A psicanálise dos contos de fadas

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Na maioria das versões de Borralheira ocorre um incidente estranho: as irmãs mutilam os pés para que eles caibam no sapatinho. Embora Perrault exclua este fato, de acordo com Cox ele aparece em todas as "Borralheiras", com exceção das que derivam de Perrault e pouquíssimas outras. Podemos encarar este incidente como expressão simbólica de alguns aspectos do complexo de castração feminino. A mutilação do pé das irmãs é a última barreira para o final feliz; ocorre imediatamente antes do príncipe descobrir Borralheira. Pela última vez as irmãs, com a ajuda ativa da madrasta, tentam lograr Borralheira para tirar-lhe o que de direito lhe pertence. Para calçar o sapato as irmãs mutilam os pés. Na estória dos Irmãos Grimm, a irmã mais velha não consegue calçar o sapato por causa do dedo grande. Por isso a mãe lhe entrega uma faca e diz-lhe para cortar o dedo, porque quando for rainha não precisará mais andar. A filha faz como a mãe lhe diz, força o pé dentro do sapato, e vai ao príncipe, que vai embora a cavalo com ela. Quando passam pelo túmulo da mãe e de Borralheira e pela nogueira, dois pombos brancos falam: "Veja, há sangue no sapato; o sapato é pequeno demais; a verdadeira noiva ainda está em casa." O príncipe olha para o sapato e vê o sangue escorrendo. Devolve a irmã. A outra tenta calçar o sapato, mas o calcanhar é demasiado grande, e segue-se a mesma seqüência de eventos. Em outras versões, onde há uma só noiva impostora, ela corta o dedão, ou o calcanhar, ou os dois. Em Rashin Coatie a mãe faz a operação na filha. Este episódio reforça a impressão criada previamente quanto à vulgaridade das irmãs, pois não param diante de nada para lograr Borralheira e conseguir seus objetivos. Manifestamente o comportamento das irmãs contrasta nitidamente com o de Borralheira, que só deseja obter a felicidade pelo próprio eu. Recusa-se a ser escolhida na base de uma aparência criada pela mágica e arranja as coisas de modo que o príncipe a veja com as roupas esfarrapadas. As irmãs se apóiam no logro e sua falsidade leva à mutilação, um tema que é retomado no final da estória quando os dois pássaros brancos furam os olhos delas. Mas este é um detalhe tão rude e cruel que possivelmente foi inventado por alguma razão específica, embora provavelmente inconsciente. As automutilações são raras nos contos de fadas em comparação a mutilações inflingidas pelos outros, que são freqüentes como castigo ou por qualquer outra razão. Quando "Borralheira" foi inventada, o estereótipo comum contrapunha o tamanho grande do homem ao tamanho pequeno da mulher, e o pezinho da heroína a tornaria especialmente feminina. Os pés grandes que não cabem no sapato fazem as irmãs mais masculinas que Borralheira, e portanto menos desejáveis. Querendo de-


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