de descobrir a fórmula da felicidade, ou então podemos viver cada dia, cultivando os nossos momentos felizes porque na realidade as páginas da vida são escritas a uma velocidade que é determinada pelo destino. Podemos insistir no comodismo de permanecer na solidão. Ou então podemos acrescentar personagens à nossa história. Alguém que nos faça perceber o quão importante é o amor e o quão emocionante é partilhar o quotidiano com alguém. Podemos terminar o livro com “viveram felizes para sempre” ou então um até “qualquer dia, num qualquer lugar, longe…”, e pôr um fim a esta montanha russa de sentimentos. Ou talvez não. Enfim, entre divagações e pensamentos, perdi a noção de tempo. Já o Sol ameaçava desaparecer e dei por mim sentada de frente para o Tejo, cismada no infinito. Olhei para o lado e vi ao longe o sorriso entusiasta e inocente de uma criança que tentava fazer voar os pombos, já habituados àquelas correrias, e percebi que a felicidade não é algo que possa considerar adquirido a longo prazo, mas sim algo que se vai saboreando ao longo dos tempos através de pequenos gestos. Como um sorriso.

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II CONCURSO LITERÁRIO

AMORES MATEMÁTICOS Sara Helena Moreira Coelho

2º Escalão/Poesia


AMORES MATEMÁTICOS Enquanto a raíz quadrada andava Na estrada das abcissas, O zero rebolava Na rua das ordenadas. No ponto de origem O zero parou, Olhou para a raíz quadrada E vislumbrou o amor. Era um dia decisivo, Pois a raíz quadrada Já era casada Com um número negativo. A vizinhança mexerica Que aquela é uma união impossível Porque na calculadora gráfica Deram erro sintáctico Após separada O zero pediu-lhe Para ser a sua raíz quadrada E ela ficou lisonjeada por ser a sua amada.

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II CONCURSO LITERÁRIO

JOSEPHINE Maria João Faria Rafael

3º Escalão/Conto


JOSEPHINE Eu tinha nove anos e fazia conversa de gente crescida, embora me portasse como um rapazito. Era um desses Outonos antigos em que as crianças calçavam meias pelos joelhos que iam descaindo durante corridas de bicicletas e o corpo fumegava debaixo das camisolas de lã sem que nunca se sentisse frio, porque as crianças nesse tempo já nasciam com a síndroma do bicho carpinteiro e não sabiam parar quietas, salvo à mesa, porque as regras impunham-se. E eu tinha nove anos e estava sentada sobre um banco de terra e musgo no pinhal, quando o meu avô depois de um longo olhar em redor se fixou no horizonte: - O futuro está aqui. – disse, esgravatando com as unhas por dentro do barro granulado, desfazendoo entre os dedos num pó húmido que voltou a cair dentro da cova escavada pelas suas mãos. O vento rugia a clamar por chuva e as árvores nuas espreguiçavam os ramos como se fossem mãos a pedir por ela ao céu, numa contradança de braços contorcidos. Entendi nesse dia que o meu avô tinha chegado a essa estação do ano em que as folhas atingem a tonalidade do cobre e nesse momento interiorizei a sua mensagem sobre o futuro estar na terra. Caminhámos até casa, observando a partida das aves, lado a lado, saltando poças, atravessando ribeiras em corta-mato. Eu cresci idealizando o avô entre vidas paralelas – um galante rapaz que partilhava comigo experiências e um homem de negócios respeitadíssimo – o que me levou a ter um terceiro pensamento que passa pela cabeça de todas as raparigas: O ser eterno. Nessa altura o vento uivava como um lobo perdido da matilha. E as noites eram geladas e longas nas camas imensas, com fantasmas a bater à janela para que a escancarasse, e o sono que não vinha. E rezava muito para que voltassem à cornucópia do fim do mundo por donde tinham escapado. Até adormecer. O quarto havia sido o mesmo da minha bisavó. Quando ela morreu eu tinha essa escandalosa idade em que se apanham pirilampos nas noites quentes e os aprisionavam em campânulas de vidro só para os ver brilhar. Quando a ingenuidade me fugiu e a coragem me obrigou a abrir as portadas da janela do quarto da minha falecida bisavó, descobri finalmente que os fantasmas tinham tomado a forma de um limoeiro que em noites agrestes se refugiava de encontro à minha janela. Foram precisos muitos Outonos para tomar a decisão para tal audácia. A terra alterou em décadas as suas tonalidades em pousio ou em estado fértil. O meu avô descalçava as botas quando entrava em casa e sentava-se na poltrona que fora somente sua, à hora da sesta, a ler o jornal. Como fez durante toda a vida. Quando era mais novo, precisamente à uma da tarde, recolhia-se no escritório a assistir às notícias pela televisão e exigia absoluto silêncio; caso contrário, retirava-se mudo perante o olhar incrédulo dos

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netos – e depois sim, o silêncio cortava o ar. Com o peso dos anos, tornou-se condescendente com interrupções e conversas em segundo plano. O meu avô modificou-se em muitas coisas quando o Inverno lhe pediu para entrar e viu um por um, os amigos de uma vida partirem da mesma maneira que haviam chegado – sem cerimónias. Havia os raros amigos das conversas longuíssimas e à porta fechada e havia os amigos de visita curta porque estavam de passagem. Depois, também apareciam os outros. Os que procuravam conselhos para combater o míldio; os que inquiriam o seu parecer sobre uma aquisição; os da palavrinha amiúde; os que precisavam de trabalho… Os da porta fechada foram os últimos a partir e curiosamente, a porta passou a estar sempre aberta e as conversas cada vez mais demoradas… O luto será sempre luto. Fechar-se-á um ciclo na vida da cada homem por cada vez que viver o luto. Já não se desligam televisões, nem se cerram as portadas durante semanas, às vezes meses. Não há espaço para o preto nas vidas demasiado movidas de hoje, contudo o luto repousa-nos nos ombros com a força do aço com a diferença de que já não se vê. O meu avô tentou ensinar-me a ler a natureza, porém os sinais do tempo, a velocidade do vento e a cartografia das estrelas continuam a ser para mim um mistério. Mas as histórias, as lendas vieram mansamente na voz feminina da minha bisavó. De um momento para o outro, os fantasmas voltavam a sair do fundo do poço em forma de caracol, na ousadia do meio da tarde durante a sesta, ou enquanto se fazia o almoço, e num repente antes que alguém surgisse a interromper, o alçapão voltava-se a fechar num estrondo semelhante ao vento no limoeiro contra a janela. E eu voltava à bicicleta a sonhar com cavalos de batalha e brava gente. O que vou contar aconteceu muito mais tarde, naquela idade em que os medos infantis se começam a explicar aos filhos quando nos correm para o colo a meio de um pesadelo – quando se tem filhos. Voltei a casa para me reencontrar. Voltei lá para não ser perseguida pela rede com que o mundo nos agarra e nos puxa para o fundo. Regressei com ânsia de silêncio e também na secreta expectativa de rasgar o céu à noite, para verificar se as estrelas quando caem por ali ainda nos tacteiam a cabeça. Era agora uma casa silenciosa e gelada. O corredor era imenso e as luzes tão tristes, que me desencorajam a investida pelos outros quartos. Fiquei no primeiro, o dela. A cama de dossel no centro com a colcha adamascada, o roupeiro com o toucador ao fundo, a arca aos pés da cama e o canapé encostado à parede da entrada, lembravam outra época. As paredes de um azul celeste e os tectos altos, com anjos e grinaldas de rosas pintadas, remetiam-me para um cenário de espectros e ecos de energia que trespassavam as paredes e chegavam em ondas à ponta dos meus pés. Recordei nesse instante, que quando ela morreu, o mundo lá em casa parou com ela. Desligou-se a televisão, cobriram-na com um pano. Aferrolharam-se as portadas. A rádio ficou muda. Imperou a escuridão e o silêncio durante muito tempo. Diz-se que morreu de velhice, mas dantes toda a gente morria por ter chegado ao fim. A sua mortalha era negra, porque morrera viúva. O caixão foi colocado à entrada de casa para que sempre impregnada nas suas vidas. A urna desceu à terra, imediatamente após lhe terem sido colocadas as ossadas do falecido aos pés. As crianças de agora digerem melhor estas encenações da vida adulta, mas o que eu mais

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gostava aos nove anos, era de correr atrás das borboletas e nadar no rio. Incomodava-me por isso, o pesar porque não me deixavam correr nem sair para fora dos pesados portões do jardim e interiormente já sabia que aquele papel de arte dramática era uma grande ironia da morte a pairar sobre a vida de todos nós e a consumir-nos o tempo. Nessa noite do regresso a casa voltei a não dormir, após semanas de insónia. A tempestade piorou durante a noite como se tivessem soltado todos os pecados do mundo de arca de Pandora. Tranquei as portadas de madeira sem recear os ramos do limoeiro e nem dei ao trabalho de me despir. Aguentei vislumbrar o tecto até sentir que os anjos, com as suas mãos rechonchudas me tocavam e me enredavam nas fileiras de flores, para me levantar de rompante e começar a andar errante pelo quarto. Abri de novo as portadas e fixei o limoeiro longamente; até que o deixei de ver e abandonei-me ao reflexo, primeiro do meu próprio rosto e depois ao meu olhar vazio, de quem já não tem porque não se demorar. Parei junto à lareira, a cogitar se deveria ou não acende-la só pela companhia do lume. Juntei os toros, procurei os fósforos no cesto da lenha. Não encontrei. Nada. Procurei por cima da lareira, junto ao relógio francês. Investiguei por detrás do candelabro e num percalço, afastei o pesado relógio de bronze no intuito de ver se os fósforos estariam entalados contra a parede, mas um dos pés cedeu por falta de apoio e consegui ainda assim apanhá-lo no ar, mesmo a segundos de se estalar no chão. Abri o pulso à força do peso, abriu-se um golpe na mão. Gritei de raiva e de dor! Concentrei-me no limoeiro e no vento e chorei de arrependimento por ter regressado. - Merda para a vida do campo! , gritei . Tirei o isqueiro da carteira e ateei fogo às folhas de jornais velhos junto aos toros. Apaguei a luz do quarto, sentei-me no chão de soalho de frente para o lume vivo e acendi um cigarro. Era o quarto dela, da minha bisavó. Não havia lembrança de que alguém tivesse fumado ali, aquele quarto era o templo da casa. Perdida nestes pensamentos, reparei que o relógio ainda estava no chão. Quando o ergui, o fundo desprendeu-se, umtapume de madeira caiu-me aos pés e de seguida, um caderno pesado soltou-se de dentro do relógio ainda estava no chão. Quando o ergui, fundo desprendeu-se, um tapume de madeira caiu-me aos pés e de seguida, um caderno pesado soltou-se de dentro do relógio e abalou as paredes do quarto, no mesmo instante em que rebentava lá fora o som de um trovão. A tremer, inalei uma longa baforada de fumo, levei-o ao fundo até sentir os olhos chorarem e soltei-o lentamente até me sentir serena. Segurei com ambas as mãos o caderno de pele verde, gravado a ouro nos cantos, um laço preto encerrava-o com discrição. Recordei-me de como no tempo dela a casa ainda cheirava a cera de abelhas e a maçãs maduras. Era um tempo que as mulheres lavavam a roupa com sabão e perfumavam as gavetas com lavanda. Os cabelos usavam-se apanhados na nuca com ardilosos ganchinhos, as saias sem tocar o chão, deixavam ver a ponta das botinhas e as golas desejavam-se discretas. Casa de fazendeiros dava sustento a gente de fora que vinha aos magotes trabalhar nas colheitas no Verão e aos internos, que trabalhavam durante todo o ano. A casa vivia por si só, através das muitas lembranças, para que me indicasse se haveria ou não de

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abrir aquele caderno naquela casa vazia de gente, cheia de recordações, entregue à minha alma sombria. A resposta foi um clarão de luz e de lume a queimar-me as mãos; o cigarro tocara o fino fio negro e este desfizera-se num ápice – o registo abriu-se sozinho. “Eles entraram aos magotes pelas herdades e serviram-se de tudo até estarem saciados. Depois, abriam as arcas do trigo e deram de comer aos cavalos, foram à adega e tiraram as rolhas aos pipos e deixaram correr para o chão. Açoitaram os homens e raptaram as criadas. As raparigas desapareciam agarradas por aqueles homens escanzelados e enormes, de narizes pronunciados e fala roufenha. Pouparam a família, mas só desta vez, disseram. Meu pai falou em francês e ameaçou-os com os ingleses, mas eles troçaram e partiram bêbados e trôpegos pela noite. – 05 de Março de 1810 – i.m.”. Voltei a ler a data. De quem seria? Era óbvio que era contemporâneo das invasões francesas. Voltei a página: “Passaram por cá hoje, mas não entraram. Estão aquartelados na igreja. Estão por todo o lado. Na quinta vizinha os trabalhadores mataram uns poucos enquanto descansavam no celeiro e enterraram-nos durante a noite, nos campos. Temo a vida e a morte, porque o medo persegue-nos, eles são fantasmas vivos ou mortos. – 17 de Março de 1810- i.m.”. As iníciais, sempre a letras minúsculas, pelo relato e pelo recato cuidado, fazem-me suspeitar de uma mulher. Mas não era possível ser ela, pois nessa data a minha bisavó ainda não era nascida. Avivei o lume e acendi outro cigarro, puxei a manta de cima do canapé e estendi-me sobre ela. Continuei a leitura: “Voltaram a casa. Desta vez ficámos sem víveres. Soltaram-nos os cavalos e levaram com eles as melhores cabeças de gado bovino. O saque foi de punição. Meu pai ordenou-me que descesse à cave e me escondesse no alçapão. Fez-me descer com uma panela de ferro e pediu que guardasse segredo. Estava muito escuro lá dentro e quando acendi a vela que levava na bolsa à cintura, levei o pior susto da minha vida: no chão, junto à parede, jazia um homem. No início, julguei-o morto e depois percebi que os seus olhos me seguiam. Agarrei numa pá para o matar e quando ganhei coragem para o fazer, dos seus olhos brotaram lágrimas de desespero e não fui capaz. O seu uniforme azul e vermelho está tão sujo de sangue seco que faz dó e diz-me a custo, na sua língua, que desertou e por isso foi condenado e fuzilamento colectivo com outros traidores. Pediu-me que não o delatasse. Eu saí quando meu pai me chamou, sem que lhe tivesse prometido nada. – 23 de Março de 1810 – i.m.” Parei para pensar nesta rapariga que tinha vivido 2 séculos antes de mim e que me deixara sem saber, um legado que passara secreto por gerações de mulheres naquela casa, agora a ameaçar ruína, sem que ninguém quisesse habitá-la. Pensei nas vezes em que aquele relógio robusto foi limpo e areado sem que ninguém suspeitasse de que guardava um segredo. E imaginei que a minha vida cabia naquele mesmo relógio, sem vontade de escancará-la a terceiros e por essa razão, a destilar a minha dor encerrada num tempo que já não era o meu e muitos menos o da minha infância. Voltei à leitura: “Voltei esta noite à cave. Ninguém me viu. Desci a medo. Levei comigo pedaços de tecido, água fervida com malvas, pinças, algodão, brandy, pão e carne. O francês continuava estendido sem forças para se mexer, mas quando me viu sozinha, esboçou um sorriso de alívio. Acerquei-me dele e com a ajuda de um pano humedecido, separei-lhe a camisa da pele, lavei-lhe e ferida no ombro e liguei-lhe o braço. Dei-lhe de beber e parti a carne e o pão em pedaços muito pequenos, que lhe ia dando à boca. Ele nada disse, apenas no fim, quando lhe disse que me ia embora, fez-me sinal com indicador para que me aproximasse

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e murmurou-me ao ouvido –“je vous remerci, gentil damme.”- eu saí sem nada dizer, embora só nessa altura tenha reparado nos seus olhos grandes e na quebra do seu queixo. Saí como entrei, sem uma palavra e com mais medo do que nunca. – 24 de Março de 1810 –i.m.” Os acontecimentos avançavam sempre na mesma cadência, pelas páginas fora, numa letra regular e deitada sobre as folhas amarelas. As palavras às vezes breves, atenuam a diferença entre os mundos à superfície e o subterrâneo, cada vez mais doces, adivinhavam um desfecho perigoso: “Jean Luc beijoume a nuca e desfez-me o novelo dos cabelos. Despojou-me da roupa e viu-me pela primeira vez como nunca me tinha mostrado para nenhum homem. Eu amei o homem que muitas noites levei ao rio e espreitava sobre o ombro, enquanto se lavava. Toquei-lhe a pele branca e os cabelos fartos e claros, beijei-lhe os olhos que sentia como as minhas janelas para o mundo; era através dele que sonhava e viajava em ruas largas, por campos em cidades grandes onde se passeava em galeras ao domingo. Imaginava-o galante, de cartola, comigo de braço dado a entrar no teatro e a fazer rir, tal como me faz neste buraco. O seu lado selvagem é aquele de que mais gosto, quando por exemplo, me agarra o queixo e o puxa para si até me tocar os lábios num beijo quente a saber a mel. Agrada-me a dorzinha no queixo que se prolonga durante dias e me faz sentir saudades nas noites em que não consigo descer para o voltar a amar. – 15 de Agosto de 1810 – i.m.” Recordei as razões do meu auxílio na quinta. E reconheci a coragem desta mulher em tempo de guerra e dos riscos que correu para manter o homem que amava são e salvo. A razão da luta dela era mais nobre do que a minha - manter o seu amado vivo numa guerra contra os seus; enquanto eu só queria esquecer o homem da minha vida, porque estávamos fora de tempo. Como é que se ama, sem sofrer, um homem que chega à nossa vida já tão tarde?... Sem tempo… Quando lhe disse adeus, depois de o ter beijado e largado a sua mão pela última vez, virei-lhe as costas e saí de sua casa para não mais voltar. Sabia que precisava de mim mais do que nunca, mas vêlo chegar ao fim e saber que em breve partiria tão de repente como havia chegado, impossibilitava-me de ficar. Por essa razão, retirei-me da vida que nos fazia sempre voltar aos braços um do outro como se fossemos ambos vício e fiz-me ao caminho de casa. Sentia falta do cheiro dela, destes ecos da sua voz ensaibrados nas paredes de casa que agora escuto quando me diz para avançar na leitura de um diário que não é seu. “ Esta noite mostrei-lhe o ouro e perguntei-lhe se lhe serviria de dote para que fugisse comigo. Não gostei do seu olhar… levantou-me a voz pela única vez nas nossa vidas e pediu-me que nunca mais repetisse o ultraje. Agarrei então numa moeda e pedi-lhe que a serrasse ao meio, num acto de remissão. As lágrimas esta noite cegam-me e eu não tenho perdão. - 30 de Agosto de 1810- i.m.”. A tempestade rugia lá fora e aproximei-me da janela. Os ramos do limoeiro agitavam-se na noite como o tridente do diabo e os meus próprios fantasmas andavam à solta nessa noite, atirados contra as paredes através do vento. O meu homem emergia de mim como se me possuísse nessa noite mais do que em todas as outras e eu sentia que o fim podia estar próximo, mas a dor da distância acorrentava-me a ele como um íman. Começava a perceber a urgência daquela mulher cuja identidade já descobrira, em ficar com o seu amado. “As quintas vizinhas foram pilhadas, mesmo depois de já terem sido abandonadas e incendiadas pelas famílias que as habitavam. Já se foram todos, mesmo os franceses, que marcham sobre Lisboa. Jean Luc

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permanece ainda na cave. A igreja ficou em muito mau estado, pois fizeram dela um estábulo. Batem-nos à porta cada vez mais mendigosa pedir trabalho, pois na quinta não restou nem um par de braços que ficasse connosco, mas as doenças que por aí proliferam e a miséria em que nos deixaram a quinta, temos de fazer tudo sozinhos. Desertaram para as cidades em busca de trabalho, mas até Santarém foi deixada na miséria. Corre a notícia de que em breve a Inglaterra acabará com os invasores. O povo só acredita na sua própria força. Hoje, Jean Luc ofereceu-me um relógio de lareira, com uma escultura do corpo de uma mulher no centro, como se fosse um minarete. Diz que o carregou desde França, que é uma recordação de família. Contou-me que o pai era artesão de Bonaparte e o corpo esculpido é o da própria mãe, envolta em vénus…não acho próprio de uma senhora expor-se assim. Aceitei a sua oferta com alegria, mas escondi-a no sótão. Quando ma entregou, envolta em panos, o seu abraço foi mais quente e duas lágrimas escorreram-lhe pelo rosto. -03 de Setembro de 1810 - i.m.”. Olhei para o relógio em cima da lareira. Era muito tarde e mesmo que quisesse, não tinha rede para lhe ligar. Já duvidava de novo se seria capaz de o rever. Analisei o relato da minha antepassada e situei o acontecimento. Recordei a política da terra queimada, em que o general inglês Wellington obrigava os proprietários, caso esses optassem por abandonar as terras, a queimar e a destruir os seus haveres, para que o marechal Masséna encontrasse à sua chegada um deserto sem habitantes nem víveres e quem não cumprisse esta ordem, seria considerado traidor. “Esta noite amámo-nos como um vendaval em Setembro, porque os vendavais ascendem através do ar quente e chocam-se sobre uma frente fria, como me explicou Jean Luc. Portanto, fiquei a saber que não há vendavais como os de Setembro. No rio. Ambos despidos e molhados, encharcados de um amor sem fim, que ele me injecta através das suas mãos, dos dedos longos iguais aos caminhos da sua terra. Conversávamos junto à margem, já vestidos e compostos, quando o meu pai apareceu esbaforido, por entre o mato. Sacou de uma faca que trás agarrada às calças e correu para Jean Luc, como um louco! Impus-me entre os dois e o aço entrou-me no antebraço numa dor acutilante. O sangue jorrou e ambos estagnaram. Foi quando pedi ao amor da minha vida que corresse dali para fora e fosse feliz. Os seus lábios beijaram pela última vez os meus, salpicados de sangue e de lágrimas e segredaram-me pela última vez – je t´aime, ma biche. Eu olhei-lhe o azul cobalto dos olhos a enegrecerem de tristeza e vi-o partir para sempre. Acho que desmaiei de seguida, mas quando acordei entre lençóis e almofadas, já sabia que ele iria estar presente durante toda a minha vida, pelo legado que me deixou. - 14 de Setembro de 1810 - i.m.” Era assim que findava a última página do relato desta rapariga. Creio que toda a vida guardou religiosamente a sua brava história, apenas perpetuada pela minha bisavó, que me contava lendas de família de panelas escondidas em pátios, lá em casa, carregadas de libras de ouro. O meu avô bem me dizia aos nove anos que a riqueza estava na terra. Quando ele, ainda um jovem, encarregou o pessoal de abrir valas para semear o figueiral, teve a surpresa da sua vida: a terra era um cemitério de esqueletos grandes, a sua dimensão chocara os locais. Parece que carrego sangue assassino nas veias, mas a maior parte dos que sabem da história, dizem que descendo de uma família de heróis. Arregaço as mangas da camisola e olho para as minhas veias. Não sei se me devo sentir orgulhosa ou desgostosa. Fico a pensar em Jean Luc, que se voltou a juntar às tropas francesas na batalha das linhas de Torres, nesse Setembro de 1810 e aí, perdeu também heroicamente a vida pela sua pátria – Lembro-

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me desse nome na boca da minha bisavó, referindo-se a ele como um antigo criado na casa, do tempo de desertor. Concluo que é mesmo isso que me sinto: uma desertora da tua vida e uma pária da minha. A tempestade amainou, já é manhã, os primeiros raios de sol incidem nos amarelos dos limões que permanecem na árvore, depois da ventania. Seguro firme a moldura por cima do toucador, com a fotografia dela: muito pálida, de olho azul quase transparente, de nariz proeminente, cabelos claros apanhados num carrapito, vestido preto de viúva a tapar o cano das botinas e um fio de ouro onde prendia metade de uma moeda com as arestas limadas. Despi a camisola e apertei com força o mesmo fio e a mesma moeda na mão. Nessa metade de libra em ouro, pousada agora na palma da minha mão aberta, tinha gravado as iniciais: I.M – J L (1810). A panela de ferro com as libras permaneceu durante muitos anos na cave e só mais tarde, a minha bisavó retirou um punhado de moedas, que ofereceu a cada filho e a cada neto. O resto está guardado em sítio incerto (já ninguém mais soube depois da sua morte), algures acima do céu ou debaixo da terra, que é o sítio certo para se viver o amor. Voltei a vestir a camisola, apaguei a lareira, fechei de vez a portada e regressei ao sítio certo para viver esse amor até ao fim, onde afinal sempre foi a minha casa - ao teu lado, para além do tempo que dizem por aí que não é o nosso, para além da doença. Fiquei a pensar que tu sempre tiveste razão: os meus traços finos, os meus cabelos louros, os meus olhos claros, tinham algo de francesa. Para que conste, a minha bisavó chamava-se Josephine.

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II CONCURSO LITERÁRIO

TU DISSESTE Maria João Faria Rafael

3º Escalão/Poesia


TU DISSESTE Tu disseste. Que não seriam os teus passos a correr o caminho. Tu disseste que logo se veria. E eu abri o caminho – o menos percorrido. Afastei as gaivotas ao amanhecer para que elas não conspurcassem a maciez da areia. Tu disseste. Que trarias de novo o lume. Tu disseste que o futuro era um mistério. E eu fui abrindo a cama – não fosses chegar com frio. O calor da minha felicidade aqueceu o teu lugar, ficando o meu num desconsolo. Tu disseste. Que voltarias num mês quente. Tu disseste daqui para a frente. E eu arranquei os meses todos até lá à frente – para ver se já dobravas a esquina. Mas a esquina era ainda uma parede de gelo. Tu disseste. Que querias uma companheira. Tu disseste também para ventilar as palavras. E eu fui inventando vocábulos – construindo novos nomes para as metáforas. Tive longos monólogos através da noite. Tu disseste. Que havias de voltar. Tu disseste que irias ficar. E eu criei raízes num país diferente – onde a contramarca para entrar é a tua voz. Onde à tua espera me tornei pária.

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Rede de Bibliotecas do Município de Azambuja

III CONCURSO LITERÁRIO

2009/2010


III CONCURSO LITERÁRIO

O AMBIENTALISTA Catarina Abreu

1º Escalão/BD


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III CONCURSO LITERÁRIO

DIÁRIO DE UM SONHO SEM DESTINO Maria Silva

1º Escalão/Conto 58


DIÁRIO DE UM SONHO SEM DESTINO São seis e meia da manhã, e o despertador toca. Ela acorda, e deixa os sonhos comprimidos na almofada. Levanta-se num alvoroço, entra na casa de banho com a cara ainda húmida das lágrimas derramadas. Limpa do rosto a água gelada, e cambaleia até ao quarto. O Sonho levanta-se e percorre a casa em sete segundos enquanto procura os seus sapatos azuis. Estava farto da monotonia da cama, dos lençóis brancos de linho, da frescura da limpeza feita pela mãe. Os sonhos foram feitos para serem livres, navegarem em contos de fadas e histórias de heróis fictícios. A sua longa e complexa vida, pedialhe que as aspirações das pessoas crescessem, e não que se afogassem em lágrimas – salgadas! – Sem qualquer motivo. Saiu num voo mágico e procurou ajuda. Alguém que tivesse uma ideia para o auxiliar na protecção da sua “humana”. Ela precisava de um motivo que a fizesse voltar a sonhar, a ser feliz. Nunca mais havia pensado no seu futuro, apenas na sua condição de mulher. Namoravam há menos de três anos, e pensavam começar a construir um lar, onde passariam juntos o resto da vida. Mas as coisas pareciam complicar-se, e, ultimamente, as discussões e cenas de ciúmes eram bastante frequentes. Digamos que…duas a três vezes por dia. Na última discussão, ele pediu-lhe forçosamente que fizessem amor, o que a “humana” recusou. Então, agrediu-a e obrigou-a. Foi um acto cruel e imperdoável. Mas o amor não justifica as acções pela sua tamanha gravidade, mas sim pela forma como são desculpadas. E o Sonho voava, entre habitações e centros comerciais, procurando outros sonhos, que o pudessem ajudar. Fantasiava na sua pequena e evoluída mente, algo que pudesse ser útil, ao seu mais recente objectivo. Não sabia mais o que fazer. Sentia-se desesperado, e com medo de perder a única coisa que o fazia permanecer vivo: a vontade de concretizar e realizar os “humanos”. Em toda a sua vida, já conhecera muitas caras, muitos desejos e imensas formas de os tornar reais. Era uma tarefa difícil, mas humilde e rara. Eram poucos os sonhos como aquele, tão dedicados e prósperos. Por isso, a “humana”, apesar de não conhecer a existência do Sonho, devia agarrar-se melhor às suas aspirações e largar o que já não a fazia feliz, pelo contrário, apenas a fazia sofrer, chorar, culpabilizar-se e arruinar a sua jovem existência. Voava. Não parava nem um segundo, para examinar as deslumbrantes montras com vestidos longos, caros e sedosos. Quase nem reparava que estavam ali, ele que sempre gostara do glamour. Só queria ajudar a sua “humana”, como sempre fizera. Mas à medida que crescia, e se tornava adulta, era mais difícil concretizar o seu projecto. Chegou, por fim, a um hotel onde se dirigiu a uma luxuosa suite. Afogou-se numa almofada e chamou por um tal de “Mr. Fantasy”. Sei que esse era o sonho mais antigo da história dos sonhos. Talvez por isso, se tenha dirigido até tão longe para realizar a sua querida “humana”. Pediu-lhe dicas, conselhos que o pudessem ajudar na sua tarefa, e colocaram a conversa em dia, com novidades pessoais, profissionais e outras.

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Saiu de lá um pouco mais animado, mas, mesmo assim, algo dentro de si não estava bem. O céu estava a escurecer, e dentro de poucas horas a sua “humana” iria dormir. Apesar dos ventos contrários, conseguiu apressar o voo, para não se atrasar. Era imprescindível que tivesse todas as tarefas nocturnas despachadas até à hora em que ela se fosse deitar. Chegou. Prendeu-se na almofada e suspirou de alívio. Não se sentia totalmente descansado, mas a sua preocupação tinha diminuído consideravelmente. Sentiu a chegada da sua “humana”, que se atirou para a cama, repentinamente. Chorava compulsivamente e sufocava o Sonho com o seu aroma suave e sensível. Inundava o rosto do Sonho com as suas sofredoras e doces lágrimas, e tentava consolá-la com pensamentos positivos e lembranças divertidas. Nada resultou. A negatividade, qual doença maligna, possuía todo o corpo e mente da “humana” e a cada minuto que passava, esta chorava mais. O Sonho não conseguiu suportar mais este sentimento. Voou pela janela, como nunca havia feito antes. Dirigiu-se a casa do namorado da sua “humana”, e empalideceu com o que viu. Enquanto uma alma sofria e chorava desgostosa, o senhor estava deitado no sofá, a ver um jogo de futebol. O cheiro da sala era nauseabundo. Respirava-se transpiração e roupa suja. Entrou, com os seus pés de bolas de algodão, e impregnou-se na sua cabeça – pelo menos sempre fugia ao odor da sala – para descobrir o que realmente se passava. Não tardou a avistar que ele já não a amava. Na sua mente só permaneciam fluidos asquerosos, e inúteis. Voltou para casa desiludido, e deparou-se com aquilo que mais temia; a sua “humana” estava no chão, morta. Agora não passava de um corpo inocente, com cortes nos pulsos. Falhou. O Sonho não conseguiu realizar a sua tarefa e sentia-se um assassino. Ficou pasmado a olhar durante imenso tempo, a ponderar na injustiça e crueldade da vida. Um cadáver no mármore gelado, ainda com os olhos encharcados no sofrimento que havia espraiado, e uma poça de sangue, junto à mão direita. Acabou. Não havia mais nada a fazer. Estava na altura certa de partir. Pensou que agora talvez pudesse apresentar-se devidamente à sua “humana”. Assim talvez ela pudesse juntar-se a ele, e ambos seriam dois sonhos, que também sonham e ambicionam. O Sonho cansado, e ainda desiludido, subiu ao céu, saltitou nuvens suaves, e por fim, recolheu-se numa delas, onde acabou por adormecer. Quando acordou, uma ideia louca, mas fascinante, preencheu-lhe a mente: decidiu escrever uma espécie de diário, onde revelava à sua “humana” tudo o que se passeava no seu espírito, agora abandonado. Um estilo de uma carta… imaginemos desta forma: forrou um baú velho com papel de embrulho cintilante (como ele gostava de brilhantes!), pegou numa folha lisa e numa caneta, e pensou como iria começar.

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“Querido Diário, digo, Querida Madalena; Desculpa se falhei contigo, mas foi intencionalmente. Sempre foste e serás muito especial para mim. Hoje inicio um novo rumo na minha “vida”.Se não fui capaz de fazer o teu corpo feliz, farei os possíveis para alegrar a tua alma. A propósito, desculpa nunca me ter apresentado convenientemente antes: sou o Sonho. Aquele que sempre se responsabilizou pelas tuas aspirações e desejos, e sempre te deu força para lutares por eles. Na realidade, não é o teu subconsciente que tem essa função, mas sim eu. Conheço todos os teus sonos e suspiros, reconheço todos os teus risos e sonhos, a quilómetros de distância. Durante anos, fui afogado, em todos os teus choros, pelas tuas lágrimas, e nunca me cansei. Até hoje, nunca desisti de ti, de te querer bem. Nunca te vi menos do que uma amiga, mas sim mais do que uma vida. O teu poder sofredor nas minhas mãos, era fogo de esperança, e, as tuas lágrimas, oceanos de ternura. Gostava de te pegar nos braços e fazer-te adormecer no meu colo, onde te cantava versos de paz silenciosamente, como se fosses uma criança com medo do escuro. Mas para ti tudo deve parecer extremamente estranho. Eu devo ser maníaco a querer fazer-me passar por “pessoa boazinha” para te poder conhecer. Porém, não sou a Madalena. Conheço tudo o que tu pensas, conheces, sentes e vives. Sou praticamente a tua segunda alma, sem um corpo onde pousar, para que te possa tocar, de forma humana. Anseio por receber uma resposta tua, nem que seja simplesmente uma folha em branco, ou um simples envelope vazio. Beijinhos enormes, minha querida. Sonho PS: será esta a forma mais correcta de assinar? Dobrou a carta em quatro partes, enfiou-a com cuidado num envelope e sentou-se com ela na mão, na esperança de ter alguma ideia do local onde deixar aquela “loucura”. Não passava disso, de uma grande loucura. Como iria uma pessoa morta ler, e responder a uma carta? Se o Sonho tivesse sentimentos como nós, humanos, naquele momento devia sentir uma pesada dor de cabeça, e um ardor enorme nos olhos. Mas como o seu “corpo” não lhe permitia tais sofridas consequências, ficava-se apenas por lembranças do seu passado e pensamentos de resolução do seu futuro. Vagueava por entre nuvens e nuvens…Vasculhava estrelas nas noites iluminadas pela luz da lua cheia. Escondia-se em altos carvalhos nos temporais de Inverno. Mas sempre com a carta na mão. Ainda hoje admiro, como conseguiu durar tanto tempo sem um único vinco ou mancha. É certo que permaneceu intocável durante meses…Certamente, anos. Não poderei dar certezas desse facto. O Sonho nunca conseguiu encontrar forma certa de reencontrar Madalena, ou, simplesmente…, entregar-lhe a carta. Desistiu. Não podia continuar naquela agonia constante. As esperanças desapareceram, como uma onda do mar que rebenta numa rocha. Dobrou a carta como se fosse o mapa de um tesouro perdido, sem destino, e colocou-a dentro de uma garrafa de vidro, que fez voar, com toda a sua força, em direcção ao mar. Decidiu atirar-se, também, com a carta, e até hoje, ninguém voltou a referir o seu nome. Talvez esteja junto das Nereidas, não a dominar corações, mas sim a devorar cada recanto marinho, como se em cada

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um deles houvesse uma história para desvendar. Provavelmente, a esta hora, enquanto falo nele, deve estar a navegar por entre os encantados cabelos das sereias, entrelaçado com as pérolas que neles se depositam (como ele sempre gostou de jóias!). Pode também estar a dormir em cima de uma alforreca sem qualquer perigo, visto que não passa de uma alma sentimental e as dores físicas não o afligem. Não sei, não calculo, imagino simplesmente. Traduzo imagens da minha cabeça, para filmes mágicos, de ninfas a transportarem uma mancha brilhante intitulada de Sonho, que anseia descobrir o que o Mar lhe esconde.

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III CONCURSO LITERÁRIO

AMOR Bernardo Filipe Fernandes Gaspar

1º Escalão/Poesia 64


Piqué - Amor

AMOR O amor é uma dança, Pode levar à loucura, Podem ter esta crença, Para o amor não há cura. O amor é uma doença contagiosa Pode levar à depressão É uma doença perigosa, É uma doença do coração O amor é um sentimento, Equivalente a amargura e tristeza, Para o amor não há tratamento, O amor é uma doença sem beleza. O amor é profundo, É como as drogas, Diversão por um segundo Problemas por horas

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III CONCURSO LITERÁRIO

SONHOS Joana da Silva Abreu

2º Escalão/Conto


SONHOS Sonhei contigo hoje. Passeávamo-nos por entre uma imensidade. O vento infligia dor sobre as árvores despidas de vida que decoravam a nossa passagem e o castanho tomava o lugar do verde exuberante que outrora abundava. O som dos nossos passos sobre as secas folhas cortava, ao de leve, o silêncio que se ouvia por entre as rajadas de vento. Tentavas sorrir, mas isso exigia demasiado de ti próprio, contudo despedaçava-te o coração não poderes dizer “aqui estou, abraça-me”. Sabemos bem o quão custa a realidade. Senti frio e aconcheguei inconscientemente os cobertores. Não mais dormi, faltava o teu calor perto de mim. A solidão revelou-se demasiado envolvente, senti-me a afundar por entre as almofadas. Sufocavam-me. Por momentos, imaginei que se ali estivesses me terias resgatado e nos teríamos abraçado, unificando-nos. Seriamos um. Contudo, não somos nada. Não passamos de fragmentos, corpúsculos, fracções, partículas que se encontram à deriva num oceano único, sem fim. Há quem naufrague, há quem dê à costa. Como todas as coisas do Cosmos, estamos sujeitos às suas leis. Há quem lhes revire os olhos, há quem as abrace de frente. E, embora nos atraíamos, a repulsão sai vencedora. Estamos destinados a divergir, o que faz com que exista uma ciência para a nossa solidão. Um porto de abrigo. Mas nós fomos excepção, ou não dispusemos de tempo para verificar a regra. Talvez, quem sabe, numa outra vida. Algures num tempo perdido no espaço, onde árvores crescem até ao Sol e pássaros alegram o ambiente, aí nós voltaríamos a sorrir para além da morte, de mãos dadas até ao infinito. Alcançaríamos a perfeição, tal como o carvão se torna em diamante, a larva mais feia em borboleta e a poeira em astro flamejante. Mas a vida, por si só, exige a morte. Duo inseparável, simbiose perpétua. Assim, somos como que forçados a decompormo-nos, a ser não mais do que pó. E é nisto que reside a imortalidade e nós nela residimos. Constantemente, damos asas àquilo que resta de nós. Pedacinho a pedacinho, juntamo-nos e emergimos num novo ser. Cada um é um pedaço de outro, é um pedacinho de uma magnífica estrela. Sinto a tua falta. Lamento a tua partida. Lamento ter assistido a ela de braços imóveis. Lamento um nada poder ter feito. Perdoa-me não ter a capacidade de manipular este ciclo vicioso da vida. Hoje cozinhei o teu prato favorito, lembro-me bem como sorrias ao sentir o seu leve cheiro. Deliciavas-te, repetias vezes sem conta e lavavas a loiça em tom de agrado. Éramos felizes. Fomos felizes. Ainda guardo na mesinha cabeceira o rabisco do que quereríamos ser, lista inacabada que iniciámos numa esplanada. Ali escrevemos num guardanapo sonhos, ambições e aspirações, inspirados pelas nuvens. Ficamos pela sétima, a que se seguia faria de nós três. O dia passou-se. Demasiadas divagações remeteram-me a memórias dolorosamente agradáveis. Peço um sorriso às minhas lembranças, mas a mensagem deve-se ter perdido no caminho. Tenho sede, sacio-a com um copo de vinho. Porque não mais que um? Nada curará a minha ressaca amorosa. Mesmo que me ofereçam um punhal e este abrande para sempre o meu coração, nunca me juntarei a ti. És pó. Todavia, ao acaso, se a nossa atracção for mais forte que todas as leis, poderão juntas, as nossas poeiras, criar vida. Diz-se que quando somos levados pela maré, o azul do mar dá lugar a um branco intenso. Mas eu só vejo sombras que puxam para baixo. Enjoo com ondulação do mar, sempre o soubeste.

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III CONCURSO LITERÁRIO

IDENTIDADE Joana da Silva Abreu

2º Escalão/Crónica


IDENTIDADE Interrogações filosóficas albergam-se constantemente em nós. Por vezes, proporcionam-nos um sem fim de reações físico-químicas: arrepios, tremura, nervosismo, enjoos e, para os que têm mais sorte, uma viagem sem fim pelo Mundo das retóricas e dos dilemas, inacessível ao mais comum dos mortais. Quando era uma pequena traquina a minha maior preocupação era a de saber como deixar o cabelo da minha Barbie o mais bonito possível, depois de lhe ter efectuado um corte radical, de preferência sem que a minha mãe se apercebesse. Mas as pessoas que se auto-intitulavam de “Grandes” teimavam em me bombardear e alvejar com disparates, perguntavam-me sobre o que eu quereria ser quando fosse “Grande”. Pois bem, eu nem sabia quem era, como poderia ter consciência do que queria ser? Depois de sucessivos anos de levantamento bibliográfico, pesquisa exaustiva e noites passadas em branco a meditar sobre o problema que atormentava a minha vida e para o qual não tinha resposta, eis que uma iluminação superior, até me arrisco a afirmar que Divina, me atingiu. Conclusões foram tiradas. Como tantos outros, a evolução é a minha causa existencial. Sou anos de sucessivas mutações, de múltiplos acasos genéticos e reorganizações moleculares. Aglomerado de moléculas, átomos e iões que se uniram possibilitando-me vida. A minha existência racional deve-se a impulsos electroquímicos. Sou o que me torna igual a tantos outros e o que me distingue da multidão. Eras de descoberta e aventura, de Reis e Rainhas, de invenções e avanços são o que define o meu meio e a minha cultura. Toda a minha educação assenta na ignorância e na sabedoria dos povos, de gente que sobreviveu e sobrevive lutando pela continuidade. Sou a essência dos meus avós e dos avós dos meus avós. Sou o que me torna igual a tantos outros e o que me distingue da multidão. Em relação ao tudo, sou nada. Sou um alguém de conceitos, ideias, imagens que vagueia por esta imensidão. Alegro-me por ser constituinte da sinfonia do universo e da tinta da tela do Mundo. Sou sonhos. Sou o que me torna igual a tantos outros e o que me distingue da multidão. Atribuíram-me um nome e um dia de aniversário. Espelho uma aparência que nem sei se se trata da real. Rodeio-me de bens materiais e pouco me falta. Contudo, nem de perto estou completa. Sou o que me torna igual a tantos outros e o que me distingue da multidão. Porém, hoje ainda não durmo descansada: outras retóricas martirizam o meu sossego e temo que se estendam por todo o percurso que tenciono percorrer para definir o meu “eu”. Sermos diferentes, únicos, induplicáveis e, ao mesmo tempo, sermos iguais a todos os outros que caminham ao nosso lado é como que um requisito para embarcar na viagem. Sou o que me torna igual a tantos outros e o que me distingue da multidão.

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III CONCURSO LITERÁRIO

POETA Cláudia Abranches Belo

2º Escalão/Poesia


POETA Poeta é aquele que muda o mundo num segundo, Poeta é o que se mata por amor, É o rei que termina vagabundo, É quem transforma um espinho numa flor. Poeta é o que embeleza as páginas de um caderno, É aquele que transpõe a sua alma, É o que acredita que amor é eterno E usa as mais belas palavras para falar de amor. Para ele as palavras são metáforas E os poemas as mais belas comparações. Para o Poeta a vida é uma passagem Que vê apenas como miragem. Poeta é aquele sonhador, O companheiro do apaixonado, O que passa pela vida a falar de amor E tem má sorte em ser amado. É quem se inspira nos mais puros sentimentos, Na saudade e no amor, É quem esconde os seus talentos, Vive de esperança e de dor. A sua vida é o próprio poema, Esse poema que faz bater o seu coração. Ele que vive num subtil dilema, Poeta é aquele que morre quando lhe falta a inspiração.

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III CONCURSO LITERÁRIO

MARCAS NA LAMA Isabel Alice Radburn Nunes Vidal

3º Escalão/Conto


MARCAS NA LAMA Era Outono e amanhecia mais tarde. Os campos de cultivo, exaustos, enegreciam tapados pelo restolho molhado. A calma era acentuada pela neblina que emprestava às folhas o brilho baço dos primeiros reflexos brancos. Ao fundo, o som das instruções difusas vindas da estação projectava a memória de gestos rotineiros, cabelos molhados por banhos tomados à pressa, óculos escuros para poder dormir uma viagem tremida e quente… e o dinheiro ao fim do mês. A terra estava molhada de chuvas recentes, o que explicava a ausência do movimento usual de carrinhas de caixa aberta que por ali circulavam diariamente. O céu surpreendia com o riscar de aves migratórias: patos e gansos, vindos de países nunca visitados e em direcção a países por visitar, que cortavam o espaço em “vês” de inteligência. Cadelas perdidas farejavam o ar procurando um destino, levantando-se codornizes e narcejas à sua passagem, afastando as pontas das ervas mortas e do milho cortado. Era mais um dia de trabalho para o rancho do Jaime da Mota. As mulheres apertavam-se na caixa da carrinha, tapadas com mantas e lenços à cabeça. Poucas palavras. Junto ao corpo, o farnel para o dia: uma sopa, umas postas de peixe frito com o pão comprado de fresco às primeiras horas daquela manhã. Garrafas de água e de sumo doce: a água da bica que é melhor do que as outras e o sumo de laranja porque os outros fazem doer os dentes. Por dentro, horas de conversa por actualizar, factos, coisas ditas, informações recolhidas, retalhos para mais uma página de um livro sempre inacabado. O transporte chega ao seu destino: a parcela da Courela do Mouchão, junto a um dos caminhos que riscam o campo, limitada por valas de metro e meio de fundura, também enlameadas. O trabalho desse dia: a apanha de pimento verde para a fábrica do francês. - Que é o teu comer hoje? - Fritei umas pataniscas e cozi umas batatas… e trouxe uma sopa que fiz ontem. - Fizestes a sopa pr’àquela? - Hum… Aquele bufar, logo de manhã, já se adivinhava. A Hélia tinha mau sangue. Tinha costela de cigana, segundo uns, e isso via-se à distância, segundo outros. Um só dente à frente, sobre uma cara lavrada pelo sol, olhos negros e mau feitio. Poucas palavras. Trazia vinho para o almoço e uma bucha de pão e toucinho, que antecipava cortar em fatias finas, com a ajuda de uma navalha, e chupar lentamente, como uma gata: devagar. Alinhavam-se as histórias para o dia: a morte dos rapazes do Estica na estrada, os resquícios de uma violação praticada por um autarca, o tempo, o “meu tempo”, misérias, choros, tristezas na família, gargalhadas à custa do mal dos outros. - Hádes dar-me razão, ouvistes?

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- Tu é que me hádes dar razão se ela é ou não é uma cabra, aquela filha da mãe! - Atão, e ele? - Oh, ele fugiu atrás dela e alugou uma casa no Algarve mesmo em frente à dela, … e depois punha-se à janela a provocar o marido e os filhos. O caso era simples. Uma das vizinhas fugira com outro, deixando os filhos e uma conta de banco vazia ao encargo do ex-marido. Um petisco para a manhã. - Ela disse que a metade da conta era, por direito, dela, mas que, como precisava mais que ele, levou tudo. A Ilda diz que a viu a comprar cuecas encarnadas na loja dos trezentos na semana passada. Risota. Os dez minutos que se seguiram foram todos à custa das cuecas encarnadas. A chegada do patrão estendeu a galhofada para mais meia hora. - Ai vida! As mãos enterravam-se nas “árvores” dos pimentos, escolhendo os maiores, deixando os outros para a ronda do encarnado. O cheiro do fruto esmagado na água da chuva espetava pelo nariz adentro como uma faca e o chapinhar na lama acentuava o odor a podre. - Ó Ana, chega pr’aí, miga. Apanha esse bico. - Fica pr’ó rabisco! O tractor arrancava com dificuldade, afundado pelo peso. Carregava atrás uma cesta de arame, plena de pimentos verdes. Os gritos das mulheres animavam o pé que acelerava o motor e faziam avançar aquele monte de ferro aos solavancos. - Nunca mais é Sábado! - Anda lá com isso! O Jaime ia vendo o trabalho deixado no fundo das linhas e, nunca satisfeito, comentava: ou era pimento deixado a mais ou a menos, ou que apanhavam os podres, ou porque partiam a planta. Havia sempre motivos. Pausa para o almoço. Havia madeira para queimar e febras para assar para o senhor Jaime. Elas, ainda com a boca a espumar palavrões contra o patrão, agora ofereciam: - Ó senhor Jaime, quer um bocadinho de açorda? Mas ele pouco falava. Brusco, ia atrelar ou desatrelar o reboque, punha gasóleo no tractor, não dava cavaco.

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- Ai, o raio do home’, parece que anda aluado! Riam-se. Da lua, falava-se dos gémeos nascidos na semana anterior e, daí, passavam para os hospitais. Algumas histórias vividas no hospital, os filhos do Estica que lá estavam no céu, coitados. Pela terceira vez, uma aresta ainda não bem afagada sobre o caso do pedófilo. A conversa terminava em apoteose, com mais uma dedução: - Então, se ele foi atrás dela para o Algarve já andava com ideias de ficar com o dinheiro! Fazia-se silêncio. Ó Hélia, ainda tens aí vinho? A Hélia não dava cavaco. - ’Tá c’a mosca. Um sol morno ajudava a secar as roupas. - Irra, que até a sopa estava fria! Vou mijar. E lá ia. Até à vala lateral. Descia ao fundo, arregaçava as saias e agachava-se. As ervas dançavam à sua volta e ela, sempre com um olho no burro e outro no cigano, mandava os olhos procurarem vestígios de uma cobra ou de um lagarto. Os lagartos procuram as pernas das mulheres para treparem por elas acima. A seguir ao almoço, a Hélia trabalhava calada, parando de vez em quando para largar uns ais fundos e sem resposta. A Ana e a Florbela falavam pouco e as outras iam puxando, dando os últimos nós à conversa do dia. Ambas cinquentonas, sabidas, sondavam para depois arrasar. A mais alta, a Ruça, colhia, aqui e ali, logo pela manhã: na mercearia, na padaria, na imaginação. A outra, a Prenha, alcunha dada em alusão à gordura e ao peso, tinha a habilidade de juntar um mais um para dar sete, por isso as histórias saiam dali melhor do que a realidade. Mas ajudavam a passar o dia. - Ó Ruça, conta lá o que disseram lá no Centro de Saúde. - Ora, pois. Então ela trazia o rapazito na mão. Valha-me Deus, até parece que o estou a ver agora, coitadinho. Todo a tremer, com a roupa rasgada… - Isso é porque o outro já tinha abusado dele - saltava logo a Prenha, em brilhante conclusão. A Ruça continuava: - Lá no café até diziam que ele fugiu para Lisboa, mas parece que não, que foi visto lá p’rá casa da filha, no Carregado. - Foi a filha que o apresentou ao menino, por isso ele foi-lhe pedir satisfações! Deve ser isso - mais uma brilhante conclusão da Prenha, que, quando tinha o tempo livre ainda aprendia com os jornalistas

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da televisão. E o sol ia baixando. Arrefecia. - Ó mulheres do rancho, vai mais uma cesta de pimento para a caixa! Daqui a nada é a adiafa! - … Quando as galinhas tiverem dentes! Riam-se. O dia acabava. Toca de tirar as luvas, apanhar uns pimentos para levar para o home’ para o jantar, pensar no comer do home’ e na bucha do dia seguinte. Para a Hélia era fácil: pão, toucinho e vinho. Agora ajeitavam-se na caixa, com a cesta aos pés. Enroscando-se em mantas e umas nas outras. Levanta-se um vento frio que agita as folhas dos salgueiros e dos choupos. Adivinha-se uma noite de chuva. As nuvens escuras adensam-se ao longe, mas ainda se vê a curva feminina do Montejunto, alongando-se a Norte. - Ai o que vem p’raí de água! A carrinha segue, carregando consigo a exaustão do dia e a promessa de mais e melhor para o que se seguir. As rodas vão deixando bocados de lama dura na estrada, que irá mais tarde derreter-se com a chuva, lavando os vestígios daquelas histórias. E a lezíria suspira e aguarda pelo desenrolar do que ali foi contado, pois só ela sabe de onde veio e para onde foi, tal como o rio que por ali passa e como os patos e os gansos que ali cruzaram os céus na madrugada desse dia de Outono.

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III CONCURSO LITERÁRIO

CRÓNICA DA ÚLTIMA FORMA Bruna Solange Diogo dos Santos

3º Escalão/Crónica


CRÓNICA DA ÚLTIMA FORMA Apenas e só… uma forma. Esqueci-me das horas. Perdi-me em deduções inúteis sobre uma matéria que até nem gostava muito de falar, mas que de certa maneira me foi tranquilizando. A voz serpenteava enquanto a mente afligia de tremores por aquilo que o corpo ansiava, mas a emoção não cedia. Por momentos – que pareceram apenas momentos – pareci esquecer o teu telefonema, todas as tuas palavras, as minhas lágrimas escondidas atrás do telefone, muitas ainda guardadas nos olhos, que não caíram devido ao choque tranquilizado por ti com respostas simples de “ainda há formas…”, “pelo menos uma forma”. Uma forma que exigia uma promessa à qual o meu corpo sediado de emoções não permitia dar. E dei. Mas não doeu, foi anestésico. Sabia apenas que deveria cumpri-la. Que uma grande parte de mim queria cumpri-la. Mas… perdi-me nas horas. Nas horas e nas palavras. No escrutínio todo que dei à minha intelectualidade para falar de um tema que me permitisse esquecer-te. Mas eu também me esqueci que não é possível esquecer-te. Pelo menos não assim… desta forma. E corri depois de olhar o relógio. Saí porta fora quase sem dizer o porquê de tão inesperada pressa no meio de uma conversação, à qual até supostamente eu ocorria bem de argumentos. Mas só me interessava correr. Correr e não perder… a última chance. A última forma. A minha mente não pensava. Atulhava de medos e contradições, vontades, esperanças e frustrações. O corpo tremia enquanto corria e passava pelas pessoas sem lhes olhar as faces. Tremia de tal forma contra o vento, que me deu quase a sensação de estar a voar. Eu sabia o caminho de cor. Só tinha que lá chegar. Lá chegar. Seria um objectivo? Não… eu não tinha objectivos há muito tempo, não seria agora no meio de uma corrida desenfreada que os ia ter. ( Talvez “tu” fosses o objectivo…). As pernas agora ganhavam dor. Começava a ver o limite de chegada – a estação. Estava cansada. Mas continuava a não sentir o corpo. Sentia apenas a respiração sofregamente e o peito a pulsar. As máquinas não tinham ninguém. Tirei o bilhete depressa para o tal sítio. Não pensei sequer, não li os locais, os dedos faziam-no mecanicamente quase sem ter que perceber o que estava a fazer. Olhei as horas no televisor, faltavam 4 minutos. 4. Voltei a correr. Subi as escadas ainda com o peito a pulsar, voltei a descê-las. Agora as pernas tremiam como se eu tivesse corrido a maratona. Mas tinha chegado à estação, ainda no tempo. O “lagarta” gigante que me levaria ao destino ainda ali não parara. Dei por mim a olhar os carris. Sempre tive uma teoria relativamente à forma como olhava para eles. Olhava para eles como o caminho da vida que escolhemos, cheia de “pedras” à volta. O comboio seria apenas a nossa oportunidade de passagem. Agora deveríamos decidir uma das duas hipóteses. Ou o apanhávamos e seguiríamos um qualquer outro rumo. Ou então atirávamo-nos à linha e deixava-mos que ele nos passasse por cima. E com receio, mas sem dar conta, agora, acho que escolhi apanhá-lo. E não pensei quando entrei pela porta e vi o seu interior cheio. Procurei a luz das janelas. O interior tornava-se irrespirável. Tinha sido o “rápido”, não tinha? Tinha que ser. Para chegar mais depressa. Procurei o relógio. Já passava das horas que tínhamos combinado. A “forma” que me falaste começava a fugir-me dos dedos. Respirei fundo e senti-o começar a andar. Rápido, mais rápido. E fechei os olhos. Permiti-me a sentir os carris, a tentar perceber a engrenagem da maquinaria. E não pensar em mais nada. Nem no que faria quando chegasse. Nem no que diria quando te visse. Nem no que aconteceria quando te olhasse. Abri os olhos de repente – e se eu nunca te chegasse a olhar? Não… fecha ! Isso não. Isso só significaria perda. Eu tinha que estar quase a chegar… quase. Parou. Eu sabia que era a primeira paragem. Olhei a janela, e vi-o. O “sítio”. Chegara. Estava tão perto. Saltei a carruagem. Nem me dei conta que o revisor nunca tinha passado. Esperei. Não queria esperar, mas tinha que esperar. Esperei que o comboio partisse de vez, e corri os trilhos para o outro

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lado. E corri. Corri. Já o tinha feito, portanto agora o meu corpo não poderia doer mais do que já doeu. E pela primeira vez, parei de ser mecânica. E olhei. Olhei, olhei… Vi o Rio. Vi as sombras das árvores. Vi crianças. Vi bancos para nos sentarmos. Vi repuxos. Vi pessoas. E de repente tudo parecia um redemoinho na minha cabeça. Não te vi! Então corri. Corri outra vez. Tu tinhas que estar algures. Sim algures. Fui até ao fim. Podias ter andado até lá enquanto me esperavas. Nada. Voltei atrás mas seguindo por outro troço. Olhei todas as sombras. Procurei os rostos de todas as pessoas. Nenhum correspondia ao teu. Tu estavas? Não estavas? Olhei as horas… novamente. Já tinha passado tanto tempo. Estava tão cansada. Sentei-me. Tinha que encarar a realidade – se tu alguma vez ali estiveste, já não estavas. Perdera a oportunidade. A oportunidade que tu me deste. Não lhe dei valor. Se calhar, esqueci-me de lhe dar valor. Não! A tua frase não me saía da cabeça “Há outra forma”… coloquei outras palavras “Ainda há outra forma”. Procurei o telemóvel. Marquei o teu número. Ouvi-o chamar. Não podia ser mecânica agora. Tinha que deixar a emoção vencer. Que te diria? Para vires, claro, para vires! Era mesmo o que eu queria, não era? Tremeliquei. Mas do outro lado ainda não atendias. Ou então não me atenderias mesmo. As horas novamente. Já passara demasiado. Agora a emoção instalava-se. E as lágrimas que eu tinha guardado dentro dos meus olhos ao telefone caíram-me pela face. Olhei o rio. O rio que tanto gostávamos. Tu disseste – “não valeria a pena um depois”. Era tão dura que eu não me queria lembrar mais. Agora percebia. Eu não estive naquela hora. E tu esperaste e eu não cheguei. Não naquela hora. Mais não valeria a pena. Abre os olhos. Encara. “Acabara de o perder”. Acabara de te perder. Será que ainda havia outra forma? Tu não tinhas outra forma. Eu conheço-te. És tão sofredor quanto irredutível. E tudo por causa de mim. Acabara. Acabara agora. Já não tinhas que sofrer mais. Tomaste a tua decisão. Eu não cheguei a tempo para te fazer inverter a escolha. E eu tinha mais do que uma hipótese que dava a mim mesma. E voltei a olhar para trás. Dali via a estação. Lembrei-me da teoria. Dos carris. E eu já tinha tomado uma decisão mecanicamente sem quase me dar conta, que me tinha levado até aqui. Onde tu não estavas. Onde tu já não estavas. Os carris. E pensei na outra hipótese. Mais lágrimas me queimavam a face. Acho que agora já não tinha medo. É como diz a música – “you bleed just to know you’re alive”. Estava anestesiada. Tão anestesiada pelo desespero e pela perda que… voltei a olhar os carris. Fechei os olhos. Respirei fundo. Abri os olhos. E voltei a correr. Os carris. E corri. Apenas não sabia se agora sentiria a minha paragem. Provavelmente não. Os carris. Um som endurecedor parecido com uma buzina que me apitava. Os carris. E Corri. Perdi-te para sempre. (Estarias lá de braços abertos?)

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III CONCURSO LITERÁRIO

VERSO LIVRE Marta Sofia Oliveira Ferreira Santos

3º Escalão/Poesia 82


VERSO LIVRE Tentei escrever um poema que falasse de ti. Mas como poderia um poema falar de ti, se tu és mais que poema, mais que prosa, tu és um conto para ler repetidamente antes de adormecer. E cada vez que contar a história que li e que não é mais do que a nossa história, vou acrescentar um ponto nesse conto. Tu és um verso livre, um verso em branco que vou escrevendo. O teu verso eu já traduzi na língua que melhor sabemos falar. A minha língua e a tua no prelúdio de um beijo. Numa conversa infinita. E agora que não estás sobram-me as rimas, mas eu preferia um verso sem sentido e sem rumo, como os nossos passeios amenos. A tua mão silenciosa na minha face e o teu beijo pleno de perfeição. Porque cada verso-beijo que emana de ti é uma conjugação no mais-que-perfeito. Entre nós é tudo (in)condicional. E nenhum escritor poderia definir exactamente o que sinto por ti. Já não é amor, já não é paixão. Sem ti a poesia no mundo esvai-se num sopro. O azul torna-se cinzento. Sem ti o encontro é desencontro. Sem ti sou apenas um pássaro, num dia de céu azul, voando em círculos sem destino. Um único pássaro, perdido do seu bando. Abrindo as asas no vazio, engolido pelo céu. Uma única folha, arrastada pela ventania. Um pintor sem musa que deambula pelos dias e pelas horas. Quero apenas dizer que me fazes falta, como se em ti morasse o sentido do amor. Agora que não estás, a poesia escondeu-se e deixou de me falar. A inspiração embriagou-se de saudade. Os teus lábios afiguram-se nos meus sonhos e esperam-te. Afinal, que esperam uns lábios senão outros? Uns lábios como os teus, lábios alma-gémea dos meus. Volta para o meu livro de poemas. Faz-me falta esse verso que és tu.

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Rede de Bibliotecas do Município de Azambuja

IV CONCURSO LITERÁRIO

2010/2011


IV CONCURSO LITERÁRIO

CRYSTAL Beatriz Isabel Carvoeiro Patrício

1º Escalão/Conto 86 86


CRYSTAL Há muito, muito tempo, conta-se que nos anos quarenta de um século distante, havia uma vila que se chamava Azambuja. Azambuja era uma vila rica em espaços verdes. A maioria das pessoas era pobre, mas mesmo assim eram todos simpáticos. Havia muitas riquezas diferentes em Azambuja e as festas eram plenas de alegria. Havia cortejos pelas ruas da vila, com produtos que as pessoas, mesmo com poucas posses, ofereciam, como cebolas, alhos, leguminosas e outros produtos que os homens e mulheres semeavam nas terras dos campos de Azambuja, pois esses homens e essas mulheres combatiam os milhares de cheias, o sol abrasador e a fortíssima chuva, ou, numa simples palavra, o humor do tempo. A vila era pouco desenvolvida, não havia indústria, não havia nenhumas fábricas, nada conseguia tirar o lugar dos campos verdes e dos vários tipos de pastagem. Lá, nessa época, uma rapariga ia sempre para o campo. Era muito amiga dos animais que lá pastavam livres como o vento, fazia tudo por eles e tinha um super amigo, um cavalo castanho com uma franja cinzenta e castanha. Um dia, ela viu o seu cavalo caído no chão, muito quieto, quase sem respirar. Quando estava a alguns metros dele, viu-o e ficou espantada, correu para ele e viu que ele estava a deitar muito sangue. A rapariga começou a chorar, a deixar o ódio e a maldade do mundo entrarem-lhe no coração, e com essa raiva toda, o cavalo viu que já não havia nada que o agarrasse ao mundo, já ninguém no mundo teria um coração tão puro e tão livre de qualquer maldade. Morreu, deixando para trás a sua amiga. A rapariga viu os seus olhos brilhantes e pretos fecharem-se, dizendo-lhes “Adeus!” e começou a ficar em pânico, cheia de ódio e raiva, dando um grito que se ouviu a quilómetros de distância. Começou a chorar ao lado do cavalo, lembrando-se de quando ele nascera, como eles brincavam e como ao pôr-do-sol partilhavam a companhia um do outro.Ela pensava que ele estava a ser egoísta, deixando-a ali sozinha. Então ela desmaiou junto ao cavalo e nesse instante começou a chover. Passado algum tempo, parou de chover, os raios do sol romperam as nuvens tornando-as douradas, as nuvens começaram a andar mais depressa do que o normal, e um raio de luz brilhou fortemente contra eles. Nesse momento ela acordou, vendo o cavalo a brilhar e a ficar translúcido até desaparecer. Então ela olhou para a sua mão e viu que também estava a desaparecer, e a partir daí nunca mais souberam deles. Passados muitos e muitos anos, já no século XXI, no final de 2010, Azambuja tinha mudado imenso. Tinha muito mais indústria, a maioria das pessoas já tinha uma vida estável, com carro, casa e família, mas outras pessoas ainda tinham uma vida de miséria, ou porque gastavam o dinheiro todo em vícios ou porque o trabalho dava pouco lucro, mas Azambuja tinha mudado muito para melhor. Contudo, em Azambuja, nada tirava os campos verdes que já faziam parte da vida dos azambujenses. Nessa pequena mas grande vila morava uma rapariga chamada Isabel. Ela era uma jovem adolescente muito simpática e adorava a vila. Em simples palavras, era feliz e era doida por animais. Achava o mundo cruel por causa de algumas pessoas não darem o devido valor aos animais, por lhes mandarem pedras e areia para a cara, lhes baterem violentamente e pior, por pensarem que são objectos sem sentimentos e por isso os matarem só por divertimento. Ela achava injusto, mas tentava não pensar nisso. Então ia para o campo quando o pai dela ia para a horta e ia ter com os seus amigos, uns cavalos que iam para lá pastar. Eram usados nas toiradas, tal como os touros e os cabrestos. Um dia viu lá um cavalo novo. Era castanho, pois todos os outros eram brancos, era diferente, era simpático e o cavalo foi logo ter com ela. Parecia haver uma ligação entre os dois. Era uma ligação formada ali, uma ligação que ela nunca tinha

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sentido, mas parecia que ela já o tinha conhecido, que o conhecera desde sempre. Então ela disse: - Como tu és bonito e, pelos vistos, também simpático. Se calhar não tens nome. Olha, a partir de agora chamar-te-ei Marron. O cavalo abaixou e levantou a cabeça fazendo a sua franja cinzenta e castanha abanar, parecendo que voava, raspou a pata fazendo o pó voar sobre a pradaria verdejante e relinchou livremente. Vendo isto, Isabel não teve medo, mas sentiu a ligação mais forte manifestar-se. Até que o silêncio se rompeu e o destino a fez perguntar: Serás um anjo? O cavalo fechou os olhos por alguns segundos e voltou a abri-los. Estavam mil vezes mais brilhantes do que quando ela os vira. Ela olhou o cavalo nos olhos e Marron, o cavalo especial, levantou a cabeça olhando para o céu azul, parecendo lacrimejar dos olhos. Confusa olhou para ele pensando: “ Será que ele me ouve?”. Aí o pai dela chamou-a, e disse a Marron: - Olha, não saias daí, ok? Mas o cavalo nada fez, uma coisa natural para um cavalo normal. - O que foi, pai? – Perguntou Isabel a seu pai. -Olha, despacha-te que daqui a dez minutos vamo-nos embora. Ela foi a caminho do sítio onde o cavalo estava e foi dizendo baixinho: - De certeza que o Marron se foi embora. Ele deve ser igual aos outros. Mas não, ele estava lá, a vê-la dirigir-se para ele, nunca tirando os seus olhos idênticos aos de um anjo dela. Parecia apaixonado, um cavalo “apaixonado” por uma humana, e essa paixão era uma paixão genética, parecendo que a ligação que se criara neles era como se eles fossem irmãos. Quando o pai dela estava a preparar-se para ir embora o cavalo olhou para o carro e depois olhou para ela com os seus olhos cintilantes, parecendo dizer: “Fica comigo!”, mas ela, percebendo a expressão da cara de Marron, disse: - Eu vou, mas volto. Vá, volta para os outros cavalos. Estão à tua espera, vai lá! Então foi aí a despedida de dois irmãos de alma. Isabel acariciou-o como já tinha feito antes e despediu-se, estando a vê-lo afastar-se no horizonte, no pôr-do-sol. Depois de alguns passos olhou para trás, tal como o cavalo, e foi com o seu pai para casa dela, na sua rica vila. A volta de Isabel demorou dias e dias sem fim e o cavalo esteve sempre à espera, sem perder a esperança. Apanhando sol, chuva, vento e todo o variado clima, nunca se mexeu dali, mas esses dias tornaram-se semanas, e essas semanas tornaram-se meses, até que um dia, passados dois meses, Isabel estava de férias e foi outra vez ao campo ver o seu fiel amigo que passava lá noites e dias a fio.

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Quando lá chegou não viu nenhum cavalo, apenas a pradaria verdejante, o som das árvores a abanar com o vento e o restolhar das folhas. Não estava ninguém. Ela pensava que o cavalo se tinha ido embora ou o tivessem levado para outro lugar e teve medo de o perder. Então viu uma luz muito brilhante como o sol. Era ele, o cavalo com olhos de anjo, o cavalo dos seus sonhos. Estava castanho como sempre, com o coração puro e livre de todos o males, com a sua franja a voar com o vento, como sempre. Marron, parecia falar-lhe por pensamento: “O meu nome é Crystal”. Ela, assustada, pensou que estava a sonhar, mas não, ele disse também: “Olha, quero ajuda para uma coisa. Ando a lutar contra um vírus chamado VPA, que transforma negativamente os animais. Vem, sobe, eu quero mostrar-te uma coisa!”. Isabel subiu e foi com o cavalo. Ela sentia-se livre, com os cabelos castanhos soltos a voarem, nem parecia ela. Chegaram a um bosque sinistro, sombrio e silencioso. Metia medo estar lá, mas eles continuavam. Mais à frente havia uma grande pedra, linda e brilhante, a chamada pedra dos desejos. Então o cavalo começou a abanar a cabeça e a sua franja voara pelo céu. “Essa pedra é muito antiga. Foi dada aos meus antepassados e é meu dever protegê-la, mas o vírus VPA expandiu-se pela maioria dos animais e todos ficaram sem alma. Só estão a ser movidos pelo vírus, pobres primos!” Vendo os seus olhos ficar vermelhos disse descendo do cavalo e pondo-se à sua frente: -Calma. Estás a ser afectado pelo vírus. Quem me dera alguém para me ajudar! Então a pedra começou a brilhar, apareceu uma luz muito forte e aí viu-se uma sombra e depois viu-se que era uma rapariga. Ela disse emocionada: - Crystal, voltaste para mim. Pensava que te tinha perdido. O que aconteceu? Isabel viu que o cavalo estava a ficar cheio de ódio, começava a ter os olhos vermelhos e a ficar violento. - Crystal, tu não és assim. Sou eu, a Branca, lembras-te? – e dito isto começou a recitar lentamente: “Um dia, espreitarei lá fora, Outro dia serei uma moda, Já é tempo de saber o que queria, Já é tarde e não sabia, O tempo passa a correr, E a noite já esta a crescer, Parece uma flor a crescer, Sem ninguém lhe bater!” O cavalo abanou a cabeça e voltou a si. Era a Branca, a rapariga de antigamente que desaparecera, que perguntou a Isabel: -Como te chamas?

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- Chamo-me Isabel. Olha, nós temos de ajudá-lo porque… - então Branca interrompeu-a e disse: -Eu sei. É o vírus, por isso trouxe uns amiguinhos! Ela tinha trazido milhares de animais, sobretudo dinossauros, leões e cavalos. Tinham cinco horas para preparar a batalha. Havia armadilhas à volta da pedra, em cima das árvores e no chão. Isabel e Branca fizeram um pacto, quando uma tivesse em apuros, a outra ajudava. Ouviram um barulho enorme. Tinha começado a batalha. Eram milhares de plantas carnívoras e todos os animais do mundo mais ferozes, como ursos e crocodilos, a aproximarem-se. A batalha era muito violenta, havia milhares de corpos sem vida no chão. Crystal também lutava com Isabel e Branca, mas nesse momento Isabel perdeu a espada que estava a usar na luta. Um soldado inimigo ia ferir Isabel, mas Branca pôs-se à frente ficando gravemente ferida. Estava a deitar muito sangue, e Crystal disse a Isabel: “Pega nela, vamos para a igreja!”, e foram o mais rápido possível. Passaram pelo Rossio. Estava sem ninguém. Só havia poeira e papéis a voar, mais nada. Isabel que começou a chorar. Assim que chegaram à igreja, deitaram-na em cima de uma mesa e aí ela disse: - Desculpa não resistir, mas tu tinhas de sobreviver. Perdoa-me! - e assim fechou os olhos e ficou sem vida. Nesse momento, Crystal disse a Isabel: “Perdoa-me, eu tenho de ir, pois se eu morresse ela não morreria, mas se ela morresse eu teria de morrer. Tudo começou há muito tempo atrás. Ela viu-me nascer e morrer. Ela veio comigo para me proteger. Estaremos ligados para sempre. Eu estarei sempre contigo, descansa!” Isabel começou a chorar e abraçou-o, percebendo que ele teria de ir. Ali ficou e ali se estabeleceu uma nova ligação. O cavalo começou a ficar translúcido até desaparecer, sempre a olhar para ela, mas antes de desaparecer todo deu-lhe uma prova de amizade. Enquanto ela usasse aquilo, ele estaria sempre com ela, e o que lhe deu foi um colar com um cristal, muito brilhante e bonito, mas muito especial. Só quem tivesse o coração puro conseguiria ver a imagem do Crystal lá dentro.

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IV CONCURSO LITERÁRIO

RIQUEZA Ana Carolina Costa Gomes

1º Escalão/Poesia 92


RIQUEZA Riqueza não é ter dinheiro não é ter boa vida é fazer o que podes para viver com alegria Riqueza não é só dinheiro é manter a emoção é viver o dia a dia com o coração A maior riqueza é poder alegrar poder viver e amar Riqueza, riqueza, riqueza é o que mais tenho falado mas o mais importante família e amigos ao meu lado Amigos verdadeiros são para recordar os mais importantes são riqueza ao nosso olhar Concluímos assim uma lição razoável para uma vida feliz a riqueza é indispensável.

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IV CONCURSO LITERÁRIO

RELATOS DE UMA VIDA ESQUECIDA Joana Raquel Félix Regateiro

2º Escalão/Conto


RELATOS DE UMA VIDA ESQUECIDA É como se uma luz se apagasse e a incompetência dos olhos viesse ao de cima. É como que um retornar à infância e esquecer a realidade presente. Tudo isto são coisas, coisas que nós podemos estudar, mas não posso avaliar sentimentos, apenas posso retratá-los para constatar factos. Mulher feliz, saudável e independente. Assim era a mulher que até aos 80 anos foi capaz de cuidar dela própria, dos familiares e da sua casa. Com o passar do tempo o centro de dia, a televisão e a visita da família e amigos eram a sua companhia diária. Rotina sempre marcada pelos mesmos passos. O início é quase indetectável e silencioso. A doença do esquecimento começa por se confundir com cansaço e velhice. Caminhando até se apoderar do domínio da mente. E assim foi. Certo dia os familiares começaram a notar alguns esquecimentos e confusões que alegavam tratar-se de velhice. Mais tarde as personagens da televisão faziam-na confundir a realidade. O tempo baralhava-lhe a cabeça e os dias trocavam-lhe os passos rotineiros. Depois de um cancro da mama superado, esta mulher aparentava ter uma saúde de ferro invejada por muitos com metade da sua idade. Contudo, a vida nunca é como queríamos que fosse e foi-lhe diagnosticada a doença de Alzheimer. “O meu nome é Antónia, tenho 80 anos e tenho Alzheimer.” Tendo a sorte de ter filhos que cuidassem dela, foi decidido que esta mulher viveria um mês em casa de cada filho pois era evidente a sua dependência. Mudava portanto de casa todos os meses. Como é típico numa doença degenerativa como esta, novos sintomas foram surgindo. Fugas inconscientes e incapacidade de voltar a casa, retorno à infância, invocação do nome dos seus antepassados mortos e esquecimento de práticas básicas que se imaginava serem impossíveis esquecer. O agravamento da doença e a instabilidade provocada pela mudança rotativa de casa levaram à decisão de a colocar num lar de acolhimento para idosos. Assim, esta mulher foi para um lar de óptimas condições julgando estar a fazer tratamento para o joelho num hospital. A experiência dos colaboradores do lar com esta doença despertava a confiança dos familiares. No entanto os imensos kilometros de distância, o aumento das despesas com medicamentos entre outros materiais de que precisava e a escassa disponibilidade para visitas diárias levaram a que fosse transferida para um lar mais perto de casa onde as condições eram inferiores. O lar tinha um maior número de utentes o que retirava a atenção exclusiva dos colaboradores para além de estes não terem conhecimentos suficientes sobre a doença para que lhe dessem um acompanhamento adequado. “Hoje esqueci-me não me lembro do quê. Mas sei que me esqueci de algo, algo importante. Sinto-o. Pondero as hipóteses e todas me parecem remotas. Dou voltas e voltas e não consigo achar-me. O pior e mais doloroso é saber que daqui a uns anos nem sequer me lembrarei de que me esqueci de algo.” A mudança de lar trouxe vantagens para os familiares quer a nível económico quer a nível de proximidade da nova instituição. As primeiras visitas na sua nova casa eram marcadas pelas conversas de circunstância, já não havia partilha de experiências e troca de opiniões, apenas fracas tentativas de estimular a capacidade de lembrança. Com o passar do tempo a resposta à pergunta “como te chamas?” era cada vez mais pensada e exigia cada vez mais esforço por parte da vítima de Alzheimer. A lembrança do nome dos familiares ia desvanecendo tal como a capacidade de satisfazer as próprias necessidades bási-

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cas. Os anos iam passando e a estimulação adequada à situação em que se encontrava escasseava. As idas ao jardim diminuíam com a incapacidade de locomoção, apesar disso a cadeira de rodas ainda lhe permitia respirar algum ar puro. As palavras evocadas eram cada vez menos e cada vez mais esforçadas. O Natal passado em casa dos familiares deixou de ser possível pela confusão que proporcionava. Os dias eram cada vez mais monótonos e inúteis. Mais tarde o corpo deixou de se equilibrar na cadeira e por isso tinha de ser amarrada pela cintura. Os gemidos eram cada vez mais constantes e o diálogo inexistente. Pela incapacidade de se expressar, os gemidos eram interpretados como sendo de dor. Seria dor física ou dor da alma? Certamente um misto das duas. A qualidade de vida a que todos os seres humanos têm direito ia sendo impossível de alcançar. Agora os dias são passados maioritariamente na cama. O corpo velho e cansado já não é capaz de estar muito tempo sentado na companhia dos restantes utentes da instituição. A autonomia foi completamente perdida e a sobrevivência acontece por dependência total. Só existe uma coisa que esta mulher ainda não esqueceu: beijar toda a gente que se chegue a ela. Será que também se esqueceu de sentir? Ou apenas não consegue transmiti-lo? Ou será que simplesmente já não é capaz de interpretar as experiências e associá-las a uma determinada reacção? Interrogações que ainda estão para achar uma resposta… Por agora resta-lhe esperar que lhe levem a alma deste mundo repleto de injustiça e falta de dignidade até para morrer. Agora nada mais resta senão um coração que bate num corpo aprisionado por um cérebro apodrecido. “Dizem que o meu nome é Antónia, dizem que tenho 84 anos e que tenho Alzheimer.”

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IV CONCURSO LITERÁRIO

A GRANDEZA E A IRRACIONALIDADE Anastasiya Strembitska

2º Escalão/Crónica 98


A GRANDEZA E A IRRACIONALIDADE Hoje em dia ninguém questiona os benefícios do avanço científico e tecnológico da humanidade. Aqueles que o contestam criticam, evidentemente, a sua própria existência, pois sem o progresso científicotecnológico esses indivíduos não seriam capazes, provavelmente, de sobreviver ou chegar à terceira idade e permaneciam no estado de primatas das cavernas. Porém, os mais inteligentes e preocupados com a nossa sobrevivência enquanto espécie questionaram a aplicação que o Homem dá às suas invenções. Os animais irracionais e mesmo criaturas com cérebro desenvolvido ou uma organização social complexa, tal como os golfinhos e as formigas, respectivamente, estão desprovidos de cuidados médicos especializados e tecnologias que permitem governar as forças assustadoras da Natureza submetendo-as às nossas regras e usando-as ao nosso favor. A ausência de conhecimentos científico-técnicos resulta em incapacidade de conquistar um planeta inteiro, mandar satélites para outros corpos do Sistema Solar e para o espaço exterior a este. No entanto, estes animais existem durante mais tempo do que o frágil ser humano – apresentam uma estratégia biologicamente estável. As descobertas científicas e tecnológicas aparentemente são úteis e benéficas para os seres racionais, mas quando chegam às mãos do Homem, mais ou menos tarde, tornam-se uma arma perigosa. A história da metamorfose de descobertas úteis em poder destrutivo começou com o aparecimento da espécie humana – agressiva e portadora de intelecto. Como sempre, as intenções eram as melhores: descobrir o fogo para se aquecer e cozer os alimentos, mas o resultado é mais drástico – a queima das florestas. A invenção de armas para defesa tornou-se o primeiro passo para guerras sangrentas. Até a invenção da roda, que devia ser posta nas máquinas agrícolas, se transformou em instrumentos de guerra que mataram milhões. Nas mãos do Homem, mesmo hoje em dia, um automóvel ligeiro de passageiros passa a ser a uma arma mortífera responsável por milhares de mortos por ano. “ De boas intenções está o Inferno cheio.” Na Idade Média o conhecimento sobre a anatomia e fisiologia do corpo humano não era usado para curar e salvar vidas, mas para provocar maior sofrimento às vítimas das torturas. No entanto, nada se compara ao auge da mente maléfica do Homo sapiens sapiens, que se iniciou depois da Revolução Industrial, quando o ser humano decidiu acabar não só com os indivíduos mais próximos, mas também com todo o planeta. De facto, a Terra, sendo o ecossistema em que nós vivemos e que garante a nossa existência, passou a ser o principal alvo dos homens. Assim começou a Era da Poluição. Com as novas fábricas e produtos químicos o Homem conseguiu, em duzentos anos, destruir o equilíbrio natural. A acção dos seres humanos está a aproximar-se do efeito de uma “extinção em massa”. Quem serão os dinossauros do terceiro milénio? Existem várias semelhanças entre humanos e os dinossauros: eles dominaram o planeta Terra na Era Mesozóica, nós dominamo-lo actualmente. Porém existe uma diferença colossal – os “répteis terríveis” existiram durante mais de 185 mil milhões de anos e desapareceram na sequência de um desastre natural, os humanos existem como espécie há 2 milhões de anos e já estão à beira da catástrofe planetária. O Homem como espécie tem o record absoluto de espécies extintas. O exemplo mais citado é a extinção da ave dodó pelos marinheiros espanhóis no século XIX. No século XXI, em média, todos os dias desaparece uma espécie da flora ou da fauna nas florestas amazónicas em consequência da acção do homem. Tudo isso provoca um distúrbio ecológico profundo.

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Para demonstrar a natureza auto-destrutiva do Homem no seu apogeu temos de nos lembrar do século XX. Uma das mentes mais brilhantes no âmbito da Física da nossa civilização, Albert Einstein, contribui-o, involuntariamente, para a criação da arma nuclear – talvez o mecanismo mais destrutivo do Universo. Por ironia, primeiro surgiu a bomba nuclear e só depois a primeira central termonuclear para fins não militares. Curiosamente, não é a única inovação científica que aparece de uma actividade bélica. Em suma, a agressividade natural do ser humano, conjugada com inteligência, permitiu-nos sobreviver durante milhares de anos num ambiente hostil, mas ao mesmo tempo constitui o nosso “calcanhar de Aquiles”. A ausência de racionalidade nos seres potencialmente racionais, quando estes são mais perigosos do que qualquer outro animal, resulta numa política de auto-destruição ou destruição mútua, no caso de uma guerra entre duas potências nucleares. Tudo isso exemplifica a “maneira inconsciente como a Humanidade aplica as suas conquistas tecnológicas” (Cousteau, 1978). Somos dotados de inteligência, mas não da razão – ignorantes e cegos num campo de minas criado por nós.

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IV CONCURSO LITERÁRIO

ELE Rute da Silva Abreu

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ELE Era calor. Hoje, só frio. Só uma cálida brisa amornando o vazio, restos do que outrora ardia que nem sol nascente. Era doce. Hoje, contudo, só ácido. Apenas azedo do que fora, um dia, personificação de sabor sápido, restando agora nem sequer um agridoce de memórias. Era harmónico. Hoje, simplesmente ruído tumultuoso. Sons que não despertam nem deixam cair no repouso, sem melodia nem notas musicais. Era suave. Hoje, porém, nada mais que escabroso. Somente um toque asqueroso que seca a pele e murcha a esperança. Era belo. Hoje, disforme. Em tons de azul que dorme, dissipado e amargurado, algo de quem a cor fugira com medo. Era perfume. Hoje, um simples odor. Cheiro putrefacto que não relembra o amor que o passado guarda, invejoso, em caixinha aromatizada. Era ele. Hoje, não sei o que é. Talvez insignificância. Talvez mera coisa de tamanha importância. Apenas o calor, o sabor, o som, o toque, a beleza e o seu odor, esses já dele não são. Mas a ele já pertenceram. A morte tem destas coisas.

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IV CONCURSO LITERÁRIO

ÉS O MEU DESTINO (“YOU’RE MY DESTINY”) Maria João Faria Rafael

3º Escalão/Conto


ÉS O MEU DESTINO (“YOU’RE MY DESTINY”) Estou para aqui sentada a olhar pela vidraça, há horas. Sem ver nada. Não me interessa quem passa, nem me importa se chove ou faz sol, se é noite ou dia. Estou para aqui, eu e o vinil velho que me trouxeste dos tempos em que dançávamos aos sábados no clube, embalados na melodia de Paul Anka – “you’re my destiny”. Quando o disco chega ao fim, nem preciso de me levantar – ergo a mão do colo e sem desviar o olhar do vidro, volto a colocar a agulha sobre o vinil. Este é um estado de letargia que nunca senti antes, nem mesmo quando me deitava ao teu lado, quando ainda era a menina de dezassete anos, com quem te casaste e levaste a viver contigo na Cornualha. Acharás que estou triste? Não, apenas cansada. Hoje quando me apareceste à porta, com aquele teu toque de campainha insistente, como era teu hábito de tantos anos, não sabia realmente o que desejava fazer – se abraçar-te naquele abraço maldito que me ligou sempre a ti durante os mais de trinta anos adicta a essa droga que o teu corpo sempre exalava; se te havia de mandar passear. Decidi ficar a olharte pelo ralo da porta, a ver-te afagar a cabeça, a passar o cabelo para trás da orelha, como quando te impacientavas. Só quando vi que regressavas ao elevador, com aquele pacote debaixo do braço, decidi como num momento final de rendição, abrir-te a porta. Recordo-me agora da tua primeira humilhação pública, quando gritaste comigo no aeroporto, por me ter esquecido de ter colocado na bagagem, o teu blaser país de Gales. Ainda me lembro do sabor a sangue quando a tua bofetada me rebentou a boca; trazia a tua filha mais velha ao colo. Quando chegámos a Londres, naquele hotel em Hyde Park, o lábio tinha já sarado, a nossa menina dormia o sonho dos anjos e nós, naquela paixão desmesurada que acabou hoje, alimentávamo-nos do corpo um do outro. Não voltaste a falar do blaser e eu fingi que perdi a memória. Eu perdi muitas vezes a memória nestes trinta e dois anos e meio em que nem contigo nem sem ti. Perdi a memória quando te vi entrar naquela pensão à hora de almoço, com uma prostituta. Perdi a memória quando sovaste o teu filho por trazer areia da praia nos bolsos. Perdi a memória quando me atiraste com o bisturi que tinhas na mão, no consultório, quando anunciei que irias ser pai pela quarta vez – e não foste; acabei por esquecer aquele acidente de carro, no campo, à partida provocado por um veado que nunca se atravessou na estrada. Houve um tempo em que regressei sozinha, com os nossos filhos. Tu concordaste que a família me animaria e que o Verão Português faria bem às crianças. Mas o que queres – se era eu que sentia falta de chuva e dos rochedos até ao mar – e de abraços malditos ao redor da minha cintura?... Regressei a Dartmoore com aquela fome de ti a que me tinhas acostumado – mas foi nessa altura que descobri que entretanto te tinhas familiarizado com a enfermeira do centro, ao ponto de a teres trazido para dentro de casa, da cama. Depois de lhe teres rasgado as roupas, atirado com a mala para a rua e de lhe ter dado uma tareia colossal que fez com que me sentisse de novo estupenda, atirei-te com tudo o que havia para atirar em casa – as cadeiras, os pratos antigos que tínhamos acabado de comprar no mercado de Portobelo, o jarrão com duzentos anos que trouxeste de casa dos teus pais, os ovos, os talheres, a farinha, os sapatos da outra que ficaram para trás, o candelabro de prata que me ofereceste quando nasceu a nossa primeira filha… abri as gavetas, as janelas, os armários, o frigorífico – nada ficou no lugar – mas tu reparaste também, que nunca mais houve lugar para nada lá em casa – os lugares à mesa passaram a ser arbitrários; as horas das refeições mudaram para horários tiranos (excepto para as crianças, que comiam a horas); muitas vezes chegaste a casa e só nesse instante me decidia calmamente o que preparar.

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Comecei a ocupar-me das tuas coisas no princípio delas te começarem a faltar – quando já nem tinhas meias nem cuecas limpas é que as lavava; se me pedias para mandar limpar algum fato em particular, voltava-me a esquecer até tu me voltares a lembrar… de uma forma ou outra. Depois regressámos a Sintra, à espera de outro tempo. Se dissesse a alguém que fui sempre feliz contigo, cuidariam decerto que estava louca. Apontamentos, foram só insignificantes apontamentos aqui e ali de perder a memória – e a lembrança a avivar-se cada vez mais das tardes em que me vinhas buscar, a meio dos meus afazeres, e me raptavas aos teus filhos, só para sentirmos o vento a passar por nós, como se fossem todos os fantasmas dos guerreiros celtas perdidos em batalhas…Partíamos pela noite, quando a casa dormia na imensidão do granito a saudar o mar e fazíamos amor numa gruta ancestral, naquela forma primitiva e sensitiva, à claridade de archotes que iluminavam as pinturas neolíticas das paredes. Em ti, sempre houve muito a que aspirei ser. De ti, ficavam cá dentro os ciúmes e as conversas a desconversar tornaram-me muito amarga. De ti, ficou cá dentro a inveja dessa perfeição que te fez toda a vida brilhar perante os outros. De ti, fiquei com as rotinas das coisas boas – gostava de te observar a barbear ao espelho, da forma tradicional – com pincel e sabão (mais tarde passei a admirar a forma como o teu filho mais novo ainda o faz, tal como lhe ensinaste, quando se debruçava no lavatório, em cima dos teus pés) – depois, ficava ali a ver-te a dar o duplo nó à gravata, a colocares calmamente os botões de punho. Quando descias, deixavas cair sorrateiramente um bilhetinho meio dobrado a meio do quarto, que me fazia sentir lasciva e muito amada. Durante trinta e dois anos e meio, nem uma única vez deixaste de o fazer. Uma vez, fui dar com a empregada num pranto, a pobre mulher queria despedir-se e tudo, a pensar que a nota lhe era dirigida. Tive mesmo de lhe mostrar mais uns desses bilhetinhos para a convencer que eram deixados para mim. Com o tempo, a vida absorveu-te com uma pressa avassaladora. Mas ainda agora, neste mesmo instante, amarroto uma dessas notas entre os meus dedos, a última que ficou. Muitas vezes falei-te em divórcio, porque apesar de tudo, a minha felicidade parecia trazer-te um sabor amargo à tua vida – por vezes penso que me desafiavas de propósito para ver onde quebrava – e como me achavas flexível, deixavas-te ficar. Mas não era só isso – a verdade é que te fui sempre irresistível, inevitável, transgressora do deleite por ti. Obrigatória. Quando o dia chegou, já os nossos filhos estavam arreigados às suas próprias vidas. Não foste tu – fui eu. Naquela altura, estava acompanhada pela minha amiga Isabel quando nos interrompeste e me agarraste no braço com um ligeiro torção que o pôs negro e ela deu conta. Ela própria fez a queixa na polícia, por mais que a tentasse demover, não consegui e tu não me perdoaste – porque nesse mesmo instante achaste finalmente que alguma coisa se havia partido. Intervim então com a acção de divórcio, com que tu nunca concordaste, mas assinaste. Algum tempo depois de saíres, a empregada disse-me que andava a ler Sophia. Acabei por perceber que eram um dos que deixaste cá por casa, espalhados por todo o lado; porque para ti os livros só faziam sentido a andarem pelo mundo, pelas divisões das casas como se tivessem pernas e vidas próprias – era um dos teus preferidos – “11 Poemas”. Andei por ali uns tempos a tentar auscultar-te assim de longe, a pensar se o teu livro queria fugir para as tuas estantes, ficar assim junto a ti só para te sentir de perto, como eu também queria. E numa noite dessas em que o tempo não passa, porque já não há nada porque esperar, desatei eu mesma a correr até ti, com a aflição ilícita de to entregar. Encaixei vigorosamente a Sophia na tua estante, a meio da poesia. Encaixei de novo na tua vida sedentária, como aqueles objectos que são finalmente colocados exactamente no único sítio possível.

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Engastei de novo no teu corpo tão nodoso quanto o meu, com tudo de bom ou de ruim – os teus lábios tenros; a pilosidade do torso e do ventre; os dedos finos e longos; a tosse seca ao fim do dia; o cigarro a perfumar o ar à noite; o teu cabelo ainda farto; o sono interrompido pelas tuas insónias; o amor insano solto lá fora, na noite dos outros. Um dia a minha amiga Isabel ousou a tal pergunta proibida, aquela cuja resposta guardava para mim, porque lá está, ninguém acredita que fui sempre feliz. Foi aí que a amizade dela se divorciou de vez comigo. Caminho bem sem as amizades; sem ti…ainda não decidi. Como a Isabel, a maioria das pessoas não se apercebe de minúsculas diferenças que nos fazem querer uma vida em vez de outra. Foram muitos anos a aprender a moldar a tua irascibilidade, essa vivência sem caução que me fazia estremecer porque nunca nada era igual – o tempo contigo além de se escoar com a pressa das coisas suaves, era uma maré de muitas luas paralelas. O vento arrastava-te em ira, a chuva levava-a para longe. E num momento qualquer, completamente inesperado – podia ser na altura de dar banho às crianças; lá fora no jardim gritavas o meu nome, que me fazia vir a correr, e dizias coisas que acho que inventavas e saiam-te como um poema de Neruda. Amava-te quando a nossa liberdade era essa porta aberta ao que sentíamos ser partilha, amarra, terra um do outro. Tu eras a porta escancarada para o meu estado mais puro, livre. Mais recentemente, pediste-me de novo que perdesse a memória dos últimos dias. Que perdesse o rasto do caminho para casa, porque estavas farto de não ter paz – dizias que o meu brilho te ofuscava. Falavas que estavas velho para andarmos por aí pela noite a fazer amor, como quando jovens; do clube a caminho de casa, o Paul Anka e os Shadows ainda nos vibravam o corpo e quebrávamos as ondas do Guincho. Disseste que não voltasse a cruzar o teu caminho – que o divórcio me assentava. Dei por mim, alguns dias depois, fechada numa sala de um hospital. Mais tarde disseram-me que não tinhas apresentado queixa-crime. A infelicidade instalou-se nas paredes lá de casa, nas estantes varridas de livros, nas coisas ridículas que tinhas deixado há muito tempo. Procurei muitas vezes as memórias que noutros tempos ocultei a mim mesma, mas todas elas se vestiam das últimas memórias de ti. Adeus, amor. Repetia na ânsia de te voltar a ver – na agonia de te voltar a perder. Por isso, não entendi ao que vinhas quando te vi para lá do ralo da porta, meio deformado. Deixei-te entrar sem articular uma palavra. Eu tinha emagrecido imenso, tu estavas bonito, como te conheci. Estendeste-me o pacote – é para ti, disseste. Rasguei o embrulho e disseste que era um disco como antigamente gostávamos de escutar e pusesteo a rodar no velho gira-discos. Vim saber como estás – disseste. Eu instiguei com a cabeça. Levaste-me pela mão e dançaste comigo pela última vez, depois abriste a porta. A rapidez com que as minhas memórias escondidas me invadiram o cérebro, a celeuma das dores, dos inchaços, do sangue a jorrar das minhas memórias, em mim…aquela estatueta “art noveau” ali mesmo à mão, a atingir-te na cabeça…a porta a fechar-se com um pontapé. Fechei-nos ali dentro à chave a sentir ainda a liberdade de estar junto de ti. Chorei-te; chorei-nos e ao que tínhamos perdido no fim. Afaguei-te os cabelos sujos de sangue, cheirei o teu perfume, tomei-te as mãos. Ao tentar abrir os teus dedos já rigor-mortis, um papel meio amarrotado soltou-se. Estou para aqui sentada a olhar pela vidraça, há horas. Sem ver nada. Nas mãos, o papel sujo, des-

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gastado nestas horas de luto, agasta-me o pouco que já nada sou sem ti – vem comigo! – está escrito naquela tua letra apressada. As lágrimas foram-se para sempre – quebro o encantamento da vidraça nesse instante e decido que vou mesmo e que desta vez, é para valer – quando me sinto respirar o último torpor de liberdade, deitada ao teu lado, de mão na mão, deixo-me levar nas palavras já longínquas da música – “you’re my destiny”.

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IV CONCURSO LITERÁRIO

OS IDOSOS E A SOLIDÃO António José Rodrigues

3º Escalão/Crónica 110


OS IDOSOS E A SOLIDÃO Em 11/02/2011, relatava o jornal Público: “às 14h50 do dia 12/11/2002, um militar da GNR de serviço no posto de Rio de Mouro (concelho de Sintra) registou que ali se tinha deslocado uma senhora para participar que não via a vizinha, Augusta Duarte Martinho, há três meses. Foi-lhe respondido que o desaparecimento só poderia ser participado pelos familiares, de acordo com a lei. (…)”. A participação legal foi feita uns dias mais tarde, a 25/11/2002 por um primo de Augusta, Armando Gaspar, na esquadra da PSP de Sintra. Apesar das duas participações, as autoridades policiais não actuaram: a GNR, com o pretexto de que a participação deveria ser feita por um familiar, até terá gozado com a vizinha preocupada e explicou que não podia arrombar a porta da casa; a PSP, apesar da participação ser feita por um primo (familiar, de acordo com a lei) da desaparecida, também nada fez. Face à inércia das autoridades, o Armando Gaspar comunicou o caso também ao Tribunal da Comarca de Sintra, mas o resultado foi o mesmo. Contudo, há sempre quem possa arrombar uma porta de casa particular: os amigos do alheio, por forma ilegal, para levarem os haveres que encontrarem, nem que para isso tenham de usar da violência, por vezes até à morte dos indefesos residentes na casa; os cobradores de impostos que, a mando das autoridades fiscais, autorizam qualquer tipo de arrombamento no cumprimento da lei. Foi o que aconteceu com a casa da infeliz Augusta, em consequência de não ter pago as contribuições prediais da casa onde faleceu: o fisco penhorou a dita casa, mandou-a leiloar e vendeu-a, tendo como base de licitação o valor de 1.500 €, correspondente às contribuições em dívida. Foi em consequência da compra da dita casa, em 2011, que os novos donos se depararam com uma cena macabra: quando arrombaram a porta da casa de Augusta, encontraram esta mumificada, vigiada de perto, durante 9 anos, pelo seu fiel amigo, o qual terá também falecido a velar a sua dona, que habitualmente lhe dava de comer. É caso para dizer, alguns animais são tão fiéis aos donos que mesmo após da morte não os abandonam. Nos dias que se seguiram a esta notícia, outros casos semelhantes têm sido anunciados; mais chocante ainda têm sido as notícias que nos fizeram saber que, durante as épocas festivas de Natal e Ano Novo, centenas de idosos e doentes são internados nos hospitais, lá continuado depositados mesmo depois de terem recebido alta médica, porque não têm para onde ir. Afinal não será este tipo de sociedade a melhor e mais justa para vivermos, ao contrário do que nos têm feito sonhar. Isto é um fenómeno dos novos tempos, a desumanização dos nossos concidadãos, familiares e amigos, em que a solidão dos idosos é a prática corrente, em especial nos meios urbanos. Ao que consta cerca de 400.000 idosos, de idade superior aos 65 anos, vivem no nosso país em completa solidão. Uns por abandono dos filhos e familiares próximos, outros porque nem sequer têm filhos ou familiares. A grande maioria por não terem bens hereditários, pois de outra forma sempre acabaria por aparecer algum parente mesmo afastado, mais que não fosse depois do último suspiro do finado. Como ficou demonstrado no caso de Augusta Martinho, o fisco cumpriu a missão que lhe interessava até ao fim, já que no aspecto mais digno da solidariedade não teve um único gesto; quanto à Segurança Social acomodou-se, pois era menos uma pensão (porventura miserável) que deixaria de pagar.

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Conclusão: este país não parece ser uma “República baseada na dignidade da pessoa humana, nem solidária,” conforme determina o artigo 1º da Constituição da República Portuguesa. E nós, os portugueses, decerto com muitas excepções, mais parece que somos todos parte da dita geração “à rasca” ou geração “parva” hoje mais em voga, onde dezenas de milhar de jovens licenciados se encontra em situações precárias, sendo que cerca de 190.000 trabalham por conta de outrém, sob a direcção e orientação de determinadas empresas, recebendo como trabalhadores independentes através de recibo verde, com remunerações pouco superiores a 500€ mensais e, outros menos afortunados, mais de 60.000, não têm sequer qualquer actividade profissional. Será porque não conseguimos impor a quem nos governa, mais respeito pela dignidade da pessoa humana, designadamente fazendo cumprir a legislação laboral? Nem mesmo conseguimos levar as instituições judiciais a cumprirem o seu dever de fazer justiça. Se não conseguimos nada disto, muito menos conseguiremos almejar a construção de um Estado Social, como nos têm prometido. Assim, resta-nos a esperança de que, pelo menos, uma boa parte das gerações sobreviventes se consiga organizar em termos de solidariedade, aderindo a organizações que fazem do conceito de cidadania a sua forma de estar na vida, juntando jovens e idosos em torno de associações como os Bancos Locais de Voluntariado, como já existem no município de Azambuja e outros, criados com o objectivo de fomentar a solidariedade e o espírito de entreajuda no combate aos problemas sociais. Se ainda houver pessoas solidárias, sugere-se que os interessados poderão obter informações mais precisas nos seus serviços municipais, nas suas Juntas de Freguesia ou nas Instituições Particulares de Solidariedade Social locais. Finalmente, se não formos capazes de reivindicar mais solidariedade de quem de direito, nem de nos inscrevermos num Banco Local de Voluntariado, resta-nos a faculdade de sugerir ao governo, numa atitude de humor negro, para criar legislação que dê poderes aos cangalheiros para arrombar as portas das casas das pessoas desaparecidas que, na eventualidade de terem mesmo falecido, sempre podem cobrar o seu trabalho após a realização do funeral dos finados.

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IV CONCURSO LITERÁRIO

O GENOMA Maria João Faria Rafael

3º Escalão/Crónica 114


O GENOMA Deram nas notícias que descodificaram o genoma feminino. Pelos vistos deve ser algo incrivelmente importante. Fala-se do assunto como se tivessem resolvido um grande mistério e como se isso fosse salvar a humanidade. Possivelmente, a falta de emoção com que escutei a notícia e desta não me ter desencadeado o frenesim que vi nos rostos dos outros, é qualquer coisa que me faz sentir díspar. A verdade é que não sou menos segredo agora, que descobriram a massa de que sou feita, assim como as mulheres em geral. Há um traço meio oblíquo e curvo na minha boca enquanto observo os cientistas a tentar explicar factos que se perdem em tempos milenares, sobre o esboço da circunferência da mulher. E eu, que sou um enigma, vem-me à lembrança todas as mulheres com que me atravesso todos os dias e serão sempre charadas, mesmo que lhes escute as conversas, que as observe com os filhos, com as amigas ou com os homens das vidas delas. O segredo não está nas equações, na quântica ou na biologia. O mistério está no elo de ligação da intuição das mulheres entre si. Não há nada mais arriscado do que o olhar de uma mulher que se cruze com outra e que o roube. Nada a fazer quanto a isso, senão esperar que ela não queira o mesmo sonho. Acho que percebes o que quero dizer, qualquer uma tem o dom de adivinhar-te em mim, e mesmo que não te queira, essa silenciosa inconfidência será como uma marca de dentes felinos, de fêmea ferida. Claro que esse concubinato de intuição entre mulheres é tudo menos do que um acordo de cavalheiros. Elas são as feras, as virtuosas, as vítimas das outras predadoras. Mas isso a explicação do genoma não pode revelar, porque não é perceptível ao microscópio. Só nessa ligação intemporal e transensorial que as enfeitiça entre si. Por isso, meu amor, quando estiveres à solta nos meus olhos, deixa que lentamente os cerre, para que não me roubem a alma.

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IV CONCURSO LITERÁRIO

ESTA NOITE Marta Sofia Oliveira Ferreira Santos

3º Escalão/Poesia 116


ESTA NOITE Esta noite eu não quero dormir sozinha. Vou embrulhar-me num xaile feito de amor e da tua presença, agora feita ausência, que não me deixa dormir. Mas esta noite eu não quero sentir a falta que me faz o teu calor, ou por outras palavras, a forma perfeita como a minha cabeça repousa no teu peito. Esta noite vou imaginar que te materializaste num xaile bordado de cor amarelo-alaranjado-vermelho-arco-íris-amorpaixão. O xaile mais bonito da festa. Nesse xaile pintado de cores que o mundo não tem, eu vou sentir-te apertares-me o corpo contra o teu. Vou sentir a tua mão a conversar com os meus silêncios. Vou fazer um chá do teu aroma a príncipe-real. Vou pegar na chávena e no xaile e vencer a insónia do longe que estás. Porque é a tua não-presença que me faz perceber o quanto a tua presença me conforta e a tua ausência me dói. Hoje vou falar-te de uma dor que não tem nome e que se ergue sobre o meu olhar. A dor de não te ter e um xaile que vai caindo sobre os ombros com tecido de esperas. Esta noite eu não vou dormir sozinha, vou dormir abraçada aos pensamentos sobre ti e repousar a minha cabeça na minha almofada, como se fosse o teu peito. O xaile, o chá e a chuva lá fora. Mas mesmo que seja uma tempestade, a saudade, essa eu não vou deixar entrar para dentro de casa. Esta noite eu não durmo sozinha.

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Rede de Bibliotecas do Município de Azambuja

V CONCURSO LITERÁRIO

2011/2012


V CONCURSO LITERÁRIO

UM REENCONTRO Henrique Miguel da Rocha Gonçalves

1º Escalão/Conto


UM REENCONTRO Apresento-vos o Vasco, a Joana, o Rui e o Pedro. Quatro humanos, quatro amigos e quatro vidas diferentes. Amigos de alma e coração, desde a mais tenra infância até aos treze anos, acabaram por seguir caminhos diferentes, tomaram decisões diferentes, viveram sob regras diferentes, nunca mais se vendo… ou será bem assim? Na verdade, apesar de tudo, tal como todos os outros humanos, amigos ou não, vieram a encontrar-se todos num mesmo lugar. Uns chegaram primeiro que outros. Foram chegando, meses, anos ou décadas depois, mas, como já referi, todos eles se reencontraram. E todos se encontraram comigo. Como é que eu sei? Bem, eu assisti a tudo. Fui eu quem os apresentou novamente, fui eu quem os conduziu para o lugar do seu reencontro. Eu sou o destino que todos os homens partilham. Será que já sabes quem eu sou? Se não souberes bem… deixa-me apresentar-me. Eu … sou a morte. Estes amigos são apenas quatro exemplos, quatro pequenos exemplos de vidas que eu observo, esperando pela altura certa para os conhecer, e, tal como eles, também tu irás conhecer-me um dia. Conheci cada um deles por intermédio de patrões diferentes, dos quais te vou falar. Deixem-me contar-vos como conheci o Pedro. Estava no cabo do promontório quando ouvi, vinda da praia, uma crescente onda de tumultos e eu sabia porquê… Para alguém ter o meu trabalho tem sempre de estar um passo adiante e saber quem ir buscar, e eu pressenti que ia ter uma tarefa pela frente. Quando cheguei à praia, dei de caras com um magote de pessoas. Passei por entre eles e senti os calafrios que lhes penetravam a alma e pus-me na extremidade da praia. Aí vi, através da penumbra, um navio, mas não a habitual imagem de um barco. O que eu vi foi um aglomerado de clamores e choros, e enquanto eu estava ali, uma outra parte minha já trabalhava entre eles. O navio estava ao mesmo tempo a ser arrastado pela corrente e a ser bombardeado pela incessante vaga de ondas. Naquele momento de aflição, desespero e dor, já eu tinha colhido vinte almas e vi por entre os destroços o Pedro a debater-se contra o mar. De nada serviu a experiência dos lobos do mar. Tanto eles como os grumetes e o Pedro submergiram, um a um, enquanto eu os abraçava e os levava comigo. Aquilo que em tempos fora um imponente navio parecia naquele momento não mais que uma casca de noz esmagada e posta numa banheira. Tudo, desde o mastro, o porão e a talha do piano do capitão desapareceram por entre as ondas, que reclamaram o navio para elas. Nem uma alma se salvou. E assim, enquanto ele se debruçava na água, esforçando-se pela salvação,

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eu trouxe o fim ao Pedro. Ele sentiu o meu braço, para ele tão terrível como aliviante. Aliviante pois acabara de lhe tirar o fardo que era lutar pela sua vida contra um tão temido adversário, o mar. E foi assim que conheci o Pedro, através de um dos meus patrões, o mar. Mas, por vezes, é assim. Mesmo que não gostemos de um certo ato de trabalho temos de engolir o sapo, porque o patrão manda. Como em muitos outros casos, penso que o Pedro chegou cedo de mais. Tinha dezoito anos. Cinco haviam passado desde a última vez em que os amigos se encontraram. Vou já dizer-vos como conheci a Joana e o Vasco. Bem, afinal de contas é a mesma história. E, ao mesmo tempo, são histórias diferentes. Antes disso, têm de saber que quando eu vos disse que eles nunca mais se encontraram, isso não é bem verdade, mas também não me posso lembrar de tudo com clareza. O Vasco e a Joana estavam perdidos de amor um pelo outro. Tinham agora vinte e seis anos. Apesar de a história ser a mesma, eu conheci o Vasco e a Joana através de patrões diferentes. Era sexta-feira e a Joana e o Vasco andavam os dois sossegadamente pelo passeio com destino à estação de comboios. Ambos tinham de ir trabalhar. O fim de semana estava próximo e os planos eram muitos. A Joana, com os seus fones nos ouvidos, esperava descontraidamente de mão dada com Vasco no banco da estação. Pouco faltava para o meu encontro com um deles. Foi às nove horas e vinte e cinco minutos que a Joana deu o primeiro passo para a maior mudança da sua vida. Quando o seu namorado lhe deu sinal para irem apanhar o comboio, ela, a Joana, enviava mensagens no seu telemóvel. Com os fones nos ouvidos ouvia a música da moda. Por isso, não prestava atenção ao comboio que se aproximava no plano de fundo. O comboio aproximava-se cada vez mais e eu já dava os meus primeiros passos em direção da Joana. Vasco, no entanto, tinha outros planos. Tinha acabado de comprar um jornal quando se apercebeu do perigo que a sua namorada corria. E correu, correu, correu em direção a Joana empurrando-a … conhecendo-me assim, muito antes dela. De facto, só oitenta anos depois, numa cama de um hospital, com todos os seus filhos e netos presentes, a Joana me conheceu. Ela, ao contrário dos seus amigos, viveu uma vida preenchida, passando por muitas dificuldades, alegrias, tristezas, esforços e felicidade, como uma vida deve ser. E só depois de toda essa vida ela me conheceu. E foi assim que eu conheci a Joana e o Vasco. O Vasco, através do meu patrão, o amor, e a Joana, através do meu mais importante patrão, o tempo. E o Rui?

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O Rui foi trazido até mim por outro dos meus patrões mais exigentes: a Guerra. Havia já passado quase quarenta anos desde que os quatro amigos se tinham encontrado pela última vez. O Rui recordava-se da última conversa, das últimas brincadeiras. Como se recordava! Que seria feito da Joana, sempre mandona? E o Pedro, com aquele sentido de humor que a todos divertia? Mas de quem mais sentia saudades era de Vasco, um amigo, quase irmão. Onde estariam? Como gostaria de voltar a encontrá-los. Rui seguira a carreira militar, como seu pai, seu avô e seu bisavô antes dele. Era agora comandante de um exército poderoso. Tinha mulher e filhos, já adultos, que deixara em casa para ir lutar naquela guerra, que nem era a sua. Mas cumpria a sua missão com sentido de dever. Naquele dia, o combate estava ao rubro. Há três dias que homens e máquinas se digladiavam no máximo das suas capacidades. Muitas foram as almas, de um e outro lado, que recolhi. Que desperdício… No ar sentia-se um forte cheiro a sangue e a pólvora. Ouviam-se os gritos dos homens. Enquanto eu serpenteava por entre os corpos caídos, ia trazendo comigo um pai, um irmão, um marido, um filho. Rui gritava ordens para os seus homens. Posso dizer que nem sentiu a bala. O inimigo conduziu-o, como aos outros, até mim. Quando chegou, levei-o aos seus amigos. Comigo esperaram longos anos por Joana. Atrasada, como sempre…

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V CONCURSO LITERÁRIO

POEMA À DOCE MÃE João Diogo dos Santos

1º Escalão/Poesia


POEMA À DOCE MÃE Mãe, gosto de te ver sentada à beira-mar, De corpo iluminado pela luz, Com o rosto virado para as noites de luar. Que são tão completas e doces como tu! Mãe, tens a doçura de uma cereja. Como as que comemos juntos no jardim. Gosto de ti mais que não seja, Pelo teu odor a flores de Jasmim. Mãe, de olhos cor de avelã! Parecidos com os frutos da natureza! Gosto de te ver com os tais vestidos de lã. Que tu tricotas com tanta destreza! Mãe, gosto do teu doce sorriso, Das tuas bochechas coloridas quando coras, E como gosto do teu cabelo liso! E das lágrimas de felicidade quando choras… Mãe, de coração puro e generoso! Quando dás a mão que me segura, Quando me dás o teu abraço caloroso! Quando me dás um beijo com ternura. Mãe, de peito aberto ao fulgor, Que sorri mais que nunca ao me ver bem… Mãe, que mais me podes dar senão o Amor, Ultrapassando os anos que a eternidade tem. Mãe continua a viver assim cheia de Paixão! Mãe, posso sempre contar com a tua Mão? Mãe, de peito forte como o de um leão! Mãe continua a dar-me o teu coração!

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V CONCURSO LITERÁRIO

DUAS CHÁVENAS DE CAFÉ Filipa Alexandra Matias Gonçalves

2º Escalão/BD


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V CONCURSO LITERÁRIO

UM SEM ABRIGO NA AVENIDA DA LIBERDADE Gonçalo Azevedo Torres

2º Escalão/Conto


UM SEM ABRIGO NA AVENIDA DA LIBERDADE Há já algum tempo vi, no computador lá de casa, uma reportagem intitulada “Vida de sobras”, sobre a difícil vida dos sem abrigo em Portugal e Lisboa. Recentemente, por razões que agora não interessam, fui “obrigado” a inscrever-me no “Cambridge” e só havia vaga na Avenida da Liberdade. Claro que o meu primeiro interesse foi começar a analisar a zona que para mim era desconhecida. Reparei que havia um sem abrigo que estava a ler o jornal. Passados alguns dias, perguntei à minha mãe se existiriam pessoas sem abrigo naquela avenida. Ela respondeu que talvez agora não houvesse por se tratar de um local onde se situam as lojas das marcas mais caras e não convém afastar os clientes com imagens “menos próprias”. Na sexta-feira, dia nove de Dezembro eu e a minha mãe precisámos de ir à rua Augusta e estacionámos o carro em frente ao cinema S. Jorge. Quando voltámos, por volta das dezanove e trinta, já havia uma “cama” feita no chão: um colchão com lençóis e um edredão azul turquesa. O sábado, dia dez, foi uma surpresa para mim. Talvez tenha sido o meu presente de Natal deste ano: uma lição de vida. E eu preciso de partilhá-la com alguém. Às oito e trinta e cinco entrei para as aulas de inglês, enquanto a minha mãe deu início ao seu passeio matinal pela avenida e pela baixa lisboeta sem fazer compras porque prometeu, a ela própria, deixar de ser consumista. Diga-se, em abono da verdade, que tem feito um grande esforço nesse sentido. Mais ou menos às nove e meia, estava eu sossegadito na aula, quando a minha mãe (segundo me contou mais tarde) vê o senhor “do edredão azul turquesa” a comer arroz com uma rodela de chouriço e diz-lhe: “Eu vou comprar-lhe um copo de leite e um bolo. Prefere bolo de arroz ou pastel de nata? ”. O senhor respondeu: “Não se incomode, eu tenho comida, obrigado.” Mas ela continuou: “Mas eu vou comprar, só preciso de saber qual é o bolo que prefere”. O senhor respondeu que preferia pastel de nata. Iniciou-se uma longa conversa entre os dois que se prolongou até à minha saída da aula de inglês. Como sempre, dirigi-me para o local onde o carro estava estacionado mas não encontrei a minha mãe e telefonei-lhe. Ela disse-me para ir ter com ela porque tinha uma coisa muito importante para me dizer. E quando cheguei disse-me: -Gustavo, apresento-te um grande senhor: o Sr. Enrique. É espanhol e é também psicólogo. Tem o cartão do Colégio Oficial de Psicólogos de Madrid, pertence ao Conselho Regional de Psicólogos do Rio de Janeiro, foi supervisor de vendas de informação médica dos laboratórios Sandoz e Pfizer, gerente de filial de laboratório da indústria farmacêutica e foi proprietário de uma farmácia no Rio de Janeiro. Nasceu no dia vinte e quatro de Setembro de 1932. Está na rua desde 1983. Cumprimentei o Sr. Enrique com um aperto de mão enquanto ele tirava do bolso dois cartões do tipo “cartão de cidadão” e mos entregava. Olhei para os cartões que comprovavam as habilitações. Se eu que sou de “poucas falas”, desta vez perdi a fala por completo! A minha mãe já me tinha dito que havia pessoas assim a viver na rua mas eu ainda não tinha “vivido” esta situação. A conversa prosseguiu e os assuntos foram diversificados. Falou-nos de dois trabalhos que fez, um na área da matemática, sobre números primos e outro na área da física sobre a matematização da tabela periódica de Mendeleev. Disse-nos que gostaria muito de falar com alguém que estivesse à vontade nestas áreas para discutir sobre estes assuntos. Entregou estes trabalhos nas embaixadas de vários países. No Brasil, na faculdade de Matemática, professores universitários concordaram com grande parte das suas ideias mas na faculdade de Física só falaram com ele durante trinta minutos porque deram mais

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importância à roupa que ele trazia vestida e às barbas, que segundo ele, estavam mais compridas do que estão agora, contou o senhor Enrique com um apurado sentido de humor. No dia vinte e quatro de Setembro deste ano perguntaram-lhe o que queria como presente de aniversário. Respondeu que não queria nada. Mas, pensou melhor e pediu uma História da Filosofia. Em vez de uma, trouxeram-lhe duas. Já as leu mas diz que estão incompletas. Os autores omitem algumas informações importantes conforme as conveniências. Tem direito a uma reforma de Espanha, no valor de trezentos euros que está a ser depositada num banco em Espanha mas é tanta a burocracia que não consegue levantar o dinheiro. Já fez uma greve de fome durante sete meses e chegou aos trinta e nove quilos (mostrou-nos os talões da balança que comprovam este peso). Levaram-no para Espanha e internaram-no num hospital psiquiátrico onde recuperou o peso, mas acabou por dizer “adeusinho, vou-me embora”. Faz as suas necessidades nas pastelarias onde já o conhecem e quando bebe o café deixa sempre o troco como gorjeta. “Eu sei que me deixavam utilizar a casa de banho mesmo que eu não deixasse gorjeta mas eu conheço bem o ser humano…” diz e eu acredito. Enquanto falava connosco olhou para o relógio e disse: -Já não vou a tempo de comprar o jornal mas não faz mal. Esta manhã acordei mais tarde, já eram nove horas. Fui acordado duas vezes durante a noite pela polícia e pelo carro que lava os passeios. Molharam o passeio todo, principalmente os sítios onde as pessoas estavam deitadas. Nunca posso ter muita coisa comigo porque tenho de estar preparado para estas situações. Já sou conhecido e são sempre muito educados comigo. Eu também os compreendo porque sei que cumprem ordens. Depois, decidiu centrar-se em mim: -Fazes bem em aperfeiçoar o inglês. Se tiveres oportunidade de ir a Londres, melhor ainda. Que idade tens? Já pensaste qual é a profissão que queres seguir? -Dezasseis, e ainda não decidi o que quero seguir. -Ainda és novo…Mas digo-te uma coisa. Mais importante que a escolha de uma mulher é a escolha de uma profissão. A mulher podes sempre “trocar”, agora a profissão… se chegares aos quarenta anos e não gostares dela, talvez seja mais complicado. Escolhe uma profissão que gostes e na qual te sintas realizado. És muito calado… és sempre assim? -Mais ou menos… -Eu hoje falei demais e falei depressa para aproveitar o tempo. Foi para compensar os dias em que não falo com ninguém. Sabes…? No meio disto tudo o que custa mais é a solidão… Mas eu estou bem. Acho que o mundo está pior do que eu… Cristo deve andar por aí escondido, algures numa rua, com vergonha de ver o que se passa aqui…

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V CONCURSO LITERÁRIO

FAZ PARTE DE NÓS João Pedro Dionísio Narciso

2º Escalão/Crónica


FAZ PARTE DE NÓS Questionei-me sobre a importância da música. Qual a importância destes ruídos que são capazes de mover multidões? A música é uma constante, quanto a isso não há nada a fazer. Será por acaso que nos anos sessenta as raparigas gritavam desesperadamente pelos quatro rapazes de Liverpool? E que nos anos noventa os jovens vestiam camisas de flanela e fumavam ganzas até cair para o lado? Claro que não. A sociedade depende inteiramente dos fenómenos musicais. A música é capaz de pôr jovens todos vestidos de preto ou a chorar afincadamente pelo seu ídolo. A música caracteriza gerações, sociedades e pessoas. Mas a música não é só para os jovens. Alguém imagina o que seria a televisão ou o cinema sem música? Não faria qualquer sentido, visto que diferentes músicas nos transportam para universos diferentes. Já imaginaram o Titanic sem o “My heart will go on” ? Ou os anúncios da Optimus sem as habituais músicas? Adoro as músicas da Optimus. Talvez seja por isso que sou “Optimus”. Ora aí está. O poder da música em acção. A música, para além de inevitável, é também uma “rede social”. É capaz de pôr uma multidão a gritar as mesmas palavras e a conviverem apenas por partilharem o mesmo gosto musical. Cria “sociedades” de pessoas com gostos comuns. Pode-nos ajudar a conhecer raparigas na praia ou um companheiro de festival. A música esteve sempre lá: quando só através dela se conseguia transmitir que algo estava errado e era preciso intervir; quando naquela altura não se ouvia outra coisa; quando estávamos todos juntos com uma guitarra; quando estávamos e pensar em algo ou em alguém; quando nos pusemos a dançar e a gritar bem alto… E quando nos lembramos desses momentos, lembramo-nos dessas músicas. A música faz parte de nós. A música é um lado de nós que não conhecemos, mas que estamos constantemente a descobrir. O nosso universo musical vai-se completando, assim como a nossa identidade. A música cresce connosco. Cada dia tem uma música diferente. Cada um de nós tem uma música diferente.

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V CONCURSO LITERÁRIO

LOUCURA Beatriz dos Santos Rodrigues

2º Escalão/Poesia


LOUCURA Os meus olhos vêem o inferno O meu coração sente a ternura O meu corpo gela ao frio Inverno A minha mente só vê Loucura. Estou Louca Não sei reagir Quero muito ficar Mas só me apetece fugir! Estarei Louca? Não sei… Talvez! Quando a certeza é pouca, Termina a Lucidez…

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V CONCURSO LITERÁRIO

GUARDA-ROUPA Isabel Alice Radburn Nunes Vidal

3º Escalão/Conto


GUARDA-ROUPA Na Carrera San Jerónimo, em Madrid, conhecida por abrir uma das portas às calles taurinas em direção à Praça de Santa Ana e pela cervejaria La Taurina, ponto de encontro de aficionados, revestida de fotografias de lides, de toureiros e de cabeças de touros enobrecidos nos anos noventa pela sua perícia e bravura em praça, agora eternizados pela arte da taxidermia, no segundo andar do número cinco situase o Hostal Centro Sul (dos estrelas), corredor de quartos pacato, a cujas instalações se acede por uma passagem discreta, entre duas lojas, e por dois elevadores pesados, instalados numa impressionante gaiola de ferro. As lojas acomodam-se no espírito da rua, que confere anonimato ao número de porta pela abundância e pela igualdade, em frente ao Museo del Jamón. À esquerda, uma venda de regalos, à direita, Loterias y Apuestas del Estado. O acolhimento no Hostal Centro Sul é pouco aparatoso, circunspecto, num patamar claro e arejado. Transpondo as portas envidraçadas, o ar é condicionado, a decoração simples, os móveis baratos. Sentada ao balcão, Rosa cumprimenta os recém-chegados. Um homem alto e respeitável, de fato azul escuro e gravata, acompanhado de uma mulher vestida num deslumbrante vestido vermelho, realçado por uma echarpe e sandálias brancas. Clientes normais para um hostal central. Rosa explica, em breves palavras, as condições, o preço da diária, a disponibilidade de um quarto, que o casal aceita, e pede identificação. O homem entrega-lhe o seu bilhete de identidade português e pede para ser conduzido ao quarto 222, recebendo um cartão plastificado que funciona como uma chave. Rosa admira-se de ele lhe perguntar se é necessário entregar o cartão à saída ou se o pode guardar até ao final da estadia. «No es necesario. Puede-lo guardar» Rosa, pequena e escura, com fortes traços ameríndios e de idade indefinível, viera com a corrente maciça de emigrantes sul-americanos no início do século. Obtivera aquele lugar no hostal por este ser um empreendimento familiar. Longe estavam os dias difíceis da sua cidade natal, o casamento falhado, os filhos dispersos, as horas infindáveis sobre os tachos das cozinhas onde trabalhara, os clientes que servira à mesa e na cama, os maus tratos numa pequena fábrica de artigos de pele. Aquele lugar no hostal era o paraíso e para ele se arranjava todas as manhãs, penteando o seu liso cabelo preto para trás, preso na nuca. As experiências vividas tinham tornado Rosa numa mulher atenta, que descobria involuntariamente pequenos detalhes, aspecto que era valorizado no hostal. Aliás, fora graças a ela que não se perdera uma criança no nó de ruas que se aglutinava aos pés do hostal, que ela soubera imediatamente identificar como o filho de um dos seus clientes. Ela era assim. Reparava. O comprimento e a cor de um bigode, a forma das unhas, uma cicatriz escondida, a graduação dos óculos. Reparava sem compromisso. Sentada atrás do balcão, agora, revia a imagem do bilhete de identidade do português e a memória revelava dois números seis diferentes na mesma série e quanto mais pensava nisso mais tinha a certeza que o primeiro era mais estreito do que o segundo. Uma hora depois de deixar o casal à porta do quarto 222, Rosa viu passar o homem, dirigindo-se apressadamente para a porta de saída, murmurando: «Hasta luego». A senhora ficara, certamente, a repousar no quarto. A tarde decorreu sem novidade. A partida de dois hóspedes, a chegada de um grupo de estudantes da

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Universidade de Salamanca, o arranjo do fluxómetro do WC do quarto 218, o telefonema do fornecedor de artigos de higiene. A cesta de caramelos ao balcão ainda não fora tocada e já eram sete da tarde. Instalara-se a calma normal daquela hora. O homem do quarto 222 entrou, acompanhado da mulher do vestido vermelho e echarpe branca, cumprimentando-a com um sorriso, saindo ele, pouco depois, de novo, sozinho. Chegou a hora da mudança de turno e Rosa recolheu o casaco, a mala e o pequeno missal que agora lia durante as longas viagens de comboio até aos subúrbios onde o primo lhe arranjara um quarto por pouco dinheiro. Desta vez, aquela velha edição por onde aprendera a ler ficara fechada durante toda a viagem. Rosa quedava-se a pensar, mas quando se dava conta disso era incapaz de reconstituir os pensamentos. O dia seguinte era sábado e as lojas e os mercados viviam-no agitados, com os arranjos das montras, os clientes mais exigentes, o atendimento animado. Nas tiendas ressoavam as vozes fortes, cativando as atenções: «Dos? ¿No.? ¿Por qué no cuatro?» A Carrera de San Jeronimo acordava pacata, oferecendo desayunos simples ou completos. Cartazes anunciavam Churros con mermelada de fresa, Zumos naturales e os turistas instalavam-se em esplanadas a receber o calor da manhã. Nesse dia, Rosa chegou ao hostal às onze horas, carregando dois sacos de compras, papel e tinteiros, que o gerente pedira encarecidamente na tarde anterior. Cumprimentou Robert, um parente distante que entrara ao serviço no ano anterior, bastantes anos mais novo do que ela. Robert era vivo e falador e nos seus turnos aconteciam sempre incidentes extraordinários, segundo ele. Rosa estava já habituada e tratava-o com o mesmo carinho que muitos anos antes usara com Rosália, sua filha mais nova, morta com tifo aos seis anos. Desta vez, Robert garantia que o casal do quarto 222… que havia ali algo de estranho… pois que por duas vezes ele os vira entrar nessa noite, por volta da meia-noite e de madrugada, mas que o homem saíra logo a seguir. «Oh, es normal, mi cariño, que no-la has visto salir, pues…» e Rosa oferecia uma variedade de explicações, mas Robert garantia que ele trazia sempre uma mulher diferente e vestidas todas da mesma maneira. «Rojo?», «Si», que a primeira tinha a cara de Maja… «Vestida o desnuda?», «… pero es igual, no?», mas que a segunda tinha olhos claros. Rosa via agora com toda a nitidez o rumo dos seus pensamentos na viagem do dia anterior. A mulher de vermelho, a primeira, tinha um olhar alegre, mas a segunda não. Aliás, conseguia agora descrever com precisão esse olhar, de alguém encarcerado pedindo ajuda para se soltar. Era precisamente isto que ia dizer a Robert quando foram interrompidos pela entrada do casal do quarto 222. Vinham da rua, carregando sacos de compras, ele de azul e ela com aquele elegante vestido vermelho, as sandálias brancas e a echarpe da mesma cor sobre os ombros. Saudaram-se mutuamente. A mulher seguiu imediatamente para o quarto ajeitando o cabelo com os seus longos dedos e o homem parou para avisar que se iam embora no dia seguinte, desaparecendo depois para o corredor estreito. O telefone tocou. Robert foi saindo, fazendo sinais, apontando para o relógio, que estava atrasado para a aula de Inglês e Rosa era informada de que Maria só iria limpar os quartos do corredor do 222 depois das doze e trinta e acrescentavam que eram precisos mais panos para limpar os vidros, para além da lista regular, e enquanto Rosa anotava tudo no seu bloco, o homem do quarto 222 encaminhava-se sozinho para a porta de saída, com um aceno, murmurando: «Hasta luego». Rosa pousou o telefone. Olhou para a porta envidraçada prestando atenção ao som do elevador descendo até ao nível da rua. Aquela porta era o único acesso ao hostal. Todas as janelas tinham vidros

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duplos e para além disso, o segundo piso não era resguardado de acessos exteriores. Nem de janelas de fuga em caso de incêndio, o que Rosa considerava uma provocação à fatalidade. «Uma gaiola, uma armadilha!» A distância de um salto para a rua mataria qualquer um, e agora ela tinha a certeza de que algo fora do normal estava a acontecer e que a única forma de se esclarecer era bater à porta do quarto 222. Incomodar a hóspede. Alegaria um problema de canalização ou no ar condicionado. A curiosidade minava toda a sua existência, fazia-a duvidar do passado, do presente, do futuro. As mulheres de vermelho eram todas diferentes, tinha a certeza disso. E ia tirar o assunto a fundo agora, logo após a saída do senhor, enquanto a esposa estava no quarto. Bateu à porta e esperou. Bateu de novo. Nada. Inseriu um cartão na ranhura e entrou. O quarto, pequeno e pintado de verde-claro, estava vazio. A cama feita, como se estivesse pronta para receber um novo hóspede. Nada tinha sido tocado. Nada. Rosa abriu o armário e proferiu a palavra que ele escrevera no cartão de registo de entrada ao lado da indicação da profissão: «Colecionador!» Cinco vestidos vermelhos repousavam nos seus cabides. Cinco pares de sandálias brancas alinhavam-se no fundo. Cinco echarpes brancas dobradas cuidadosamente atrás, numa última despedida. Todos os objectos se uniam na cumplicidade de um segredo que Rosa, agora, não queria desvendar. Nessa noite, Robert chegou atrasado e contra o costume, não encontrou o sorriso de Rosa para o saudar, mas o gerente do hostal, furioso. Rosa saíra sem deixar qualquer satisfação. Fora chamado pelo tocar insistente da campainha da recepção. De Rosa, nem um rasto. Desaparecera completamente. Não levara a mala nem o missal, o primo não sabia dela, não regressara a casa, e ele tivera de atender os hóspedes. Também ele, Robert, andara incontactável por telemóvel, tinha embrulhado o serviço todo. Robert escusou-se com as horas de sono. De dia desligava o telemóvel para poder dormir, mas o desaparecimento de Rosa inquietou-o e sugeriu que contactassem a polícia. « ¿La policía? No», «La policía, si» e combinaram que se ela não aparecesse até ao dia seguinte o fariam pela manhã. «Pero mañana es domingo», «Domingo, lunes, es lo mismo, cuando es necesario». A noite decorreu calmamente, com pouco movimento de hóspedes. Robert, especialmente inquieto com o desaparecimento de Rosa, chegou a abrir a mala dela para tentar encontrar uma pista, mas nenhum objecto se mostrava particularmente interessado em dar notícias. Durante a madrugada, o misterioso cliente do 222 pagou a conta da estadia e saiu, só e sem bagagens. Algumas horas mais tarde a camarera Maria chamou o patrão ao quarto 222. Encontrara-o estranhamente limpo e arrumado. Nada fora mexido, tal como tinha acontecido nos dias anteriores, com uma excepção: o vestido de Rosa, ainda com a pequena nódoa de gordura na gola, repousava isolado no cabide dentro do armário e os seus velhos sapatos pretos estavam perfeitamente alinhados por baixo, como se esperassem por algo que, agora sabiam, que nunca mais voltaria a acontecer.

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V CONCURSO LITERÁRIO

CINEMA: ESPELHO DA ALMA HUMANA Jean Pierre Barros de Andrade Neuville

3º Escalão/Crónica


CINEMA: ESPELHO DA ALMA HUMANA “Desde o seu surgir, o grande écran (...) é o espelho da alma humana que está em constante busca de Deus, muitas vezes vezes sem o saber. Entre efeitos especiais e imagens surpreendentes, ele sabe explorar de maneira profunda o universo do ser humano. Sabe fixar nas imagens a vida eo seu mistério. Quando depois alcança os vértices da poesia, unificando e harmonizando várias artes – literatura, representação cénica, música e recitação – pode tornar-se fonte de admiração e de profunda meditação.” É com estas palavras do Santo Padre João Paulo II, a propósito do Encontro de Estudos sobre o Cinema (1998), que venho falar deste tema: cinema. E começo por isto mesmo, o cinema como um intrumento que chama a atenção, que nos cativa: pelo enredo, pelas personagens e pelas imagens; faz-nos muitas vezes pensar em situações que nem nos passavam pela cabeça, e bem reais. Dou um exemplo simples: o genocídio do Ruanda. Quando vi o Hotel Ruanda, não sabia sequer que tal atrocidade tinha acontecido, e sobretudo que tinha sido há pouco tempo, há onze anos; ao ver recentemente Shooting Dogs, filme que retrata o mesmo problema, volto a ficar pasmado com o sucedido, mas mais chocante é o facto de perceber que estas situações acontecem um pouco por todo o mundo, e são esquecidas. Este exemplo choca, de facto, mas dá-nos conta de que muitas vezes é por causa deste ou daquele filme que passamos a conhecer algo. Sabendo então isto, é na verdade urgente que o cinema se torne um instrumento que apele para o bom, o belo e o verdadeiro, para que possa também explorar o mais íntimo do ser humano. Mas o cinema está longe de ser perfeito, e como vai acontecendo com outras artes, vemos os produtores e realizadores a procurar algo mais comercial, que leve menos tempo, dinheiro e trabalho, resultando naquela nova comédia romântica, que é “igual” à do ano passado. Algo que vai em busca do que o mundo procura e não em busca do que é verdadeiro. Isto lembra-me um título bastante anedótico, que tem muito a ver com isto: Oh Não! Outro Filme de Adolescentes. Acho que é o primeiro título de filme, traduzido para o português, que acerta em cheio, porque no título temos o resumo de todo o filme, mais um típico “o rapaz fica com a miúda”. Este estilo, a meu ver, tenta ser o upgrade do clássico e belo conto de fadas, em que o príncipe luta para salvar a princesa e no final vivem felizes para sempre. Claro está que a diferença é abissal, sobretudo nos valores que se tentam transmitir (se é que há algum valor no típico filme de adolescente): no conto de fadas temos o príncipe que cavalga no seu nobre corcel branco, de espada em punho devastando hordas de bandidos e monstros ferozes, viaja por vales e montanhas, e no final vence e casa com a princesa que libertou; no filme de adolescentes o único percurso que existe é, na maior parte das vezes, uma rota pelos bares e discotecas, a única luta é a que o sujeito trava para se manter em pé depois de beber tudo o que tinha a beber, o seu corcel é um carro velho (muitas vezes do pai, sem este o saber) conduzido por gente embriagada; no final, depois de trinta e uma conquistas carnais, faz as “pazes” com a menina dos seus olhos, mas não se percebe se ficam juntos ou não, uma vez que a sensação com que se fica é a de que ele está de partida para a Universidade (longe da menina), e o único objectivo é, pelo menos, mais trinta e uma conquistas, sem que a menina venha a descobrir. Ora onde é que encontramos o bom, o belo e o verdadeiro nesta modernidade que se apresenta à juventude, onde se diz que estudar é mau e ser casto é péssimo? Onde é que o coração inquieto pelo superior o pode procurar aqui? Isto agrava-se, uma vez que são filmes que se vêem com os amigos, ri-se um bocado e está tudo “bem”. Não. Não está. É preciso encarar esta gerção com verdade, mesmo que seja díficil e talvez não traga tanto lucro. Dizer a verdade dói, e por isso custa tanto propagála, por isso diz-se o que convém. Esta geração está sedenta de verdade, por isso procura em tudo viver

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ao limite, porque ainda não a encontrou. Mas quem fala deste género fala de todos os outros, através dos quais se tenta usar apenas um aspecto do cinema, sejam os efeitos especiais ou a acção; para arregalar os olhos, e não para os abrir para o mais profundo. Para lucrar e não para cativar. Vejamos o exemplo dos efeitos especiais: o filme Avatar, de James Cameron, demorou quinze anos a ser feito, é claro que todos ansiavam por um marco tecnológico, mas... e a história? Não há? Como me diz um amigo: “pegaram na Pocahontas e pintaramna de azul”. Chega-se ao ponto de se vender apenas os efeitos especiais? Obviamente que muitos são fascinantes, mas só podem alcançar a sua totalidade, a sua perfeição aliados a um bom enredo, só aí faz sentido ver a beleza dos mundos criados. Olhemos por exemplo para o Star Wars e para o Matrix, filmes em que os efeitos têm sentido, pelo género que tratam, mas sobretudo porque aliados a um guião de qualidade formam um todo coeso, ajudando-se mutuamente a alcançar o que interessa, ou seja, o Homem. Não sou pessimista. Falo destes aspectos porque há filmes que marcam a diferença e são deveras bons e marcos da história do cinema logo, há possibilidade de fazer bons filmes. Recentemente assisti a dois filmes que coloco sem hesitar no topo dos meus favoritos: pelos pequenos detalhes, mas profundos. Falo-vos agora de Gran Torino e de How to Train your Dragon. Ambos filmes sérios e profundos, sendo que o segundo se trata de uma animação. Em Gran Torino trata-se do caminho de conversão de um homem, que não é perfeito, tem os seus defeitos, mas é na relação com aqueles que considerava os seu inimigos que vai encontrar a verdade, abrindo caminho para Cristo. Um filme sem efeitos especiais (atenção, quero deixar claro que aprecio efeitos especiais) e que mostra deveras o caminho do bom, do belo e do verdadeiro, da totalidade do humano, mesmo a partir das fraquezas das personagens. O pormenor do final, em que não é uma vingança cruenta que o move, é algo que deveras mostra a presença de Cristo e da dignidade humana. Atentando agora em How to Train your Dragon, apesar de ser um filme de animação, num mundo fantasiado, não deixa de chamar para a verdade o ser humano. O herói, um pequeno viking, vai demonstrar que não está certo procurar matar todos os dragões, pois ao se relacionar com um, criando uma forte amizade, vai perceber que o homem não conhece os dragões. Apesar de ser entre homem e dragão, não deixa de apelar à compreensão antes de empunhar a espada. De perceber que só se pode derrotar o monstro criado por nós, uma vez unidos e “lutando” juntos contra ele. É um filme muito belo em que os pequenos pormenores demonstram a verdadeira relação entre o herói e o seu amigo. Concluindo, não sou especialista, nem o pretendo ser, apenas quero realçar o que o Papa disse, ou seja, o cinema é para o homem e não o homem para o cinema. O cinema “é chamado hoje a ser veículo de transmissão duma mensagem positiva, que faça constante referência à vida, a Deus e à dignidade do homem”, deve, portanto, adaptar-se aos sinais dos tempos, não no sentido mundano, mas procurando ser veículo (como tantos outros) para a procura que o homem enfrenta, muitas vezes sem perceber: a procura de Deus. Deste modo não percisa de ser recriação bíblica, basta estar atento à verdade da mensagem, mesmo que essa verdade seja difícil de transmitir e receber; não devemos ter medo de falar a verdade, ou melhor, mostrá-la. Esta pode ser mostrada num drama, num romance e até mesmo numa comédia. Não devemos é procurar os clichés que o mundo instiga. Vejamos: uma comédia inteligente fará rir e ao mesmo tempo deve ter lugar para uma lição; já uma comédia “burra” irá pegar em situações corriqueiras que trarão apenas a risota fácil... por vezes situações más e erradas, que através do riso tentam passar o sentimento de que “afinal aquilo não é tão mau”, e isso deve-se evitar. Quem fala da comédia fala da acção e tantos outros géneros que em busca do lucro, tentam fazer cinema com apenas um aspecto exagerado e repetido vezes sem conta, com uma história banal sem imaginação e criatividade, onde os próprios efeitos especiais e fotografia são banais, onde o que interessa é que a personagem feminina deve ser o mais sensual possível e, se não trouxer muitas complicações, ter pouca roupa. Assim, o ci-

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nema passa a ser o espelho da sociedade moderna, onde o bom, o belo e o verdadeiro são afastados e dão lugar ao mau, ao feio e ao falso, camuflados com uma beleza falsa; aqui, basta olhar para o caso da pornografia. O cinema deixa de ser o espelho da alma humana. Por isso devemos procurar o bom cinema, ou ao fazê-lo ou ao desfrutar dele, tendo em atenção “a complexidade do ser humano” e evitando o redutor e destruidor. Dar a conhecer Deus através dele é também um desafio à criativadade, pois um simples gesto, um toque, uma palavra ou uma imagem bela e arrebatadora podem ser guias para este Deus, para esta Verdade que nos ama e pela qual ansiamos, para nela podermos repousar o nosso coração inquieto, como diria Santo Agostinho, desafio este que devemos aceitar. Pois só se encontra Deus na medida em que se buscam o bom, o belo e o verdadeiro, dando-os a conhecer a quem está inquieto e confuso.

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V CONCURSO LITERÁRIO

QUEM DIRIA QUE O REINO DOS MORTOS ERA TÃO ENFADONHO Maria Teresa Martins Garanhel

3º Escalão/Poesia


QUEM DIRIA QUE O REINO DOS MORTOS ERA TÃO ENFADONHO Andava o deus do submundo desconsolado e aborrecido Com a sua vida monótona e sem sal. “Que pouca sorte”, pensava ele meio adormecido, “Logo tinha de ser eu a ficar com este curral”. Zeus ficou com os céus e as tempestades, Neptuno com os oceanos e os mares, E ao irmão mais novo chamado Hades Calhou-lhe o mundo dos mortos e dos azares. Todos os dias era a mesma coisa parada: As grutas inquinadas, sombrias e bafientas, A fogueira quentinha há muito apagada, E as almas pesarosas e cinzentas. O rio Estige era escuro como a noite, sujo e pantanoso, Enorme e intimidante como a ninfa que lhe deve o nome. Circulava o submundo nove vezes como um ramo nodoso, Levando as almas que perderam todo o seu renome. O pobre barqueiro de cara encoberta lá continuava o seu trabalho, Atravessando os mortos para o outro lado E cobrando as moedas reluzentes como orvalho Que lhe faziam tanta falta como um capuz remendado. O cãozinho preto também já estava entediado De tanto tempo a guardar os portões desmedidos. Não tinha ninguém com quem brincar animado E as cabeças tremiam-lhe com os seus leves gemidos. Já nem torturar almas lhe dava alento, Todo o santo dia igual e imutável, As horas arrastando-se naquele mundo triste e pestilento, E ninguém para ter uma conversa agradável. Pensou então Hades: “Vou dar uma volta lá acima ao Monte, Pelo menos livro-me disto por uns tempinhos”. Levou a carruagem de cavalos negros para o horizonte E deixou para trás o reino dos ricos e pobrezinhos.

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Ainda três meses para ver Perséfone de novo, Pensou, admirando a beleza reservada aos imortais, “Mas da maneira como estou não é com isto que me comovo”, E suspirou entediado, invejando os seus simples demais. “Mas podia ser pior”, cismou, avistando o deus mensageiro Tagarelando sem parar com a deusa-rainha. Olhando bem, as suas sandálias bem precisavam de um sapateiro… E o chato parecia-se cada vez mais com uma fadinha… Eternamente a correr de um lado para o outro e a importunar Abespinhando os deuses e arriscando-se a uma lambada Pela sua grande agilidade em exasperar, Já não era a primeira vez que levava uma enorme bofetada. Infernal, cogitava Hades, com as asas a reflectir fulgência, A voz irritante, aguda e estridente, E a sua capacidade para exprimir impertinência… Quem lhe dera que ele tivesse um acidente… Com um trabalho mais chato que um peixe-espada, A vangloriar-se com um sorriso indolente, E abençoado com a personalidade de uma almofada, O seu intelecto não rivalizava com o de muita gente. E Hades mais aliviado: afinal de contas não era assim tão mau. Tinha inteligência, riqueza e nunca esteve no desemprego, E mesmo que o seu trabalho fosse menos interessante que um calhau Sempre era melhor que o daquele labrego.

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Rede de Bibliotecas do Município de Azambuja

VI CONCURSO LITERÁRIO

2012/2013


VI CONCURSO LITERÁRIO

A ERA DAS BORRACHAS Nuno de Vasconcelos Machado

1º Escalão/Conto


A ERA DAS BORRACHAS Era uma vez há muito, muito tempo uma era diferente de todas as outras, da qual nunca niguém se lembra, a Era das Borrachas. Nessa era, todas as borrachas viviam em harmonia, afastadas dos lápis dado que estes eram o maior inimigo das borrachas desde há muito tempo. Certo dia, os lápis quebraram a paz existente entre estes dois povos ameaçando. Depois de muito pensar, o chefe das borrachas decidiu que iam lutar, nenhuma borracha estava à espera desta decisão dado que já tinham perdido várias batalhas contra os lápis. Todas as borrachas com mais de dezoito apagões partiram para a guerra, que iria ser no pior de todos os terrenos alguma vez vistos, cheio de agrafos e pedaços de folhas mal agrafadas, o terreno dos agrafadores. Quando as borrachas chegaram, ainda os seus inimigos não tinham chegado portanto ganharam vantagem, isto é, puderam planear uma boa estratégia de combate para melhor se defenderem dos lápis e também para conseguirem planear ataques estupendos ao longo da batalha, depois de montarem o acampamento de estojos é claro. Passaram-se três dias, três noites e chegaram os lápis liderados por uma forte e poderosa caneta de feltro, porém isto não impressionou a nossa borracha pois tinha uma arma secreta que os lápis nem imaginavam, mas este pormenor só vou contar mais à frente. As borrachas e os lápis lutaram ferozmente, pois ambos queriam a tão desejada e difícil vitória. Eram só golpes fortes e poderosos, porém ambos os líderes só observavam. Já tinham morrido imensos lápis e borrachas, no entanto aquela batalha ainda estava longe do final. Houve um momento em que parecia quase certo que os lápis iam triunfar. Porém a borracha chefe chamou a sua arma secreta, um objeto impressionante, o pior pesadelo de qualquer lápis, o afiador mais temido de toda aquela terra, o afiador com depósito! Ele podia afiar vários lápis sem ter de ir à casa de banho. Graças ao afiador, todos os lápis morreram mas ainda sobrava a caneta de feltro que o afiador não consegui afiar. Então a borracha chefe teve de abandonar o seu local de descanso e atacou. Há muito tempo que ninguém via uma luta destas. A borracha tentava de tudo para acabar com a miserável caneta, mas ela era dura e forte. A batalha durou três longos dias, porém só na última hora é que a batalha se dicidiu, com um golpe certeiro, a borracha partiu a caneta em dois. Foi a vitória! Há quem diga que a borracha morreu devido ao golpe, mas também há gente que pensa que a borracha foi preparar outra batalha, pois naquelas terras ainda não há sossego.

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VI CONCURSO LITERÁRIO

PASSINHOS DE PÊLO João Diogo dos Santos

1º Escalão/Poesia


PASSINHOS DE PÊLO Pela fresta da janela Entra um sol deslumbrante Entra uma luz tão bela: Num dia que se adivinha pasmante. De mansinho, ouço logo uns passinhos Que saltam para a minha cama, E sinto uma lambedela! Vocês não sabem? É a minha cadela! Somos amigos muito divertidos Criança e animal. Fazemos tantas brincadeiras É a alegria total! Em cada dia que passa A amizade floresce Pertence a toda a família, Esta amiga que cresce! Ao fim de alguns anos, De tanto carinho e felicidade E de tantos passeios dados A sua velhice chegou. Perante todos os percalços, A vivacidade não acabou. E depois de tantas alegrias, O seu dia efémero chegou, Ficarão no coração os dias, Maravilhosos que connosco passou. E para quem não sabe, esta história: É dedicada ao animal mais feliz E de olhar triunfal, Que na nossa vida fez glória Que quem não ama um animal, Então não sabe o que diz.

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VI CONCURSO LITERÁRIO

SACRIFÍCIO HUMANO DE ALICE Filipa Alexandra Matias Gonçalves

2º Escalão/BD


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VI CONCURSO LITERÁRIO

PESADELO Inês Miranda Tavares Gonçalves Alexandre

2º Escalão/Conto


PESADELO Ainda ressoa no ar o som da décima segunda badalada quando um grito de mulher acorda a casa. Dois pares de pés descalços descem rapidamente a escada de madeira e irrompem pelo quarto da velha senhora. A luz do luar chega de uma janela do corredor e ilumina precariamente o quarto amarelo. O grito cessou, mas os dois grandes olhos azuis no meio da juba de cabelo branco estão abertos de pânico e as mãos rugosas, velhas, apertam a grande colcha dourada contra a camisa de noite. A velha está imóvel e só a leve brisa que jorra da sua boca a declara como viva. Os dois jovens acendem a fraca luz do quarto e sentam-se um de cada lado da velha senhora. A rapariga, evidentemente mais velha, traz um pijama listado vermelho e o cabelo castanho emaranhado contra as costas. O rapaz, baixo e franzino, uma criança, afasta a franja loura dos olhos e pega na mão da avó. Esta deixa que o neto lha desprenda da colcha e a envolva nas suas pequenas mãos quentes. Enquanto isto, a adolescente coloca um braço sobre os ombros magros da velha e encosta a sua cabeça à dela. Agora, a senhora já pode descansar. Fecha os olhos, dá um longo suspiro e murmura palavras incompreensíveis de agradecimento. Os três adormecem rapidamente. De manhã, já os raios de sol iluminavam o quarto há três horas, naquela fria manhã de dezembro, quando o rapaz abre os olhos. Como sempre, a irmã e a avó ainda dormem, por isso, serve-se silenciosamente da pequena casa de banho e sai do quarto em bicos de pés a preparar o pequeno-almoço. Ao ouvir a porta do quarto fechar suavemente, a jovem abre os olhos, encosta a frágil avó contra as almofadas e, depois de se servir silenciosamente da casa de banho, sai do quarto e segue para a mercearia. A velha senhora, que não ouvira nem o neto nem a neta, mantém-se calmamente adormecida, num sono invulgarmente sem sonhos. Ouve-se, então, o tinir de uma campainha. Parece ter vindo de muito longe, como todos os barulhos que vêm de fora do quarto amarelo, mas esse leve aviso de pequeno-almoço pronto acorda a velha. Nem dois segundos passam entre o abrir de olhos e o abrir da porta. O rapaz surge com um tabuleiro equilibrado nas mãos. Este traz uma tigela de papas, seis uvas descascadas, um copo de leite, uma chávena de chá, uma torrada e uma banana. O rapaz põe o tabuleiro no colo da velha e retira de lá a chávena de chá e a torrada. Vira-se e estende as mãos, de costas voltadas para o leito. to.

A sua irmã, que entrava então no quarto, aceitou o seu pequeno-almoço e sentou-se no chão do quarA velha colocou as uvas nas papas e começou a comer, deixando ao rapaz o seu pequeno-almoço,

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que ele comeu ao lado da irmã, igualmente sentado no chão. Após acabarem o pequeno-almoço mantêmse nos seus lugares aproveitando o silêncio da casa. Ouve-se o grande relógio de cuco do corredor dar as 12 horas. A rapariga automaticamente levanta-se do seu transe, pega no tabuleiro com as coisas do pequenoalmoço, e leva-as para a cozinha. O rapaz segue-a. A velha, essa, levanta-se pela primeira vez naquele dia e serve-se ruidosamente da casa de banho. Após isto dirige-se de novo para a cama. Inesperadamente, e contra a sua vontade, aproxima-se da porta do quarto e coloca a sua mão sobre a maçaneta. Num último ato de autocontrolo, fixa os seus olhos no teto do quarto, onde foram pintados retratos de pessoas esquecidas, nos quais se veem algumas características dos seus netos. O nariz pequeno dela, os olhos castanhos dele, as maçãs do rosto de ambos. Eram tantas as semelhanças entre aqueles espíritos e os seus meninos… A velha inspira fundo, larga a maçaneta e dirige-se de novo para o leito. Não demorará muito para que eles regressem da cozinha com o seu almoço. Assim sendo, voltam passados 15 minutos com sopas frias de bacalhau que a velha come sempre ao almoço. Após lhe colocarem o tabuleiro no colo, abandonam o quarto para cumprirem o resto das suas tarefas. A idosa come pausadamente, sentido bem na língua o sal do mar. Na sua memória baralhada pensava ouvir as ondas e sentir o cheiro do oceano, mas não tinha a certeza. Já não tinha a certeza de nada, exceto daquela horrível sensação de medo constante que lhe incrustava pedras de gelo no peito que teimavam em derreter. Quando fechava os olhos via rostos, tantos rostos… Abriu os olhos ao som fraco da campainha. O seu menino obediente trazia-lhe o jantar. Como sempre, pousou-lhe delicadamente o tabuleiro no colo, tirou de lá o primeiro prato, esticou os braços e esperou. Onde está ela? Porque é que demora? O velho estômago da senhora comprimiu-se com os piores pensamentos. Podiam ter passado horas e não segundos, mas como se mede o tempo quando se pensa que o futuro poderá ser um tormento? Finalmente, ela entra. Estava ofegante. A vizinha anafada da frente devia ter-se atrasado com a entrega dos ovos. Segurou então no prato redondo que o irmão lhe estendia e sentou-se aos pés da cama. O rapaz pegou também no seu prato e sentou-se. A velha sorria-lhes enquanto comia e eles retribuíam abrindo a boca e mostrando os dentes perfeitos. A senhora amava-os. Talvez os amasse demais… Depois do jantar os jovens beijaram a avó nas faces e saíram do quarto. Antes de fecharem a porta ouviu-se claramente, dentro do quarto amarelo, o relógio anunciar as 9 horas. Era hora de descansar. Fechou os olhos e adormeceu, tentando esquecer os seus medos. No meio da silenciosa noite abriu os olhos. Se estes não fossem os seus experientes olhos, nada veriam para além da imensa escuridão. Mas ela via claramente todos os contornos do seu quarto, todos os detalhes das fortes pernas de madeira da sua cama.

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Como num sonho, levantou-se. Percorreu o quarto e pousou novamente a mão sobre a ferrugenta maçaneta metálica. Ainda tentou controlar-se olhando para cima, mas os seus demónios incentivaram-na a avançar. Por isso, abriu a porta. Percorreu todo o estreito corredor e começou a subir silenciosamente as escadas. Parou à porta do quarto dos jovens. Olhou em volta e encontrou na mesinha, ao lado da porta, uma faca. Pareceu-lhe natural, o destino talvez? Abriu a porta do quarto. Tudo continuava escuro como breu. Talvez nem os animais noturnos conseguissem ver nesta escuridão. Mas ela conseguia. Foi para junto da cama que os dois irmãos partilhavam. Levantou a faca. Já perdera o marido, os irmãos e irmãs, os sobrinhos, os tios. A culpa não fora sua. Eles tinham merecido. Ela queria ficar sozinha, em paz. Eles diziam coisas nas suas costas. Eles mereciam. Ela tinha sido traída. Ela queria ficar sozinha. Ela queria ficar sozinha. Ela queria ficar sozinha… Enquanto baixa a faca num só golpe seco ouviu-se a primeira badalada das doze. Um grito. Tinha os olhos muito abertos e tentava proteger-se. No quarto amarelo ressoava a décima segunda badalada e ouviam-se baques surdos de dois pares de pés a descer rapidamente a escada de madeira. A porta abre-se de rompante. Os seus meninos entram no quarto, sentam-se ao seu lado, confortandoa. Estão bem. Enquanto eles, vivos, lhe seguram na mão e lhe afagam o ombro ela deixa cair a cabeça para trás fechando logo os olhos para não ter de contemplar os seus demónios. Nunca porei os retratos deles no teto. Nunca porei os retratos deles no teto. Nunca porei os retratos deles no teto… Com este pensamento contínuo adormeceu rapidamente ouvindo a bater calmo dos corações jovens.

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VI CONCURSO LITERÁRIO

DISCURSO DOS LUSÍADAS SOBRE A CRISE Inês Miranda Tavares Gonçalves Alexandre

2º Escalão/Crónica


DISCURSO DOS LUSÍADAS SOBRE A CRISE Caros compatriotas, Estando todos aqui presentes nesta ocidental praia lusitana, sofremos os pesares e males da nossa terra, cuidando de quem tem de ser cuidado e festejando os louvores de quem os merece. O ouro já não reina nos nossos cofres e os ganhos do povo pagam a dívida de governantes que de Portugal não souberam cuidar. Mas não há que culpar estes mortais infelizes que não conseguiram prever as consequências dos seus atos. A História já foi cantada e não pode ser reescrita, mas lembrem-se, o Fado, somos nós que o fazemos! Muitos de vós, devido à dura fase que todos atravessamos, desejam navegar por mares nunca antes pessoalmente navegados, mas resisti a essa infame tentação, pois para tornar esta decadente fase efémera temos de unir a nação e precisamos da ajuda de todas as almas. Não oiçam também velhos honrados, que no meio das gentes temem a novidade, clamando pela tradição e ditadores mortos. Estão errados! Já não precisamos de gritar por compaixão junto das feras, pois se nos unirmos, a nossa voz será ouvida até no centro do planeta. Então, unamo-nos! Encontremos juntos a Ilha dos Amores. Os governantes que tomem medidas que protejam os letrados e esforçados, os trabalhadores e experientes, aqueles que mesmo pobres alimentam o poder do país lusitano. Aos governados, que pelo esforço hercúleo mereciam as maiores honrarias, peço apenas que continuem e que espalhem essa semente nacional por todos os incumpridores e preguiçosos que por diversas razões falham para com o povo português. Obrigado.

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VI CONCURSO LITERÁRIO

CARTA AO REI Gonçalo Azevedo Torres

2º Escalão/Poesia


CARTA AO REI Caro Rei Lusitano Vós vivestes onde hoje habito Lutastes com o império Romano E o vosso nome ficou escrito

Derrotámos Adamastor Mostrengo que privava o homem De navegar além do Bojador

No dia em que o primeiro Rei foi proclamado Acabara de começar a viagem Porque assim exigia o fado Que chegássemos à outra margem.

Edificámos o império até ao Oriente Se o destino o previa Então, torno-me num crente Afinal de contas “foi por cristo” Que realizámos o que estava previsto.

Desconhecíamos o mundo Até aparecer D. Dinis, Que com os templários estipulou o futuro, Fortalecendo a raiz.

Mas nem tudo perdura! Espanha apoderou-se de nós Caímos na amargura Sem nunca mais encontrar a foz

Se Pangeia foi dividida Foi pelo mar que Portugal Recuperou a lenda perdida

O livro que folheio Fala de um povo fictício Porque no meu enleio Esse povo está diferente do início.

Uniram-se as terras Uniram-se os sábios Fizeram-se guerras Explorámos mundos imaginários

Hoje, Portugal não existe! O futuro não é incerto E não é por ser esperto Que digo: que povo tão triste!

Portugal era grande Em tempos remotos Que pela vontade do Infante Embarcámos em vários portos

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VI CONCURSO LITERÁRIO

SOU UM PIANO

João Francisco Mota Cardoso da Cruz

3º Escalão/BD


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VI CONCURSO LITERÁRIO

A CAIXA AZUL Isabel Alice Radburn Nunes Vidal

3º Escalão/Conto


A CAIXA AZUL Ela tinha conseguido estabelecer um compromisso com a vida. Para tal, morava num cubículo pequeno e conveniente situado perto da loja onde trabalhava, tinha relacionamentos com pessoas, telefonava regularmente aos seus familiares, enfim, vivia uma definição de uma vida «normal», a que não dava grande atenção. Cumpria-a, apenas, e tal bastava. Viver era mais do que isso. Havia uma outra definição para o sentimento de estar vivo e esse nada tinha que ver com aquela existência que a sociedade lhe impusera. Quantas vezes, regressava a casa após mais um dia na loja, com o dinheiro da semana na mão, com a sensação de, pelo contrário, ter desperdiçado oito dias da sua vida? E quando tentava explicá-lo aos seus amigos, familiares e conhecidos, perguntavam-lhe: «Então, o que é isso que queres dizer? Não tens uma vida? A tua vida não é boa? Não estás feliz?». As conversas de fim-de-semana, algumas à mesa da leitaria da esquina, porfiavam e esgotavam o assunto: – Construíste a tua gaiola dourada – dizia um. – Há quem esteja pior do que tu – dizia o outro. – Pois é, nunca tiveste um homem! – Exclamava, logicamente, uma outra. – Vocês, pá, nunca estão contentes com nada – argumentava um insatisfeito. – Talvez estejas a chocar uma gripe – dizia a mãe. As pessoas que a rodeavam andavam sempre vestidas com tons pardos, enrugados. Aliás, quando decidia prestar atenção, via como todas as pessoas eram, em geral, grotescas, distorcidas, com feições irregulares, peles encarquilhadas e escuras, com cabelo a menos ou pelos a mais e sempre fora do sítio. Cruzava-se, a caminho da loja, com carecas, desdentados, vultos rebuçados de vestuário daltónico, mulheres sombrias com mala a tiracolo, silhuetas com cachecóis ensebados, enrolados como jibóias, tudo meticulosamente óbvio e triste. Na loja, ficava que tempos a mirar os objetos da vitrina, para não ter de levantar os olhos para a torrente de pessoas iguais e desinteressantes que subia e descia a rua. E suspirava. Foi nessa altura que o senhor Neves, o patrão, lhe fez a proposta de o ajudar nas feiras, aos fins-desemana. No princípio, recusou, já bem bastava a semana toda na loja, mas depois foi uma vez e gostou. Saíam de madrugada aos sábados ou aos domingos, com a carrinha carregada de mercadoria, instalavam-se e montavam a banca. Às vezes, vendiam. Outras, não. Havia sempre a possibilidade, a oportunidade, e era à cata delas que o senhor Neves, de ordinário um homem taciturno e pouco amigo de iniciativas, se aventurava. De regresso, um pouco eufórico, falava de coisas lá do tempo dele, de quando se podia fumar nos transportes e histórias assim. Numa manhã, um domingo cinzento, entre as copas despidas dos gigantescos plátanos do jardim das Caldas da Rainha e o chão lamacento, decidiu andar um pouco entre as bancas dos vizinhos, no meio

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de gente a revolver o lixo de outras vidas. Ela não tinha o hábito de comprar. Não tinha onde guardar. Mesmo assim, quis ver tudo. As loiças lascadas, os santos carcomidos, os livros velhos e despidos das suas capas, as roupas usadas. Chegou até a experimentar um vestido azul do tempo do senhor Neves, mas não quis comprar. Foi na banca ao lado do patrão que viu uma caixinha, no meio de fotografias, postais e cartas sem dono. Era uma caixa azul, de cartão, com um dístico na base. Baixou-se para ler e pegou nos seus bordos. – É muito antiga, – disse a vendedora, levantando-se. – E tem uma máquina digital lá dentro – acrescentou, estragando a surpresa. – E o que diz aqui? – Não sei, filha, não percebo. Deve ser estrangeiro. «Custos somnia» – Faço-lhe a trinta euros. Está como nova e funciona. Quer ver? A mulher tirou a máquina da caixa, abriu o compartimento das pilhas para mostrar, ligou a máquina, fotografou um sapato preto, ajustou o botão e mostrou. – Está a ver? Tirei agora mesmo… Pronto, faço-lhe a vinte e cinco. Ela apenas tinha umas moedas no bolso, por isso a mulher deixou-a ver só um pouco mais. Voltou a colocar a máquina na caixa, bem tapada, e quase em silêncio, murmurou: – É bonito. O dia continuou. Regressaram tarde, e no meio do monólogo interminável do senhor Neves, ela perguntou: – O que quer dizer «custos somnia»? Ele guiava mal e, à chuva, as luzes e o vidro embaciado não ajudavam. Ia mal disposto e, enquanto falava, ia fazendo as contas mentais do prejuízo de um dia de Inverno. – Disseste o quê? Ó miúda, soletra, que o teu inglês é… Viste? Viste? Nem fez sinal, o… Diz lá outra vez… Ela repetiu, mas sem sucesso, por isso ele continuou o monólogo de regresso a Lisboa. Quando a largou à porta de casa, ia ela a abrir a porta, de repente, ele gritou: – «Custos somnia»! Guardador de sonhos. Ou guardião… «Somnia», sonhos. «Custos», aquele que guarda. É um guardador de sonhos. É latim. Boa noite! Amanhã às oito, ouviste? Então a caixa guardava sonhos. O que quereria dizer? Que a pessoa que a usara tirara boas fotografias com a máquina, fotografias de sonho?

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Durante aquele mês pensou bastante na caixa e nos seus sonhos. De facto, ela tinha sonhos extraordinários, que a faziam divagar. Sonhos surpreendentes, onde a cor gritava a ponto de ser palpável, com aromas, sons, sabores bem definidos. Os seus sonhos eram povoados de criaturas fantásticas, lugares inesquecíveis, que visitava várias vezes. Ela já conhecia tão bem aqueles espaços que seria capaz de desenhar os seus mapas com traços rigorosos. Os sonhos eram a realidade invertida e cada noite era um bilhete para uma aventura nova, surpreendente e gratificante. Quantas vezes desejara ardentemente permanecer naquele mundo e nunca acordar. Uma noite sonhou com uma gruta de paredes cristalinas virada para uma lagoa transparente e dali via tudo o que acontecia sob aquela água tranquila. Porém, a lagoa era agora um recife para onde se dirigia uma onda gigantesca carregando uma coroa de espuma pesada e ela sabia-o, mas continuava a brincar com os peixes, nos recifes de cinábrio pontilhados de lapas glaucas. Por mais que antecipasse a chegada da onda, ela demorava, desviava o seu curso, não perdendo, contudo, o seu objetivo. Sentia as algas quentes e macias sob os seus pés, via os peixinhos a cruzarem-se entre as suas pernas. Era tudo tão real que quando acordou viu a onda na parede estiolada do seu quarto. É claro que nem adiantava contar a ninguém sobre o seu sonho. Era escusado fazê-lo, pois não há nada mais fastidioso do que ouvir os sonhos dos outros. Bem o tentara antes, com as pessoas mais educadas, mas a conversa ficara no ar e rapidamente fora substituída por outro assunto. Passaram-se alguns meses e a memória da caixa perdeu-se no esquecimento até que num domingo de Primavera, de novo sob as copas dos plátanos centenários do jardim das Caldas da Rainha, encontrou a mesma vendedora sentada, precisamente ao lado da banca do senhor Neves. Sob uma pilha de fotografias, conseguia distinguir nitidamente o tom azul convidativo cativando o seu interesse e por duas vezes teve medo de o perder nesse dia. Ao final da tarde, aproximou-se da vendedora, que se lembrava bem dela e que não baixava dos vinte e cinco euros. Os seus gestos de ansiedade chamaram a atenção do senhor Neves, pouco habituado a vê-la interessada no que quer que fosse. – Ó vizinha, leve lá os vinte e cinco euros e dê cá a caixa. – O senhor Neves tinha tido um rasgo inaudito de generosidade. – Deixa lá, rapariga. Hoje fiz um bom negócio e tu também mereces. O «Custos somnia» era seu! Até abraçou o senhor Neves de comoção, gesto também inaudito. E nessa noite, sentada junto à mesinha onde fazia os seus trabalhos de restauro, sob o círculo de luz forte do candeeiro de alumínio, abriu cuidadosamente a caixa e analisou o conteúdo. Era forrada de papel antigo pintado com palavras estranhas: cohortis, expugnationesque, capera, tenet, clausit e thesauris. A máquina era perfeitamente normal para um modelo antigo e funcionava. A vendedora dissera que o seu anterior dono morrera quando estava a fotografar uns fritos de Natal, o que não fazia sentido nenhum, a não ser que tivesse comido de mais. Pelo menos, foi o que o senhor Neves concluiu no regresso a casa, antes de a deixar à porta. Mas agora, ela via nitidamente que os fritos de Natal eram os sonhos e que a máquina podia ser usada durante o sono. Nas costas da tampa da caixa sentiu um alto sob o papel e, cuidadosamente, com uma navalha, foi soltando um objeto circular de metal que acabou por saltar para a superfície lisa da mesa. Era uma pilha normalíssima, brilhante sob a luz do candeeiro. Abriu o compartimento da máquina e substituiu a pilha. Funcionava. Apontou a máquina para a cama, fotografou e quis ver o resultado. Rodou a patilha para a função «ver foto». Aí estava, a sua cama.

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Pressionou o botão da seta e surgiu uma fotografia de feira. E outra. E aquela que vira meses antes, do sapato preto, mas depois começaram a revelar-se outras que não conseguia decifrar: paredes crivadas de olhos, um berço em pó, nuvens aladas, uma manada de touros negros a nadarem num oceano lazúli encrespado, retratos impossíveis. Nessa noite deitou-se tarde. Levou a máquina consigo e aguardou, no escuro, ouvindo o vizinho a tossir, o cão do rés-do-chão a ladrar, um choro num prédio vizinho, um grupo de estudantes a passar na rua, perdidos no álcool, o alarme de um carro, uma sirene distante. Três dias depois, a porta de sua casa era forçada por um bombeiro, ladeado pelo senhor Neves. Encontraram a máquina na sua mão fechada e alguém voltou a colocá-la na caixa. Foi um funeral simples, feito com a discrição suficiente, num dia de chuva. Os seus objetos foram vendidos a uma empresa gerida por antigos toxicodependentes, mas a caixa azul encontra-se no gabinete do senhor Neves, na parte traseira da loja, sob outros objetos de coleção que ele amontoa sem cuidado. O negociante afeiçoou-se àquela caixa, mas nunca se lembrou de ligar a máquina nem nunca teve curiosidade de ver o arquivo digital das aventuras sonhadas naquela noite em que ela decidiu não regressar.

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VI CONCURSO LITERÁRIO

CONTRA O PESSIMISMO Maria Teresa Martins Garanhel

3º Escalão/Crónica


CONTRA O PESSIMISMO Há coisas que sabemos que nos fazem mal, mas continuamos a carregá-las connosco. Esta é uma delas. É algo que talvez faça sentido do ponto de vista evolucionário: não temos de estar sempre atentos, sempre desconfiados das intenções de outrém, e sempre a presumir o pior? Afinal, foi assim que conseguimos chegar onde estamos hoje, através da utilização racional da nossa massa cinzenta e da análise das acções dos outros. E não queremos guardar o nosso coração contra as mágoas e as decepções que encontramos na vida quotidiana? Quando já presumimos o pior, qualquer ponto positivo consegue alegrar-nos. Ainda assim, estou bem consciente que qualquer vantagem do pessimismo depressa é ultrapassada pelos benefícios inerentes à escolha de uma vida positiva. A esperança é a última a morrer e todos já ouvimos dizer que pessoas positivas vivem mais tempo. Talvez por isso mesmo tenha decidido enveredar por um caminho que, devo confessar, procuro evitar: um daqueles exercícios simples com garantias de sucesso. A listagem de três coisas positivas que me acontecem todos os dias pareceu-me algo um pouco esquisito; claro que tinha dúvidas, afinal de contas sou uma pessimista crónica. Mas lá tentei. O certo é que me custou imenso encontrar um único ponto positivo, quanto mais três. O exercício agora já não me parecia tão estranho. Era óbvio para mim que quinze minutos a olhar para um papel em branco apenas para escrever algo de bom que me tenha acontecido não é normal. Depois de muito esmiuçar lá encontrei material para apontar. Estas coisas positivas que encontrei com muito esforço e dificuldade eram coisas às quais habitualmente não dava importância nem pensava muito. Não digo que fiquei curada, não. Mas comecei a reflectir melhor sobre um estilo de vida mais positivo, com mais confiança e auto-estima, tentando focar-me apenas em elementos positivos do dia-a-dia. Mas para quem nunca realizou nenhum exercício deste género, como é o meu caso, sentirá muitas dificuldades em desligar aquela parte do cérebro que tem sempre de aparecer e estragar o dia... Não sendo de desistir, persisti. Ao fim de alguns dias era já mais fácil para mim retirar positivismo de acontecimentos quotidianos e banais, aos quais, uma ou duas semanas atrás, não ligaria muito. Como uma pessoa que acredita em carma e em fazer o meu próprio destino através das minhas acções, pensar constantemente de forma negativa é uma tormenta. Parte de mim está constantemente à espera da retribuição de tanto pessimismo. Apesar das minhas dúvidas iniciais sobre o sucesso deste tipo de exercícios da chamada psicologia positiva, fiquei agradavelmente surpresa quando constatei que sim, o meu hábito de pensar em aspectos positivos transferiu-se para as minhas acções diárias; não foi uma grande mudança, mas qualquer melhoria é significativa. E só de pensar assim já considero o exercício um sucesso. Mas seremos todos assim? Ou será mais fácil para alguns sair da mentalidade negativa? Parece-me que a nossa sociedade ocidental privilegiada tem mais tendência a atitudes e comportamentos depressivos e pessimistas, talvez por termos já conquistado tanto. Ao fim de algum tempo, o que temos mais para conquistar? Ou talvez seja derivado dos nossos antepassados que viviam em constante medo do céu cair, de serem atacados por um bisonte ou um mamute, ou de estarem à espera de ser traídos.

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Talvez nunca se saiba exactamente a razão de tanto negativismo. O certo é que sofremos de menos desilusões, apesar da esperança e alegria que marcam tantas vidas escaparem àqueles de nós que têm dificuldade em aceitar que as merecem.

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VI CONCURSO LITERÁRIO

GOSTAR DE TI Natália Marília Massa Constâncio

3º Escalão/Poesia


GOSTAR DE TI Se digo que esta meiguice que por Ti sinto não é amor, minto. Se digo que esta alegria que experimento, a cada dia e em cada momento não me enriquece, minto, obviamente. Esta Luz que docemente inunda o meu coração - paixão, amor (seja o que for), tirou o meu ser da escuridão e transformou cada lágrima, cada sombra de amargura, em pétalas de riso e Arco-Íris de ternura.

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